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Autor: Prof. João Eduardo Coin de Carvalho Colaboradores: Profa. Amarilis Tudella Nanias Profa. Maria Francisca S. Vignoli Profa. Ronilda Iyakemi Ribeiro Psicologia Social Professor conteudista: João Eduardo Coin de Carvalho João Eduardo Coin de Carvalho é formado em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, onde também obteve os títulos de mestre e doutor. Tem pós-doutorado pelo Departamento de Antropologia da Johns Hopkins University, Baltimore, EUA (apoio Fapesp) e foi professor-visitante na Facultad de Psicología de la Universidad Nacional de Córdoba, Argentina (Bolsa Santander). É professor-titular da Universidade Paulista, líder das disciplinas de Psicologia Social, supervisor de estágios na Área de Grupos e Comunidades – Curso de Psicologia –, pesquisador da vice-reitoria de pós-graduação e pesquisa e líder do Grupo de Pesquisas Psicologia e Saúde (UNIP-CNPq). É também professor-colaborador da Universidade Federal de São Paulo no Grupo Neurossono (Depto. de Neurologia), Setor de Neuro-humanidades (Depto. de Neurologia) e do Programa de Pós-Graduação em Medicina Interna e Terapêutica (Depto. de Medicina). Tem artigos, livros e capítulos de livros publicados sobre Psicologia Social e Psicologia Social Comunitária, especialmente sobre representações sociais, identidade, imaginário e métodos qualitativos, dedicando-se nos últimos anos às relações entre saúde e práticas comunitárias. © Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Universidade Paulista. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) C331p Carvalho, João Eduardo Cohin de Psicologia Social. / João Eduardo Cohin de Carvalho. – São Paulo: Editora Sol, 2020. 132 p., il. Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230. 1. Materialismo dialético. 2. Grupos e subjetividade. 3. Processos grupais. I. Título. CDU 301.151 U508.13 – 20 Prof. Dr. João Carlos Di Genio Reitor Prof. Fábio Romeu de Carvalho Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças Profa. Melânia Dalla Torre Vice-Reitora de Unidades Universitárias Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez Vice-Reitora de Graduação Unip Interativa – EaD Profa. Elisabete Brihy Prof. Marcello Vannini Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar Prof. Ivan Daliberto Frugoli Material Didático – EaD Comissão editorial: Dra. Angélica L. Carlini (UNIP) Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR) Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT) Apoio: Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos Projeto gráfico: Prof. Alexandre Ponzetto Revisão: Cristina Z. Fraracio Lucas Ricardi Andréia Andrade Sumário Psicologia Social APRESENTAÇÃO ......................................................................................................................................................7 INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................................................7 Unidade I 1 MATERIALISMO DIALÉTICO .............................................................................................................................9 2 IDEOLOGIA ......................................................................................................................................................... 12 3 A REALIDADE HISTÓRICA E SOCIAL DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS.................................. 16 3.1 A Psicologia dos Grupos no embate das questões sociais .................................................. 16 3.2 A Psicologia Sócio-Histórica ............................................................................................................ 22 4 NOVOS TEMAS PARA O PENSAMENTO CRÍTICO EM GRUPOS: LINGUAGEM E IMAGINÁRIO ........................................................................................................................... 24 4.1 Questões de fundamento e metodológicas ............................................................................... 24 4.2 Linguagem ............................................................................................................................................... 25 4.3 Concepções sobre o imaginário ..................................................................................................... 28 4.3.1 Imagem e (des)razão ............................................................................................................................. 28 4.3.2 O imaginário radical .............................................................................................................................. 30 4.3.3 O imaginário social ................................................................................................................................ 32 4.3.4 O imaginário e os grupos sociais ...................................................................................................... 33 4.3.5 O imaginário grupal ............................................................................................................................... 34 4.3.6 Operando sobre a dinâmica dos grupos ........................................................................................ 35 Unidade II 5 GRUPOS E SUBJETIVIDADE .......................................................................................................................... 42 5.1 Conceituação ......................................................................................................................................... 42 5.2 Uma história das ideias sobre grupos .......................................................................................... 44 5.2.1 A Psicologia Social dos pequenos grupos ..................................................................................... 46 5.2.2 A dinâmica de grupo de Kurt Lewin ............................................................................................... 48 5.2.3 As psicoterapias de grupo ................................................................................................................... 49 5.2.4 Dos grupos diagnósticos à Psicanálise: as críticas de Pontalis e Guattari ...................... 51 5.2.5 A Psicologia Social das categorias sociais .................................................................................... 56 5.3 A Teoria das Representações Sociais (TRS) de Serge Moscovici ........................................ 58 5.3.1 O pensamento do senso comum: os grupos pensam? ............................................................ 58 5.3.2 Objetivação e ancoragem .................................................................................................................... 61 5.3.3 Teoria das Representações Sociais e grupos ................................................................................ 62 5.3.4 Teoria das Representações Sociais, imaginário e grupos ....................................................... 64 5.4 Identidade ............................................................................................................................................... 67 5.4.1 Identidade-metamorfose .................................................................................................................... 67 5.4.2 Identidade e ideologia .......................................................................................................................... 69 5.4.3 Identidade e grupos ............................................................................................................................... 69 6 PROCESSOS GRUPAIS ....................................................................................................................................70 6.1 Classificando os grupos sociais....................................................................................................... 73 6.2 Os grupos operativos .......................................................................................................................... 74 7 PSICOLOGIA SOCIAL E MUDANÇA ............................................................................................................ 77 7.1 Grupos e transformação social ....................................................................................................... 77 7.2 A comunidade ........................................................................................................................................ 80 7.3 Psicologia Social Comunitária ........................................................................................................ 83 7.3.1 Introdução ................................................................................................................................................. 83 7.3.2 Histórico da Psicologia Social Comunitária ................................................................................. 83 7.3.3 O papel da formação profissional para a ação comunitária ................................................. 87 7.3.4 As práticas da Psicologia em comunidades ................................................................................. 91 7.3.5 Os fundamentos da Psicologia Social Comunitária .................................................................. 