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THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna. Petrópolis: Vozes. 1989. Ideologia e os ideólogos (44-54) O termo "ideologia" foi primeiramente usado pelo filósofo francês Destutt de Tracy, em 1796, para descrever seu projeto de uma nova ciência que estaria interessada na análise sistemática das idéias e sensações - na geração, combinação e consequências das mesmas. Destutt de Tracy era um nobre rico e educado que tinha estudado as obras de pensadores iluministas como Voltaire, Holbach e Condillac. Embora de Tracy tivesse apoiado muitas das reformas ligadas à Revolução Francesa, ele, como outros intelectuais de descendência nobre, foi colocado na prisão durante o Terror Jacobino2. Para Tracy e para alguns de seus companheiros prisioneiros, parecia que Robespierre estava procurando destruir o Iluminismo. Para esses intelectuais, a anarquia bárbara do Terror poderia ser combatida por uma combinação de filosofia e educação, baseadas na análise sistemática das idéias: essa seria a maneira como o legado do Iluminismo poderia ser concretizado (45) no interior de uma situação revolucionária. Embora muitos ex-nobres e intelectuais tivessem morrido, ou sido mortos, durante o Terror, de Tracy foi libertado da prisão logo após a queda de Robespierre em 1794. No final de 1795, de Tracy e seus companheiros chegaram a uma posição de poder na Nova República, com a criação do Instituto Nacional. Ò Instituto era uma substituição das academias reais que haviam sido abolidas por Robespierre. Além de uma Academia de Ciências e de um curso de Literatura e Artes, o Instituto incluía um curso de Moral e Ciências Políticas. Esse último curso era encabeçado por uma sessão relacionada à análise das sensações e das idéias, uma sessão para a qual de Tracy foi escolhido em 1796. Destutt de Tracy delineou os objetivos da nova disciplina, que ele tinha assumido, através de uma série de notas, apresentadas para o curso de Ciências Morais e Políticas em 1796. Seguindo Condillac, de Tracy argumentou que não podemos conhecer as coisas em si mesmas, mas apenas as idéias formadas pelas sensações que temos delas. Se pudéssemos analisar essas idéias e sensações de uma maneira sistemática, poderíamos garantir uma base segura para todo o conhecimento científico e tirar conclusões de cunho mais prático. O nome que de Tracy propôs para esse empreendimento incipiente e ambicioso foi "Ideologia" - literalmente, a "Ciência das Idéias". Ideologia deveria, pois, ser "positiva, útil e suscetível de exatidão rigorosa"3. Genealogicamente, seria a "primeira ciência", pois todo o conhecimento científico envolveria a combinação de idéias. Ela seria, também, a base da gramática, da lógica, da educação, da moralidade e, finalmente, "a maior de todas as artes, isto é, a arte de regular a sociedade de tal modo que o ser humano encontraria ali o maior auxílio possível e, ao mesmo tempo, o menor desprazer de sua existência"4. Através de uma análise cuidadosa das idéias e das sensações, a ideologia possibilitaria a compreensão da natureza humana e, desse modo, possibilitaria a reestruturação da ordem social e política de acordo com as necessidades e aspirações dos seres humanos. A ideologia colocaria as ciências morais e políticas num fundamento firme e as preservaria do erro e do "preconceito" - uma fé iluminista que de Tracy herdou de Condillac e de Bacon. Embora de Tracy tivesse visto a possibilidade de estender a ciência das idéias para a dimensão social e política, muitas de suas contribuições se relacionavam à análise das faculdades intelectuais, às formas de experiência e aos aspectos da lógica e da (46) gramática. Seus 4 volumes de Éléments d'Idéologie, publicados entre 1803 e 1815, examinaram as faculdades do pensamento, do sentimento, da memória e do julgamento e as características do hábito, do movimento e da vontade, entre outras coisas. De Tracy se tornou sempre mais interessado com o desenvolvimento de um naturalismo consistente e rigoroso, em que os seres humanos são vistos como parte da realidade material, como um tipo bem mais complexo de uma espécie animal, entre outras. Por isso, na visão de Tracy, "Ideologia é parte da Zoologia", e a análise das faculdades humanas é essencial, porque "nossa compreensão de um animal é incompleta se nós não conhecemos suas faculdades intelectuais"5. Os últimos escritos de Tracy continuaram o projeto original de ideologia como ciência das idéias, ligando esse projeto a um total naturalismo. Mas, quando esses escritos apareceram, o termo "ideologia" já tinha adquirido um sentido novo e bastante diferente, um sentido que iria de imediato eclipsar os objetivos grandiloqüentes de seu inventor. Destutt de Tracy e seus companheiros do Instituto Nacional estavam intimamente ligados com a política do republicanismo. Eles, geralmente, partilhavam da visão de Condorcet, do perfeccionismo dos seres humanos através da educação, e do método de Condillac de analisar as sensações e as idéias. Eles atribuíam o excesso da Revolução ao fervor fanático dos jacobinos, mais do que às instituições revolucionárias como tais, que eles viam como pilares do progresso e do Iluminismo. Devido a essa conexão bem próxima com republicanismo, o destino das doutrinas de Tracy e de seus associados dependia, até certo modo, do destino da própria Revolução. Em seu retorno do Egito, em 1799, Napoleão Bonaparte deu um vitorioso golpe de Estado e se tornou o Primeiro Cônsul, uma posição que ele manteve, com autoridade absoluta, por 10 anos. Napoleão se apoiou em algumas das idéias de Tracy e de seus companheiros na elaboração de uma nova Constituição, e recompensou alguns membros do Instituto com posições políticas lucrativas. Mas ao mesmo tempo Napoleão desconfiou deles, pois suas ligações com o republicanismo se apresentava como uma ameaça potencial a suas ambições autocráticas. Por isso Napoleão ridicularizou as pretensões da "ideologia": ela era, na sua visão, uma doutrina especulativa abstrata, que estava divorciada das realidades do poder político. Em janeiro de 1800, um artigo no Messager des relations extérieures denuncia o grupo que é "chamado pelo nome de facção metafísica ou 'ideólogos” e que, tendo entendido mal a Revolução, estava agora conspirando contra o novo regime6. Como a opinião públi- (47) ca começasse a ir contra