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Liberdade e Psicanálise na Filosofia de Erich Fromm ARTIGO

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FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 811-830, set./out. 2008. 811
Resumo: o artigo apresenta uma análise, segundo o pensamento
de Erich Fromm, da patologia da alienação psíquica inconsciente da
sociedade industrial, que se caracteriza pelo comportamento social
consumista e pelo sistema patriarcalista autoritário. Identificado o pro-
blema, busca examinar sua visão humanista da liberdade social, que
pretende ser uma necessidade ética urgente ante as determinações
socioeconômicas.
Palavras-chave: alienação psíquica, consumismo, psicanálise,
liberdade
RAÍZES INCONSCIENTES DO COMPORTAMENTO SOCIAL
Do Sentimento de Impotência
Quando Fromm se pergunta sobre a qualidade de vida na sociedadecapitalista de seus dias, ele se baseia fundamentalmente no modelo
socioeconômico de produção e consumo industriais existentes até a déca-
da de 1970. Em sua visão, Ocidente e Oriente têm, grosso modo, uma
mesma necessidade de consumismo crescente, própria do século XX. Fru-
to do sistema industrial, o endereço do consumidor contemporâneo não
se restringe a uma estrutura política selecionada, pois “os russos estão tão
ansiosos por criar o ‘Homo Consumens’ como nós, só que estão um pou-
co atrasados” (DOBRENKÓV, 1978, p. 129-30)1. Segundo ele, a propó-
sito, a União Soviética pode ser chamada de capitalismo estatal (FROMM,
1964, p. 76).
LIBERDADE E PSICANÁLISE
NA FILOSOFIA SOCIAL
DE ERICH FROMM
Will Goya
FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 18, n. 9/10, p. 811-830, set./out. 2008.812
Do ponto de vista psicopatológico, segundo Fromm, o centro
gravitacional da cultura capitalista é o consumismo passivo. O consumo,
no entanto, é próprio da vida, do crescimento biológico e das relações
humanas; afinal, precisa-se comer, vestir, trocar valores de uso econômico
etc. Todavia, há uma espécie compulsiva de consumo que unicamente visa
aliviar a ansiedade, a insegurança, ou mesmo o desespero, subjacentes à nossa
época. Ironicamente, constata ele que o homem contemporâneo, com seu
avançado conhecimento intelectual, desconhece-se enquanto totalidade
espiritual, não sabe bem o que deseja e, por isso, não consegue satisfazer-se
plenamente, sentindo-se vazio de realizações:
Uma pessoa deprimida sente como que um vazio em suas entranhas,
sente como se estivesse paralisada, como se lhe faltasse o que é pre-
ciso para agir como se não pudesse mover-se adequadamente por falta
de algo que poderia pô-la em movimento. Se consome alguma coisa,
a sensação de vazio, paralisia e debilidade pode abandoná-la tempo-
rariamente e, nesse meio tempo, será capaz de sentir: afinal de con-
tas, sou alguém; tenho algo dentro de mim; não sou uma coisa vazia.
Enche-se de coisas para expulsar seu vazio interior. É uma persona-
lidade passiva que pressente ser pouca coisa e reprime essas suspeitas,
tornando-se HOMO CONSUMENS (FROM, 1986a, p. 15-6).
Esse sistema econômico baseia-se na máxima produção e no máxi-
mo consumo. Os veículos de comunicação de massa dedicam-se incansa-
velmente à produção de necessidades falsas ou artificiais que a indústria logo
procura saciar, inclusive para manter-se atuante e competitiva no mercado.
Mesmo a geração mais jovem dos anos 1960, segundo Fromm (1986a, p.
41-2)2, apesar de rejeitar a ordem patriarcal e a sociedade de consumo, in-
clina-se igualmente às influências do sistema por meio de uma nova orien-
tação consumista, tragando sexo, rock e drogas. Numa sociedade ávida por
consumo, o sexo tornar-se-ia fatalmente um grande objeto consumível; de
maneira que, para ele, não se pode atribuir a Freud a raiz da chamada “Re-
volução Sexual” – ainda que este tenha descoberto a existência de desejos
inconscientes e então tenha inaugurado um novo sentido de honestidade
social, eliminando o valor aparente das juras de boas intenções e, com isso,
aliviando a sobrecarga de sentimentos de culpa de uma sociedade moralis-
ta. Carecendo de reconforto emocional, torna-se fácil substituí-lo pela in-
timidade física. Vazio de amor, o homem moderno não mais consegue
oferecê-lo e, impotente desse valor tão profundamente humano, resta-lhe o
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desejo de sacrificar-se à vontade social, por qualquer preço, apenas para ser
amado. É como um vício, quanto mais nele se satisfaz, maior a necessidade
de satisfazer-se. Fromm (1983, p. 31) chama isso de “narcótico cultural”.
