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.... ..o E o u ó "'O ro Ol o > "'O ro o i [!J}g 1~ O QUE É ISTO - DEC/00 CONFORME MINHA CONSCltNCIA?. primeiro volume desta nova coleção. questiona o trodlclonal mo- delo de decisão judicial que perpassa o lmaglnórlo jurídico. O livro mostra como as decisões são caudatórlas do paradigma da filosofia da consciência e o modo pelo qual reproduzem aquilo que mais pre- tendem combater e superar: o pasitMsmo juridlco. Com esse novo livro. Lenlo Streck demonstro como determinados setores da teoria do direito. ao fazerem a crítico do positivismo, ainda confundem o pasltMsmo primitivo (exegético) com o pasitMsmo semônttco. Assim, nem sempre dizer que ·o juiz não está mais preso à letra da 1e1· é ·ser um jurista crftico· ... 1 Nessa linha, faz uma sofisticada crítica à dlscrlcionariedade positivista e à relação desta com a ·ponderação de valores', que se tornam respansóvels pelo protagonismo e pelo atMsmo judicial. A partir de uma duro critica ao ensino Juridlco e à cultura manualesca que se Instalou no Brasil, o autor aponta (e lamento) o enfra- quecimento da doutrina. que "não mais doutrina·. sendo, na verdade. doutrinada pelos Tribunais. Fundamentalmente, o livro é um libelo contra os diversas formas de declsionlsmo. Ou seja, as decisões judiciais não devem ser tomadas a partir de critérios pessoais. isto é, da ·consciência psicologista• do Intérprete. Na democracia - diz Lenlo- não cabe mais dizer ·entre a lel e a minha consciência ', opto pelo meu ·sentimento da Justo• que estó na •minha consciência·. É por tais razões que o título é uma Indagação. que procura ser respondida no decorrer desta obra que a Livraria do Advogado Editora coloca à disposição da comunidade jurídica. O Q!JE É ISTO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCIÊNCIA? 0709 COLEÇÃO O QlJE É ISTO? Diretor/Organizador Lenio Luiz Streck Conselho Editorial Lenio Luiz Streck Jose Luís Bolzan de Morais Leonel Severo Rocha Ingo Wolfgang Sarlet Jania Saldanha S914o Streck, Lenio Luiz O que é isto - decido confonne minha consciência? - 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013. 120 p.; 21 cm. - (Coleção O Que é Isto?- 1) ISBN 978-85-7348-838-8 1. Teoria do direito. 2. Filosofia do direito. l. Título. CDU - 340.12 Índices para o catálogo sistemático Filosofia do direito 340. 12 Teoria do direito 340.12 (Bibliotecária responsável: Marta Roberto, CRB-10/652) Lenio Luiz Streck o conforme nsciência? 4ª EDIÇÃO Revista  livran~~ DOAD OGADO editora Porto Alegre, 2013 © Lenio Luiz Streck, 2013 Projeto gráfico e diagramação Livraria do Advogado Editora Projeto da capa Clarissa Tassinari Gravura da capa "A Torre de Babel" por Pieter Bruegel, em 1563 Revisão Rosane Marques Borba Direitos desta edição reservados por Livraria do Advogado Editora Ltda. Rua Riachuelo, 1338 90010-273 Porto Alegre RS Fone/fax: 0800-51-7522 editora@ li vrariadoadvogado.com. br www .doadvogado.com.br Impresso no Brasil / Printed in Brazil Sempre a Ernildo Stein, pela escuta constante; Aos membros do Dasein - Núcleo de Estudos Hermenêuti- cos (em especial, Clarissa Tassinari , quem mais trabalhou; Rafael Koche; Fausto Santos de Morais, André Karam Trindade e Rafael Tomaz de Oliveira). E sempre, também, Rosane e Maria Luiza. SUMÁRIO Apresentando a Coleção O QUE É ISTO? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9 1. Objeto, sujeito e o giro ontológico-linguístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . l 1 2. As práticas judiciárias em terrae brasilis ou "de como fluem os sentidos que desnudam um paradigma" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20 3. Nas nesgas da linguagem, as manifestações doutrinárias quedes-cobrem o DNA do solipsismo judicial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33 4. A identificação do fenômeno na especificidade: o germe da filosofia da consciência . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59 4. 1. O esquema sujeito-objeto e suas consequências no e para o direito . 62 4.2. A razão prática e o "domínio da moral": onde fica a "consciência"? . . 69 5. A impossibilidade de cindir interpretação e aplicação: de como o Direito não é uma (mera) racionalidade instrumental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 73 5.1. Para além da cultura standard ou "compreendendo melhor o positivismo" . . .......... . ............... . .. . ......... .. 81 5.2. A hermenêutica antirrelativista e a aposta na antidiscricionariedade . 90 6. Uma advertência: controlar as decisões judiciais é uma questão de democracia, o que não implica "proibição de interpretar'' ... ! ......... 95 6.1. A discricionariedade (e suas derivações) como uma "fatalidade" positivista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99 7. Aportes finais ou de como "para uma teoria ser pós-positivista, é necessário superar o 'decido conforme minha consciência"' . . . .... . .. 105 APRESENTANDO A COLEÇÃO O Q!JE É ISTO? Dizia o antropólogo Darci Ribeiro que Deus é tão treteiro, faz as coisas tão recônditas e sofisticadas, que ainda precisamos de certo tipo de gente - os cientistas - para desvelar as obvieda- des do óbvio. É da "natureza" do óbvio estar no anonimato. Está aí para ser des-velado. Desobnubilado. Dizer que algo está aí. Apontar para ele. E perguntar o que isto é ou "o que é isto". Essa é a tarefa de qualquer pesquisa. Pois uma das coisas que parecem óbvias é que o direito é um fenômeno complexo. Afinal, para o bem e para o mal, há sempre algo regrando a nossa vida. Poder, política, violência, guerra e paz: o espectro do direito ronda a humanidade. Mas se- ria o direito apenas um instrumento à disposição do poder? É possível "simplificar" o direito a ponto de transformá-lo em um conjunto de standards aplicativos? Embora parcela considerável da comunidade jurídica acredite que o direito é uma racionalidade meramente (ou "pu- ramente") instrumental - no que não discrepa sobremodo de determinadas visões advindas da sociologia ou até mesmo da fi- losofia - venho trabalhando de há muito na contramão dessa tese. Os regimes totalitários e as atrocidades cometidas sob o pálio do direito deveriam ter-nos ensinado que o direito deve ser mais do que instrumento, técnica ou procedimento. É como dizer: depois dos fracassos do positivismo em expungir a moral do campo ju- rídico, algo tinha que ser feito. Dito de outro modo: o direito não pode(ria) ficar imune aos influxos das profundas transformações ocorridas no campo dos paradigmas filosóficos. Pois é a partir dessa constatação e/ou reconhecimento de que, mais do que uma filosofia do direito, teríamos que elaborar 0Q1JE t ISTO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCl ~NCIA? 9 uma filosofia no direito, busco construir as condições de possi- bilidade para que possamos dar respostas às diversas perguntas acerca da complexidade do direito. Por que o pensar dos juristas seria diferente do pensar do filósofo? Por que o jurista teria um diferente "acesso" à "reali- dade"? Vejam-se, por exemplo, algumas questões absolutamente intrigantes: se, no campo da filosofia, já não se acredita em es- sências, qual é a razão de os juristas continuarem a acreditar na "busca da verdade real"? Ou: se a filosofia da consciência foi contestada e superada pelas diversas correntes linguísticas, por que razão no campo jurídico se continua a apostar na "consciên- cia de si do pensamento pensante"? É nesse sentido que, entre outras questões, a presente co- leção procura desvendar os meandros paradigmáticos que obnu- bilam o pensamento dos juristas. Busca-se fazer com o direito, guardadas as perspectivas histórico-filosóficas, o que Heidegger buscou no campo filosófico com a pergunta: O que é isto - a fi- losofia? (Was ist Das- die Philosophie)? Mutatis, mutandis, o conjunto reflexivo queinicia com o volume O que é isto - decido conforme minha consciência?, bus- ca responder às mais diversas indagações acerca do (complexo) fenômeno jurídico. O objetivo finaJ é contribuir para a reposta a uma pergunta que talvez seja impossível de responder: O que é isto - o Direito? Esse é o desafio que enfrentamos com o primeiro volume desta coleção. 10 Lenio Luiz Streck COLEÇÃO O Ql,JE ~ I STO? - 1 Le11io Luiz Streck 1. OBJETO, SUJEITO E O GIRO ONTOLÓGICO-LINGUÍSTICO No pensamento ocidental, há uma angústia particular que assombra o homem. Podemos atravessar o "abismo gnosiológi- co" que separa o homem das coisas? Como se dá nome às coisas? Por que algo é? Desde o início, houve um compromisso da filo- sofia com a verdade; a filosofia sempre procurou esse olhar que desvendasse o que as coisas são. Talvez a obra que melhor sim- bolize essa procura angustiante seja Crátilo, escrito por Platão no ano de 388 a.C. Esse diálogo pode ser considerado a primeira obra de filosofia da linguagem da história da humanidade. Nele, além de Sócrates, há mais dois personagens: Hermó- genes, que representa os sofistas, e Crátilo, que representa Herá- clito (pré-socrático que, juntamente com Parmênides, inaugura a discussão acerca do "ser" e do "pensar", e do logos superando o mythos). Crátilo pode ser considerado o primeiro que proble- matizou a filosofia da linguagem. Platão, pela boca de Sócra- tes, contrapõe dialeticamente duas teses: o naturalismo, pela quaJ cada coisa tem nome por natureza (o logos está na physis), tese defendida no diálogo por Crátilo, 1 e o convencionalismo, posição sofística defendida por Hermógenes, pela qual a ligação do nome com as coisas é absolutamente arbitrária e convencional, é dizer, não há qualquer ligação das palavras com as coisas. Veja-se: Crátilo representa o enfrentamento de Platão com a sofística. Os sofistas - que podem ser considerados os primei- 1 Concordo com Garcia-Roza quando diz que Platão atribui ao personagem Crátilo um ponto de vista sobre a adequação das palavras às coisas que não expressa adequada e suficientemente o