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ARAÚJO, Nukácia M. S. Objetos de aprendizagem de língua portuguesa. In: ARAÚJO, J.; LIMA, S.C.; DIEB, M. Línguas na Web: links entre ensino e aprendizagem. Ijuí: Ed. Unijuí, 2010. p.155- 176. OBJETOS DE APRENDIZAGEM E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Nukácia Meyre S. Araújo –UECE Considerações iniciais As diversas situações de ensino proporcionadas pelas novas tecnologias têm trazido novos olhares sobre a tarefa de ensinar. Em função dessas novas perspectivas, tem-se pesquisado novas formas de interação no ensino-aprendizagem mediada por computador assim como têm sido desenvolvidas ferramentas e material didático específico para esse novo contexto. No que tange à elaboração e armazenamento de material didático, vêm sendo planejadas e implementadas algumas ações e programas governamentais1 que apresentam como objetivo promover a inclusão digital de escolas. Como um dos resultados dessas ações, tem-se a criação de objetos de aprendizagem que aportam recursos digitais atraentes para atividades curriculares em algumas disciplinas, como Matemática e Ciências, por exemplo. Em relação a subsídios para o ensino de Língua Portuguesa, no entanto, parece não haver ainda proposições em que se trabalhem equilibradamente conteúdos de ensino adequadamente abordados e uso de possibilidades de interação em uma mídia como software, por exemplo. Neste artigo, apresentamos, pois, um objeto de aprendizagem (OA) para o ensino de Língua Portuguesa. Os objetivos do OA são apresentar a intertextualidade intergenérica como aspecto da construção de textos, desenvolver estratégias de compreensão em leitura que passem pelo reconhecimento de diferentes gêneros e de seus propósitos. O Objeto é destinado a alunos de Ensino Médio de escolas públicas e 1 Um exemplo de uma dessas ações é a criação da Rede Interativa Virtual de Educação – RIVED (http://rived.mec.br). Para descrição do RIVED e de outros programas/ações governamentais, conferir Prata, Nascimento & Pietrocola (2007). faz parte do conjunto de atividades de ensino criadas no âmbito do Projeto Condigital/Língua Brasil/MEC/FNDE. Dividimos nosso escrito em três partes, a saber: na primeira, tecemos considerações sobre objetos de aprendizagem e repositórios virtuais, bases de dados em que se armazenam essas ferramentas de ensino; na segunda, discutimos brevemente o conceito de intertextualidade e sua relevância para o ensino de leitura e escrita e, na terceira, apresentamos o objeto Um ponto muda um conto e discutimos sua aplicação no ensino de Língua Portuguesa. 1. Objeto de aprendizagem: o que é isso, afinal? Devido à relativa novidade das discussões que tratam do assunto, para o termo objeto de aprendizagem ainda não há uma definição consensual. Pode-se afirmar que um OA é “qualquer recurso digital que possa ser reutilizado como suporte ao ensino” (WILEY, apud MACÊDO et al, 2007). Sendo assim, os objetos de aprendizagem podem ser criados em qualquer mídia ou formato. Segundo Macedo (2007), um OA pode conter desde imagem, animação, applets2, arquivos de texto, hipertextos até uma complexa simulação de uma realidade, por exemplo. Todo objeto de aprendizagem deve, como uma atividade de ensino, apresentar propósito específico e estimular a reflexão do aluno. Outra característica dessa ferramenta é que, normalmente, o OA apresenta um recorte de conteúdo pouco extenso, dessa forma, é possível construir um objeto para se trabalhar uma especificidade dentro de um assunto amplo (granubilidade). Mendes; Sousa; Caregnato (2004) apontam as principais características de um objeto de aprendizagem. Para os autores, um OA precisa apresentar: a) reusabilidade: ser reutilizável diversas vezes em diversas situações e ambientes de aprendizagem; b) adaptabilidade: ser adaptável a diversas situações de ensino e aprendizagem; c) granulibilidade: apresentar conteúdo atômico, para facilitar a reusabilidade; 2 Software aplicativo que é usado no contexto de outro programa de computador. d) acessibilidade: ser facilmente acessível facilmente via Internet para ser usado em diversos locais ou, ainda, ser potencialmente acessível a usuários com necessidades