a Revolução, Napoleão - que mais tarde afirmou ter sido ele o criador do termo "ideólogos" - explorou esta mudança, a fim de desarmar os representantes do republicanismo. A oposição de Napoleão aos idéologues se intensificou durante a década seguinte e alcançou um clímax à medida em que o império, que ele procurou estabelecer, começou a ruir. Os idéologues se tornaram os bodes expiatórios para os fracassos do regime napoleônico. Retornando a Paris em dezembro de 1812, depois da campanha desastrosa na Rússia, Napoleão acusou os idéologues de subverter o Estado e o poder da lei. Dirigindo-se ao Conselho de Estado, numa fala subsequentemente publicada no Moniteur, ele condenou a ideologia e a caraterizou como a negação de uma arte política astuta, inteligente: Nós devemos colocar a culpa dos males que a nossa França sofreu na ideologia, a metafísica obscura que procura, sutilmente, pelas últimas causas, onde se deve colocar a legislação dos povos, em vez de fazer uso das leis conhecidas do coração humano, e das lições da história. Estes erros, inevitavelmente, devem levar, e de fato levaram, a um governo de homens sanguinários... Quando alguém é chamado a revitalizar um Estado, ele deve seguir exatamente os princípios opostos.7 À medida em que a posição de Napoleão se enfraquecia tanto em casa como fora, seus ataques contra a ideologia se tornavam mais fortes e veementes. Praticamente todos os tipos de pensamento religioso, ou político, foram condenados como ideologia. O próprio termo se tornou uma arma nas mãos de um imperador, lutando desesperadamente para silenciar seus oponentes e para sustentar um regime em destruição. Com a renúncia de Napoleão, em abril de 1814, e a restauração da dinastiados Bourbon, Destutt de Tracy retornou a uma posição de influência política, mas então seu programa original de ideologia já tinha sido dissolvido e esvaziado pêlos conflitos do período napoleônico. Concebida, originalmente, como uma ciência superior, a ciência das idéias, que ao oferecer uma teoria sistemática do nascimento, combinação e comunicação das idéias, apresentaria a base para um conhecimento científico em geral e facilitaria a regulação natural da sociedade em particular, a ideologia se tornou uma teoria, entre outras, e suas exigências filosóficas ficaram comprometidas com sua associação com o republicanismo. Ainda mais: à medida em que o termo "ideologia" escorregou para a arena política e foi jogado contra os filósofos por um imperador sob estado de sítio, o sentido e a (48) conotação do termo começou a mudar. Deixou de se referir apenas à ciência das idéias e começou a se referir também às idéias mesmas, isto é, a um corpo de idéias que, supostamente, seria erróneo e estaria divorciado das realidades práticas da vida política. O sentido do termo mudou também pelo fato de que ele não mais poderia referir-se inequivocamente ao espírito positivo Iluminismo. A Ideologia como ciência positiva e eminente, digna do mais alto respeito, gradualmente deu lugar a uma ideologia como idéias abstraías e ilusórias, digna apenas de ridicularização e desprezo. Uma das oposições básicas que caracterizaram a história do conceito de ideologia - aquela entre um sentido positivo e neutro de um lado, e de um sentido negativo e crítico de outro - já estava presente na primeira década de sua vida, embora a forma e o conteúdo dessa oposição iria mudar, consideravelmente, nas décadas que se seguiram. A queda do projeto original de Destutt de Tracy não surpreende hoje. A generalidade ambiciosa desse projeto, como aquela de outros que o precederam e o sucederam, estava destinada a abrir caminho para o desenvolvimento das disciplinas especializadas que poderiam investigar campos particulares de pesquisa em profundidade, sem serem impedidos pelas pretensões de uma suposta ciência original. O que é interessante projeto original de Tracy não é tanto a natureza e o conteúdo do projeto mesmo (na verdade, seus escritos, já bastante esquecidos estariam totalmente abandonados hoje, se eles não estivessem ligados ao conceito de ideologia), mas o fato de que este projeto faz ressaltar as condições sob as quais o conceito de ideologia surgiu e começou a sua história tortuosa. O conceito surgiu como parte de uma tentativa de desenvolver os ideais do Iluminismo no contexto das revoltas sociais e políticas que marcaram o nascimento das sociedades modernas. Por mais longe que esse o ceito de ideologia tenha viajado, desde os dias do Instituto Nacional, por mais variados que tenham sido seus usos, ele permanece, contudo, ligado aos ideais do Iluminismo, particularmente aos ideais da compreensão racional do mundo (incluindo o mundo sócio-histórico) e da autodeterminação racional dos seres humanos. As maneiras como essa ligação é expressa variam: consideravelmente de um ponto a outro. Se, para de Tracy, a ligação era direta e explícita (ideologia era uma ciência superior que iria facilitar o progresso nos afazeres humanos), para Napoleão ela era implícita e oposicional (ideologia era a pretensa filosofia que tinha incitado à rebelião ao tentar determinar os princípios políticos e pedagógicos na base apenas do raciocínio (49) abstrato). A contribuição específica de Marx consiste no fato de que ele assumiu o sentido negativo, oposicional, implícito e presente no uso do termo como feito por Napoleão, mas transformou o conceito, incorporando-o a um marco referencial teórico e a um programa político que eram profundamente dependentes do espírito do Iluminismo. As concepções de ideologia de Marx Os escritos de Marx ocupam uma posição central na história e no conceito de ideologia. Com Marx, o conceito adquiriu um novo status como instrumental crítico e como componente essencial de um novo sistema teórico. Mas, apesar da importância do trabalho de Marx a esse respeito, as maneiras precisas como ele empregou o conceito de ideologia e as maneiras como lidou com os vários assuntos e os vários pressupostos que estavam ligados a seu uso não são nada claros. De fato, é a própria ambiguidade do conceito de ideologia no trabalho de Marx que é, parcialmente, responsável pêlos debates contínuos a respeito do legado de seus escritos. Nessa secção, não tentarei examinar todas as diferentes nuanças de sentido - que podem estar presentes nos muitos usos feitos por Marx do termo "ideologia", nem tentarei traçar