Eis a modernidade do nosso século: pela primeira vez na história, a
necessidade de prazer, de comer e beber fartamente, de conforto e satisfação
estética (como o desejo de só viver em casas bonitas) não surge do íntimo das
pessoas, mas, antes, é motivada e cultivada a partir do seu exterior, das exigên-
cias econômicas e sociais do industrialismo. O indivíduo comum vive como
uma criança lactante no seio das determinações sociais, fixado no consu-
mismo e incapacitado de assumir sua verdadeira força produtiva, constituída
de razão e amor.
Divertir-se consiste principalmente na satisfação de consumir e ’tomar’
mercadorias, paisagens, alimentos, bebidas, cigarros, pessoas, conferên-
cias, livros, filmes, tudo é consumido, engolido. O mundo é um grande
objeto para o nosso apetite: uma grande maçã, uma grande garrafa, um
grande seio... Como poderemos deixar de ser desiludidos se o nosso
nascimento se detém no seio materno, se não somos nunca desmama-
dos, se continuamos sendo bebês crescidos...? (FROMM, 1983, p. 166).
De igual maneira, a nossa era reduziu excessivamente a capacidade de
autoreconhecimento do sofrimento psíquico. Para Fromm (1986b, p. 1988),
as pessoas hoje não sofrem menos do que sempre sofreram ao longo da his-
tória, mas, com a generalizada inconsciência das próprias dores, o homem
hodierno inibiu em si mesmo a liberdade de se autodesenvolver; ao perder a
capacidade de sofrer, perdeu também a capacidade de transformar-se. Devi-
do à alienação de si mesmas, as pessoas já não possuem plena consciência de
seu sofrimento, aceitando-o como um fato normal e indiferente no mundo
em que vivem; e só deixam de recusá-lo quando ele aumenta além de sua
intensidade habitual. E como as pessoas não se dão conta do quanto o sofri-
mento é generalizado, também não se apercebem do valor da solidariedade.
Segundo Fromm, na medida em que as pessoas não estejam emotiva-
mente inválidas, a produtividade é uma tendência espontânea; a orientação
improdutiva nada mais é que a expressão do caráter neurótico. O autor
identifica, em analogia com a psicanálise de Freud, a improdutividade como
sendo a fixação no desenvolvimento das fases pré-genitais, própria das ati-
tudes dependente, cúpida e avarenta. Conclui, assim, que virtude e saúde
mental são uma só coisa (FROMM, 1970) ou que a falta de amor para com
o semelhante redunda em doença psíquica.
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“Não deixa de ser curioso que tantos homens acreditem que viver
bem não dá o menor trabalho”, diz o filósofo e psicanalista numa entrevista
ao jornal francês Le Monde (FROMM, 1989, p. 42), meses antes de seu
falecimento em 1980. Frente ao moderno conceito norte-americano de
progresso ilimitado, de que o aumento de consumo torna o homem mais
feliz, de que o verdadeiro objetivo da vida é ter e não ser, de que o uso da
razão exclui a afetividade etc., justifica-se a necessidade de duvidar radical
e racionalmente de tudo isso. Na obra Ter ou ser?, Fromm observa que, ao
lado das contradições econômico-burguesas, quando ele se vale da análise
marxista, é evidente o fracasso das duas mais importantes premissas psico-
lógicas do industrialismo: o princípio do hedonismo radical, de que todo
desejo deve ser satisfeito imediatamente e ao máximo; e o de que a cobiça
e o egoísmo são forças motrizes da evolução humana e suscitam o cresci-
mento econômico através da competitividade.
É bom ressaltar que sua análise sobre as sutilezas psicológicas da
compulsão neurótica ao consumismo não está desvinculada da problemá-
tica das desigualdades econômicas entre as sociedades de classes.Portanto,
quando ele se refere ao Homo consumens, isso...
[...] não tem validade alguma para as pessoas que vivem na pobreza,
embora possam estar fascinadas pela idéia de que aqueles que desfru-
tam de todo o luxo levam uma vida paradisíaca. Os pobres são apenas
figurantes que ajudam a encher as amplas telas que os ricos se divertem
olhando. O mesmo se pode dizer a respeito das minorias; nos Estados
Unidos, isso é especialmente verdadeiro para os não-brancos. Mas acima
e além disso, é verdadeiro no mundo todo. É verdadeiro para aqueles
dois terços de toda a humanidade que nunca se beneficiaram da ordem
social autoritária, patriarcal (FROMM, 1986a, p. 34)3.
Os países mais pobres apresentam os mais baixos índices de suicídio,
e a crescente prosperidade material da Europa foi acompanhada por
um número crescente de suicídios (FROMM, 1986a, p. 21).
Falsamente notória, a questão de consumo para a passividade cole-
tiva do nosso meio capitalista ainda é formulada geralmente como um mero
problema financeiro, o de não termos dinheiro suficiente para acompanhar
o curso acelerado de produção cultural, o ritmo da moda. Daí o valor pes-
soal de alguém ser medido socialmente pelo quanto ele possui e não pelo
que simplesmente é. A angústia do sentimento existencial de pobreza gera
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no homem a inveja, a cobiça, uma auto-imagem de inferioridade e, final-
mente, no âmago de si mesmo, a característica moral básica do eu psicoló-
gico contemporâneo: a insuportável sensação de impotência (FROMM,
1986a).