95 7.3.6 A Psicologia Social Comunitária e o Serviço Social no mundo globalizado ................100 8 PSICOLOGIA NAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL............103 8.1 Psicologia e políticas públicas .......................................................................................................103 8.2 Subjetividade e práticas de prevenção em saúde coletiva ................................................107 8.3 A contribuição da Psicologia para as ações no Sistema Cras/Suas ...............................109 8.4 Formação profissional do psicólogo social ..............................................................................111 7 APRESENTAÇÃO Por meio desta disciplina você terá acesso aos fundamentos para as práticas com grupos em perspectiva crítica que têm orientado essas ações na América Latina, especialmente no Brasil. Para isso, são apresentados os referenciais de análise de contextos grupais e comunitários, assim como são situados e discutidos os processos psicossociais de prevenção e promoção de saúde e cidadania e suas relações com a atual realidade brasileira. Ao final deste percurso, você deverá ser capaz de: • reconhecer e compreender os pressupostos filosóficos, históricos e sociais que dão suporte às práticas com grupos; • identificar e analisar os fenômenos humanos de ordem psicossocial nos grupos, instituições e comunidades, de acordo com as tradições e a especificidade da realidade social e econômica latino-americana; • discriminar as metodologias de pesquisa e prática com grupos, tendo como referência a tradição latino-americana e sua interface com a Psicologia Social e Comunitária, a Saúde Comunitária e ainda com ciências afins, como História, Sociologia e Antropologia. INTRODUÇÃO Estudar os fenômenos grupais e suas relações com a subjetividade é entrar num debate nem sempre óbvio sobre como essas duas instâncias, individual e coletivo, estão relacionadas. Fruto de uma perspectiva ideológica, isto é, efeito das condições sociais e históricas nas quais todos nós estamos inseridos, o entendimento que tem mais adeptos, que lidera o senso comum sobre essa relação, defende vigorosamente a compreensão de que cada indivíduo é o responsável final por seus sucessos e fracassos, capaz de usar a razão (e a oportunidade) para encontrar as melhores e mais valiosas soluções para seus problemas. Quando não, trata-se de localizar sua incapacidade, seja ela de que ordem for: cognitiva, física, moral – ou, pior, social, étnica, de gênero. O grupo, nesse caso, é entendido como constituído de efeito dos indivíduos, mero agregado de semelhantes que estão juntos por interesse ou destino. No entanto, numa perspectiva crítica, aquela que irá orientar as nossas discussões nesta disciplina, indivíduos e grupos estão necessariamente interconectados. Sem os grupos não é possível pensar nos indivíduos. As histórias dos grupos, os lugares que ocupam nos jogos sociais, como são representados e como representam o mundo antecipam a presença de cada indivíduo, que já nasce num contexto em que os grupos é que condicionam sua existência. Todo indivíduo é alguém devido aos grupos aos quais está relacionado. Ainda assim, o processo de construção da subjetividade não exime o indivíduo da busca por autonomia e protagonismo, entendendo que a relação com os grupos se institui, de fato, como relação entre indivíduos e estas implicam, além de categorias sociológicas e antropológicas, também e necessariamente, dimensões psicológicas como o afeto. 8 Esta disciplina propicia a oportunidade para discutirmos a inserção do profissional de Serviço Social num campo que vem desafiando a visão estereotipada quanto às suas práticas. O diálogo com as políticas públicas, além das questões políticas e técnicas que desafia, também tem sido pautado por uma integração importante com outros campos de conhecimento, especialmente, da Assistência Social com a Psicologia. Essa condição, longe de esvaziar a especificidade da formação do assistente social, demanda familiaridade e apropriação de conceitos, saberes e práticas que, mesmo já presentes na formação, assumem outro lugar, apontando para a construção de novas posições profissionais e políticas, marcadas pela interdisciplinaridade. A atuação em grupos e comunidades no contexto das políticas públicas de saúde e assistência social significa indicar um lugar para a prática que escapa aos limites do tradicional e vislumbra a construção de ações que desafiam entendimentos prontos sobre quem é o indivíduo. Qual é sua história? Quais são seus interesses e desejos? Quais são os grupos a que pertence? Quais as relações presentes nesses grupos? O apelo aos fenômenos grupais e sociais, àquilo que marca a ação dos indivíduos e que está para além da sua existência singular ganha contornos e importância para a ação profissional e se apresenta como campo de crítica e intervenção. Na história brasileira, como em toda a história, e na latino-americana, essa preocupação vem ainda marcada pelo compromisso político com a transformação da sociedade e pelo confronto com condições de exclusão e sofrimento social. No seu encontro com os principais temas da Psicologia Social no Brasil e na América Latina, você é convidado (e desafiado) a refletir sobre como a ação profissional em grupos e comunidades pode ser mais do que apenas um exercício de conhecimento e de técnica, mas também parte de um movimento de crítica e transformação da sociedade. Assim, as discussões sobre os fundamentos e as práticas com grupos caracterizam uma das vertentes mais importantes e promissoras da ação do profissional de Serviço Social, especialmente quando associada a compromissos éticos e políticos com a transformação social. Situada no quadro atual das políticas públicas brasileiras de saúde (SUS) e assistência social (Suas), a prática deve não apenas levar ao atendimento de demandas específicas, mas produzir transformações nas relações instituídas nos contextos em que ocorrem. 9 PSICOLOGIA SOCIAL Unidade I Nesta unidade, você terá contato com os princípios do marxismo (materialismo dialético), a filosofia e o método propostos por Karl Marx para compreensão da realidade e descobrirá como esses ensinamentos serão tomados, nas práticas com grupos, como instrumentos privilegiados para interpretar o cenário de subdesenvolvimento e exclusão que caracteriza a América Latina e suas populações, bem como interferirnele. 1 MATERIALISMO DIALÉTICO Karl Marx (1818-1883), filósofo, cientista social e historiador alemão, é um dos mais importantes e influentes pensadores ocidentais. Com suas ideias sobre as relações entre subjetividade, sociedade, economia e política, influiu decisivamente na construção do ideário socialista que alcançou todo o planeta a partir do século XIX. Marx debruçou-se sobre os fundamentos das relações sociais e encontrou numa leitura muito particular da história humana a chave para compreender e criticar o modo de produção capitalista. Por meio da dialética como forma de pensar a realidade, explicou sua instituição e a sustentação do capitalismo, assim como buscou as pistas para superar as contradições do capitalismo e seus efeitos, como opressão e sofrimento das populações. Figura 1 – Karl Marx A origem da discussão sobre a concepção de dialética, como entendida e utilizada por Karl Marx, é a obra do filósofo alemão Hegel, que a desenvolveu durante o século XIX. Hegel reconheceu a importância e a função da contradição naquilo que é instituído pelos homens e pela sociedade. Seu principal 10 Unidade I fundamento é a ideia de que todas as produções humanas contêm, já na sua proposição, sua própria contradição. Dessa forma, para a solução desse conflito original, ele propõe como caminho a instituição de novas proposições. As proposições – ou momentos – desse ciclo foram nomeadas por Hegel como tese, antítese e síntese. A origem da dialética é identificada nas partes de um diálogo, e, para Hegel, esta é um método de raciocinar segundo o qual, para analisar uma ideia/proposição (a tese), é preciso encontrar uma nova ideia/proposição, que deve contrapor-se à primeira (a antítese) e denunciar a contradição (que já está ali). Esse esforço exige ainda a busca da superação da contradição inerente a essas duas primeiras propostas (a síntese). O método marxista, concebido em meados do século XIX, constitui-se a partir da intuição de Marx e Engels quanto a trazer a teoria das contradições de Hegel – esse método de raciocinar sobre a realidade – para auxiliar no entendimento de uma sociedade marcada pelas grandes mudanças trazidas da civilização industrial moderna. Henry Lefebvre (2010, p. 22) confere a Marx e a seu método características essenciais e decisivas para produzir esse entendimento: [...] a retirada dos fatos e das ideias de seu aparente isolamento, a descoberta de que tudo se relaciona, o seguimento do movimento conjunto que se esboça através de seus aspectos dispersos, a resolução de contradições a fim de atingir (por um súbito progresso) uma realidade ou um pensamento mais elevados, mais amplos, mais complexos e mais ricos. Universal e racional, materialista e determinista, estabelecido a partir de Hegel, o método marxista, também chamado de materialismo dialético, propõe que a análise aprofundada de um objeto (a vida econômica, por exemplo) desvela elementos contraditórios, contradição essa entendida como motor da realidade. Esse método não teve sua importância reconhecida por outros filósofos, como Descartes ou Kant, além de Hegel. Diferente de outros métodos voltados para conhecer as produções e os acontecimentos humanos, o materialismo dialético inclui a compreensão de que a realidade que é objeto de estudo é uma realidade em movimento, e esse movimento também é sujeito à análise. Nesses termos, o método reconhece a singularidade de cada objeto e a necessidade de alcançar as leis próprias que orientam esse objeto. Diferente da dialética de Hegel, porém, que indica ser possível uma definição lógica da contradição como presença universal, o método dialético empregado por Marx objetiva encontrar as contradições particulares, o movimento próprio de cada realidade. Aqui, o uso do método submete-se à realidade estudada. A presença e a importância da contradição não é uma ideia que possa ser compreendida de imediato, não é obvia