as maneiras como esse termo é empregado pelos companheiros e seguidores de Marx, tais como Engels, Lenin, Lukács e Gramsci8. Procurarei, ao contrário, identificar vários contextos teóricos distintos em que o conceito de ideologia se apresenta no trabalho de Marx. Fazendo isso, tentarei levantar várias concepções distintas de ideologia em Marx, concepções que se sobrepõem uma à outra, na verdade, mas que, apesar disso, relacionam-se com os diferentes tópicos e com os diferentes movimentos de pensamento. O trabalho de Marx oferece a nós não tanto uma visão singular e coerente do mundo sócio-histórico e de sua constituição, de sua dinâmica e desenvolvimento; antes, oferece uma multiplicidade de visões que são coerentes em alguns aspectos e conflitantes em outros, que convergem em alguns pontos e divergem em outros. Essas visões são, muitas vezes, explicitamente articuladas por Marx, mas são, também, diversas vezes deixadas implícitas em suas argumentações e análises. Tentarei mostrar que essas visões diferentes criam espaços teóricos distintos, por assim dizer, onde muitas concepções de ideologia coexistem sem ser claramente formuladas ou convincentemente reconciliadas pelo próprio Marx. (50) Ideologia e os jovens hegelianos: a concepção polémica Marx estava familiarizado com o trabalho dos ideólogos franceses e com o ataque de Napoleão a esses ideólogos. Durante seu exílio em Paris, entre 1844-5, Marx tinha lido e destacado parte do trabalho de Destutt de Tracy. Foi imediatamente após esse período que Marx e Engels escreveram A ideologia alemã, um texto longo em que eles criticam a visão dos "jovens hegelianos", tais como Feuerbach, Bauer e Stirner. Ao caracterizar as visões desses pensadores como "a ideologia alemã", Marx e Engels estavam seguindo o uso que Napoleão fizera do termo "ideologia", e estavam fazendo uma comparação entre o trabalho dos ideólogos com o dos jovens hegelianos: o trabalho dos jovens hegelianos era um equivalente, nas condições sociais e políticas relativamente atrasadas da Alemanha do início do século XIX, das doutrinas de de Tracy e de seus companheiros. E assim como Napoleão zombara dessas doutrinas, dando ao termo "ideologia" uma concepção negativa, do mesmo modo Marx e Engels zombaram das visões de seus compatriotas. Como os ideólogos, também os jovens hegelianos estavam trabalhando sob a ilusão de que a batalha real que deveria ser travada era uma batalha de idéias e que, assumindo uma atitude crítica diante das idéias recebidas, a própria realidade poderia ser mudada. A crítica de Marx e Engels ao "pensar crítico" dos jovens hegelianos era uma tentativa de desarmar o enfoque de seus antigos associados. Seu objetivo era "desmitizar e desacreditar a luta filosófica com as sombras da realidade que iludia a sonhadora e obscurecida nação alemã"9. Os jovens hegelianos pensaram que eles eram radicais, mas, na verdade, eram muito conservadores, eram apenas ovelhas que se passavam por lobos. Ao cunhar essas visões como "ideologia alemã", Marx e Engels procuraram desacreditá-las, associando-as às doutrinas que tinham sido fortemente denunciadas na França algumas décadas antes. Em A ideologia alemã, Marx e Engels empregam, pois, o termo "ideologia" de uma maneira polémica. Seu objetivo é específico - as visões dos jovens hegelianos - e "ideologia" é usada como um termo que conota algo erróneo. As visões dos jovenshegelianos são "ideológicas" no sentido que elas valorizam demasiadamente o valor e o papel das idéias na história e na vida social; eles "consideram as concepções, os pensamentos, as idéias, enfim, todos os produtos da consciência, aos quais eles atribuem uma existência independente, como as verdadeiras prisões dos seres humanos (da mesma maneira que os velhos hegelianos os decla- (51) raram como os verdadeiros vínculos da sociedade humana)"10. Por isso, os jovens hegelianos opõem idéias a idéias, lutam com sentenças contra sentenças e, como resultado, deixam o mundo real sem modificação. Eles não conseguem ver a conexão entre suas idéias e as condições sócio-históricas da Alemanha nem dar à sua crítica uma força prática e efetiva. Podemos caracterizar esse uso do termo "ideologia", feito por Marx e Engels, como a "concepção polémica": ideologia, nesse sentido, é uma doutrina teórica e uma atividade que olha erroneamente as idéias como autônomas e eficazes e que não consegue compreender as condições reais e as características da vida sócio-histórica. Esta concepção polémica está ligada ao ataque de Napoleão às pretensões dos ideólogos, enquanto partilha o menosprezo de Napoleão pela preocupação com idéias separadas da política prática e enquanto, também, ela reflete a convicção de que tais idéias e preocupações são ilusórias e enganadoras. Mas a maneira como Marx e Engels desenvolvem essa concepção e os usos que eles fazem dela vão bastante além dos objetivos e das deliberações de Napoleão. A originalidade da concepção polémica de ideologia está não tanto na sua concepção mesma como no fato de que ela está ligada a uma série de pressupostos concernentes à determinação social da consciência, à divisão do trabalho e ao estudo científico do mundo sócio-histórico. Esses pressupostos formam algo que pode ser descrito como as condições de possibilidade da concepção polémica de ideologia. Examinemos um a um estes pressupostos. Pressuposto1a: As formas de consciência dos seres humanos são determinadas pelas condições materiais de sua vida. O pensar, o conceber e, mais geralmente, a produção de idéias devem ser vistos não como processos autónomos, e muito menos como processos que prescrevem o curso da história; antes, porém, como processos que estão interligados com a - e essencialmente determinados pela - atividade mundana dos seres humanos produzindo coletivamente seus meios de subsistência. Ao formular este pressuposto, Marx e Engels estão interessados principalmente em justapor seu enfoque àquilo que eles consideram como a prática idealística filosófica de Hegel, de seus seguidores e de seus críticos: "Em contraste direto com a filosofia alemã, que desce do céu para a terra, aqui nós subimos, da terra para o céu"11. Mas eles também querem afirmar que essa prática idealística filosófica - o fato de que ela é idealística, o fato de que ela toma as idéias por causas ao invés de efeitos, de que ela, por isso, não compreende seu