especiais; e) durabilidade: apresentar possibilidade de continuar a ser usado independente de mudança de tecnologia; f) interoperabilidade: apresentar possibilidade de operar através de variedade de hardwares, sistemas operacionais e browsers. O objeto Um ponto muda um conto tem como principais características reusabilidade e adaptabilidade, uma vez que pode ser usado tanto no Ensino Médio quanto no Ensino Fundamental (nas 8as e 9as séries, por exemplo), como atividade complementar ou como atividade principal em aula de ensino de leitura ou de escrita. Destaque-se também a granubilidade, visto que o conteúdo intertextualidade intergenérica é um recorte do conteúdo fatores de textualidade. Sobre a granubilidade, Silveira (2008, p.45) chama atenção para o fato de ser essa uma importante característica entre aquelas que comporiam um OA. A granubilidade diria respeito à capacidade de um objeto de aprendizagem “ser autocontido e focado em tópico específico”. O conceito relacionar-se-ia com a espcificidade do recorte e com seu potencial de reuso. Ainda segundo o autor, a possibilidade de reutilização ofereceria uma forma eficaz de readaptar os objetos em novos cursos, novas disciplinas, de acordo com os interesses diversificados dos alunos. Normalmente, os OA ficam armazenados em Repositórios de Objetos de Aprendizagem. Esses repositórios permitem que os OA fiquem disponíveis aos usuários (professores, alunos ou qualquer internauta). O objeto descrito neste artigo3 ficará disponível no Banco Internacional de Objetos Educacionais4 e no Portal do Professor5. Os dois portais contêm OA produzidos em vários projetos de que participam universidades públicas e outras instituições em parceria com o MEC. No caso do Banco Internacional6, onde há atividades em forma de softwares, simulações, vídeos e áudios, o material produzido em outros países também compõe o repositório7. 3 O objeto encontra-se em fase de finalização. Após avaliação e aprovação pelo MEC, será disponibilizado em dois repositórios. 4 Conferir http://objetoseducacionais2.mec.gov.br 5 Conferir http://portaldoprofessor.mec.gov.br 6 O RIVED é outro repositório em que se podem encontrar objetos de aprendizagem. No caso do ensino de Língua Portuguesa, até 2008, havia apenas um objeto cadastrado Porquedrômetro (atividade em que se enfoca “o emprego e a grafia dos porquês”). Na data de escrita deste artigo, mais um OA de Língua Após explicitar a noção de objeto de aprendizagem, passemos à discussão do que constitui a intertextualidade intergenérica. 2. Intertextualidade: contato dialógico entre textos Todo texto se origina da conversa com outros textos: todo texto é um intertexto. A intertextualidade, como um dos fatores que compõem a textualidade, refere-se à forma como um texto, em sua produção e recepção, depende do conhecimento que se tem de outros textos com que ele se relaciona (KOCK, 2000). Em seu sentido restrito, a intertextualidade, de acordo com Koch (2000, p.48) corresponderia à “relação de um texto com outros textos previamente existentes, isto é, efetivamente produzidos.” Nessa perspectiva, é possível falar de vários tipos de intertextualidade: temática, estilística, explícita, implícita, tipológica e intergenérica8. Interessa-nos aqui a intertextualidade intergenérica. Os gêneros, como formas de interação verbal, guardam entre si relações intertextuais no que diz respeito à forma composicional, ao conteúdo temático e ao estilo, permitindo ao falante, devido à familiaridade com elas, construirna memória um modelo cognitivo de contexto, que lhe faculte reconhecê-los e saber quando recorrer a cada um deles de maneira adequada.(KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007, p. 63) (Destaques das autoras) Os modelos cognitivos de contexto conteriam os parâmetros relevantes para cada interação comunicativa e para cada contexto social. Nesses modelos, estariam representadas as intenções, propósitos, objetivos, perspectivas, expectativas, opiniões e outras crenças dos interlocutores sobre a interação verbal no momento em que ela ocorre. Além disso, essa competência metagenérica também seria composta de propriedades do contexto (tempo, lugar, circunstâncias, condições, objetos e outros Portuguesa foi acrescentado: Língua Solta (atividade em que se trabalha com palavras compostas). Conferir WWW.rived.mec.gov.br. 7 Alguns repositórios foram descritos por Silveira (2008), que desenvolveu uma análise comparativa de objetos de aprendizagem para o ensino de línguas. 