nem “natural”. Vamos ver o argumento de Marx, que já carrega seu interesse na compreensão da realidade “material”, especialmente nas dimensões econômicas dessa realidade. Segundo Marx (apud LEFEBVRE, 2010), as contradições do pensamento fundamentam-se, em última instância, nas coisas, 11 PSICOLOGIA SOCIAL naquilo que é objetivo e real (e na produção humana). A impossibilidade do pensamento humano de capturar, de uma só vez, as coisas reais conduz a tentativas de alcançar a realidade que irão deparar-se necessariamente com essas contradições. Tais contradições referem, como aspectos inseparáveis do mesmo processo, a partes que não podem ser entendidas senão mediante pareamento e confronto. Um exemplo: o estudo do consumo e da distribuição de produtos não pode ser realizado sem se procurar compreender o modo de produção em si, isto é, a maneira pela qual num determinado momento histórico e social, as sociedades estão organizadas para produzir riqueza. Outro exemplo: como entender o proletariado sem incluir suas relações com a burguesia, isto é, a presença da submissão de classe e o desejo de consumir? São aspectos contraditórios que não podem ser compreendidos separadamente. Figura 2 – Os indivíduos são submetidos às condições tecnológicas e econômicas Karl Marx, em sua obra mais importante, O Capital (2008), aplicou a concepção dialética à sociedade, associando a essa condição processual, histórica, uma dimensão materialista. Considerou que as mudanças nas relações econômicas, motivadas pelo desenvolvimento tecnológico, levaram nesse processo dialético, a mudanças sucessivas que se dão não apenas no campo econômico, mas também no âmbito das ideias, dos costumes e das instituições, ou seja, no entendimento de Marx, as mudanças ocorridas no âmbito das relações econômicas acabam alcançando também as relações sociais; o modo de produção da economia modifica as relações sociais e, como consequência direta, estabelece novas maneiras de ser em sociedade, de constituir-se como sujeito social a cada vez. Tomando como momento privilegiado de análise as mudanças ocorridas após a Revolução Industrial, Marx discute os conflitos entre operários e patrões que assombravam a Europa do século XIX. De um lado, encontra-se o grupo de proletários. Se na Roma antiga esse era o indivíduo pobre que apenas valia por ser capaz de ter filhos, modernamente, o proletário é aquele que vive de salário, que sobrevive, segundo Marx, da venda da sua força de trabalho, fonte de riqueza. Do outro lado, estão os patrões, os proprietários das fábricas, dos meios de produção, os industriais, que produzem riqueza a partir do trabalho alheio. Nesse momento histórico, caracterizado do ponto de vista dos modos de produção como capitalismo, Marx argumenta que enquanto a classe explorada seria favorável a mudanças, a classe dominante resistiria a elas. O conflito entre os interesses de classe no capitalismo, registrado na tensão entre os trabalhadores e a elite econômica, deveria levar a uma nova condição que superaria a contradição: 12 Unidade I Em uma fase superior da sociedade comunista, quando houver desaparecido a subordinação escravizadora dos indivíduos à divisão do trabalho e, assim, a oposição entre trabalho intelectual e trabalho manual; quando o trabalho tiver se tornado não apenas um meio de vida, mas o requisito precípuo da vida; quando, com o desenvolvimento diversificado dos indivíduos, suas forças produtivas tiverem se incrementado também, e todas as fontes de riqueza coletiva jorrarem com abundância – só então o horizonte estreito do direito burguês poderá ser totalmente suplantado, e a sociedade poderá inscrever em sua bandeira: “A cada um, de acordo com suas habilidades; a cada um de acordo com suas necessidades” (MARX, 2012, p. 107-8). A proposta metodológica de Marx que sustenta sua crítica ao capitalismo veio ao encontro dos interesses das classes trabalhadoras, orientando e inspirando movimentos que se transformaram em revoluções contra “o capital”, mais especialmente contra a dominaçãodas elites, a opressão dos trabalhadores, a desqualificação do trabalhador como produtor de riqueza. A sustentação da desigualdade e da opressão não se mostrava, como Marx indicou, apenas na força. Também estava/ está entranhada nas ideias, nas crenças e nas nossas representações. Para entender esse processo de dominação e controle, o marxismo vai incluir entre suas categorias de análise o conceito de ideologia, oferecendo um sentido bastante singular a uma concepção que também tinha história. Saiba mais Se você ficou interessado na obra de Marx, veja também: MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 2012. 2 IDEOLOGIA O termo ideologia aparece com importância para a Filosofia e as Ciências Sociais há pouco mais de um século, mas sua história pode ser rastreada nas culturas grega e romana. Seu sentido mais corrente é o que trata daquilo que afasta os homens e as sociedades da “realidade”, mais especificamente dos determinantes que nos fazem compreendê-la. Essa concepção ainda “bruta” vai precisar ser lapidada e transformada em campos como o da Filosofia, da Sociologia, da Política e mesmo da Psicologia, por autores que se propuseram a enfrentar as dificuldades de dar suporte teórico a um conceito que articula a materialidade da vida à sua dimensão “imaterial”, ao campo do conhecimento e das ideias. De acordo com Chauí (1997), é possível falar de ideologia utilizando uma conceituação fraca e outra que poderia ser nomeada como forte. Nesse sentido fraco, ideologia diz respeito ao conjunto de ideias que nós mesmos, nossos grupos e sociedades utilizamos e que irá configurar nossa visão do mundo (ou cosmovisão). Seu valor está no ser aquilo que sustenta o pensamento e o comportamento humanos 13 PSICOLOGIA SOCIAL construídos por meio das relações entre os homens e transmitido entre as gerações pela cultura e suas instituições, isto é, pela linguagem, pela arte, pelas produções artísticas, científicas, religiosas, na escola, no trabalho, no dia a dia. A definição forte está diretamente associada à crítica construída na perspectiva marxista e que a apresenta como possuindo um sentido necessariamente negativo. Nesse caso, a ideologia é como uma falsa consciência produzida e sustentada pela classe dominante e que se presta a encobrir os determinantes da dominação exercida por tal classe, como uma neblina que não nos deixa perceber a realidade. Como efeito da ideologia, estará o caráter natural da dominação, associada não a condições histórico-sociais, mas a circunstâncias que podem ser buscadas em princípios que são entendidos como universais e imutáveis. A ideologia dominante explica como “natural”, por exemplo, a supremacia de determinados grupos, a incompetência de um determinado grupo étnico, enfim, as diferenças que justificam a exclusão de indivíduos e grupos do poder de conduzir e controlar seus corpos, sua riqueza e suas vidas. Desse modo, a ideologia sustenta a desigualdade e pretende calar aqueles que se veem fora do jogo da sociedade. Apresenta como responsabilidade do indivíduo aquilo sobre o que ele não pode responder e que se encontra em outra instância, fora de seu controle. Figura 3 – A ideologia é como uma névoa que não permite ver a realidade Um exemplo: na escola pública, não é incomum ouvir-se que determinada criança tem problemas, que é incapaz de aprender, que é preguiçosa. Se há alguma concessão, é na transferência da responsabilidade do insucesso para a família, normalmente caracterizada como “desestruturada”. Ora, não entra nesse jogo, na compreensão desse acontecimento, que a “inadequação da criança” é o outro lado da moeda, confortavelmente escondido pelo viés ideológico. isto é, que se trata aqui, de fato, da “inadequação da escola”. Esse outro lado pode ser verificado, não muito longe, no contexto das políticas públicas de educação, das tremendas dificuldades enfrentadas por essa instituição, do entendimento governamental que tira a educação do lugar privilegiado para a construção da autonomia e da cidadania. Como a ideologia – constituída de ideias, entendimentos e princípios – é construída e sustentada? Quais são seus mecanismos? Qual é seu processo? De acordo com Guareschi (1998), a ideologia constitui-se como prática discursiva e material, isto é, ela se estabelece no campo das ideias, nos discursos, nas conversas. Também se faz nas práticas cotidianas, na repetição dos papéis sociais, na educação escolar, nas práticas familiares e sociais. Numa 14 Unidade I sociedade marcada pela extraordinária presença dos meios de comunicação, é transmitida não apenas por revistas, jornais, TV, mas também e intensamente pela internet, pelas redes sociais, nas quais vivemos mergulhados no cotidiano. Desse modo, a ideologia é literalmente apreendida e, assim, legitimada (THOMPSON, 2001). Esse processo, que pode ser reconhecido como brutal e violento, uma vez que implica a imposição de ideias, valores e comportamentos (o hoje), assim como de possibilidades (o futuro), também tem grandes sutilezas. Sua instituição se faz de tal forma que os indivíduos não se dão conta de seu aspecto construído e tutorado, tomando como “natural” o que foi produzido circunstancialmente, apoiado por interesses de classe e de grupos específicos, mas de forma que oculte tais interesses e a contradição na qual estão apoiados. Como resultado desse processo, a crítica à ideologia é tarefa imensamente complexa que muitas vezes tem se mostrado ineficaz. Embora necessária, a mera apresentação da contradição não desfaz o “feitiço” ideológico, isto é, ainda que haja disposição para confrontar a ideologia, reconhecida sua presença e os equívocos a que ela nos leva, isso é um desafio para a razão e também para as paixões. De um lado, não é difícil compreender que a repetição de