próprio caráter como também o caráter do mundo sócio-histórico que procura compreender, em uma palavra, o fato de (52) que ela é ideológica - eles querem afirmar que essa prática é própria produto das condições materiais específicas. Se nós assumimos as determinações sociais da consciência, podemos ver que a ideologia dos jovens hegelianos é uma consequência, uma expressão das condições sociais, políticas e econômicas relatimente atrasadas da Alemanha. Esse ponto, além do mais, pode ser generalizado. É isso que Marx e Engels propõem numa passagem muito citada: "Se em toda a ideologia os homens e as circunstâncias aparecem de cabeça para baixo, como numa câmara escura, este fenômeno surge do seu processo de vida histórico, do mesmo modo como a inversão dos objetos na retina acontece a partir do seu processo de vida físico"12. Embora essa passagem seja muito importante devido a sua analogia com a câmara escura, uma analogia que seduziu mais de um comentarista1, o ponto principal é a afirmação de que a prática de olhar a consciência e as idéias como autônomas e eficazes e, por isso, de olhar indivíduos concretos em suas circunstâncias concretas como produtos das idéias em vez de produtores delas, é, ela mesma, o resultado de condições e processos sócio-históricos particulares, exatamente como "a inversão dos objetos na retina [surge] de processo de vida físico". A concepção polémica de ideologia está também ligada com o pressuposto referente à divisão do trabalho. Pressuposto 1b: O desenvolvimento das doutrinas teóricas e das atividades teóricas que vêem as idéias como autônomas e eficazes se torna possível pela divisão, historicamente emergente, entre trabalho material e trabalho mental. Marx e Engels concebem um estágio primitivo da sociedade humana em que as pessoas estavam conscientes de pouca coisa além de suas próprias necessidades, de seu meio ambiente imediato e de suas interações limitadas com os outros seres humanos. A consciência, neste estágio, era apenas uma "consciência gregária", intimamente interligada com as condições materiais de vida. Mas, gradualmente, uma divisão do trabalho se desenvolveu, inicialmente como divisão do trabalho no ato sexual e, depois, como uma divisão que cresceu "naturalmente”, em virtude das diferentes necessidades e capacidades, tais como a força física. Finalmente surgiu uma divisão entre trabalho material e mental, uma divisão que possibilitou às pessoas engajadas num trabalho mental produzir idéias que pareciam ter uma existência independente, que pareciam não estar condicionadas aos processos vitais materiais e ter uma história e poder própios. Essa divisão entre trabalho material e mental impediu também (53) que essas pessoas vissem que elas estavam trabalhando sob a ilusão de autonomia. A partir desse momento, a consciência pôde realmente gloriar-se de ser algo mais do que consciência da prática existente, de realmente representar algo sem representar nada de real; deste momento em diante a consciência está numa posição de se emancipar do mundo e passar a criar a teoria "pura", a teologia, a filosofia, a ética etc.14 A formação da "pura" teoria, teologia, filosofia, ética e "toda essa bugiganga de coisas", como Marx e Engels provocativamente colocam, marca a emergência da ideologia como doutrinas e atividades teóricas que se consideram autônomas, quando de fato não o são. O terceiro pressuposto ligado à concepção polêmica se refere ao projeto de um estudo científico do mundo sócio-histórico. Pressuposto 1c: As doutrinas e as atividades teóricas que constituem a ideologia podem ser explicadas pelo estudo científico da sociedade e da história, e por tal estudo devem ser substituídas. Elas podem ser explicadas por uma ciência tal que mostre serem elas o produto de circunstâncias particulares, sociais e históricas, do mesmo modo como as visões dos jovens hegelianos, por exemplo, podem, assim, ser identificadas como sendo nada mais que um espelho das condições reais e péssimas da Alemanha. Elas devem ser substituídas por uma ciência tal que, tendo-se demonstrado que dependem de circunstâncias das quais elas não estão conscientes e, tendo-se, por isso, minado seu desejo de autonomia, essas doutrinas e atividades teóricas percam sua credibilidade e dêem lugar a uma disciplina que a suceda: a ciência positiva do mundo sócio-histórico. "Onde termina a especulação - na vida real - aí começa a ciência real, positiva: a representação da atividade prática, do processo prático do desenvolvimento dos seres humanos. A conversa vazia sobre a consciência desaparece, e o conhecimento real deve tomar o seu lugar"15. Esse pressuposto indica a proximidade de Marx e Engels o projeto original de Destutt de Tracy, apesar das muitas diferenças que os separam dele. Pois, embora Marx e Engels olhem o processo de de Tracy como um início de ideologia, no sentido de ser uma doutrina teórica, abstrata e ilusória, eles, contudo, compartilham a crença de de Tracy nos méritos da ciência positiva e, de modo mais geral, sua fé nas idéias do Iluminismo. Nãodeixa de ser uma das ironias desta história conceitual complexa que aquilo que começou como uma ciência supostamente eminente, a "ciência das idéias", tornou-se parte de um enfoque teórico que exigiu sentar no trono de ciência, enquanto denunciava seu progenitor como um traidor. (54) Ideologia e consciência de classe: a concepção epifenomênica Embora o conceito de ideologia fosse, inicialmente, empregado por Marx e Engels no contexto de sua crítica aos jovens hegelianos, ele adquiriu, subsequentemente, um papel mais geral na caracterização, feita por eles, da estrutura social e da mudança histórica. Esse papel mais geral está já evidente em A ideologia alemã, na medida em que Marx e Engels começam a ligar a produção e difusão das idéias à relação entre classes. "As idéias da classe dominante" , dizem eles a certa altura, "são, em cada época, as idéias dominantes, isto é, a classe que tem a força material na sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante"16. Essa passagem deixa entrever o desenvolvimento de uma nova concepção de ideologia, uma concepção que emerge mais claramente, do prefácio a Uma contribuição à crítica da economia política, de 1859, e em outros lugares. Podemos descrever esta nova concepção como a "concepção epifenomênica", pois ela vê a ideologia como