pensamento de Heráclito. Com efeito, se os pré-socráticos - mormente Herácli to - descobriram o ser; e Platão e Aristóteles o esconderam, portanto, a posição de Crátilo não pode corresponder, stricto sensu, à de Heráclito. Cf. Palavra e verdade 110 filosofia antiga e na psica11álise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 67. O Ql.JE e ISTO - DECIDO CON FORME MINHA CONSC l ~NCIA? 11 ros positivistas - defendiam o convencionalismo, isto é, que en- tre palavras e coisas não há nenhuma ligação/relação. Claro que, com isso, a verdade deixava de ser prioritária. O discurso passava a depender de argumentos persuasivos (retórica e argumentação). Os sofistas provocaram, assim, no contexto da Grécia antiga, um rompimento paradigmático. Utilizo Platão - sua obra Crátilo (e seu contexto político) - para demonstrar a busca pelo conhecimento e pela verdade. Afinal, ali, quatro séculos antes da Era Cristã, já se discutia a "justeza dos nomes". Isto é, quais as condições de possibilidade para que os objetos tenham determinados nomes e não outros? Como funciona a relação do sujeito com o objeto? Qual é o papel da linguagem? Verdade ou método? Essas perguntas atravessam os séculos, experimentando diferentes respostas, representadas por diferentes "princípios epocais", que igualmente fizeram a longa travessia de duas metafísicas, chegando, nesta quadra do tempo, ao universo de posturas e teorias filosóficas que represen- tam as posições hoje consideradas como pós-metafísicas. Cada época organizou sua concepção de fundamento.2 Fa- zendo um pequeno escorço histórico destes vinte séculos, a bus- ca de um fundamentum absolutum inconcussum veritatis está já na ideia platônica, na substância aristotélica, no esse subsitens do medievo (última síntese da metafísica clássica), no cogito inaugurador da filosofia da consciência, no eu penso kantiano, no absoluto hegeliano, na vontade do poder nietzscheana e "no imperativo do dispositivo da era da técnica", em que o ser desapa- rece no pensamento que calcula (Heidegger).3 No campo do direito, tais questões permanece(ra)m difusas - e essa é uma questão ainda não superada pelos juristas - em um misto de objetivismo e subjetivismo. Se a primeira "etapa" do linguistic tum foi recepcionada pelas concepções analíticas do direito, o mesmo não se pode dizer acerca daquilo que se pode denominar de "giro-ontológico-linguístico". 2 Trata-se do ser em vista da fundamentação do ente. Por isso, cada época possui o seu fundamento. Cf. Heidegger, Martin. Tempo e Ser. Conferê11cias e Escritos Filosóficos. Tradução de Emildo Stein. São Paulo: Nova Cultural, 2005, p. 256-7. 3 Ver, para tanto, Stein, Ernildo. Pensar i pensar a diferença. ljuf: Unijuf, 2004. 12 COLEÇÃO O Ql.IE ~ISTO? - 1 le11io luiz Streck Dito de outro modo - e para facilitar a compreensão da pro- blemática da história da filosofia -, é possível dizer que, para a metafísica clássica, os sentidos estavam nas coisas (as coisas têm sentido porque há nelas uma essência). A metafísica foi entendi- da e projetada como ciência por Aristóteles e é a ciência primeira no sentido que fornece a todas as outras o fundamento comum, isto é, objeto ao qual todas se referem e os princípios dos quais todas dependem. Para aquilo que aqui interessa, a metafísica é entendida como ontologia, doutrina que estuda os caracteres fun- damentais do ser: aquilo sem o qual algo não é; se refere às deter- minações necessárias do ser. Estas determinações estão presentes em todas as formas e maneiras de ser particular. É um saber que precede todos os outros e, por isso, é a ciência primeira, pois seu objeto está implicado nos objetos de todas as ciências e o seu princípio condiciona a validade de todos os outros princípios. Em Duns Scotus já é possível perceber uma superação dessa adeaquatio intellectus et rei, assim como, mais tarde, em Guilherme de Ockham, para quem os universais existem ape- nas como nome. Não existe o universal nas coisas. Portanto, não existem essências. É o que se denomina de nominalismo, uma vez que, ao trabalhar com nomes, palavras, o faz sem que elas se refiram ou tenham relação com os objetos. Na verdade - e isso é extremamente relevante -, era im- possível de se dizer isso antes de Kant e, de certo modo, da "in- venção" do cogito de Descartes. De fato, até Kant, o ser era um predicado real. Pensava-se que havia uma relação real entre ser e essência. Portanto, o sentido era dependente dos objetos, que tinham uma essência e, por isso, era possível revelá-lo. A superação do objetivismo (realismo filosófico) dá-se na modernidade (ou com a modernidade). Naquela ruptura histó- rico-filosófica, ocorre uma busca da explicação sobre os fun- damentos do homem. Trata-se do iluminismo (Aufklarung). O fundamento não é mais o essencialismo com uma certa presença da illuminatio divina. O homem não é mais sujeito às estruturas. Anuncia-se o nascimento da subjetividade. A palavra "sujeito" muda de posição. Ele passa a "assujeitar" as coisas. É o que se pode denominar de esquema sujeito-objeto, em que o mundo pas- sa a ser explicado (e fundamentado) pela razão, circunstância que - embora tal questão não seja objeto destas reflexões - propor- º Qh)E ~I STO - DECI DO CONFORME MINHA CONSCl~NCIA? 13 cionou o surgimento do Estado Moderno (aliás, não é por acaso que a obra de ruptura que fundamenta o Estado Moderno tenha sido escrita por Thomas Hobbes, um nominalista, o que faz dele o primeiro positivista da modernidade). Já a ruptura com a filosofia da consciência-esse é o "nome" do paradigma da subjetividade - dá-se no século XX, a partir do que passou a ser denominado de giro linguístico. Esse giro "liber- ta" a filosofia do fundamentum que, da essência, passara, na mo- dernidade, para a consciência. Mas, registre-se, o giro ou guinada não se sustenta tão somente nofato de que, agora, os problemas filosóficos serão linguísticos, em face da propalada "invasão" da filosofia pela linguagem. Mais do que isso, tratava-se do ingres- so do mundo prático na filosofia. Da epistemologia• - entendida tanto como teoria geral ou teoria do conhecimento - avançava-se em direção a esse novo paradigma. Nele, existe a descoberta de que, para além do elemento lógico-analítico, pressupõe-se sem- pre uma dimensão de caráter prático-pragmático. Em Heidegger, isso pode ser visto a partir da estrutura prévia do modo de ser no mundo ligado ao compreender; em Wittgenstein, (Investigações Filos6.ficas), é uma estrutura social comum - os jogos de lin- guagem que proporcionam a compreensão. E é por isso que se pode dizer que Heidegger e Wittgenstein foram os corifeus dessa ruptura paradigmática, sem desprezar as contribuições de Austin, Apel, Habermas e Gadamer, para citar apenas estes. Destarte, correndo sempre o risco de simplificar essa com- plexa questão, pode-se afirmar que, no linguistic tum, a invasão que a linguagem promove no campo da filosofia transfere o pró- prio conhecimento para o âmbito da linguagem, onde o mundo se descortina; é na linguagem que se dá a ação; é na linguagem que se dá o sentido (e não na consciência de si do pensamento pen- sante). O sujeito surge na linguagem e pela linguagem, a partir 4 Aqui é necessário explicitar, ainda que brevemente - sendo que já venho deixando isso c laro principalmente na 4' edição do Verdade e Consenso -. que não é "proibido" fazer epistemologia na hermenêutica. Trata-se de níveis diferentes (nível hermenêutico e o ní- vel apofãntico). Para além da epistemologia geral e da tradição das teorias da consciência (onde não se trata[va] mais de um conhecimento metafísico, mas de uma metafísica do conhecimento, como bem lembra Stein), a partir do giro hermenêutico, passa-se a falar do universo do mundo prévio, que é também conhecimento, só que falta(va) explicitá-lo. Esse "vetor de racionalidade de segundo nível" - explicitalivo - é perfeitamente compatí- vel com a hermenêutica, desde que não se situe como elemellto "construtor" do próprio conhecimento (mundo companilhado na pré-compreensão). 14 COLEÇÃO O ®E E ISTO? - 1 Lenio Luiz Streck do que se pode dizer que o que morre é a subjetividade "assu- jeitadora ", e não o sujeito da relação de objetos (refira-se que, por vezes, há uma leitura equivocada do giro linguístico, quando se confunde a subjetividade com o sujeito ou, se assim se qui- ser, confunde-se o sujeito da filosofia da consciência [s-o] com o sujeito presente em todo ser humano e em qualquer relação de objetos). Com o giro - que aqui denomino de ontológico-linguístico para diferenciá-lo das pretensões analíticas, principalmente do neopositivismo lógico-, o sujeito não é fundamento do conheci- mento. Trata-se, na verdade- e busco socorro em Stein -, de uma compreensão de caráter ontológico, no sentido de que nós somos, enquanto seres humanos, entes que já sempre se compreendem a si mesmos e, assim, o compreender é um existencial da própria condição humana, portanto, faz também parte da dimensão onto- lógica: é a questão do círculo hermenêutico-ontológico. Aqui é necessária uma explicitação: Heidegger elabora a analítica existencial como ontologia fundamental. Essa palavra "ontologia" usada ali é identificada com a fenomenologia. Por quê? Porque a fenomenologia é utilizada para descrever também o fenômeno da compreensão do ser. Então, a fenomenologia não se liga somente à compreensão, mas à questão do ser. E, na medi- da em que a compreensão do ser de que trata a fenomenologia diz respeito a uma questão ontológica que é prévia - antecipadora, porque a compreensão do ser é algo com que já sabemos e ope- ramos quando conhecemos os entes-, a ontologia de que aqui se fala se refere a esse contexto. É a partir daí que a fenomenologia (hermenêutica) faz uma distinção entre ser (Sein) e ente (Seiende). Ela trata do ser en- quanto compreensão do ser e do ente enquanto compreensão do ser de um ou outro (ou cada) modo de ser. Classicamente, a onto- logia tratava do ser e do ente. Aqui, a ontologia trata do ser ligado ao operar fundamental do ser-aí (Dasein), que é o compreender do ser. Esse operar é condição de possibilidade de qualquer tra- tamento dos entes. Tratamento esse que pode ser chamado na tradição de "ontológico", mas sempre entificado. Essa ontologia do ente é que Heidegger irá chamar de mel-ontologia. Essa teo- ria tratará das diversas ontologias regionais (naturalmente, dos entes). 