certo entendimento sobre a vida e sobre suas funções, associada a uma “bonita moldura”, é capaz de promover tal sustentação da ideologia. Esses entendimentos, enraizados e apresentados como “naturais”, têm uma inércia, isto é, são como objetos pesados, difíceis de serem movidos, contrariados, de saírem do campo de conhecimentos que nos organiza e dirige. Poderemos verificar essa dificuldade, numa perspectiva estritamente psicológica, se compreendermos que abrir mão dessas “certezas” também é abrir mão, um tanto, de nós mesmos, de nossas identidades, uma condição que nos assusta e carrega para longe a incerteza dos efeitos ideológicos. Também, numa perspectiva filosófico-política e estratégica, os próprios críticos podem ser responsabilizados pelas dificuldades de contrapor-se à ideologia dos grupos dominantes. Isso porque, de acordo com Guareschi (1998), eles podem ter tomado esse embate a partir de princípios que precisam ser desafiados. Por exemplo, no seu apego à razão como caminho exclusivo desse confronto, por uma teleologia em relação às determinações históricas desse embate, isto é, a descoberta e o desvelamento da ideologia dominante como parte de um caminho sem volta, especialmente o desprezo pelo pensamento não cartesiano e por categorias como afeto, desejo e prazer. A revisão crítica dessa posição pode ser vista, por exemplo, em obras que buscam incluir essas categorias e promover sua inclusão definitiva num conflito que não pode ser ganho sem considerar o imponderável. Silvia Lane e Bader Sawaia, por exemplo, são representantes desse esforço na Psicologia Social brasileira e na elaboração de conceitos que fazem essa conexão, como o de sofrimento ético-político (SAWAIA, 1999), recuperando a dimensão afetiva na construção e na manutenção das mazelas sociais. Poderíamos acrescentar aqui que a ideologia também se produz por meio do compartilhamento de imagens que sustentam esses entendimentos e ideias, assim como as práticas cotidianas. As imagens, ou aquilo que tem dimensão imagética e que está também nas palavras, no discurso, no comportamento ainda são potentes para conduzir a ideologia. Os estudos sobre o imaginário,numa perspectiva crítica como a do filósofo Cornelius Castoriadis (1986), podem auxiliar a compreender essa presença, assim como os trabalhos desenvolvidos a partir da Teoria das Representações Sociais, proposta pelo psicólogo social Serge Moscovici (2010). 15 PSICOLOGIA SOCIAL Exemplo de aplicaçãoExemplo de aplicação Você consegue perceber, por exemplo, a presença da ideologia nas notícias publicadas pelos grandes Você consegue perceber, por exemplo, a presença da ideologia nas notícias publicadas pelos grandes conglomerados de mídia – jornais, redes de televisão, revistas semanais?conglomerados de mídia – jornais, redes de televisão, revistas semanais? Finalizando, leia o poema O rei que mora no mar, de Ferreira Gullar: O rei que mora no mar Diz a lenda que na praia dos Lençóis no Maranhão há um touro negro encantado e que esse touro é Dom Sebastião. Dizem que, se a noite é feia, qualquer um pode escutar o touro a correr na areia até se perder no mar onde vive num palácio feito de seda e de ouro. Mas todo encanto se acaba Se alguém enfrentar o touro. Isso é o que diz a lenda. Mas eu digo muito mais: Se o povo matar o touro, a encantação se desfaz. Mas não é o rei, é o povo que afinal desencanta. Não é o rei, é o povo que se liberta e levanta como seu próprio senhor: Que o povo é o rei encantado no touro que ele inventou. Fonte: Gullar (2002). 16 Unidade I Nos versos de Ferreira Gullar, recuperando a maravilha da cultura popular do Maranhão, notamos a presença de algo que nós mesmos construímos e que nos aprisiona, que é assustador e mágico. É só no confronto com este que parece o que nos controla, “o rei”, que podemos sair do encanto e nos libertar. Assim é com a ideologia: só o confronto e a crítica permanente podem oferecer saída para a dominação e instituir a liberdade. Figura 4 – Músicos esquentando tambores para a Festa do Boi Saiba mais Veja na internet: ARQUIVO marxista na internet. [s.d.]. Disponível em: http://www. marxists.org/portugues/. Acesso em: 26 set. 2013. MEMÓRIA Roda Viva: Marilena Chauí. Produção: Vicente Lomonaco. São Paulo: Fundação Padre Anchieta, 1999. Disponível em: www.rodaviva. fapesp.br/materia/61/entrevistados/. Acesso em: 20 dez. 2013. 3 A REALIDADE HISTÓRICA E SOCIAL DOS PAÍSES LATINO‑AMERICANOS 3.1 A Psicologia dos Grupos no embate das questões sociais As discussões sobre o materialismo dialético, a presença e a importância da contradição nos fenômenos humanos e sobre os processos ideológicos servem para apresentar as ferramentas teórico-conceituais e práticas que serão utilizadas contemporaneamente pelos psicólogos sociais brasileiros e latino-americanos, matéria-prima das mais importantes para os estudos e trabalhos sobre grupos numa perspectiva crítica. A inserção científica e profissional da Psicologia num contexto marcado por grandes desigualdades sociais e pela dominação de modelos científicos forjados em outras culturas foi construída por meio de uma profunda mudança no rumo dessa história, que exigiu e ainda vem exigindo a disposição para o confronto, o debate e o engajamento político. 17 PSICOLOGIA SOCIAL Durante muito tempo, a Psicologia no Brasil pôde ser entendida como um espelho das atividades científicas que se desenvolviam na “metrópole” – entendam-se aqui os Estados Unidos. Seguindo esse modelo colonial, nossa produção científica e técnica esteve longe de levar em conta a história e as realidades vividas pelos povos latino-americanos, e acadêmicos e universidades dedicavam-se com mais ou menos sucesso a repetir as preocupações e os programas das universidades norte-americanas, tornando nossos os problemas e interesses produzidos em outros lugares (SANDOVAL, 2000). A ultrapassagem crítica desse modelo pronto de reprodução vai apoiar-se em uma “tomada de consciência”, se é possível falar assim, por parte dos próprios psicólogos, que passam a incluir no seu vocabulário técnico-prático palavras que antes não se pensava que pudessem fazer parte dele. É o caso, por exemplo, da ideia de subdesenvolvimento, conceito que aponta para as condições de submissão cultural e econômica construídas e sustentadas pelas relações de dependência com os chamados países desenvolvidos: O subdesenvolvimento não é, como muitos pensam equivocadamente, insuficiência ou ausência de desenvolvimento. O subdesenvolvimento é um produto ou um subproduto do desenvolvimento, uma derivação inevitável da exploração econômica colonial ou neocolonial, que continua se exercendo sobre diversas regiões do planeta (CASTRO, 2003, p. 137). A entrada desse novo organizador da prática dos psicólogos, segundo Sandoval (2000), vai provocar uma mudança muito importante no horizonte do que era possível fazer nesse campo, empurrando definitivamente os psicólogos para uma condição que também produzia estranhamento e incômodo no meio científico: deixam de ser reprodutores de ideias e pensamentos estrangeiros e passam a reconhecer-se como militantes das causas sociais. Em outras palavras, o psicólogo identifica-se nessa condição também como um cidadão e crítico das situações sociais nas quais ele próprio vive. Mais do que isso, suas atividades científicas e profissionais vão ser compreendidas necessariamente como parte desse contexto. O confronto com a Psicologia tradicional – ou colonial – vai conduzir a um olhar muito mais crítico e inconformado para a realidade brasileira e a latino-americana, e a uma posição científica que exclui definitivamente o decantado princípio da neutralidade científica e o enfrentamento de questões que passam a ser centrais na agenda da Psicologia, como as oposições inclusão-exclusão, igualdade-desigualdade, autonomia-dominação. A descoberta preconizada pela ação científica neutra de inspiração positivista se oporá a uma prática que busca a transformação e que ganha força como objetivo fundamental do psicólogo. Durante as décadas de 1970 e 1980, boa parte da América Latina encontrava-se sob regimes de exceção. As ditaduras militares eliminaram direitos civis, suprimiram espaços de debate e a possibilidade do pensamento discordante, eventualmente apelando para a tortura dos opositores e produzindo o que, para usar um eufemismo bastante repetido, se chamou de “desaparecidos”, isto é, os indivíduos identificados que foram mortos por esses regimes. 18 Unidade I Figura 5 – Imagens de desaparecidos políticos em Córdoba, Argentina (2012) No Brasil, a Ditadura Militar foi instaurada em 1964 e encerrada em 1985. Sua presença nos meios culturais e acadêmicos foi avassaladora, ocasionando cassações, exílios e a morte de muitos indivíduos tidos como oponentes do regime, “subversivos”, que pretendiam mudar a condição política do país. Isso não impediu completamente que a voz dos grupos discordantes pudesse ser ouvida, apesar de a censura ter mutilado e impedido muitas obras de se tornarem públicas. Tal situação pôde ser vista, por exemplo, nas ações de grupos teatrais, como o Teatro de Arena em São Paulo, o Grupo Opinião, ligado ao Centro de Cultura Popular da UNE, e o Teatro do Oprimido, com autores como Oduvaldo Vianna Filho, Maria Adelaide Amaral, Plínio Marcos e Gianfrancesco Guarnieri. Na música, também são muitos os autores que produziram obras de resistência, críticas ao Regime Militar, entre eles Geraldo Vandré, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gonzaguinha. A canção Cálice (1973), de Chico Buarque de Hollanda e Gilberto Gil, é um bom exemplo de música de resistência, ao mesmo tempo que revela o cuidado para driblar a censura: Cálice Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor e engolir a labuta? Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa? Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta 19 PSICOLOGIA SOCIAL Pai! Afasta de mim esse cálicePai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada, pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue De muito gorda a porca já não anda (Cálice!) De muito usada a faca já não corta Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!) Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade? Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice Pai! Afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça! Minha cabeça perder teu juízo. Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça Fonte: Buarque; Gil (1978). 20 Unidade I Observação A Ditadura Militar no Brasil produziu e ainda produz efeitos. A Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012, investiga as violações dos direitos humanos por agentes do Estado entre 1946 e 1988. Figura 6 – Reunião pública da Comissão Nacional da Verdade (2013) A opressão política também alcançou os meios acadêmicos e científicos brasileiros. Via de regra, os intelectuais eram os primeiros a ser perseguidos e exilados. Sintomaticamente, essa condição abriu portas para a disseminação de conceitos e práticas técnicas e científicas identificados com o status quo, isto é, como o poder vigente. Os modelos hegemônicos de ciência, aqueles que poderiam propagar-se “livremente”, abraçavam no campo das Ciências Humanas e Sociais ideais que apresentavam uma versão do cientista e de suas questões que privilegiavam a neutralidade científica ou, ainda, o seu distanciamento das questões políticas. Nesse caso, o cientista deveria exercer uma ação “estritamente acadêmica” ou, no máximo, compreender sua produção como voltada para o “bem comum”, o “bem- estar da sociedade”, a “felicidade da nação”. No que diz respeito à psicologia latino-americana, a oposição aos governos totalitários conduziu inúmeros psicólogos ao confronto, ao desafio dos modelos hegemônicos vigentes e à proposta de novas formas de produzir conhecimento que pudessem, “subversivamente”, transformar a sociedade. É o caso da peruana Gladys Montecinos, das venezuelanas Maritza Montero e Maria Auxiliadora Banchs, do cubano Fernando González Rey e do espanhol radicado em El Salvador, Ignacio Martín-Baró. 21 PSICOLOGIA SOCIAL Figura 7 – A Ditadura Militar no Brasil Nesse contexto, a Psicologia, especialmente a Psicologia Social no Brasil, pode ser reconhecida a partir de uma história que se inicia, sintomaticamente, com uma crise. A crise da Psicologia Social, identificada por pensadores desde a década de 1960, refere-se ao confronto entre um modelo de Psicologia que defendia uma prática neutra e de aplicação tecnológica, na esteira da Psicologia americana, e um modelo que se apresentava vinculado ao contexto histórico-social, em que se desenrola a vida dos indivíduos; uma Psicologia com forte componente crítico e político. Nesse embate, que se estendeu pelos anos 1970, o psicólogo social Aroldo Rodrigues, será identificado como porta-voz de um desses polos. Rodrigues produz a sua obra científica a partir de um referencial histórico e epistemológico que caracteriza os conceitos e as práticas da corrente principal da Psicologia americana. Numa perspectiva que pode ser descrita como psicológica e fundamentalmente experimental (FARR, 2010), Rodrigues será o principal representante dessa posição, que entende uma separação necessária entre Psicologia e Política, compreendida aqui no seu braço participativo e crítico. Ainda que voltado para a produção de um conhecimento que considerava a realidade brasileira e a solução de problemas sociais – o que o levou, inclusive, à elaboração de uma tecnologia social –, a oposição da qual foi alvo ao longo da década de 1970 respondia às crescentes exigências de grupos de acadêmicos brasileiros do campo da Psicologia preocupados com a determinação de problemas e pesquisas que não apenas pensassem a realidade do país, mas também tivessem a preocupação sobre como transformá-la (LIMA, 2009). Em contrapartida, capitaneando a fala discordante do status quo e profundamente engajada na oposição à ditadura (1964-1985), está a psicóloga social Silvia Lane. Formada em Filosofia e doutora em Psicologia, sob uma perspectiva experimental, Lane constrói sua carreira científica aproximando-se, antes, do “materialismo” de Skinner, para então dedicar-se ao materialismo de Marx, contido na Psicologia soviética. Sua carreira acadêmica e profissional inclui as preocupações com a inserção do psicólogo como pensador e agente de transformação da sociedade. Indo além, Lane estabelecerá contatos permanentes com importantes representantes da Psicologia Social latino-americana, instituindo espaços de encontro e diálogo cruciais para o estabelecimento dessa Psicologia crítica (BOCK et al., 2007). 22 Unidade I Figura 8 – Silvia Lane defendeu a ação política do psicólogo Lane (1985) fez duras críticas ao entendimento sustentado por Rodrigues sobre a Psicologia Social como uma ciência básica e neutra capaz de solucionar problemas sociais. O maior perigo nesse caminho seria o de sustentar o psicólogo como um profissional a serviço da ideologia e da dominação, fazendo dele verdadeiro agente da adaptação. A Psicologia Social crítica, defendida por Lane e outros pensadores, vai assim buscando estabelecer-se como ação científica e política, indicando a impossibilidade de separar teoria e prática, voltada para uma ação acadêmica e profissional engajada na luta por transformação e justiça social. Como um dos primeiros passos da trajetória de oposição a uma “psicologia das elites”, está a publicação de um livro que vai delinear as principais preocupações teóricas e temáticas do grupo dirigido por Silvia Lane. Em Psicologia Social: o Homem em Movimento (CODO; LANE, 2006), são apresentados os fundamentos dessa Psicologia crítica, seus principais temas, como as Representações Sociais, a Identidade e o Processo Grupal, assim como os campos nos quais essa psicologia viria a ser aplicada – na escola, no trabalho e na comunidade. Exemplo de aplicaçãoExemplo de aplicação Pense e responda: como é possível reconhecer a presença da história de violações produzida pela Pense e responda: como é possível reconhecer a presença da história de violações produzida pela Ditadura no cotidiano? Onde elas podem ser encontradas?Ditadura no cotidiano? Onde elas podem ser encontradas? 3.2 A Psicologia Sócio‑Histórica Formada a partir das principais correntes no embate com os modelos hegemônicos e que defendem a neutralidade da Psicologia, desenvolveu-se uma perspectiva crítica nomeada como Psicologia Sócio-Histórica, representada no Brasil pelos trabalhos de Silvia Lane e de seu grupo. Fundamentada na crítica marxista e na produção de autores russos como Vygotsky e Leontiev, essa proposta-ação considera a Psicologia como ciência e guarda como princípio o conflito. Este está presente nas dualidades que podem ser identificadas nas diferentes escolas psicológicas, que mobilizam a caracterização de distintos objetos de conhecimento e a escolha de ferramentas metodológicas apropriadas para o exercício do conhecer. Estão aqui as oposições entre indivíduo e grupo, interno e externo, natureza e sociedade, autonomia e liberdade, determinação e controle (BOCK; GONÇALVES; FURTADO, 2001). 23 PSICOLOGIA SOCIAL A Psicologia Sócio-Histórica procura superar essa condição dicotômica, fazendo da contradição parte do fenômenopsicológico. Apoiada no marxismo, adota o materialismo dialético como filosofia, teoria e método. Como teoria crítica do modelo positivista e racionalista da ciência psicológica, busca situar a Psicologia numa perspectiva dialética. Orienta essa visão o princípio de que o homem é ativo, social e histórico e de que a sociedade deve ser entendida como uma produção histórica de seus participantes, homens e mulheres. Sob essa compreensão, as ideias são entendidas como representações da realidade material, que é, por sua vez, assentada em contradições expressas nas ideias. Assim, a história deve ser compreendida como movimento contraditório e constante do fazer humano – e que tem por fundamento sua base material. Para dar suporte a essa perspectiva, e já caminhando para o que sustentará as relações entre subjetividade e grupos, é necessário situar a própria história da Psicologia como ciência. Segundo Bock (2001), a visão liberal que acompanha a instalação do capitalismo privilegia o individualismo, a vida privada e a invenção de um “mundo interno”, particular. Tais princípios irão fundamentar as preocupações que virão a configurar-se, mais tarde, a Psicologia como campo do conhecimento. Em meio a um cenário de diferenças entre os indivíduos, cada um portador de uma singularidade, a Psicologia virá contribuir para a compreensão sobre como cada um desenvolverá suas próprias fórmulas de apropriação e enfrentamento do mundo natural e do social. Essa compreensão, contaminada pela ideologia dominante do sujeito senhor de si e de sua história, despreza o âmbito coletivo e, assim, individualiza o sofrimento, a inadequação e a falta, contribuindo para a sustentação da desigualdade social, que requer o ajuste e a cura, em vez da crítica das condições sociais que sustentam a desigualdade. O fenômeno psicológico, nesse cenário, é deslocado das condições sócio-históricas nas quais “objetivamente” se apresenta e é naturalizado, apresentado como fora do tempo e do espaço. Está lá e solicita dos indivíduos que se adaptem a essas condições. Na perspectiva sócio-histórica, porém, vai-se compreender o fenômeno psicológico como não pertencente à natureza humana, não preexistente ao homem, mas refletindo a condição social, econômica e cultural em que homens e mulheres vivem. Portanto, o mundo interno e o mundo externo não são compreendidos como oposições, mas como: [...] aspectos do mesmo movimento, do mesmo processo no qual o homem atua e constrói/modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a constituição psicológica do homem [...]