dependente e derivada das condições económicas e das relações de classe e das relações de produção de classe. Ideologia, de acordo com a concepção epifenomênica, é um sistema de idéias que expressa os interesses da classe dominante, mas que representa relações de classe de uma forma ilusória. A ideologia expressa os interesses da classe dominante no sentido que as idéias que compõem a ideologia são as idéias que, num período histórico particular, articulam as ambições, os interesses e as decisões otimistas dos grupos sociais dominantes, à medida em que eles lutam para garantir e manter sua posição de dominação. Mas a ideologia representa relações de classe de uma forma ilusória pois que estas idéias não representam acuradamente a natureza e as posições relativas das classes interessadas; ao contrário, elas representam mal estas relações, de uma maneira tal que favorecem os interesses da classe dominante. Com a formulação da concepção epifenomênica, a noção de ideologia adquire um papel sistemático no marco referencial teórico de Marx. Esse referencial é esboçado mais sucintamente, embora de um modo um pouco simplista, no Prefácio de 1859. Não há necessidade aqui de examinar o Prefácio em detalhe, pois seus argumentos são muito conhecidos. Teríamos, contudo, uma (80) e realizar seus interesses. Podemos falar de "dominação" quando relações estabelecidas de poder são "sistematicamente assimétricas", isto é, quando grupos particulares de agentes possuem poder de uma maneira permanente, e em grau significativo, permanecendo inacessível a outros agentes, ou a grupos de agentes, independentemente da base sobre a qual tal exclusão é levada a efeito. Essas caracterizações iniciais de sentido e dominação apresentam o pano de fundo contra o qual podemos apresentar o terceiro problema levantado pela reformulação proposta do conceito de ideologia: de que maneira pode o sentido servir para estabelecer e sustentar relações de dominação? Há inúmeros modos em que o sentido pode servir, em condições sócio-históricas específicas, para manter relações de dominação, e nós podemos responder a essa questão de uma maneira apropriada somente prestando atenção cuidadosamente à interação entre sentido e poder nas circunstâncias concretas da vida social. Num capítulo posterior, discutirei a questão desse modo, apresentando uma análise detalhada de alguns exemplos específicos de pesquisa empírica. Mas, aqui, pode ser útil identificar certos modos de operações gerais da ideologia e indicar algumas das maneiras como eles podem estar ligados, em circunstâncias particulares, com estratégias de construção simbólica. Ao distinguir esses modos e desenvolver essas conexões, meu objetivo não é apresentar uma teoria compreensiva de como os sentidos podem estabelecer e sustentar relações de dominação. Ao contrário, meu objetivo é, simplesmente, esboçar, de um modo preliminar, um campo rico de análise que desenvolverei, com maiores detalhes, nos capítulos subsequentes. Distinguirei cinco modos gerais através dos quais a ideologia pode operar: "legitimação", "dissimulação", "unificação", "fragmentação" e "reificação". A tabela 1.2. indica algumas das maneiras como esses modos podem estar ligados com várias estratégias de construção simbólica. Tabela 1.2 Modos de operação da ideologia Modos Gerais Algumas Estratégias Típicas de Construção Simbólica Legitimação Racionalização Universalização Narrativização Dissimulação Deslocamento Eufemização Tropo (sinédoque, metonímia, metáfora) Unificação Estandardização Simbolização da unidade Fragmentação Diferenciação Expurgo do outro Reificação Naturalização Eternalização Nominalização/passivização Antes de desdobrar os elementos dessa tabela, permitam-me enfatizar três esclarecimentos. Primeiro, eu não quero afirmar que esses cinco modos são as únicas maneiras de como a ideologia opera, ou que eles sempre operam independentemente um do outro; ao contrário, esses modos podem sobrepor-se e reforçar-se mutuamente e a ideologia pode, em circunstâncias particulares, operar de outras maneiras. Segundo, associando esses certos modos de operação a certas estratégias de construção simbólica, não quero defender que essas estratégias estão associadas, unicamente,(82) com esses modos, ou que as estratégias que estou mencionando são as únicas relevantes. O máximo que se pode dizer é que certas estratégias estão tipicamente associadas com certos modos, embora reconhecendo que, em circunstâncias particulares, toda estratégia dada pode servir a outros propósitos, e todo modo apresentado pode ser atualizado de outras maneiras. Ao mencionar várias estratégias, meu objetivo é exemplificar, e não apresentar uma categorização exaustiva e exclusiva. O terceiro esclarecimento é que, ao realçar algumas estratégias típicas de construção simbólica, não quero defender que essas estratégias sejam ideológicas como tais. Nenhuma dessas estratégias é intrinsecamente ideológica. Se uma dada estratégia de construção simbólica é ideológica ou não, depende de como a forma simbólica construída através desta estratégia é usada e entendida em circunstâncias particulares; depende do fato de a forma simbólica, assim construída, estar servindo, nessas circunstâncias, para manter ou subverter, para estabelecer ou minar, relações de dominação. O exame das estratégias típicas de construção simbólica pode alertar-nos para algumas das maneiras como o sentido pode ser mobilizado no mundo social e como pode delimitar um raio de possibilidades para a operação da ideologia; mas não pode tomar o lugar de uma análise cuidadosa das maneiras como as formas simbólicas se entrecruzam com relações de dominação em circunstâncias particulares e concretas. Vamos começar considerando a legitimação. Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas, como observou Max Weber, pelo fato de serem representadas como legítimas, isto é, como justas e dignas de apoio 8. A representação das relações de dominação como legítimas pode ser vista como uma exigência de legitimação que está baseada em certos fundamentos, expressa em certas formas simbólicas e que pode, em circunstâncias dadas, ser mais ou menos efetiva. Weber distinguiu três tipos de fundamentos sobre os quais afirmações de legitimação podem estar baseadas: fundamentos racionais (que fazem apelo à legalidade de regras dadas), fundamentos tradicionais (que fazem apelo à sacralidade de tradições imemoriais) e fundamentos carismáticos (que fazem apelo ao caráter excepcional de uma pessoa individual que exerça autoridade). Exigências baseadas em tais fundamentos podem ser expressas em formas simbólicas através de certas estratégias típicas de construçãosimbólica. Uma estratégia típica é o que chamamos de racionalização, através da qual o produtor de uma forma simbólica constrói uma cadeia de raciocínio que procura defender, ou justificar, um conjunto de relações, (83) ou instituições sociais, e com isso persuadir uma audiência de que isso é digno de apoio. Outra estratégia típica é a universalização. Através desta estratégia, acordos institucionais que servem aos interesses de alguns indivíduos são apresentados como servindo aos interesses de todos, e esses acordos são vistos como estando abertos, em princípio, a qualquer um que tenha a habilidade e a tendência de ser neles bem sucedido. Exigências de legitimação podem também ser expressas através da estratégia de narrativização: essas exigências estão inseridas em histórias que contam o passado e tratam o presente como parte de uma tradição eterna e aceitável. De fato, as tradições são, muitas vezes, inventadas a fim de criar um sentido de pertença a uma comunidade e a uma história que transcende a experiência do conflito, da diferença e da divisão39. Histórias são contadas tanto pelas crônicas oficiais como pelas pessoas no curso de suas vidas cotidianas, servindo para justificar o exercício de poder por aqueles que o possuem e servindo, também, para justificar, diante dos outros, o fato de que eles não têm poder. Discursos e documentários, histórias, novelas e filmes são estruturados como narrativas que retraíam relações sociais e manifestam as consequências de ações de modo tal que podem estabelecer e sustentar relações de poder. Nas histórias corriqueiras e nas piadas que preenchem muito de nossas vidas cotidianas, estamos, continuamente, engajados em recontar a maneira como o mundo se apresenta e em reforçar, através do humor que lucra às custas dos outros, a ordem aparente das coisas. Pelo fato de contar histórias e de recebê-las contadas por outros (escutando, lendo, olhando), podemos ser envolvidos em um processo simbólico que pode servir, em certas circunstâncias, para criar e sustentar relações de dominação. Um segundo modus operandi da ideologia é a dissimulação. Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo fato de serem ocultadas, negadas ou obscurecidas, ou pelo fato de serem representadas de uma maneira que desvia nossa atenção, ou passa por cima de relações e processos existentes. A ideologia como dissimulação pode ser expressa em formas simbólicas através de uma variedade de diferentes estratégias. Uma destas estratégias é o deslocamento: um termo costumeiramente usado para se referir a um determinado objeto ou pessoa é usado para se referir a um outro, e com isso as conotações positivas ou negativas do termo são transferidas para o outro objeto ou pessoa. Essa foi a estratégia de construção simbólica empregada por Luís Bonaparte que, como Marx observou com muita acuidade, conseguiu reativar a tradição de reverente respeito para com o herói (84) imperial apresentando-se como herdeiro legítimo do grande Napoleão. Foi esse "disfarce histórico honroso e essa linguagem emprestada" que escondeu a nova face da história do mundo, orientou o campesinato para o passado, ao invés de para o futuro, e os impossibilitou, conforme nos conta Marx, de compreender suas reais condições de vida. Uma outra estratégia que facilita a dissimulação das relações sociais é a eufemização: ações, instituições ou relações sociais são descritas ou redescritas de modo a despertar uma valoração positiva. Há muitos exemplos bastante conhecidos desse processo: a supressão violenta do protesto é descrita como a "restauração da ordem"; a prisão ou campo de concentração é descrito como um "centro de reabilitação"; desigualdades institucionalizadas, baseadas em divisões étnicas, são descritas como "desenvolvimento paralelo"; trabalhadores estrangeiros sem direitos de cidadania são descritos como "trabalhadores hóspedes". Mas o processo de eufemização é muitas vezes mais sutil do que sugerem esses exemplos bastante conhecidos. Assim, em 1982, foi-nos dito por Menachem Begin (que era Primeiro-Ministro de Israel na ocasião) que o movimento de milhares de soldados e centenas de tanques sobre o Líbano não era uma "invasão" porque, de acordo com a definição do termo dada por Begin, "você invade uma terra quando você quer conquistá-la, ou anexá-la, ou ao menos anexar parte dela. Nós não estamos querendo nem sequer uma polegada dela"40. Existe um espaço vago, aberto e indeterminado em muitas das palavras que nós usamos, de tal modo que a eufemização pode se dar através de uma mudança de sentido pequena ou mesmo imperceptível. A ideologia como dissimulação pode ser expressa através de outra estratégia, ou grupo de estratégias, que podemos colocar debaixo do rótulo geral de tropo41. Por tropo entendo o uso figurativo da linguagem ou, mais em geral, das formas simbólicas. O uso do tropo é, geralmente, confinado ao domínio da literatura, mas o uso figurativo da linguagem é muito mais amplo do que essa especialização disciplinar possa sugerir. Entre as formas mais comuns de tropo estão a sinédoque, a metonímia e a metáfora. Todas elas podem ser usadas para dissimular relações de dominação. A sinédoque envolve a junção semântica da parte e do todo: alguém usa um termo que está no lugar de uma parte, a fim de se referir ao todo, ou usa um termo que se refere ao todo a fim de se referir a uma parte. Essa técnica pode dissimular relações sociais, através da confusão ou da inversão das relações entre coletividades e suas partes, entre grupos particulares e formações sociais e políticas mais amplas - de modo tal que, por (85) exemplo, termos genéricos como "os ingleses", "os americanos", "os russos", passam a ser usados para se referir a governos particulares ou a grupos dentro de um estado-nação. A metonímia envolve o uso de um termo que toma o lugar de um atributo, de um adjunto, ou de uma característica relacionada a algo para se referir à própria coisa, embora não exista conexão necessária entre o termo e a coisa à qual alguém possa estar se referindo. Através do uso da metonímia, o