8 Para maiores detalhes sobre os diversos tipos de intertextualidade, conferir Koch; Bentes;Cavalcante (2007). fatores situacionais que possam ser relevantes para a realização adequada do discurso) (KOCH; BENTES; CAVALCANTE, 2007). Os modelos permitem, portanto, ao usuário da língua (re)conhecer o formato, estilo e o tipo de conteúdo dos diversos gêneros do discurso bem como reconhecer uma configuração híbrida de um gênero. Esse tipo de configuração aconteceria quando um gênero se realiza em uma cena enunciativa que não a sua e se “mistura” a outro gênero. A intertextualidade intergenérica, segundo Koch, Bentes e Cavalcante (2007), aconteceria quando um gênero exerce a função de outro. Acrescentando ao dizer das linguistas, diríamos que a intergenericidade se realiza não apenas quando um gênero exerce a função de outro, mas também quando, mantendo sua própria função, adapta-se e “imiscui-se” em outro gênero. É o que acontece, por exemplo, no objeto de aprendizagem sobre o qual discutimos neste trabalho: tem-se uma história da tradição oral (A Pequena Sereia), que passou à tradição escrita e virou história infantil, mas que, no OA, é narrada de acordo com o enredo da tradição oral, porém em uma versão de história em quadrinhos eletrônica (HQtrônica) que, por sua vez, contém variações do desfecho vazadas em diferentes gêneros do discurso (carta, entrevista, notícia, fábula). Vejamos na próxima seção como isso se configura. 3. Um ponto muda um conto: um objeto de aprendizagem de Língua Portuguesa A criação e desenvolvimento do OA que apresentamos neste artigo faz parte do Projeto CONDIGITAL/Língua Brasil. O projeto é financiado pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE)9 e é uma iniciativa do Ministério da Educação e Cultura (MEC) e do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT), em parceria com a Ágora – Cooperativa de Profissionais em Educação10. 9 Além da Ágora – Cooperativa de Profissionais em Educação –, há outros parceiros do MEC/MCT no projeto. Na área de Língua Portuguesa, estão ainda a UNICAMP e o SESC-SP, SENAC_SP e FGF e parceiros (disponível em http://portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf/Editais/resultado_conteudos.pdf). 10 A Ágora é uma cooperativa que reúne profissionais ligados ao ensino (professores de diversas áreas, pedagogos, roteiristas) e que trabalha especialmente com ensino a distância. Está sediada em Fortaleza- CE. (www.coopagora.com.br) O objetivo do CONDIGITAL11 é a produção de conteúdos educacionais digitais multimídia nas disciplinas de Língua Portuguesa, Matemática, Química, Física e Biologia12. O material, produzido em três mídias – áudio, audiovisual e software –, será usado como material didático complementar nas escolas públicas de Ensino Médio. Como já afirmamos anteriormente, os objetos de aprendizagem ficarão disponíveis em dois repositórios: no Banco Internacional de Objetos Educacionais e no Portal do Professor. Nos dois portais, o usuário (aluno ou professor) tem acesso a um banco em que se encontram organizados e classificados OA de diversas disciplinas. Entre as atividades, estão, por exemplo, audiovisuais e áudios de Língua Portuguesa e estarão softwares também. Falemos agora sobre a própria elaboração do OA, em forma de jogo educacional, Um ponto muda um conto. A construção de materiais interativos constitui uma tarefa desafiadora, uma vez que esse tipo de subsídio didático passou a ser produzido há pouco tempo e que, portanto, os profissionais que se propõem a fazê-lo têm pouca ou nenhuma experiência na produção desse material. Some-se a isso o fato de que, nesta fase inicial de criação de OAs, ainda são poucos os objetos que podem ser considerados modelos adequados para a construção de atividades interativas (NASCIMENTO, 2007). Uma saída para essas dificuldades, então, é compor uma equipe multidisciplinar, em que haja profissionais