. O fenômeno psicológico deve ser entendido como construção no nível individual do mundo simbólico que é social (BOCK, 2001, p. 22-3). A Psicologia Sócio-Histórica afirma, assim, a indissociabilidade entre a subjetividade e a objetividade do mundo, marcada pelas relações econômicas, e reconhece a presença da linguagem como mediadora do processo de internalização da realidade. A subjetividade não pode ser descolada das relações sociais concretas, e, desse modo, conhecer o mundo interior – o fenômeno psicológico – é compreendê-lo como expressão e conversão do mundo objetivo e coletivo, retirando sua caracterização como algo que deve ser entendido como abstrato e idealista. Muito pelo contrário, o fenômeno psicológico ganha “materialidade”. 24 Unidade I A crítica da Psicologia Sócio-Histórica é aguda porque vê, nas correntes psicológicas derivadas das posições positivistas em ciência, a naturalização dos fenômenos psicológicos. O efeito da adesão a essas correntes é, inevitavelmente, o de sustentação de práticas de adaptação e ajuste, desprezando os condicionantes sócio-históricos que mantêm concepções sobre o indivíduo, o social e os fenômenos psicológicos, ignorando a presença da ideologia e contribuindo para a ocultação desses determinantes. A Psicologia Sócio-Histórica critica a Psicologia fora dessa perspectiva porque, como consequência, entende-se que os sujeitos são responsáveis solitários por seus sucessos e fracassos, que as condições de vida respondem pelo aparecimento ou não das “potencialidades” de cada um, que as pessoas podem ser classificadas por suas características psicológicas e, em última instância, contribuem para reforçar padrões de conduta e normalidade que têm a elite como referência, contribuindo para a estigmatização e para o sofrimento daqueles que “não conseguem”. Complementando, a crítica confirma-se na história de cumplicidade das práticas psicológicas tradicionais com os interesses dos grupos dominantes, naturalizando representações, identidades e a origem social das diferenças, ou melhor, do que estas são e significam num dado contexto sócio-histórico (BOCK, 2001). Na crítica à postura positivista e idealista na construção do conhecimento em Psicologia, essas considerações têm efeitos profundos sobre o posicionamento de acadêmicos e profissionais, requerendo deles conhecimento e capacitação técnica, mas também um posicionamento ético e político em relação às suas práticas, críticos dessa perspectiva naturalizante e engajados na transformação da realidade. Como desdobramentos da adesão à perspectiva sócio-histórica, pretende-se superar a neutralidade da prática profissional e assumir que esta trata de escolhas e engajamentos, que irão se materializar na construção de projetos coletivos de classe, mas também na elaboração de uma ação profissional que respeita os interesses e desejos do outro no encontro da prática profissional (indivíduo, grupo, comunidade). Lembrete Não deixe de reconhecer na proposta crítica da Psicologia Sócio-Histórica os fundamentos filosófico-metodológicos que vêm do materialismo dialético para o combate à desigualdade e para a transformação da sociedade. 4 NOVOS TEMAS PARA O PENSAMENTO CRÍTICO EM GRUPOS: LINGUAGEM E IMAGINÁRIO 4.1 Questões de fundamento e metodológicas Do ponto de vista metodológico, muitos e diferentes têm sido os métodos utilizados para o estudo desses temas e conceitos numa perspectiva crítica. Embora os métodos quantitativos não sejam incompatíveis com a pesquisa social, os métodos qualitativos têm sido os preferencialmente utilizados nesse campo. As razões são muitas, mas podem ser sintetizadas no reconhecimento de que alguns problemas – que dizem respeito às condições e maneiras pela quais os grupos sociais compreendem, representam e comportam-se – exigem uma abordagem que possa dar conta, simultaneamente, da variedade e da convergência (MINAYO, 2010). 25 PSICOLOGIA SOCIAL Desse modo, as ações de pesquisa e intervenção na Psicologia Social tenderam a privilegiar metodologias qualitativas. Por meio delas, é possível aliar as preocupações com o engajamento do pesquisador e as vias para a transformação da sociedade com as demandas acadêmicas do apelo ao método que pudesse ser reconhecido como produzido dentro dos cânones científicos. Proposta no contexto de crítica ao pensamento positivista nas Ciências Sociais, a pesquisa qualitativa apoia-se numa epistemologia que reconhece como prática de ciência as teorias e ações que admitem a construção de conhecimento a partir de situações singulares, marcadas pelo contexto histórico e social nas quais se apresentam. Dessa forma, desafiam a universalidade e a permanência de um conhecimento que se faz em movimento, no debate e no confronto contínuo de interpretações do mundo. O pesquisador se apresentará, na mesma perspectiva profissional já discutida anteriormente, como parte necessária do processo de construção do conhecimento, não apenas como detentor de saber acadêmico e manipulador de técnicas, mas considerando o meio composto de história, experiências, conhecimentos e princípios que necessariamente interferirão na sua apreensão do problema investigado. Com essa participação como sujeito, ele se engajará numa relação intersubjetiva, contrapondo a divisão absoluta entre sujeito e objeto de conhecimento. O estudo das representações sociais, por exemplo, pode-se darem face desse contexto de interação entre os indivíduos a partir da interpretação das falas dos participantes de determinado grupo, de tal maneira que o pesquisador poderá procurar no estudo da história/narrativa do uso da representação social o instrumental específico para o exercício de interpretação. Portanto, o estudo das dimensões históricas do discurso presta-se ao estudo das representações sociais. Algumas categorias são especialmente importantes quando se produzem estudos qualitativos, entre elas a linguagem, meio privilegiado para se encontrar e conhecer o outro. Ao se falar no trabalho com grupos, outra categoria que tem exigido especial atenção é a de imaginário. A apreensão dos fundamentos dessas duas categorias é decisiva para a pesquisa e intervenção com grupos na Psicologia Social. 4.2 Linguagem Os estudos sobre a linguagem têm sido alvo de um grande número de pensadores em Filosofia, Sociologia, Antropologia e Psicologia, e mesmo nas Ciências da Saúde, seja preocupados com a compreensão de sua origem e função social, seja buscando compreender seus aspectos, neurofisiológicos e funcionais. Na linhagem teórica que vê a linguagem como prática que produz a ligação entre o indivíduo e o mundo social, há compreensões bastante diversas. O psicólogo behaviorista Skinner, por exemplo, tem uma obra especialmente voltada para o estudo e a interpretação do comportamento verbal, indicando a materialidade do falar. Numa outra perspectiva, a sócio-histórica, tendo Vygotski e Leontiev à frente, a linguagem vai ser compreendida como produto de relações materiais e sociais e pensada como indissociavelmente ligada ao pensamento. 26 Unidade I Figura 9 – Pessoas falando: elas representam o mundo ou são faladas por ele? De acordo com Kusch (1989), dentro da filosofia há diferentes maneiras de se entender a linguagem. A partir de autores como Edmund Husserl, a linguagem pôde ser entendida como cálculo. Para Heidegger, Gadamer e Wittgenstein, a linguagem será um meio universal. Basicamente, a diferença entre essas duas maneiras de compreendê-la está em entender que sua função pode ou não ser descrita como de representar a realidade. O filósofo alemão Husserl defende que a linguagem pode ser entendida como cálculo na medida em que é capaz de representar a realidade. Pode ser medida, e sua relação com a realidade pode ser estabelecida matematicamente. Isso traz consequências imediatas para a sua interpretação, em práticas como o Direito e mesmo para as práticas de saúde. Já para autores como Martin Heidegger, a melhor maneira de abarcar a linguagem é caracterizando-a como meio universal. Numa compreensão distante do senso comum, esses autores entendem que a linguagem não é uma ferramenta, mas antecede a realidade e conforma o real, que só passa a existir a partir da linguagem. Na compreensão da linguagem como meio universal, ela não apenas revela, mas institui a realidade, o que sugere uma condição muito singular: no limite, nós não falamos, somos falados. O filósofo Gadamer (1977) sustenta esse outro lugar da linguagem afirmando que ela não é apenas um objeto em nossas mãos, mas é o reservatório da tradição em que e por meio do qual nós existimos e percebemos o mundo. Ele usa a metáfora do jogo para explicar a autonomia da linguagem. A fascinação do jogo vem de estar à mercê dele; assim também é a linguagem nessa perspectiva, que nega a possibilidade de um controle absoluto sobre ela. Como num jogo (jogos de linguagem), os caminhos da linguagem escapam ao nosso domínio absoluto como jogadores. O resultado é que há uma dificuldade fundamental para se tratar o mundo objetivamente por meio da linguagem; nessa dificuldade, está implicado o falante, o “ser”. Outro filósofo que se dedicou à linguagem que não se presta a representar a realidade é Ludwig Wittgenstein. Ele usa o exemplo da dor para explicar a linguagem como jogo. Segundo ele, o reconhecimento da dor – a própria dor – não se constitui numa circunstância apenas individual, apoiada no mundo interior de um sujeito, mas depende de certa gramática. Embora aparente uma declaração indicativa de um estado interno, essa afirmação é de fato o início de um jogo de linguagem: é um pedido de reconhecimento sobre algo que se passa entre o autor e quem o escuta. 