0Q1JE ~ I STO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCl tNCIA? 15 Desse modo, a ontologia ligada à compreensão do ser será uma ontologia fundamental , condição de possibilidade de qual- quer ontologia no sentido clássico que sempre está ligado à en- tificação e objetificação. Assim, podemos dizer que a ontologia - originada na tradição hermenêutica - está ligada a um modo de ser e a um modo de operar do ser humano. Lembremos que o próprio Gadamer reconhece que Heideg- ger somente ingressa na problemática da hermenêutica e as críti- cas históricas com o objetivo de desenvolver, a partir delas, desde o ponto de vista ontológico, a pré-estrutura da compreensão. De algum modo, temos, então, uma ontologia ligada à questão da hermenêutica e, dessa maneira, indissociavelmente entrelaçada com a pré-compreensão, elemento prévio de qualquer manifesta- ção do ser humano mesmo na linguagem. Assim, pode-se falar de uma transformação do conceito de ontologia, para então ligar esse novo conceito ao problema da linguagem do ponto de vista hermenêutico. A explicitação des- sa dimensão ontológico-linguística irá tratar da linguagem não simplesmente como elemento lógico-argumentativo, mas como um modo de explicitação que já é sempre pressuposto a( onde lidamos com enunciados lógicos. Está aí a chave do problema: mesmo que o elemento lógi- co-explicitativo se apresente do modo como se apresenta nas teo- rias analíticas, isto é, de modo único, determinante e autônomo, portanto, dispensando o mundo vivido, ele já sempre está ope- rando com uma estrutura de sentido que se antecipa ao discurso e representa a sua própria condição de possibilidade. Por essa razão, é preciso reconhecer que o elemento lógico-analítico já pressupõe sempre o elemento ontológico-linguístico. É isso que quero dizer quando me refiro ao giro ontológico-linguístico. Numa palavra: a viragem ontológico-linguística é o raiar da nova possibilidade de constituição de sentido. Trata-se da supe- ração do elemento apofântico, com a introdução desse elemento prático que são· as estruturas prévias que condicionam e prece- dem o conhecimento. Assim, a novidade é que o sentido não es- tará mais na consciência (de si do pensamento pensante), mas, sim, na linguagem, como algo que produzimos e que é condição de nossa possibilidade de estarmos no mundo. Não nos relacio- 16 COLEÇÃO O QIJE t ISTO? - 1 Lenio Luii Streck namos diretamente com os objetos, mas com a linguagem, que é a condição de possibilidade desse relacionamento; é pela lingua- gem que os objetos vêm a mão. Nesse novo paradigma, a linguagem passa a ser entendida não mais como terceira coisa que se coloca entre o (ou um) sujei- to e o (ou um) objeto e, sim, como condição de possibilidade. A linguagem é o que está dado e, portanto, não pode ser produto de um sujeito solipsista (Selbstsüchtiger), que constrói o seu próprio objeto de conhecimento. Nesse sentido, a viragem ontológico-linguística se coloca como o que precede qualquer relação positiva. Não há mais um "sujeito solitário"; agora há uma comunidade que antecipa qual- quer constituição de sujeito. Trata-se, fundamentalmente, de uma "virada hermenêuti- ca", que, no plano do conhecimento jurídico, venho denominan-. do - desde Hermenêutica Jur(dica e(m) Crise5 - de Nova Crítica do Direito (ou Crítica Hermenêutica do Direito), isto é, um novo estilo de abordagem na filosofia pela qual se vêcomo tarefa pri- meira o reconhecimento de que a universalidade da compreensão é condição de possibilidade da racionalização (ou da positivação). Daí que, com Ernildo Stein, podemos afirmar que, supe- rando-se os paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência, o acesso a algo não será mais de forma direta e objetivante; o acesso a algo é pela mediação do significado e do sentido. Não existe acesso às coisas sem a mediação do sig- nificado. Então, se não existe acesso às coisas sem a mediação do significado, não podemos compreender as coisas sem que te- nhamos um modo de compreender que acompanha qualquer tipo de proposição; e este modo de compreender é exatamente este "como" que sustenta a estrutura fundamental do enunciado as- sertórico algo enquanto algo, algo como algo (etwas als etwas). Esta expressão revela que não temos acesso aos objetos assim como eles são, mas sempre de um ponto de vista, a partir de uma clivagem, a cadeira enquanto cadeira, a árvore enquanto árvo- re. Isto é mediação do significado.6 s Herme11€uticajurúiica e(m) crise. 8. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 6 Cf. A caminho de 11111afimdame111ação pós-metafisica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1997, p. 86. O Ql.JE É ISTO - DECIDO CONFORME MINI-IA CONSC l ~NCIA? 17 Esses são os elementos mínimos necessários para entender- mos a questão "de como é possível compreender". Os paradig- mas conformam o nosso modo de compreender o mundo. E nada está a indicar que o direito tenha "ficado de fora" ou que possa estar "blindado" aos influxos dessas verdadeiras revoluções co- pernicanas que atravessaram a filosofia ao longo de mais de dois mil anos da história ocidental. Assim, em tempos de viragem linguística - ou, para ser mais específico, em tempos de viragem ontológico-linguística - , não pode(ria)m passar despercebidas teorizações ou enunciados performativos que reduzem a complexíssima questão do "ato de julgar" à consciência do intérprete, como se o ato (de julgar) de- vesse apenas "explicações" a um, por assim dizer, "tribunal da razão" ou decorresse de um "ato de vontade" do julgador. Desde logo, cabe consignar que não se ignora o papel exer- cido pelo chamado "tribunal da razão" no contexto da crítica kantiana do conhecimento. Com efeito, o sentido de crítica que aparece em Kant - justificar e fundamentar os conceitos com os quais operamos quando conhecemos - representa um salto para- digmático em toda história da reflexão filosófica. Para isso, Kant dizia que era preciso colocar nossos juízos diante do "Tribunal da Razão". O problema que aparece em Kant, e que acaba por tornar sua crítica não suficientemente radical, é exatamente a hipertro- fia em relação ao sujeito, à consciência. Ou seja, com Heidegger, é possível dizer que Kant aceitou acríticamente a ontologia dares cogitans de Descartes no momento em que o eu transcendental representa o ponto de unidade de todos os juízos, o repositório final de todos os conceitos. Isso quer dizer: a crítica kantiana cola o transcendental no sujeito e, nesse momento, ele passa a ser o lugar último e fun- damento da verdade. Na filosofia hermenêutica, no modo como Heidegger efetua a analítica do Dasein em Ser e Tempo, o ele- mento transcendental é deslocado do sujeito para um contexto de significâncias e significados que será chamado de mundo. Não o mundo da cosmologia ou mundo natural (este foi excluído do espaço da filosofia através do "encurtamento hermenêutico" [Stein] realizado pelo filósofo), mas o mundo enquanto instância 18 COLEÇÃO O Q!JE ~ I STO? - 1 únio luiz Srreck e espaço onde o significado é encontrado e produzido no con- texto de um a priori compartilhado. Trata-se, portanto, de algo que podemos mencionar, com Stein, como um transcendental hist6rico.1 O que é importante ressaltar aqui é que o problema da verdade - e, portanto, da manifestação da verdade no próprio ato judicante - não pode se reduzir a um exercício da vontade do in- térprete Uulgar conforme sua consciência), como se a realidade fosse reduzida à sua representação subjetiva.8 7 Cf. Sobre a Verdade. ljuf: Unijuf, 2006. 8 Para um maior aprofundamento, ver meu Verdade e Consenso, posfácio da quarta edi- ção (Verdade e Consenso. Constituição Hermenêutica e Teorias Discursivas 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011). O Q!)E ~ ISTO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCl ~NCIA? 19 2. AS PRÁTICAS JUDICIÁRIAS EM TERRAE BRASILIS OU "DE COMO FLUEM OS SENTIDOS Q!JE DESNUDAM UM PARADIGMA" Como já se viu, deslocar o problema da atribuição de sen- tido para a consciência é apostar, em plena era do predomínio da linguagem, no individualismo do sujeito que "constrói" o seu próprio objeto de conhecimento. Pensar assim é acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiência in- teriores e pessoais, não se conseguindo estabelecer uma relação direta entre esses estados e o conhecimento objetivo de algo para além deles (Blackburn). Isso, aliás, tornou-se lugar comum no âmbito do imaginá- rio dos juristas. Com efeito, essa problemática aparece explícita ou implicitamente. Por vezes, em artigos, livros, entrevistas ou julgamentos, os juízes (singularmente ou por intermédio de acór- dãos nos Tribunais) deixam "claro" que estão julgando "de acor- do com a sua consciência" ou "seu entendimento pessoal sobre o sentido da lei". Em outras circunstâncias, essa questão aparece devidamente teorizada sob o manto do poder discricionário dos juízes. Não se pode olvidar a "tendência" contemporânea (brasi- leira) de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretizar direitos. Esse "incentivo" doutrinário decorre de uma equivocada recepção daquilo que ocorreu na Alemanha pós- -segunda guerra a partir do que se convencionou a chamar de Jurisprudência dos Valores. No caso alemão, temos que a jurisprudência dos valores serviu para equalizar a tensão produzida depois da outorga da 20 CO LCÇÃO O QJ.JE ~I STO? - 1 le11io Luiz Streck Grundgesetz pelos