que dominem a tecnologia, o conteúdo e as estratégias de ensino necessárias em cada situação de aprendizagem apresentada no OA. Levando em consideração o que acabamos de afirmar, no CONDIGITAL/Língua Brasil, trabalhamos, então, com diversos profissionais que atuam nas várias etapas de confecção de cada software13. A equipe conta com professores de Língua Portuguesa, pedagogos, programadores e designers gráficos. Além da equipe multidisciplinar, outro aspecto contribui para que a adequação das atividades propostas seja satisfatória: a avaliação. O objeto passa por várias etapas de avaliação, entre as quais estão: a) avaliação, pelo coordenador de área, do texto-base14 11 A denominação usada pelo MEC é Condigital. A denominação CONDIGITAL/LÌNGUA BRASIL diz respeito exclusivamente ao material produzido pela ÁGORA- Cooperativa de Profissionais em Educação. 12 Chamada Pública para Apoio Financeiro à Produção de Conteúdos Educacionais Multimídia, Edital 1/2007, MEC/SEED/MCT. 13 No Projeto CONDIGITAL, além de softwares, devem ser produzidos também áudios e audiovisuais. 14 O texto-base é o documento impresso que serve como roteiro para a criação e desenvolvimento do software. Nele estão contidas orientações teóricas e etapas de desenvolvimento do jogo educacional. produzido pelo professor-autor; b) avaliação da pertinência da atividade no que diz respeito ao ensino-aprendizagem pelo pedagogo; c) avaliação da adequação da atividade para a mídia pelo coordenador de mídia; e d) avaliação do OA por professores e alunos de uma escola pública. No caso da última etapa de avaliação, seguimos a orientação de projetos como o Rived, em que a implementação de OA na escola serve como etapa final de desenvolvimento do objeto. Esse processo subsidia o refinamento do software, visto que por intermédio do ponto de vista e alunos e professores, podemos descobrir falhas ou equívocos relativos ao grau de interatividade e de usabilidade proporcionados pela atividade, à pertinência da abordagem do conteúdo e ao grau de interesse gerado nos alunos e professores em relação ao objeto. Passemos agora à descrição do jogo educacional Um ponto muda um conto15. O tema do OA é intertextualidade intergenérica. Como objetivos de ensino elegemos: a) Apresentar a intertextualidade intergenérica como aspecto da construção de textos e b) Promover o desenvolvimento de estratégias de compreensão em leitura que passem pelo reconhecimento de diferentes gêneros e de seus propósitos. O jogo educacional se destina a alunos do Ensino Médio de acordo com a delimitação feita no próprio Projeto, embora, por outro lado, em função do próprio conteúdo e da forma como se apresenta a atividade, possa ser utilizado também como atividade paraas três últimas séries do Ensino Fundamental. Vejamos, então, o OA. 3.1 A estrutura do Objeto O jogo é composto de uma história em quadrinhos eletrônica (HQtrônica) que retextualiza o conto clássico A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen. A intertextualidade intergenérica já fica marcada, então, a partir da conversa entre um gênero do discurso que, no decorrer do tempo, passou da modalidade oral para a modalidade escrita − o conto da tradição oral −, e que no OA, se apresenta como um gênero do domínio discursivo digital: a HQtrônica. 15 Este objeto é de autoria de Léia Cruz de Menezes, uma das professoras-autoras da equipe do Projeto. A equipe é composta professores da Universidade Estadual do Ceará-UECE, alunos de doutorado em Linguística da UFC e professores de escolas públicas da rede estadual. Intertextualidade de conteúdo e intergenérica apresentam-se imbricadas no OA, uma vez que na HQtrônica há links que permitem que o aluno-usuário16, em determinados momentos da história, possa escolher outras ações das personagens, que levariam a outros desfechos para a história. O conteúdo do OA Um ponto muda um conto apresenta: a) uma simulação do jogo, que é narrada oralmente e legendada, conferindo ao objeto acessibilidade17; b) uma seção denominada Saiba mais, em que se apresenta um comentário sobre contos da tradição oral e se indicam sites em que aluno, professor ou outro usuário do OA podem ler versões de alguns contos clássicos