27 PSICOLOGIA SOCIAL Todas as operações que pretendemos fazer a partir da linguagem irão pôr em jogo a condição de “ser” de quem fala. Se o jogador é um pesquisador, de desbravador do desconhecido ele passa a ser construtor do real. Se é um profissional como na Psicologia Social, de aplicador de técnicas ele passa a instrumento da cultura. Se o jogador é um professor, além de mestre, ele será também aprendiz. A relação com a linguagem é uma tarefa coletiva, que depende da inserção social dos falantes, do lugar de onde se “fala” e de quem são seus interlocutores. Assim, ao falar, o uso da linguagem não é tarefa “neutra”, mas implica consequências e, então, responsabilidades. A concepção de linguagem como meio universal aponta para a impossibilidade de encontrar a “verdade”, objeto, por excelência, da ciência; ela subverte o papel do pesquisador, do profissional e do professor, ao fazer da ciência um parente bem próximo da arte. Veja a letra da música Timoneiro, de Paulinho da Viola e Hermínio Bello de Carvalho: Não sou eu quem me navega Quem me navega é o mar Não sou eu quem me navega Quem me navega é o mar É ele quem me carrega Como nem fosse levar É ele quem me carrega Como nem fosse levar E quanto mais remo, mais rezo Pra nunca mais se acabar Essa viagem que faz O mar em torno do mar Meu velho um dia falou Com seu jeito de avisar: – Olha, o mar não tem cabelos Que a gente possa agarrar Timoneiro nunca fui Que eu não sou de velejar O leme da minha vida Deus é quem faz governar E quando alguém me pergunta Como se faz pra nadar Explico que eu não navego Quem me navega é o mar A rede do meu destino Parece a de um pescador Quando retorna vazia 28 Unidade I Vem carregada de dor Vivo num redemoinho Deus bem sabe o que ele faz A onda que me carrega Ela mesma é quem me traz Fonte: Carvalho; Viola (2004). Nessa letra, que faz uma bela metáfora sobre o imponderável da vida, é possível ver uma proximidade com a discussão a respeito da linguagem como algo que “atravessa” os sujeitos. Lembrete Assim como a arte pode ser instrumento para a crítica, a linguagem concebida para além da representação do mundo indica caminhos para driblar a ideologia e a opressão de classe. 4.3 Concepções sobre o imaginário 4.3.1 Imagem e (des)razão As concepções de imaginário que têm sido tratadas nas Ciências Sociais ao longo do último século recuperam a importância daquilo que não pode ser “calculado”, como se viu anteriormente em relação à linguagem. A dimensão humana, no que ela tem de caótico e “irracional”, é tomada como centro de metodologias de pesquisa e intervenção. Isso poderá ser conferido nas práticas com os grupos e na leitura dos fenômenos sociais e institucionais. No cenário da produção científica nas Ciências Sociais, vê-se desde o início do século XX a tensão entre um modelo de conhecimento que busca a ordem e aquele que procura incluir a dimensão caótica, irracional e, em grande medida, incontrolável sobre o humano. Essa falta de valor daquilo que não é prontamente submetido à razão e ao controle experimental colocou ao largo do saber tudo o que não é da ciência, como as religiões, a filosofia ou os mitos. Ainda assim, a “irracionalidade” das massas (LE BON, 2008) “vinga” essa disposição que é efeito de nossa herança positivista, na medida em que os indivíduos sistematicamente se comportam de maneira imprevisível e “ao largo” da razão. Observação O Nobel de Economia de 2002 foi dado a dois cientistas (Kahneman e Smith), cujos trabalhos descrevem como o dinheiro deveria se comportar logicamente... se os humanos não o manipulassem. 29 PSICOLOGIA SOCIAL O antropólogo francês Gilbert Durand (2012, p. 18) define imagináriocomo o “conjunto das imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do Homo sapiens”. O mesmo autor reconhece que o lugar do imaginário na história dos homens tem sido um lugar sem valor. O imaginário tem sido associado à desrazão e ao infantilismo social, e sua função seria fomentar erros e falsidades. De fato, desde Sócrates, tudo o que se considera como “férias da razão” deve ser colocado de quarentena... Essa associação entre imagem e (des)razão está apoiada no entendimento de que a imagem se opõe ao pensamento, e, de fato, ela está separada de um pensamento puramente lógico. A imagem, a partir dessa crítica, é como um “ruído” do pensamento: acompanha-o, mas sem ter muita importância na sua gênese. Durand (2012) recupera o valor do imaginário e das imagens, considerando que elas também detêm conhecimento, embora este possa não ser necessariamente científico. Outro autor interessado no tema é o filósofo greco-francês Cornelius Castoriadis (2007), fundador do grupo Socialismo ou Barbárie, com Claude Lefort e Jean Laplanche, no Pós-Guerra (1946), e da revista de mesmo nome, pouco depois (1949). Castoriadis oferece um entendimento sobre a sociedade e a história que se opõe aos pontos de vista tradicionais de sua época: o estruturalista e o funcionalista, incluindo neste último o marxismo. A crítica de Castoriadis ao marxismo passa pelo reconhecimento da instalação de uma burocracia operária na então URSS, pela perda do caráter revolucionário da sociedade soviética e pela compreensão de que o pensamento marxista não conseguiria ultrapassar o burguês, isto é, o pensamento marxista seria capaz de disseminar os ideais burgueses e o seu modo de pensar. Para esse filósofo, a representação do capitalismo vai buscar sentido no caldo social-histórico oferecido por uma cultura “capitalista”, enquanto o marxismo naturaliza a luta de classes e faz da teoria marxista da história a sua versão definitiva: o que estiver fora da perspectiva que ela aponta ou é alienação, ou barbárie. Assim, um dos problemas com determinadas leituras da Teoria Marxista seria sua inobservância de outras motivações para os seres humanos que não apenas a econômica. Castoriadis e seu grupo também se opuseram ao estruturalismo cientificista de Lévi-Strauss, que se apresenta nessa época como pensamento alternativo ao marxismo. Contra esse estruturalismo, defenderam que, nas décadas de 1950 e 1960, este não era uma opção, mas adaptação ao modo de dominação do capitalismo moderno, um discurso que conferia o primado absoluto à ciência, que esvaziava a história e levava a tecnocracia ao campo intelectual (DOSSE, 2007). A crítica de Castoriadis se estenderia a quaisquer tentativas de opor os indivíduos e as coisas, já que tanto uns quanto outros seriam criações sociais (CASTORIADIS, 2007). Ele se coloca na contramão de qualquer explicação determinista e cientificizada para os fenômenos sociais e, contra o natural e o racional, apela para a história e seu caos indecifrável. É contra a pré-instituição da realidade, seja por qual caminho isso se der (via marxismo, via estruturalismo, por exemplo). Para ele, a sociedade se institui a partir do imaginário, do social-histórico. Sua crítica conduz à constatação de que as teorias “revolucionárias” não conseguiram, num certo momento, ceder à mistificação, isto é, tendem a ser elas mesmas sujeitas a serem tomadas como “naturais”. Mesmo o apelo à razão, por sua vez, foi incapaz de 30 Unidade I promover essa superação. Não por acaso, Castoriadis vai ser identificado entre os representantes de um “pensamento 68”, juntamente com Sartre, Edgard Morin, Jean Duvignaud, Claude Lefort e Henry Lefebvre (DOSSE, 2007). O contexto no qual estão inseridos maio de 1968 e Castoriadis é o das estrelas acadêmicas, dos heróis do pensamento e das batalhas pela hegemonia do discurso, ou da verdade. Esse ambiente, apresentado como avesso à mídia da cultura de massas (MORIN, 1984), estava curiosamente insuflado pela exaltação às imagens de pensadores de todos os matizes: existencialistas, marxistas, estruturalistas ou filósofos, sociólogos, psicanalistas. Na Europa reconstruída no Pós-Guerra, a colonização cultural americana com a homogeneização da sociedade e a importância alcançada pelo cinema como difusor de sentidos e agregador das massas são vetores da imagem como referente social. A disputa pela verdade, que explode em 1968 com greves e passeatas de estudantes, é o ponto culminante de uma reordenação das certezas do Pós-Guerra, da oposição simples entre capitalismo e comunismo, entre os projetos individuais e os comunitários. É nesse momento que os grupos voltam a ser vetores de transformação social. A guerra produz um esforço comunitário e, em seguida, um refluxo em direção à valorização da individualidade. O ano de 1968 é a retomada de um movimento que recupera a presença do grupo como formulador da mudança. O grupo desautoriza o mestre (ou mandarim) e institui a verdade a partir do próprio agir, ainda que essa instauração não seja definitiva: Castoriadis não vislumbra em 1968 nenhum grupo disposto a engajar-se numa efetiva proposta revolucionária, fossem operários, intelectuais ou estudantes. Revolta, sim; revolução, não. Revolta adolescente, oposição ao instituído, que é tentativa de estabelecer uma identidade revolucionária, ainda que seu agir não o fosse. Maio de 1968 é como um grito que anuncia a possibilidade do imaginário no poder e denuncia o caráter impossível de mudanças que pudessem estabelecer-se apenas pela razão. A importância de Castoriadis (morto em 1997) ainda se faz perceber, como afirmam França (1996) e Rodrigues (1998), pela sua proposição de um entendimento do social como instituinte e instituído permanentemente a partir do “imaginário radical”, reconhecendo sua potência no imprevisível que o imaginário radical nos reserva, num momento em que: [...] não somente jovens, como trabalhadores, operários, camponeses, intelectuais, idosos, mulheres, crianças etc. são figurados como comportados consumidores de imagens, submetidos às leis do mercado, conformados com o que é, protótipos de um legeinteukhein identitário, hegemônico porque coincidente com determinado “Deus Logos” – o do “fim da história” – que exibe, como aspectos mais visíveis, o “fim do socialismo real” e a “ascensão globalizada do modelo neoliberal” (RODRIGUES, 1998, p. 134). 