aliados, em 1949. Com efeito, nos anos que sucederam a consagração da lei fundamental, houve um esforço considerável por parte do Bundesverfassungsgericht para legiti- mar uma Carta que não tinha sido constituída pela ampla partici- pação do povo alemão. Daí a afirmação de um jus distinto da lex, ou seja, a invocação de argumentos que permitissem ao Tribunal recorrer a critérios decisórios que se encontravam fora da estru- tura rígida da legalidade. A referência a valores aparece, assim, como mecanismo de "abertura" de uma legalidade extremamen- te fechada que possibilitara, em alguma medida, o totalitarismo nazista. Nesse sentido, não podemos esquecer que a tese da juris- prudência dos valores é, até hoje, de certo modo, preponderante naquele tribunal, circunstância que tem provocado historicamen- te fortes críticas no plano da teoria constitucional ao modus in- terventivo do tribunal alemão. Releva anotar, entretanto, que a referida tensão efetivamente teve, a partir do segundo pós-guer- ra, um papel fundamental na formatação da teoria constitucional contemporânea, por exemplo, em Portugal, Espanha e Brasil. Uma coisa que não tem sido dita é que o equívoco das teo- rias constitucionais e interpretativas que estabelecem uma repris- tinação das teses da Jurisprudência dos Valores - mormente em terrae brasilis - está na busca de incorporar o modus tensionante do tribunal alemão em realidades (tão) distintas, que não possu- íam (e não possuem) os mesmos contornos históricos acima re- tratados. No caso específico do Brasil, onde, historicamente até mesmo a legalidade burguesa tem sido difícil de "emplacar'', a grande luta tem sido a de estabelecer as condições para o fortale- cimento de um espaço democrático de edificação da legalidade, plasmado no texto constitucional. Alguns detalhes deixam à mostra essa problemática. Com efeito, o Anteprojeto de Código Brasileiro de Processos Coleti- vos, ultimado em 2007, retrata muito bem essa indevidarecepção do "ativismo do Bundesverfassungsgerichf', o que se pode ver pelos explícitos dispositivos que objetivam a flexibilização da técnica processual, seguido do consequente aumento dos poderes do juiz, que poderá, inclusive, produzir (sic) provas de ofício. OM Q UE t ISTO - DECIDO CONFORME INHA CONSC l ~NCIA? 21 No elenco dos princípios informadores desse novo Códi- go, encontramos a instrumentaJidade das formas, a flexibilização da técnica processual, a proporcionalidade e a rawabilidade. Po- rém, o princípio (sic) que mais chama a atenção é o do "ativis- mo judicial", circunstância que desnuda não somente a indevida compreensão da noção de "princípio'', como também o problema do - agora sim - princípio democrático. Ou seja, o Código já nasce com um déficit de democracia ao deslocar o problema da concretização dos direitos dos demais Poderes e da Sociedade em direção ao Judiciário. Trata-se, evidentemente, de um grande paradoxo: como é possível que um Código, cuja pretensão maior é o incremento de mecanismos de acesso à justiça, aposte no ati- vismo judicial como um dos seus corolários? É nesses momentos que os processualistas brasileiros - adeptos do instrumentalismo processual - acabam, implicitamente, dando plena razão a Ha- bermas, quando este denuncia a colonização do mundo da vida pelo direito. Aliás, aqui parece ser o momento ideal para esclarecer uma questão que tem sido tratada de forma superficial em terrae bra- silis. Trata-se do modo tabula rasa como tem sido empregado o termo ativismo judicial.9 Note-se: nos Estados Unidos, a dis- cussão sobre o governo dos juízes e sobre o ativismo judicial acumula mais de duzentos anos de história. Quanto a isso, basta recordar que o mesmo Marshall que instituiu o precedente que consagrou a judicial review foi também quem iniciou, no case McCulock v.s. Maryland, a tradição do judicial self restraint. Sintomático, também, que a segunda decisão em sede de con- 9 Registre-se que essa incompreensão em tomo do ativismo judicial não se restringe ao problema brasileiro. Também Peter H!!berle, prestigiado constitucionalista alemão, em entrevista publicada no Conjur (Repúblicas jovens necessitam de ativismo judicial, in: www.conjur.com.br, 13.02.2009) entende "ser saudável" para as "novas repúblicas" o ativismo judicial praticado pelos tribunais que, através de sua ação no tecido social, obri- ga os demais poderes a agirem também. Creio, porém, que devemos ter cautela diante da afirmação de H!!berle. De pronto, consigno que, quando o judiciário age - desde que devidamente provocado - no sentido de fazer cumprir a Constituição, não há que se falar em ativismo. O problema do ativismo surge exatamente no momento em que a Corte ex- trapola os limites impostos pela Constituição e passa afazer política j udiciária, seja para o "bem'', seja para o "mal". Ademais, a discussão de H!!berle sempre precisará ser con- textualizada pelo simples fato de que seu contexto vivencial concreto é outro - jurispru- dência dos valores e todas suas consequências já aqui delineadas - . que é bem diferente daquele que se apresenta em terrae brasilis. Portanto, não me parece conveniente que os juristas brasi leiros "recebam" a entrevista como uma ode ou louvação ao ativismo. 22 COLEÇÃO O QVE e ISTO? - 1 Lenio Luiz Streck trole de constitucionalidade nos EUA só se deu cinquenta e dois anos depois da primeira. Não esqueçamos, por outro lado, que ativismo judicial nos Estados Unidos foi feito às avessas num primeiro momento (de modo que não se pode considerar que o ativismo seja sempre algo positivo). O típico caso de um ativismo às avessas foi a pos- tura da Suprema Corte estadunidense com relação ao new deal, que, aferrada aos postulados de um liberalismo econômico do tipo laissez faire, barrava, por inconstitucionalidade, as medidas intervencionistas estabelecidas pelo governo Roosevelt. As atitu- des intervencionistas a favor dos direitos humanos fundamentais ocorrem em um contexto que dependia muito mais da ação indi- vidual de uma maioria estabelecida, do que pelo resultado de um imaginário propriamente ativista. O caso da Corte Warren, por exemplo, foi resultante da concepção pessoal de certo número de juízes e não o resultado de um sentimento constitucional acerca desta problemática. E essas circunstâncias não podem ser igno- radas. Esse ativismo, com ou sem aspas, demonstra também que a sua ratio possui uma origem solipsista, o que se toma problemá- tico, porque a democracia e os avanços passam a depender das posições individuais da suprema corte. De todo modo - e isso precisa ficar bem claro -, apenas diante da consagração de uma efetiva jurisdição constitucional é que se pode falar no problema dos ativismos judiciais. Veja-se o exemplo alemão, que somente depois da instala- ção do Tribunal Constitucional passou a discutir os problemas da expansão do poder judicial e as questões envolvendo a jurispru- dência dos valores. No Brasil, a tradição de uma jurisdição cons- titucional é recente. Antes de 1988, não existia efetivo controle de constitucionalidade. Isso é fundamental para o enfrentamento da questão. Ainda outro lembrete necessário: pode-se dizer que, tanto na operacionalidade stricto sensu como na doutrina, são percep- tíveis, no mínimo, dois tipos de manifestação do paradigma da subjetividade (filosofia da consciência), que envolve exatamente as questões relativas ao ativismo, decisionismo e a admissão do poder discricionário. O primeiro trata do problema de forma mais OM Q\JE ~ I STO DECI DO CONFORME INMA CONSUENCIA? 23 explícita, "assumindo" que o ato de julgar é um ato de vontade (para não esquecer o oitavo capítulo da Teoria Pura do Direito de Kelsen); ainda nesse primeiro grupo devem ser incluídas as decisões que, no seu resultado, implicitamente trata(ra)m da inter- pretação ao modo solipsista. São decisões que se baseiam em um conjunto de métodos por vezes incompatíveis ou incoerentes entre si ou, ainda, baseadas em leituras equivocadas de autores como Ronald Dworkin ou até mesmo Gadamer, confundindo a "supera- ção" dos métodos com relativismos e/ou irracionalismos. No segundo grupo, encontramos as decisões que buscam justificações no plano de uma racionalidade argumentativa, em especial, os juristas adeptos das teorias da argumentação jurídica, mormente a matriz alexyana. Também nestas estará presente o problema paradigmático, uma vez que as teorias da argumenta- ção são dependentes da discricionariedade. 10 Alguns exemplos podem auxiliar na compreensão do pro- blema. Em discurso de posse de novos juízes estaduais em deter- minada Unidade Federada, a saudação não deixa dúvida acerca do papel do juiz e do processo em terrae brasilis, não sendo difí- cil perceber, de igual modo, a confusão entre o positivismo exe- gético e o positivismo normativo: "o 'processo' não é senão o instrumento que o Estado entrega ao juiz para, ao aplicar a lei ao caso concreto, solucionar o litígio com justiça. Justiça que emana exclusivamente de nossa consciência, sem nenhum apego obsessivo à letrafria da lei''. 11 No plano do que podemos chamar de "aplicação jurídico- -judiciária", calha registrar parte de voto proferido em julgamento no Superior Tribunal de Justiça: "Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquan- to for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição.( ... ) Decido, porém, confor- me minha consciência. Precisamos estabelecer nossa auto- nomia intelectual, para que este Tribunal seja respeitado. É 10 Remeto o leitor à terceira edição do meu Verdade e Co11se11so, op. cit, onde essa pro- blemática está explicitada amiúde. 11 Discurso do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Luis Felipe Salomão, em 10/01/03, na posse de novos Juízes no Rio de Janeiro. Disponível em: http://www. amaerj .org.br. 24 COLEÇÃO O QJ,IE t ISTO? - l Le11io Luiz Streck preciso consolidar o entendimento de que os Srs. MinistrosFrancisco Peçanha Martins e Humberto Gomes de Barros decidem assim, porque pensam assim. E o STJ decide as- sim, porque a maioria de seus integrantes pensa como esses Ministros. Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém". 12 Já como preliminar é necessário lembrar - antes mesmo de iniciar estas reflexões no sentido mais crítico - que o direito não é (e não pode ser) aquilo que o intérprete quer que ele seja. Portanto, o direito não é aquilo que o Tribunal, no seu conjunto ou na indi- vidualidade de seus componentes, dizem que é. 13 A doutrina deve doutrinar, sim. Esse é o seu papel. Aliás, não fosse assim, o que faríamos com as mais de mil faculdades de direito, os milhares de professores e os milhares livros produzidos anualmente? E mais: não fosse assim, o que faríamos com o parlamento, que aprova as leis? E, afinal, o que fazer com a Constituição, "lei das leis"? A posição assumida pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento sob comento apenas explicita aquilo que está na raiz do problema, que é, necessariamente, paradigmático. Veja-se, mais uma vez, o modo como a linguagem desnuda os elemen- tos estruturantes, denunciando o "lugar da fala" do interlocutor. Assim, por exemplo, respondendo a uma crítica por ter suspen- dido decisão de um juiz de primeiro grau de forma liminar, o desembargador "reconhece" que possa ter se equivocado, mas, sobretudo, por se tratar de um erro in judicando e não erro in procedendo, [porque] "decido de acordo com a minha consciên- cia de julgador e o meu entendimento pessoal, como previsto no artigo 131 do Código de Processo Civil".14 Estar compromissado apenas com a sua consciência passa a ser o elemento que sustenta o imaginário de parcela considerável 12 Voto do Ministro Humberto Gomes de Barros no AgReg em REsp nº 279.889/AL, julg. e m 03/0412001, DJ 11 /06/2001, STJ. 13 Lembro, aqui, a assertiva de Herbert Hart, em seu Co11cept of Law, acerca das regras do jogo de críquete, para usar um autor positivis ta contra o próprio decisionismo positivista que claramente exsurge do acórdão em questão. 14 Entrevista disponíve l em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj /publicacao/engine.wsp? t1np.nren=368&tmp.texto=68172>. Acesso e m: set. 2009. (grifei) O Ql.JE ~ISTO - DEC IDO CON FORME MINrlA CONSCl ~NC I A? 25 dos magistrados brasileiros, o que se pode perceber em pronun- ciamento do então Presidente do Superior Tribunal de Justiça, Min. Costa Leite, respondendo a uma indagação sobre o raciona- mento de energia elétrica que atingia o país, no sentido de que, no momento de proferir a decisão (caso concreto), "o juiz não se subordina a ninguém, senão à Lei e à sua consciência", 15 as- sim como em importante decisão do mesmo Tribunal em sede de Habeas Corpus: "Em face do princípio do livre convencimento motivado ou da persuasão racional, o Magistrado, no exercício de sua função judicante, não está adstrito a qualquer critério de apreciação das provas carreadas aos autos, podendo valorá-las como sua consciência indicar, uma vez que é soberano dos ele- mentos probatórios apresentados". 16 Do mesmo Superior Tribunal de Justiça, tem-se que "se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorís- tico no apurar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído à sua própria consciência" .17 Há, pois, um núcleo comum, uma espécie de holding, que torna o tema recorrente: o juiz não se subordina a "nada", a não ser ao "tribunal de sua razão". Com efeito, "o deferimento de compromisso à testemunha contraditada e que não poderia pres- tá-lo, a teor da letra do art. 208, última parte, do Código de Pro- cesso Penal, não vicia a ação penal, mas exterioriza-se como mera irregularidade, pois, não encerrada a instrução e dentro do princípio do livre convencimento motivado, o juiz, não adstrito a critérios de valoração apriorístico, atribuirá ao depoimento o peso que sua consciência indicar, mediante fundamentação ... ". 18 Ou seja, em ultima ratio, em plena vigência da Constituição de 1988, o próprio resultado do processo dependerá do que a cons- ciência do juiz indicar, pois a gestão da prova não se dá por crité- rios intersubjetivos, devidamente filtrados pelo devido processo legal, e, sim, pelo critério inquisitivo do julgador. 15 Entrevista disponível em: <http://www.stj.gov.br/portal_stj/publicacao/engine.wsp? tmp.area=368&tmp.texto=68 l 72>. Acesso em: set. 2009. (grifei) 16 HC 94.826/SP, julgado em 17/04/2008, DJe 05/0512008. (grifei) 17 HC 16.706/RJ, julgado em 19/0612001, DJ 24/091200 1, p. 352. (grifei) 18 HC 11 .896/RJ, julgado em 27/06/2000, DJ 21/0812000, p. 173. (grifei) 26 COl.EÇÃO O Q!JE ~ ISTO? - 1 lenio luiz Streck Consciência, subjetividade, sistema inquisitório e poder discricionário passam a ser variações de um mesmo tema. Ob- serve-se a importância dessa questão nos casos de delimitação da pena no seguinte julgamento, em que o Tribunal justifica o solipsismo judicial, ao sustentar que compete ao juiz, "examina- das as circunstâncias judiciais, estabelecer, conforme necessário e suficiente, 'a quantidade da pena aplicável, dentro dos limites previstos'. A avaliação é subjetiva e o juiz lança o quanto enten- da necessário sua consciência" .19 Em linha absolutamente similar, o argumento da discricio- nariedade assume lugar cimeiro em julgamentos do TJDF, assen- tando que a delimitação da faixa etária nos casos de proibição de frequência de menores a casas de jogos eletrônicos subordina-se a uma inevitável discricionariedade judicial20 e do TJSP, que, em um caso de prazo de desocupação de imóvel em caso de despejo, alça a discricionariedade ao patamar de princípio.21 A pergunta que se põe é: onde ficam a tradição, a coerência e a integridade do direito? Cada decisão parte (ou estabelece) um "grau zero de sentido"? Se, no processo penal, o modo pelo qual se manifesta o paradigma representacional é o sistema inquisitório, no processo civil, é o protagonismo/ativismo do juiz que encobre a filosofia da consciência. Observe-se, nesse sentido: I) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná: "A norma legal propicia ao juiz( ... ) meios para completar sua con- vicção e, assim, decidir com tranquilidade de consciência, reali- zando o ideal do verdadeiro juiz";22 II) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Ge- rais: "Ao Juiz, como destinatário da prova, e só a ele, cabe, diante de sua consciência, para proferir decisão, determinar a realização de nova perícia, ainda que, formalmente e à primeira vista, seja o laudo anterior conclusivo e aparentemente idôneo";23 19 TJPR: ACrim 135.719-5/ PR, DJ 05/08/1999. (grifei) 20 TIDF: Apelação n. 20823020038070001 . 21 TJSP: Agravo de Instrumento n. 1.157.591-0/0. 22 TJSP: AI 7256094200/SP, DJ 3 1/07/2008. (grifei) 23 TJMG: AC 1671932/MG, DJ 10/02/2000. (grifei) O Q1JE ~ISTO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCI ~NCIA? 27 III) acórdão do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Ca- tarina: "o juiz é o intérprete da consciência social, pois contrapõe a livre valoração moral à norma".24 Variações de um mesmo tema: não somente a interpretação da lei depende da consciência do decisor, mas, também, a produ- ção da prova. Nesse sentido, registre-se decisão do Superior Tri- bunal Militar, pela qual "provar é produzir um estado de certeza na consciência do Juiz, para sua convicção sobre a existência - ou não - de um fato".2s Há decisões paradigmáticas, que conseguem, em poucas palavras, fundir teses e teorias do paradigma representacional, como se pode ver na decisão do Superior Tribunal do Trabalho: "( .. . )a sentença é um ato de vontade do juiz como órgão do Estado. Decorre de um prévio ato de inteligência com o ob- jetivo de solucionar todos os pedidos, analisandoas causas de pedir, se mais de uma houver. Existindo vários funda- mentos (raciocínio lógico para chegar-se a uma conclusão), o juiz não está obrigado a refutar todos eles. A sentença não é um diálogo entre o magistrado e as partes. Adotado um fundamento lógico que solucione o binômio 'causa de pedir/pedido', inexiste omissão".26 Nada surpreendente, mormente se levarmos em conta que recentes trabalhos acadêmicos - embora com pretensões de cons- truir racionalidades e até mesmo tecer críticas a decisionismos e/ou voluntarismos - acabam por sufragar teses como a constan- te no acórdão em tela e nos demais aqui referidos. 27 É o caso, por 24 TJSC: AC 37530/SC, DJ 03/08/2000. (grifei) 2 s STM: Apelo 49563/RS. (grifei) 26 TST - 1• Turma - EDRR 6443/89 - Ac. 2418/90- DJU 15.D2.9 1 27 Efetivamente, há que se reconhecer que essa é uma questilo que vem sendo reforçada em teses de doutorado e dissertações de mestrado nos diferentes cursos de pós-graduação. Por todas, refira-se a tese de doutorado de Maria de Fátima S.G.M. de Oliveira, que refor- ça o imaginário de apoio ao solipsismo judicial ao defender, por exemplo, que "a liber- dade de investigação crítica corresponde à interpretação dada pelo magistrado à norma" . A autora entende que, "hoje, o juiz não se submete à letra fria da lei. Deve, ao contrário, interpretá-la e suas decisões devem ser harmonizadas ao sistema jurídico, mesmo que, apare11te111e111e, afro11te111 a lei. O juiz exerce ati vidade criadora do direito e com margem de li berdade." (grifei) Mais ainda, sustenta que a discricionariedade nada mais é, senão, a impressão pessoal do juiz e a possibilidade de escolher a melhor i11te1pretação desses conceitos i11deter111i11ados (dano irreparável, relevante fundamento, etc.) ao caso concreto 28 COLEÇÃO O Q!JE t ISTO? - 1 lenio luiz Streck 1 11 exemplo, de Eduardo Cambi,28 que, a partir de uma mixagem de matrizes e autores, sustenta que o juiz, nos casos difíceis, possui tanta margem de discricionariedade quanto o Legislador, como se, a um, o legislador tivesse discricionariedade nesta quadra da história e, a dois, não fosse a discricionariedade, exatamente, a