que se converteram em contos de fadas e versões contemporâneas desses mesmos contos; c) um Guia do professor, em que são feitos comentários sobre os objetivos e conteúdo do OA bem como é sugerida uma das formas de utilização do objeto e atividades/discussões/conteúdos complementares; e d) a própria história em quadrinhos eletrônica. Vejamos a seguir a tela MENU18: Imagem 1: Tela Menu 16 Optamos por nomear aquele a quem se destina o OA de “aluno-usuário” em função de uma das exigências do próprio projeto CONDIGITAL: os OAs devem ser produzidos de forma que possam ser usados com a intermediação do professor − nesse caso, na escola−, mas também devem configurar-se de forma que o aluno sozinho possa entrar no repositório e usar o OA como um jogo que prescindiria da intermediação de outrem. 17 Outro recurso que promove a acessibilidade é a possibilidade de aumentar o tamanho da fonte dos textos. 1818 O guia do professor é disponibilizado separado em um arquivo em pdf, que acompanha o objeto. Portanto ele não figura na tela Menu. 3.2 A atividade proposta A atividade proposta é uma atividade de leitura em que o aluno-usuário interage com o texto não apenas complementando seu sentido através da compreensão do texto, mas também quando lhe são dadas alternativas para escolher novas ações de personagens que, por sua vez, levarão a novos desfechos para a história, numa interação típica do domínio discursivo eletrônico. Falemos um pouco do próprio enredo do conto para que possamos entender como se dá essa interação. O conto A Pequena Sereia narra a história de uma sereia que, desde a infância, sonhava em conhecer o mundo da superfície e que, apaixonada por um príncipe, abre mão de seus atributos de ser encantado (a voz maviosa e a linda cauda) para tornar-se humana e viver ao lado de seu amor. Entretanto, como seu amor não é correspondido pelo príncipe, a sereia acaba por sofrer a consequência de sua escolha e vira espuma do mar no dia em que o príncipe se casa com outra moça, conforme profetizara a bruxa a quem ela recorreu para transformar-se em humana. Como se vê, a versão do conto por que se optou no objeto, ao contrário da versão infantil, não apresenta final feliz e apresenta dor e sofrimento dos personagens, como é típico das versões “adultas” dos contos clássicos. Esse aspecto justifica a opção de usar uma história que, como um conto de fadas, não seria adequada para leitores adolescentes, como o são os alunos do Ensino Médio. O desenvolvimento da atividade se dá de acordo com o desenrolar da história. Neste ponto, é preciso destacar a adequação do gênero HQtrônica ao objetivo de ensino pretendido no OA. A HQ eletrônica funciona, ao mesmo tempo, como intertexto − em relação ao conto de fadas e à narrativa de tradição oral − e como texto-fonte − em relação aos outros gêneros textuais a que se chega pelos links no decorrer da história. Os links que conduzem a outros desfechos reproduzem uma das características da história em quadrinhos eletrônica que se caracteriza, segundo Franco (online) como uma nova forma híbrida de histórias em quadrinhos que funde elementos da linguagem tradicional das HQs, como o balão de fala e a onomatopéia, com as novas possibilidades agregadas a ela pela hipermídia: efeitos de animação, efeitos sonoros, possibilidades de interação com o leitor/navegador e criação de narrativas multilineares. A HQtrônica como um gênero digital, confirma a possibilidade de reestruturação e renovação19 como característica constitutiva dos gêneros do discurso, conforme afirma Bakhtin (2000). Neste caso, tem-se a reestruturação de um gênero em função do suporte: ele migra do papel para a tela e, neste último, adquire características de hipertextos, como a multilineridade e a interatividade, por exemplo. No Objeto, a interatividade, como já afirmamos, permite-se ao aluno-usuário escolher outros finais para o enredo. Há quatro links que figuram em momentos da narrativa em que o conflito (a sereia transforma-se em uma moça e vai morar na superfície) já se estabeleceu. É criado um suspense por intermédio de uma pergunta que é feita ao leitor. Vejamos uma tela em que se faz uma das perguntas. Imagem 2: Tela em que figura um link