4.3.2 O imaginário radical Na segunda parte de A instituição imaginária da sociedade (2007), Castoriadis vai definir seu entendimento do imaginário, diferenciando-o do sentido corrente – o imaginário como falso, como invenção, como engano – e situando-o como parte indistinguível do que implica ser humano. Caracterizando as instituições sociais, ele afirma que tudo de que se fala, tudo o que se apresenta para e pelos indivíduos está associado a uma rede simbólica, um simbólico que obviamente está na linguagem, 31 PSICOLOGIA SOCIAL mas que também está nas instituições. Aquilo que determina uma instituição, o que se produz e o que se fala ali não se explica perfeitamente pela sua funcionalidade, ou pelas consequências lógicas desses atos e palavras, mas a ultrapassa, isto é, comporta algo mais que escapa à ordenação simbólica. Os símbolos institucionais, aquilo que representam, não são assim instituídos apenas racionalmente e também não o são naturalmente, mesmo que apoiados de alguma forma na realidade. Isso que não é redutível ao simbólico, mas que a ele está necessariamente associado, é uma primeira aproximação do que Castoriadis irá chamar de imaginário. Essa afirmação quanto ao que sobra do simbólico, que algo escapa, derrama-se, como uma espécie (des)valorizada de resto, não é uma novidade. Pelo contrário, tal sobra tem sido entendida ou como algo desprezível, insignificante, ou como problema da mesma ordem daquele que se tem com o lixo que não se deteriora: o que fazer com ele? O que Castoriadis afirma, indo além, é que aquilo que escapa ao simbólico,o imaginário, não é sobra, mas está ali sempre, ou mesmo é anterior à sua instituição. Não se trata, porém, de defender a existência de um conteúdo primordial, fora de qualquer tempo, pensamento dos deuses, matéria de outro mundo. Não há uma substância preexistente às instituições que as expressa e que produz a possibilidade de um significado. É o simbólico na língua e no fazer social das instituições que dá sentido à realidade. O autor dá como exemplo o que acontece em instituições como a Igreja e a Justiça, em que a ordem e a funcionalidade, isto é, o simbólico, são apresentadas como razão de sucesso. Nessas instituições, em geral, é subestimada a importância disso que escapa, do imaginário, para a manutenção e a dinâmica institucionais. Aqui, Castoriadis fala em simbolismo, um imaginário efetivo. Sua relação com o simbólico é inequívoca. O que escapa, se não é totalmente adequado ao funcionamento dos processos institucionais, também não é derivado de alguma substância inerte ou de pura criação dessa sociedade. Estabelece-se apoiado em algo que já está ali, história e natureza, e sua presença e consequências são o ser da sociedade: [...] nem livremente escolhido, nem imposto à sociedade considerada, nem simples instrumento neutro e médium transparente, nem opacidade impenetrável e adversidade irredutível, nem senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade, nem meio de participação direta e completa em uma ordem racional, o simbolismo determina aspectos da vida da sociedade (e não somente os que era suposto determinar) estando, ao mesmo tempo, cheio de interstícios e de graus de liberdade (CASTORIADIS, 2007, p. 152). A dificuldade de localizar nesse imaginário efetivo a sua fonte, sua confusão com a ordem simbólica e ainda entendê-lo como resto irá indicar nele uma tendência à autonomização. Os ritos são racionalizados ou naturalizados, de forma que, na instituição, o que poderia ser entendido como vida ou movimento passa a ser índice de algo que não pode ser mudado, sob pena de desarranjo ou morte da instituição. Castoriadis entenderá a linguagem e o simbolismo em um mesmo plano. Nem tudo é linguagem, tampouco simbolismo, mas, assim como a linguagem nos aprisiona em seus domínios sem impedir uma mobilidade, também o simbolismo inerente às instituições oferece possibilidades de manuseio, 32 Unidade I operatividade. Da mesma forma que na linguagem, nessa perspectiva, o que irá fornecer ao simbolismo seu suplemento essencial de determinação e de especificação está fora do simbólico: aqui temos a presença de outra dimensão imaginária. De fato, esse imaginário usa o simbólico para passar a “existir”. Por meio dele, o imaginário passa a ser, de fato, operacional, atualizado e atualizável pelas falas e ações dos indivíduos. Esse imaginário último, raiz de tudo quanto é simbólico, todas as expressões humanas, como as instituições, a arte, as religiões, ou a ciência, raiz comum tanto do simbólico quanto do simbolismo – o imaginário efetivo –, Castoriadis irá chamá-lo de imaginário radical. 4.3.3 O imaginário social Valorizando essa dimensão, o imaginário, para Castoriadis, não faz sentido dizer que esta só se apresenta na medida em que uma sociedade não consegue resolver seus problemas reais. Os problemas só são possíveis de serem identificados como tais justamente pela presença do imaginário. Não se pode dizer para onde uma sociedade tende naturalmente, assim como o que lhe faltaria, o que precisa ser-lhe fornecido, qual o seu objeto. A definição dessas necessidades, a maneira pela qual se estabelecem, sua dinâmica de instituição e manutenção, tudo isso é tributário do imaginário radical. Por ele e para ele, elas se estabelecem, dentro de limites que são fornecidos pelo que é a cada tempo uma sociedade ou uma instituição, ou, ainda, um grupo. Tempo que não diz respeito à evolução ou simplesmente a movimento, mas num sentido muito profundamente vinculado às ações sociais. É por meio delas que o tempo também se institui. Forma e conteúdo não podem ser entendidos como dissociados. Linguagem e simbólico não podem ser entendidos como independentes de um conteúdo que expressariam. De fato, para Castoriadis, o imaginário radical não é substância: só permite indiretamente a inferência de sua “existência”: o imaginário radical oferece um universo de significados a partir de sua presença “em ação”. O significado, para Castoriadis, não pode ser buscado apenas na diferença entre os signos (como querem os estruturalistas), mas na ação dos homens: “A história só existe na e pela ‘linguagem’ (todas as espécies de linguagem), mas essa linguagem, ela se dá, ela constitui, ela transforma” (CASTORIADIS, 2007, p. 168). A linguagem – o simbólico – deve ser pensada dentro da história, do tempo, do movimento. Portanto, Castoriadis entende que existe algo que ele chama de significações imaginárias sociais, relativamente independentes dos significantes e que desempenham mesmo um papel na escolha e na organização de tais significantes. Por exemplo, Deus, para os que nele creem: não é o nome de Deus, nem as imagens que um povo pode dar-se dele, nem nada de similar. Carregado, indicado por todos esses símbolos, ele é, em cada religião, o que faz desses símbolos, símbolos religiosos – uma significação central, organização em sistema de significantes e de significados, o que sustenta a unidade cruzada de uns e de outros, o que permite também sua extensão, sua multiplicação, sua modificação. E essa significação, nem de uma percepção (real) nem de um pensamento (racional) é uma significação imaginária (CASTORIADIS, 2007, p. 170). 33 PSICOLOGIA SOCIAL Essas significações imaginárias sociais são “significações operantes”, isto é, produzem efeitos e, diferentemente das outras, que se dão no registro do percebido e do racional, as imaginárias são captadas a partir de suas consequências, “a partir das sombras projetadas sobre o agir social efetivo dos povos” (CASTORIADIS, 2007, p. 172). Essas criações não são originárias dos indivíduos. Não é possível pensar nas significações imaginárias como derivação da psique individual porque esta não pode ser isolada do contínuo social, que, já desde antes, encontra-se instituído, e, assim, um indivíduo não será capaz de gerar instituições, ou grupos, senão de expressar uma presença já disposta como possibilidade. Também não será da linguagem, estritamente, que provirão essas significações imaginárias, senão que encarnadas num fazer social que inclui a linguagem, mas é mais do que ela. O imaginário social, assim, dá à funcionalidade de cada sistema institucional sua orientação específica; sobredetermina a escolha e as conexões das redes simbólicas; é criação de cada época histórica, sua singular maneira de viver, de ver e de fazer sua própria existência, seu mundo e suas relações com ele; é estruturante originário; é significado-significante central; é fonte do que se dá a cada vez como sentido indiscutível e indiscutido; é suporte das articulações e das distinções do que importa e do que não importa (CASTORIADIS, 2007). O imaginário social, histórico e circunstancial, organiza a cada vez o lugar ocupado pelas instituições e pelos grupos, e designa as “imagens” daquelas em relação ao todo. 4.3.4 O imaginário e os grupos sociais Uma instituição se identifica por um nome, mas o nome que designa uma coletividade ou um grupo não se presta somente a denotá-lo, mas também para conotá-lo, porque se liga a um significado não real, não racional, e sim imaginário. Qualquer que seja a instituição, ela tem como papel preservar-se para além de “suas moléculas perecíveis”, ou seja, de seus membros. Para Castoriadis (2007), cada sociedade é um sistema de interpretação do mundo, de seu próprio mundo. A própria identidade de uma sociedade nada mais é do que esse sistema de interpretação, esse mundo que ela cria, e é por isso que ela, do mesmo jeito que o indivíduo, percebe como ameaça mortal qualquer ataque
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