referente pode estar suposto sem que isso seja dito explicitamente, ou pode ser avaliado valorativamente, de maneira positiva ou negativa, através da associação com algo; essa é uma prática comum, por exemplo, na propaganda, onde o sentido é, muitas vezes, mobilizado de maneiras sutis e sub-reptícias, sem tornar explícitas as conexões entre os objetos referidos ou supostos pelo anúncio. A metáfora implica a aplicação de um termo ou frase a um objeto ou ação à qual ele, literalmente, não pode ser aplicado. Expressões metafóricas levantam uma tensão dentro de uma sentença, através da combinação de termos extraídos de campos semânticos diferentes, tensão essa que, se bem sucedida, gera um sentido novo e duradouro. A metáfora pode dissimular relações sociais através de sua representação, ou da representação de indivíduos e grupos nelas implicados, como possuidoras de características que elas, literalmente, não possuem, acentuando, com isso, certas características às custas de outras e impondo sobre elas um sentido positivo negativo. Assim, a primeira-ministra britânica foi muitas vezes descrita como "Dama-de-ferro", uma metáfora que lhe conferia uma determinação sobre-humana e uma firmeza de vontade. Ou veja-se esse comentário da própria Margaret Thatcher feito numa entrevista com a Association Press, em 1988, e transcrito no diário inglês Guardian: comentando seus primeiros oito anos no governo e sua percepção da mudança de status da Inglaterra entre as nações industriais ocidentais, ela observou que “logo que cheguei, eles costumavam falar de nós em termos de doença inglesa. Agora eles falam de nós e dizem 'Vejam, a Inglaterra está curada'" 2. A metáfora da doença e da cura, combinada com a linguagem entre "nós" e "eles", dá a esse comentário um caráter forte e evocativo; ele reveste o processo de desenvolvimento social e econômico com a imagem da doença e da saúde, enquanto negligencia, ou não dá atenção, às circunstânciasatuais subjacentes e modificadoras desse processo. Chamando a atenção para esses vários tipos de tropo, não quero sugerir, está claro, que o uso figurativo da linguagem é sempre, ou mesmo predominantemente, ideológico. Quero somente afirmar que o uso figurativo (86) da linguagem é uma característica bastante comum do discurso cotidiano, que é uma maneira eficaz de mobilizar o sentido no mundo sócio-histórico, e que, em certos contextos, o sentido mobilizado desse modo pode estar envolto com poder, podendo servir para criar, sustentar e reproduzir relações de dominação. Um terceiro modus operandi da ideologia é a unificação. Relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas através da construção, no nível simbólico, de uma forma de unidade que interliga os indivíduos numa identidade coletiva, independentemente das diferenças e divisões que possam separá-los. Uma estratégia típica através da qual este modo é expresso em formas simbólicas é a estratégia da padronização. Formas simbólicas são adaptadas a um referencial padrão, que é proposto como um fundamento partilhado e aceitável de troca simbólica. Essa é uma estratégia seguida, por exemplo, pelas autoridades de Estado, que procuram desenvolver uma linguagem nacional, em um contexto de grupos diversos e lingüisticamente diferenciados. O estabelecimento de uma linguagem nacional pode servir para criar uma identidade coletiva entre os grupos e uma hierarquia legitimada entre línguas e dialetos dentro dos limites de um estado-nação. Outra estratégia de construção simbólica através da qual a unificação pode ser conseguida é o que podemos descrever como a simbolização da unidade. Essa estratégia envolve a construção de símbolos de unidade, de identidade e de identificação coletivas, que são difundidas através de um grupo, ou de uma pluralidade de grupos. Aqui, novamente, a construção de símbolos de unidade nacional tais como bandeiras, hinos nacionais, emblemas e inscrições de vários tipos são exemplos evidentes. Na prática, a simbolização da unidade pode estar interligada com o processo de narrativização, na medida em que símbolos de unidade podem ser uma parte integrante da narrativa das origens que conta uma história compartilhada e projeta um destino coletivo. Isso é muito comum não apenas no caso de organizações sociais de grande porte, tais como os modernos estados-nação, mas também no caso de pequenas organizações e grupos sociais que são mantidos agrupados, em parte, por um processo contínuo de unificação simbólica, através do qual uma identidade coletiva é criada e continuamente reafirmada. Ao unir indivíduos de uma maneira que suprima as diferenças e divisões, a simbolização da unidade pode servir, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de dominação. Um quarto modo, através do qual a ideologia pode operar, é a fragmentação. Relações de dominação podem ser mantidas (87) unificando as pessoas numa coletividade, mas segmentando aqueles indivíduos e grupos que possam ser capazes de se transformar num desafio real aos grupos dominantes, ou dirigindo forças de oposição potencial em direção a um alvo que é projetado como mau, perigoso ou ameaçador. Aqui, uma estratégia típica de construção simbólica é a diferenciação - isto é, a ênfase que é dada às distinções, diferenças e divisões entre pessoas e grupos, apoiando as características que os desunem e os impedem de constituir um desafio efetivo às relações existentes, ou um participante efetivo no exercício do poder. Outra estratégia pertinente pode ser descrita como o expurgo do outro. Essa estratégia envolve a construção de um inimigo, seja ele interno ou externo, que é retratado como mau, perigoso e ameaçador e contra o qual os indivíduos são chamados a resistir coletivamente ou a expurgá-lo. Essa estratégia, muitas vezes, sobrepõe-se com estratégias que têm como fim a unificação, pois o inimigo é tratado como desafio, ou ameaça, diante do qual as pessoas devem se unir. A representação dos judeus e comunistas na literatura nazista em 1920 e 1930, ou a caracterização dos dissidentes políticos na era stalinista como "inimigos do povo", são exemplos bastante claros de expurgo do outro. Mas essa estratégia é mais comum do que esses exemplos possam sugerir. Veja-se uma chamada editorial, em um jornal de circulação de massa chamado Sun: comentando uma possível greve dos dirigentes de trem do sindicato ASLEF, no