Na tela acima, a pergunta (“E se ela tivesse deixado um bilhete de despedida?”), no primeiro quadro, funciona como link que permite a interação pelo leitor. Clicando no link, chega-se a outra tela em que se apresenta outra continuação para a história. Nesse caso, a continuação se dá em forma de notícia − cujo final lembra o final original (a Pequena Sereia poderia ter-se transformado em espuma branca) −, mas que, no 19 A natureza do texto que produzimos aqui não nos permite fazer dedicar mais espaço à discussão sobre a transmutação de gêneros. Sobre o assunto, Araújo (2006) e Zavam (2009) fazem profícua discussão. entanto, subverte o texto-fonte, constituindo, assim, novos sentidos para o texto e subvertendo a orientação argumentativa do conto original. A tela que se abre a partir do link, por sua vez, traz uma notícia. Logo abaixo do texto, cuja cenografia é a primeira página de um jornal (MAINGUENEAU, 2001), formula-se uma questão que já não faz parte da cenografia do jornal e passa a fazer parte da cenografia do próprio OA. A pergunta é metalinguística e pretende medir o conhecimento do aluno-usuário a respeito do gênero notícia. Essa nova pergunta constitui outro link que, nesse caso, já remete o aluno-usuário para finalidade didática do OA. A seguir, reproduzimos a nova tela. Imagem 3: Intertexto: novo gênero (notícia) A pergunta “Que gênero textual é esse?”, por sua vez, remete a uma nova tela. Nela, o aluno-usuário encontra uma lista de gêneros entre os quais ele deve escolher a resposta adequada. Neste ponto, é possível fazer uma observação a respeito do grau de dificuldade da tarefa. As questões propostas gerariam uma resposta mais reflexiva e se adequariam melhor ao nível de ensino a que o OA se destina (Ensino Médio) se, em vez de escolher um item, o aluno tivesse que escrever o nome do gênero, por exemplo. Entretanto, no caso deste objeto, uma dificuldade tecnológica impediu-nos de fazer perguntas abertas: o tamanho do arquivoaumentaria e extrapolaria o máximo permitido nos repositórios em que o objeto pode vir a figurar (10MB). Imagem 4:Tela Nome de gêneros Imagem 5: Tela Características dos gêneros Na imagem 4, há uma lista de gêneros e, no final da tela, uma nova questão metalinguística (Quais as características mais comuns deste gênero?), que se converte em um novo link. A nova tela que se abre (imagem 5) apresenta características de oito gêneros diferentes, entre os quais está a notícia. O aluno-usuário clica no “pergaminho” em que há a resposta e, se a ela for correta, ele é convidado a voltar para a HQ e, então, continua a leitura. Se estiver errada, há um aviso de que a resposta é inadequada e um convite para que ele tente novamente. As respostas corretas geram uma pontuação, que permite ao aluno-usuário ver como se saiu no jogo. 3.3 Uma análise do objeto de aprendizagem Como já afirmamos, produzir objetos de aprendizagem não é tarefa simples. As dificuldades impostas são de várias ordens: a) Epistemológica: é necessário, no caso da Língua Portuguesa, adequar o tratamento dado ao conteúdo à perspectiva de língua como interação e evitar recortes de conteúdos e proposições teóricas em que se tenham subjacentes as concepções de língua como expressão do pensamento ou como instrumento de comunicação; b) Pedagógica: é preciso atentar para que a proposição da atividade seja feita sob a perspectiva de ensino produtivo (HALLIDAY; McINTOSH; STREVENS, 1974), em que o aluno reflita sobre o fenômeno estudado, construindo, assim, conhecimentos sobre a própria língua. Neste caso, excluem-se proposições em que o aluno é levado, mecanicamente, a realizar exercícios estruturais, que devem ser respondidos a partir de regras ou conceitos previamente dados. Além disso, ainda no que tange ao componente didático do OA, há de se fazer um equilíbrio entre o lúdico e o didático, de forma que o objeto seja interessante do ponto de vista da ludicidade, mas que principalmente traga um conteúdo de ensino e viabilize aprendizagem; c) Tecnológico: é necessário também que as características de ferramentas didáticas digitais sejam consideradas para que o OA não se configure como uma simples transposição de uma atividade normalmente feita