porta de entrada dos decisionismos e voluntarismos. Mais ainda, embora sua obra tenha pretensões pós-positi- vistas (ou antipositivistas), o que, registre-se, é extremamente louvável, Cambi insiste em teses que são contrárias (ou estão em contradição) ao que propõe, como, por exemplo, quando sustenta que a sentença é ato de vontade do juiz - repristinando, cons- ciente ou inconscientemente, o pai do positivismo normativista (Kelsen) - e que "sentença vem de sentir" (sic). Ao fim e ao cabo, reforça o protagonismo judicial que pretende combater, ao fazer coro com Eduardo Couture, no sentido de que "a dignidade do direito depende da dignidade do juiz", isto é, de que "o direito valerá o que valham os juízes".29 De ressaltar, ademais, a opção explícita de Cambi pelo so- lipsismo: "A decisão judicial reflete características pessoais do juiz (a sua personalidade, o seu temperamento, as suas experiên- cias passadas, as suas frustrações, as suas expectativas etc.) ou dos jurados ( ... )".30 Por fim, sustenta a necessidade de que o juiz faça ponderações, o que, também neste caso, coloca-o em campo distante da hermenêutica filosófica, da teoria integrativa dworki- niana e do antirrelativismo habermasiano. Exatamente nessa linha é que não se pode (e não se deve) subestimar as mixagens teóricas e a confusão acerca de posições assumidas por determinados jusfilósofos, que acabam sendo ci- tados fora de contexto, como se reforçassem o paradigma subje- tivista. Por todos, veja-se: "Segundo a moderna doutrina de Dworkin, 'Teoria da Acei- tação Racional ', no julgamento do caso concreto, o julga- para atingir a ordem jurídica justa". (grifei) Cf. Discricio11ariedade judicial llílS medidas processuais provisórias. São Paulo, PUC, 2007, p. 20 1 e segs. 28 Cf. Neoco11Sti111cio11alis1110 e neoprocessualismo. Direitos fundamentais, políticas pú- blicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 272. 29 Cf. Cambi, Eduardo. Jurisdição 110 processo civil. Compreensão crítica. Curitiba: Ju- ruá, 2002, p. 83-4. 30 Cf. Neoco11srit11cio11alis1110e11eoprocess11alismo, op. cit., p. 124 e 125. O Cl!J E ~ I STO - DEC I DO CONFO RME MI N HA CONSCl t NCIA? 29 dor há de trabalhar, construtivamente, os princípio e regras construtivas do direito vigente, para reforçar a segurança jurídica e a certeza do direito, proporcionando e aviventan- do na sociedade o sentimento de justiça. O julgador deve ter o espírito imbuído da certeza de que o ordenamento jurídi- co é mais complexo do que o simples conjunto hierarquiza- do de regras, defendido pelos positivistas. O sentimento de justiça, que deve revestir o espírito do juiz, é o único capaz de assegurar a solidez da ordem do Estado Democrático de Direito". 31 Neste último caso, é despiciendo advertir para o fato de que Dworkin não aposta em interpretações que exsurjam do "espírito do juiz" e tampouco acredita no juiz como "único capaz de asse- gurar a solidez da ordem do Estado Democrático de Direito". Construiu-se, assim, um imaginário (gnosiológico) no seio da comunidade jurídica brasileira, com forte sustentação na dou- trina, no interior do qual o "decidir" de forma solipsista encontra "fundamentação" - embora tal circunstância não seja assumida explicitamente - no paradigma da filosofia da consciência. Essa questão assume relevância e deve preocupar a comunidade jurí- dica, uma vez que, levada ao seu extremo, a lei - aprovada de- mocraticamente - perde(rá) (mais e mais) espaço diante daquilo que "o juiz pensa acerca da lei". Em determinados julgamentos, torna-se impossível ao "su- jeito da modernidade" esconder o solipsismo que o sustenta, dando-se, assim, razão a Werneck Vianna, quando afirma que a situação do juiz brasileiro é ambígua: "ele é criatura de uma carreira burocrático-estatal, porém se concebe como um ser singular, auto-orientado, como se a sua investidura na função fizesse dele um personagem so- cial dotado de carisma. Daí que, embora recrutado fora da política, isto é, pelo instituto do concurso público, ele não se enquadre inteiramente no ethos burocrático preconizado por Max Weber".32 31 TJMG - Apelação n. 1.0596.03.013587-21001. 32 Cf. Corpo e alma da magistratura brasileira. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 295. 30 COLEÇÃO O Qy E ~ 1 STO? - 1 úmio luiz Streck A leitura da seguinte decisão demonstra o acerto da pesqui- sa comandada por Vianna: "A judicatura não sobrevive como instituição permanente da sociedade apenas com o saber, com a técnica, com a ex- celência do conhecimento teórico. Todos esses ingredientes não são suficientes para um Juiz. De nada adianta conhecer a doutrina, as leis, a jurisprudência, se, dotado de qualidades intelectuais excepcionais, não tiver honestidade, vida iliba- da, reputação imaculada, não somente perante os destinatá- rios do seu ofício, mas, igualmente, perante os seus pares. Antes de ser poesia, a alma limpa de um Juiz, a austeridade que impõe a toga que veste, a reclusão da sua consciência para decidir longe das pressões de toda sorte ... ( ... )".33 Na mesma linha, vale lembrar decisão que escancara um misto de "filosofia da consciência" e "jusnaturalismo", em uma ação judicial de busca e apreensão de menor: "Haverá ele [o Juiz] de acomodar-se numa regra não escrita (non scriptum), mas ina- ta na morada da consciência dos que julgam (sed nata), que re- monta às origens da humanidade, com fincas no direito natural: jus est arts boni et aequi (o direito é arte do bem e do justo)".34 Resta a pergunta: haveria uma "consciência inata" naqueles que julgam? Permito-me insistir: trata-se de uma questão paradigmáti- ca. Veja-se, nesse sentido, acórdão da mais alta Corte do País - e o aspecto simbólico que dela decorre - em que, por uma de suas Turmas, por maioriade votos, o Tribunal indeferiu habeas corpus35 em que se alegava falta de demonstração da urgência na produção antecipada de prova testemunhal de acusação, decre- tada nos termos do art. 366 do Código de Processo Penal, ante a revelia do paciente/réu. O Supremo Tribunal deixou assentado que a determinação de produção antecipada de prova está ao al- vedrio do juiz, que pode ordenar a sua realização se considerar existentes condições urgentes para que isso ocorra. 33 Processo nº 1995.001.00763 - Apelação -Julgamento: 11/04/1995 - 1• Câmara Cível TJRJ. (grifei) 34 Proc o T . essa n 1993.001.04007 - Apelação -Julgamento: 07/1211993 - 1• Câmara Cível JRJ. JS STF-Habeas Corpus nº 93.157, de 23.09.2008. ' O Q\)E ~ISTO DECIDO CON FORME MINHA CONSCI tNCIA? 31 Observe-se, nesse julgado, a imbricação entre o sistema in- quisitório e a filosofia da consciência (questão paradigmática, pois): a determinação de produção antecipada de prova fica a critério (discricionariedade, livre apreciação, para dizer o me- nos) do juiz. O Min. Lewandowski votou vencido, concedendo a ordem, porque vislumbrou ofensa ao dever de fundamentar as decisões judiciais e às garantias do contraditório e da ampla de- fesa, uma vez que a decisão que determinou a produção de prova esteve "fundamentada" tão somente no fato de o paciente não ter sido localizado (nas palavras do Ministro, "a decisão fora deter- minada de modo automático"). Apenas o voto de Lewandowski mostrou-se acertado, vez que fundado no sistema acusatório. Os votos vencedores apenas fortalecem o protagonismo judicial, apostando na "boa escolha" - discricionária - do magistrado. Com efeito, parece razoável afirmar - a partir de uma abordagem hermenêutica - que, quando a lei estabelece que o juiz pode determinar a produção antecipa- da das provas consideradas urgentes,36 sua decisão deverá estar fundamentada/justificada com todos os detalhes, além de passar pelo crivo do contraditório e da ampla defesa, como, aliás, bem frisou o voto vencido. Além disso, a urgência de que fala a lei processual deve ser considerada levando em conta toda a história institucional das decisões anteriores que tratam dessa temática, respeitando a coerência e a integridade. Ou seja, "provas consi- deradas urgentes" não é um enunciado assertórico. A "proposi- ção jurídica" só terá sentido em cada caso concreto. A aplicação automática do dispositivo (tábula rasa) abre espaço para a deci- são que o juiz julgar mais conveniente. E isso é reforçar o "sub- jetivismo/discricionarismo" dos juízes.37 36 Anote-se, aliás, que o Anteprojeto praticamente reproduz o atual an. 366 {provas con- sideradas urgentes). Ponanto, de nada adianta ró um novo CPP se o jufw sobre a "urgên- cia" fica ao "alvedrio do juiz". Veja-se, aqui, a relação entre o "novo" texto e o "velho" texto, e de como o novo poderá se tomar velho a partir de uma interpretação que coloque o solipsismo judicial no topo da condição de sentido. 37 Lembremos, por relevante, que a fundamentação/justificação/motivação das decisões é um direito fundamental do cidadão (aliás, assim considerado pelo TEDH; Sentenças: a) de 9. 12.1994 - TEDH 1994, 4, Ruiz Torija e Hiro Balani-ES, parágrafos 27 e 29; b) de 19.02.1998 -TEDH l998,3, Higgins e outros - Fr, parágrafo 42; e e) de 21.0 1.99 - TEDH 1999, l , Garcia Ruiz-ES. No mesmo sentido, ressalte-se a posição do Tribunal Constitucional da Espanha (sentença 2012003, de 10 de fevereiro). 32 COLEÇÃO O CUJE ~ISTO? - l Lenio luiz Streck 3. NAS NESGAS DA LINGUAGEM, AS MANIFESTAÇÕES DOUTRINÁRIAS Q!