verão de 1982, o jornal Sun recorda a seus leitores que a ASLEF pode destruir sua própria indústria, mas "nunca conseguirá nos vencer", pois "como a batalha na defesa das Malvinas demonstrou muito claramente, NINGUÉM pode quebrar esta nação"43. Este comentário emprega uma estratégia complexa, na qual a ASLEF é retratada como um outro que está desafiando a nação como um todo, e esta oposição é sobreposta às forças conflitivas na Guerra das Malvinas, de tal modo que a ASLEF é identificada com um poder estrangeiro, que estava ameaçando um povo que deve unir-se ante o adversário e cuja vontade de resistir ao perigo é enfaticamente invencível. Um quinto modus operandi da ideologia é a reificação: relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pela retratação de uma situação transitória, histórica, como se essa situação fosse permanente, natural, atemporal. Processos são retratados como coisas, ou como acontecimentos de um tipo quase natural, de tal modo que o seu caráter social e histórico é eclipsado. A ideologia como reificação envolve, pois, a eliminação, ou a ofuscação, do caráter sócio-histórico dos fenômenos - ou, tomando (88) emprestada uma frase sugestiva de Claude Lefort, ela envolve o restabelecimento da "dimensão da sociedade 'sem história', no próprio coração da sociedade histórica"44. Esse modo pode ser expresso em formas simbólicas através da estratégia da naturalização. Um estado de coisas que é uma criação social e histórica pode ser tratado como um acontecimento natural ou como um resultado inevitável de características naturais, do mesmo modo como, por exemplo, a divisão socialmente instituída do trabalho entre homens e mulheres pode ser retratada como um resultado de características fisiológicas nos sexos, ou de diferenças entre sexos. Uma estratégia semelhante é a que pode ser descrita como eternalização: fenômenos sócio-históricos são esvaziados de seu caráter histórico ao serem apresentados como permanentes, imutáveis e recorrentes. Costumes, tradições e instituições que parecem prolongar-se indefinidamente em direção ao passado, de tal forma que todo traço sobre sua origem fica perdido e todo questionamento sobre sua finalidade é inimaginável, adquirem, então, uma rigidez que não pode ser facilmente quebrada. Eles se cristalizam na vida social, e seu caráter aparentemente a-histórico é reafirmado através de formas simbólicas que, na sua construção, como também na sua pura repetição, eternalizam o contingente. A ideologia como reificação pode também ser expressa através de vários recursos gramaticais e sintáticos, tais como a nominalização e a passivização. A nominalização acontece quando sentenças, ou parte delas, descrições da ação e dos participantes nelas envolvidos, são transformadas em nomes, como quando nós falamos em "o banimento das importações", ao invés de "o Primeiro-Ministro decidiu banir as importações". A passivização se dá quando verbos são colocados na voz passiva, como quando dizemos que "o suspeito está sendo investigado", ao invés de "os policiais estão investigando o suspeito". A nominalização e a passivização concentram a atenção do ouvinte ou leitor em certos temas com prejuízo de outros. Elas apagam os atores e a ação e tendem a representar processos como coisas ou acontecimentos que ocorrem na ausência de um sujeito que produza essas coisas. Elas também tendem a eliminar referências a contextos espaciais e temporais específicos, através da eliminação de construções verbais, ou narrando-os num gerúndio. Esses e outros recursos gramaticais ou sintáticos podem, em circunstâncias particulares,servir para estabelecer e sustentar relações de dominação através da reificação de fenômenos sócio-históricos. Representando processos como coisas, diluindo atores e ações, apresentando o tempo como uma extensão eterna do tempo presente: estas são (89) muitas maneiras de restabelecer a dimensão da sociedade "sem história" no coração da sociedade histórica. Através da identificação desses vários modos de operação da ideologia e de algumas das estratégias típicas de construção simbólica, com as quais eles podem ser associados e através das quais eles podem ser expressos, chamei a atenção para algumas das maneiras como nós podemos começar a pensar a interação de sentido e poder na vida social. Chamei a atenção para algumas das estratégias e maneiras como o sentido pode ser construído e difundido no mundo social, e para algumas das maneiras como o sentido, assim difundido, pode servir para estabelecer e sustentar relações de dominação. Como acentuei, contudo, considerações desse tipo são indicações, quando muito, preliminares, de um terreno que deve ser explorado; elas devem ser tomadas como orientações gerais que podem facilitar a pesquisa de um tipo mais empírico ou histórico. Pois estratégias particulares de construção simbólica ou tipos particulares de formas simbólicas não são ideológicos em si mesmos: se o sentido gerado pelas estratégias simbólicas ou difundido pelas formas simbólicas serve para estabelecer ou sustentar relações de dominação, é uma questão que deve ser respondida somente pelo exame dos contextos específicos dentro dos quais as formas simbólicas são produzidas e recebidas, somente através do exame dos mecanismos específicos através dos quais elas são transmitidas dos produtores para os receptores, e somente através do exame do sentido que essas formas simbólicas possuem para os sujeitos que as produzem e as recebem. Estratégias de construções simbólicas são os instrumentos com os quais as formas simbólicas, capazes de criar e sustentar relações de dominação, podem ser produzidas. Essas estratégias são instrumentos simbólicos, por assim dizer, que facilitam a mobilização do sentido. Mas, se as formas simbólicas assim produzidas servem para sustentar relações de dominação ou para subvertê-las, se servem para promover indivíduos e grupos poderosos ou para miná-los, é uma questão que só pode ser resolvida examinando como essas formas simbólicas operam em circunstâncias sócio-históricas particulares, como elas são usadas e entendidas pelas pessoas que as produzem e recebem nos contextos socialmente estruturados da vida cotidiana. Posteriormente, irei elaborar um referencial metodológico através do qual este tipo de estudo pode ser levado a efeito.
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