no suporte papel para a tela. Sendo assim, além dos aspectos já elencados no início deste escrito (ver seção 1), é preciso que se atente também para a usabilidade − isto é, é preciso que o OA seja de fácil utilização pelo usuário − e para a interatividade. Nesse último caso, é necessário, portanto, que se observe e se mantenha o caráter multilinear do hipertexto no objeto. Sendo assim, há de se pensar que quanto menos linear for o design do hipertexto20 que o objeto contém, mais o objeto se adequará ao suporte tela e à web. O objeto Um ponto muda um conto atende plenamente aos requisitos epistemológicos, pedagógicos e parcialmente aos tecnológicos. Em relação ao objetivo de ensino, ele se apresenta como uma atividade em que o aluno-usuário é levado a perceber a importância da noção de intertextualidade na atividade de leitura e de construção de sentidos. O texto-fonte (HQtrônica) e os intertextos que a compõem proporcionam a ativação de conhecimentos relativos à composição, conteúdo, estilo e propósito comunicacional de diferentes gêneros. Perceber a relação entre escritos e as características dos textos contribui para o aumento da competência metagenérica, a qual, segundo Koch (2006), possibilitaria a produção e a compreensão de gêneros textuais, assim como favoreceria a nomeação de gêneros pelo leitor. No que respeita ao aspecto técnico, a configuração multilinear do hipertexto não foi realizada a contento. Acreditamos que isso se deve a uma maior influência do gênero impresso HQ do que do gênero digital HQtrônica. Apenas em alguns pontos da narrativa, a linearidade peculiar ao impresso é quebrada e os links hipertextuais levam, então, a outras janelas. Isso, por outro lado, pode ser tomado como uma necessidade da própria tarefa, em que deveria ficar claro para o aluno que há no objeto uma história que, por sua vez, leva a outras histórias e que todos esses textos conversam entre si. A ausência de recursos hipermídia, como animação e som, no decorrer da história também remete ao texto impresso. Essas constatações, no entanto, não diminuem a pertinência e a adequação do material produzido. Considerações finais 20 Interessante discussão sobre organização e estrutura do hipertexto é feita por Hissa (2009). A descrição e análise feitas neste artigo tiveram como objetivo apresentar um objeto de aprendizagem para o ensino de Língua Portuguesa. Nossa ideia foi trazer uma discussão que já vem acontecendo em outras áreas para o âmbito da linguística e, desse modo, fomentar novas pesquisas e a proposição de novos objetos. Ainda como uma contribuição, destacamos um último ponto em relação a objetos de aprendizagem: embora a ideia de que o Objeto possa ser usado apenas pelo aluno, sem a orientação do professor, seja viável, o professor, no caso de Um ponto muda um conto, pode trazer muitas contribuições para o enriquecimento da atividade. Discutir a origem e a história dos contos de tradição oral, explicando, por exemplo, como muitas dessas histórias passaram a ser contos infantis; apresentar intertextos em outras mídias, como em filmes, músicas etc. Essas seriam apenas algumas das muitas atividades paralelas/complementares que o professor poderia propor. O objeto, na verdade, traz apenas uma pequena parte do conteúdo a ser ensinado. Outras tantas partes podem (e devem) ser completadas pelo professor, que ainda continua sendo peça fundamental na troca de saberes que acontece em sala de aula. Referências ARAÚJO, Júlio César. Os chats: uma constelação de gêneros na internet. 2006.339f.Tese (Doutorado em Linguística) – Centro de Humanidades, Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2006. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. FRANCO, Edgar Silveira. Histórias em quadrinhos e hipermídia: o processo criativo da HQtrônica “Neomaso Prometeu”. In:Ars – Revista do Departamento de Artes Plásticas da USP. v. 2, São Paulo. Disponível em < http://www.cap.eca.usp.br/wawrwt/textos/franco2.html>. Acesso em 1 set.2009. HALLIDAY, M. A. K.; McINTOSH, Angus; STREVENS, Peter. As ciências linguísticas e o ensino de línguas. Petópolis: Vozes, 1974. HISSA, Débora Liberato A. 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