}E DES-COBREM O DNA DO SOLIPSISMO JUDICIAL Para além da operacionalidade stricto sensu, a doutrina in- dica o caminho para a interpretação, colocando a consciência ou a convicção pessoal como norteadores do juiz, perfectibilizando essa "metodologia" de vários modos. E isso "aparecerá" de vá- rias maneiras, como na direta aposta na: a) interpretação como ato de vontade do juiz ou no adágio "sentença como sentire"; b) interpretação como fruto da subjetividade judicial; c) interpretação como produto da consciência do julgador; d) crença de que o juiz deve fazer a "ponderação de valo- res" a partir de seus "valores"; e) razoabilidade e/ou proporcionalidade como ato volunta- rista do julgador; f) crença de que "os casos difíceis se resolvem discriciona- riamente"; g) cisão estrutural entre regras e princípios, em que estes proporciona(ria)m uma "abertura se sentido" que deverá ser pre- enchida e/ou produzida pelo intérprete. Há ainda outras hipóteses - e cito tão somente algumas q~e representam, simbolicamente, uma forte parcela do ima- gmário jurídico - de manifestação de filiação ao paradigma da subjetividade (esquema sujeito-objeto). Uma observação: o que se tem visto no plano das práticas jurídicas nem de longe che- ga a poder ser caracterizada como "filosofia da consciência"; trata-se de uma vulgata disso. Em meus textos, tenho falado O CWE É ISTO - DECIDO CONFORME MINI IA CONSCI ~NC IA? 33 que o solipsismo judicial, o protagonismo e a prática de discri- cionariedades se enquadram paradigmaticamente no "paradig- ma epistemológico da filosofia da consciência". Advirto, porém, que é evidente que o modus decidendi não guarda estrita relação com o "sujeito da modernidade" ou até mesmo com o "solipsis- mo kantiano". Esses são muito mais complexos. Aponto essas "aproximações" para, exatamente, poder fazer uma anamnese dos discursos, até porque não há discurso que esteja "em paradig- ma nenhum", por mais sincrético que seja. Vejamos: para Maria Helena Diniz,38 "conhecer é trazer para o sujeito algo que se põe como objeto", consistindo, assim, "em levar para a consciência do sujeito cognoscente algo que está fora dele ( ... ) tornando-o presente à inteligência". Essa filiação ao paradigma subjetivista já estava presente em processualistas como Moacyr Amaral dos Santos, que dizia que "a sentença é ato de vontade".39 Já Touri- nho Filho vai dizer que o juiz, através da sentença, "declara o que sente",40 deixando explicitada a sua adesão à tese da adeaquatio rei et intellectus. Observe-se, nesse contexto, que "filosofia da consciência" e "discricionariedade judicial" são faces da mesma moeda, sendo muito comum essa junção ser feita a partir da tese - explícita ou implícita - de que a interpretação (ou a sentença) "é um ato de vontade", reconstruindo-se, assim, o discriciona- rismo/decisionismo sustentado por Kelsen na sua Teoria Pura do Direito. Refira-se, que, não raras vezes, deparamo-nos com uma mi- xagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis, como é o caso da "junção" do paradigma metafísico-clássico (adeaquatio intellectus et rei) e a filosofia da consciência (adeaquatio rei et intellectus), embora, ao fim e ao cabo, sempre prevaleça a "livre convicção" ou "a vinculação à consciência do julgador" (sempre com a ressalva de que o que vemos no campo jurídico é uma vulgata, tanto da ontologia clássica como da filosofia da cons·; ciência). 38 Cf. Compêndio de Introdução à Ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 1998, p. Jl e segs. 39 Cf. Primeiras linhas de Direito Processual Civil. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 1985~ vol. IJl, p. 19. 40 Cf. Prática de Processo Penal. 4. ed. Bauru: Jalovi, 1976, p. 243. 34 COLCÇÃO O Q!.)E ~ ISTO? - lenio Luiz Stre' Mixagem desse jaez é feita por Marco Antonio de Barros,41 quando, ao mesmo tempo em que afirma ser a verdade "a ade- quação ou conformidade entre o intelecto e a realidade", sustenta que esta é fruto da inteligência humana, porque "moldada pelo juízo racional e não pela prova ou evidência que pode ser verídica ou falsa". Entretanto, no plano da avaliação das provas, diz que a "convicção do juiz é livre, submete-se a sua própria consciência; porém, a sua decisão deve ser fundamentada nas provas colhidas no curso do processo". Veja-se que a ressalva no sentido de que a decisão, embora "de livre convicção", deve ser fundamentada nas provas colhidasno curso do processo, seria relevante, não fosse exatamente a contradição entre "a livre convicção" (solip- sismo judicial) e a "fundamentação nas provas processuais". Há, assim, no horizonte dogmático, uma mixagem produ- zida no âmbito do senso comum teórico. Confunde-se o para- digma ontológico-clássico com o da filosofia da consciência e vice-versa, resultando disso são conceitos absolutamente sincré- ticos, autocontraditórios. Afinal, como a "verdade transparece"? Ela estaria "contida" na "coisa"? Existiria, então, uma "essência" a ser descoberta pelo juiz? Diga-se de passagem, após Kant, que na Crítica da Razão Pura afirmava a impossibilidade de apre- ensão da realidade como "noumeno", restando-nos apenas o "phaenomenon", é suprema ousadia tentar reivindicar a realidade em essência. Sendo mais simples e mais didático: essa mixagem (ou sincretismo) de paradigmas inconciliáveis acaba sendo regra (communis opinium doctorum) na doutrina. E nas práticas dos tribunais. E as raízes são antigas. O fator talvez mais inusitado que se projeta a partir de todo esse quadro é que, em nenhum aspecto, os argumentos da dog- mática jurídica se aproximam das discussões contemporâneas sobre o conceito de verdade. Continuamos a discutir as questões a partir do modo como eram levadas a cabo no final do sécu- lo XIX e início do século XX. Esse relativismo démodée, bem como essa profissão de fé em um caráter unitário da verdade, não atinge o ponto de estofo da questão que, no contexto atual, ~e situa no campo da linguagem. Como afirma Lorenz Puntel: verdade significa a revelação da coisa mesma que se articula 41 p. i:6.A busca da verdade no processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, O 01J E ~I STO - DECIDO CONFORME MINHA CONSCl~NCIA? 35 na dimensão de uma pretensão de validade justificável discursi- vamente" .42 Interessante notar como essa problemática atravessa os di- versos campos ideológicos, isto é, a tese do "protagonismo" e do "poder discricionário" do juiz é professada por vezes por campos teóricos distantes entre si. É o caso de Emane Fidélis dos Santos43 e Rui Portanova. Assim, o primeiro vai dizer que, "para assegu- rar a imparcialidade do Juiz, é ele dotado de completa indepen- dência, a ponto de não ficar sujeito, no julgamento, a nenhuma autoridade superior. No exercício da jurisdição, o juiz é sobera- no. Não há nada que a ele se sobreponha. Nem a própria lei ... ". Já o segundo,44 notoriamente ligado às teorias críticas do direito - registre-se, destacado jurista e um dos expoentes do di- reito alternativo nos duros tempos do ancién régime (ao lado de outros não menos importantes, como, por todos, Amilton Bueno de Carvalho, Márcio Puggina, James Tubenchlak e Antonio Car- los Wolkmer) -, não discrepa da posição de Fidélis dos Santos, quando diz, por exemplo, que "enfim, todo homem, e assim tam- bém o juiz, é levado a dar significado e alcance universal e até transcendente àquela ordem de valores imprimida em sua cons- ciência individual. Depois, vê tais valores nas regras jurídicas. Contudo, estas não são postas só por si. É a motivação ideológi- ca da sentença". Embora Portanova reconheça que "o sentenciar alternativo não é autorização para motivações arbitrárias" e que o "o juiz deve manter-se dentro de um sistema jurídico, mas com liberdade para assumir posição diante da lei, na busca de tradu- zir o sentimento de justiça da comunidade", mais adiante concor- da com o próprio Fidélis dos Santos, citando-o, na linha de que "não há nada que se sobreponha ao juiz, nem a própria lei" . Em outra obra não menos relevante, Portanova45 assevera que "é difí- cil acreditar em algo que possa restringir a liberdade do juiz de 42 Cf. Conceptos Fu11dame11tales de la Filosofia. Yol. III. Barcelona: Herder, 1979, p. 626. 43 Cf. Manual de Direito Processual Civil: processo de conhecimento. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, v. 1. 44 Cf. Motivações ideológicas da se111e11ça. 3. ed. Pono Alegre: Livraria do Advogado, 1997. 45 Cf. Pri11cfpios do Processo Civil. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. (grifei). 36 COLEÇÃO O Ql)E E ISTO? 1 Lenio Luiz Streck decidir como quiser. É preciso reconhecer realisticamente: nem a lei, nem os princfpios podem, prévia e plenamente, controlar o julgador". E complementa: "Depois de tantos anos, os juízes aprendem como moldar seu sentimento aos fatos trazidos nos au- tos e ao ordenamento jurídico em vigor. Primeiro se tem a solu- ção, depois se busca a lei parafundamentá-la".4(, Não há dúvida, pois, de que essa questão da interpretação ou da sentença como "ato de vontade" atravessa os diversos cam- pos ideológicos do direito. Veja-se o modo como Paulo Queiroz, um dos penalistas mais críticos do país, não consegue se livrar d(ess)a herança kelseniana do decisionismo. Com efeito, em ar- tigo recente, Queiroz sustenta que "sempre que condenamos ou absolvemos, fazêmo-lo porque queremos fazê-lo, de sorte que, nesse sentido, a condenação ou a absolvição não são atos de verdade, mas atos de vontade". Segundo o penalista baiano, "pa- rece evidente que, ordinariamente, por mais que tenhamos moti- vos, legais ou não, para condenar, condenamos porque queremos condenar e porque julgamos importante fazê-lo; inversamente: por mais que tenhamos motivos, legais ou não, para absolver, absolvemos porque queremos absolver e julgamos importante fazê-lo".41 Veja-se: embora substancialmente a contribuição crí- tica de Queiroz seja inegável, neste ponto corre o risco de provo- 46 Veja-se como essa tese ainda é dominante no imaginário dos juristas, isto é, de que primeiro se interpreta para, só depois, aplicar (ou primeiro, interpretamos, depois, compreendemos e, finalmente, aplicamos, repeúndo as três subtilitates: intelligendi, explicandi e applicandi). Trata-se da cisão metafísica entre interpretar e aplicar, postu- ra que pode ser vista explicitamente em texto de Celso Bastos e Samantha Meyer-Pflug (A interpretação como fator de desenvolvimento e atualização das normas constitu- cionais. ln: Silva, Virgílio A. da (org.). Interpretação Co11stitucional. São Paulo: Ma- lheiros, 2005, p. 145 e segs.), quando dizem que a interpretação é uma atividade "que precede, 11ecessariame11te, a aplicação da let' e que "é a partir da interpretação que a norma jurídica abstrata passa a incidir nas si tuações fáticas". É possível constatar, com relativa facilidade, que, por trás dessa tese subjaz o esquema sujeito-objeto e a adesão d metodologia jurfdica tradicio11al , além da defesa (kelseniana) de que a "in- terpretação feita pelos juízes é um ato de vontade". Refira-se, como contraponto, que, paradigmaticamente, a hermenêutica jurídica (filosófica) coloca-se na contramão dessa cisão entre interpretar e aplicar, problemática que discuto em: Hermenêutica (jurídica): compreendemos porque interpretamos ou interpretamos porque compreendemos? Uma resposta a partir do Omological Tum. ln : Streck, Lenio Luiz; Rocha, Leonel Severo ~o~gs.): Anuário do programa de pós-graduação em direito da Unisinos. São Leopol- 4~· Edições Portão, 2003, p. 223-27 1. Cf. O que é direito? Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/o-que-e-o-direito> Aces- ~o em: 16 fev. 2010. Os grifos são meus. O Q1.JE ~ISTO DECIDO CONFORME MINHA CONSCttNCIA? 37 car retrocessos democráticos nas manifestações processuais de Promotores e Juízes. De se consignar que o autor publicou uma resposta às crí- ticas que lhe teci na primeira edição desta obra.48 Na sua réplica, argumenta que o livro "O que é Isto - decido conforme minha consciência?" combate uma espécie de juiz Robinson Crusoé - o que, diga-se de pronto, é uma compreensão reducionista do que seja o solipsismo epistemológico, este sim alvo (constan- te) do meu combate teórico - e pergunta, retoricamente, se esse juiz solipsista existe realmente ( sic ). Com isso, Queiroz quer nos conduzir, em meio a sua sofisticada tessitura, à ideia própria do cinismo nietzscheniano contida naconhecida expressão de que fatos não há, só há interpretações (o que, de certa forma, virou um jargão em setores críticos do direito brasileiro, que parecem ter aderido ao relativismo filosófico).49 Desse modo, na visão de Queiroz, o juiz solipsista seria apenas uma - possível - interpre- tação da realidade, mas não a realidade mesma. Ou seja, o solip- sismo não existiria. Todavia, Queiroz acaba sendo atraído para a mesma armadilha do autor que cita para afirmar esse "interpreta- cionismo hermenêutico'', no caso Günter Abel (aliás, para quem é formado no ambiente hermenêutico, é um truísmo a afirmação das diferenças oceânicas que separam a posição hermenêutica de Gadamer e seu conceito de interpretação do interpretacionismo de Abel).so Não que Nietzsche não seja um autor importante para a tradição hermenêutica. A noção de Ursprung está, de alguma forma, presente no conceito heideggeriano de Abbau. Entretanto, essa absolutização do conceito de interpretação acaba por levar a um caminho perigosamente relativista, que não está presente nem em Heidegger e, muito menos - mas muito menos mesmo - em Hans-Georg Gadamer. 48 Cf. Critica da Vontatk de Verdade. Disponível em: <hup://pauloqueiroz.nel/critica- ·da-vontade-de-verdade> Acesso em: 3 ago. 2010. 49 Ora, se não existem fatos e, sim, somente interpretações, é possível dizer "qualquer coisa sobre qualquer coisa", inclusive negar a história, a memória e a tradição ... ! Contra isso, simplesmente afinno: só há fatos porque há interpretações e só há interpretações porque há fatos. Trata-se de uma circularidade (hermenêutica). Sobre esse ponto penni· to-me remeter o leitor à conferência que proferi na TV Justiça (Programa Aula Magna) disponível no ponal '1ustube" em: <http://www.youtube.com/watch?v=OsdyomqFjf4> Acessado em 3 ago. 201 O. so Sobre essa questão, Cf. Stein, Ernildo. A Caminho de uma Fundamentação Pós-meta· ffsica. Porto Alegre: Edipucrs, 1999, em especia l o capítulo 10. 38 COLEÇÃO O Q!)E ~ ISTO?- 1. Lenio Luiz Srreck Com efeito, para esses autores (Heidegger e Gadamer), há um elemento possibilitador da própria interpretação que é a com- preensão. O interpretacionismo, em todas as suas formas, des- considera o caráter antecipador da compreensão e o elemento de formação dos projetos de mundo, que não são determinados por uma querência individual, mas estão ligados a um a priori históri- co compartilhado. Portanto, não se trata de dizer que o solipsismo não "exista" como se esse conceito - filosófico que é - tivesse alguma possibilidade de remissão a um objeto empiricamente verificável. O solipsismo é um engodo teórico; ele existe difu- samente num imaginário que se constituiu a partir da moderni- dade. Aliás, foi a modernidade que "inventou" o solipsismo. Ela é condição de possibilidade da modernidade! E essa invenção ainda produz efeitos (e drásticos). Dizer que o solipsismo epistemológico não existe é fazer troça de Wittgenstein II (que falava da impossibilidade da lin- guagem privada, combatendo o isomorfismo da tradição e o so- lipsismo linguístico da modernidade) ou então de Heidegger, que demonstrou que o Dasein se manifesta existencialmente corno ser-com-os-outros, que está sempre engajado em um projeto de mundo compartilhado. Há também outra afirmação que causa perplexidade. Diz Queiroz: "que a interpretação do direito constitui um ato de vontade, nem mesmo Kelsen hesitou em reconhecê-lo, apesar da pretensão de pureza e de estrita obediência do juiz à lei.". Ora, se Kelsen reconheceu, é porque ele sabia que não existe "estrita obediência à lei" no plano do que ele chegou a chamar "política judiciária". Por isso, é preciso ficar (bem) alerta para um ponto essencial para a compreensão de Kelsen. Ele era um neoposi- tivista, circunstância ignorada pela maioria de seus intérpretes - pelo menos em terrae brasilis. A "pureza" kelseniana, insisto, não se dava no plano do "direito", mas sim no nível meta-lin- gufstico, da "ciência do direito" (de uma vez por todas, enten- da-se- e, nesse ponto, ecoam comigo as vozes de Warat e Leonel Rocha: para Kelsen, a ciência do direito é uma meta-linguagem sobre a linguagem objeto). Numa palavra final: acreditar que a decisão judicial ou a promoção de arquivamento (ou um pedido de absolvição feitos pelo MP) são produtos de um ato de vontade (de poder) nos con- ~1~E ~I STO - DECIDO CONFORME HA CONSCl~NCIA? 39 duz inexoravelmente a um fatalismo. Ou seja, tudo depende(ria) da vontade pessoal (se o juiz quer fazer, faz; se não quer, não faz ... !). Logo, a própria democracia não depende( ria) de nada para além do que alguém quer ... ! Fujamos disso! Aliás, a her- menêutica surgiu exatamente para superar o assujeitamento que o sujeito faz do objeto (aliás, isso é o que é a.filosofia da cons- czencia .... . • A ' ') Além do paradigma epistemológico da filosofia da cons- ciência, é possível também perceber, nos diversos autores refe- ridos, a substituição de um vetor de racionalidade estruturante (pré-compreensão) por uma racionalidade meramente instrumen- tal, lógico-argumentativa. Com efeito, é preciso reconhecer, junto com Stein, que só fazemos filosofia no estrito sentido da palavra - inclusive filosofia no direito - se essa filosofia é uma filosofia de standard de racionalidade. Isso quer dizer que, para que o filo- sofar tenha resultados profícuos, é necessário que o filósofo (ou jusfilósofo) saiba se movimentar no interior de um paradigma filosófico ou de algo que, com Lorenz Puntel, podemos chamar de quadro referencial teórico. É a partir desse quadro referencial teórico que o trabalho filosófico irá articular suas construções no que tange a uma teoria da verdade, uma teoria da realidade, uma linguagem e uma ideia de método.51 Na matriz teórica aqui defendida, fica claro que há paradig- mas distintos sendo trabalhados. Nesse contexto, exsurge uma questão que não pode ser ignorada, ou seja, a de que a dogmática jurídica52 permanece aferrada a um paradigma estruturado, de se- gundo nível, que se assemelha, muito grosseiramente, aquilo que foi produzido pela filosofia analítica e suas adjacências. Não é, pois, um vetor de racionalidade estruturante, de primeiro nível, como é o caso da filosofia hermenêutica ou da hermenêutica fi- losófica. Explicando melhor: para as teorias analíticas, o problema da linguagem começa e termina na tarefa de crítica dos conceitos. Ou 51 Nesse sentido, ver Stein, Ernildo. Filosofia e Hermenêutica Jurídica. Os standards de racionalidade. ln: - - . Exercfcios de Fe11ome11ologia. Limites de um paradigma. Ijuf: Editora Unijuí, 2004, p. 150-170. 52 Entendo a dogmática jurídica - nos moldes em que é dominante em terrae brasilis - como um conjunto de discursos prévios de fundamentação que dispensam o mundo prá· tico, buscando dar todas as respostas antes das perguntas. 40 COLEÇÃO O Q!,IE ~ISTO?- 1 Le11io Luiz Streclc seja, o problema da linguagem se resolve a partir de uma "clarifi- cação" ou de uma melhor colocação do conceito. Antes do concei- to não há nada (e por isso é que a dogmática jurídica trabalha com "conceitos sem coisas"). Daí que é muito difícil, no interior de uma filosofia analítica, filosofar com a história da filosofia. Para a hermenêutica, todavia, a história da filosofia é condição de pos- sibilidade do filosofar e a representação sintático-semântica dos conceitos é apenas a superfície de algo muito mais profundo. Vale dizer: aquilo que é dito (mostrado) na linguagem 16- gico-conceitual que aparece no discurso apofântico, é apenas a superfície de algo que já foi compreendido num nível de pro- fundidade que é hermenêutico. Daí que, para a hermenêutica, é comum a afirmação de que o dito sempre carrega consigo o não dito, sendo que a tarefa do hermeneuta é dar conta, não daquilo que já foi mostrado pelo discurso (logos) apofântico, mas sim daquilo que permanece retido - como possibilídade - no discurso (logos) hermenêutico. Portanto, para a hermenêutica,
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