Do Patriarcalismo
Influenciado pela antropologia de Bachofen4 e de Morgan, Fromm
entende que as sociedades têm sido organizadas em dois princípios estruturais:
um patriarcalista e uma base maternocrática. No princípio maternal,
diametralmente oposto ao primeiro, a mãe é a chefe e o esteio da casa. Ela não
é temida, antes é a figura mais amada e respeitada da família. Seu amor é distri-
buído igualmente aos filhos. Como estes dependem biologicamente do seu afeto
e alimento, ela provê incondicionalmente a cada um, sem preferências.
A mãe ama todos os seus filhos igualmente. São todos eles, sem ex-
ceção, fruto de seu ventre e todos necessitam de seus cuidados. Se as
mães cuidassem apenas daqueles bebês seus que lhes agradam e lhes
obedecem, então a maioria das crianças morreria. Como se sabe, uma
criança pequena dificilmente faz o que sua mãe gostaria que ela fizes-
se. Se as mães fossem guiadas pelo amor paterno, isso seria o fim
biológico, fisiológico, da raça humana. Uma mãe ama seu filho porque
é seu filho e é por isso que não se desenvolvem hierarquias em soci-
edades matriarcais. Existe, pelo contrário, o mesmo amor acessível a
todos os que necessitam de cuidados e afeição (FROMM, 1986a, p.
30).
Por outro lado, a estrutura cultural patriarcalista é a sociedade do ter,
do conquistar e dominar, vigorando há cerca de quatro mil anos no Oci-
dente. No estatuto do direito patriarcal primitivo, tudo era propriedade
absoluta da figura do pai: a mulher e filhos, a terra, os escravos etc. A do-
minação da mulher pelo homem através da força física foi a primeira forma
de exploração do semelhante. Com a vitória institucional dos homens, os
valores de poder e de destruição tornaram-se a base gerenciadora do com-
portamento social, sendo então a mulher sua principal vítima. Essa socie-
dade perpetuou-se através da família, elegendo um filho sucessor, quase
sempre o primogênito, para que ele assimilasse as expectativas paternas e
cumprisse suas determinações em busca de seu amor e proteção. Enquanto na
sociedade patriarcal os princípios que agrupam as pessoas são a lei e o Estado
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(patrimônio), numa sociedade matriarcalista são os vínculos naturais de afeto
que as fazem reunir-se (matrimônio).
Sob o alicerce patriarcal ergueu-se a civilização autoritária típica do
hemisfério leste. A premissa histórica de obediência incondicional à reli-
gião deste lado do mundo, velha como o Antigo Testamento, é resultado da
interiorização de ordens e proibições paternas5; o que tornou a sujeição ao
poder imaginário de Deus um valor emotivo com sentido de legitimidade.
A noção freudiana de superego na sociedade patriarcal, segundo Fromm, é
inteiramente correta, apenas equivocando-se por não considerar essa espé-
cie de consciência num contexto social localizado e particular, e sim como
se fosse uma consciência per se.
Fromm dá exemplos, ao longo de sua obra, de alguns contextos so-
ciais religiosos onde se encontram consciências verdadeiramente não-au-
toritárias6. Num deles, em Ter ou ser? (FROMM, 1987), ele cita um
período passado (sem apontar datas) da Igreja Romana. Segundo o autor,
ao lado do elemento paterno de domínio político – através da força –,
somava-se o culto à Virgem Maria e o cristianismo maternal do clero e do
Papa, representando o amor e perdão universais. No processo econômico
de produção, o trabalho rural era fundamentado numa harmonia român-
tica com a terra e a Natureza. A exploração patriarcalista de submissão da
Natureza só surgiu quando a Igreja começou a minguar a solidariedade
universal e voltar-se para os valores seculares. Com o abalo dos princípios
maternais em que as pessoas se alimentavam até então, o protestantismo
logo afirmou o poder histórico da autoridade masculina, fazendo do tra-
balho, no tocante à agricultura, e do lucro, as únicas formas de se con-
quistar a aprovação amorosa da família e da sociedade. Através do
desinteresse na produção de bens de uso comunitário e da acumulação de
capital – ou industrialização –, a religião tornou-se incompatível com o
cristianismo autêntico.
Porque só as tecnologias modernas dão ao homem industrial a sen-
sação de pleno controle do meio-ambiente, não se pode concluir que a idéia
patriarcal de controle da Natureza é um valor absolutamente moderno.
É claro que a sociedade agrária pré-industrialista também controlava o plan-
tio; porém, era mediante um sentimento de gratidão filial com a mãe-Na-
tureza que a todos provê gentilmente. Ao contrário, a modernidade se
identifica meramente de forma intelectual com o poder manipulador da
tecnologia. Para Fromm (1986b, p. 144), a tecnologia, que “usa a capaci-
dade de pensar do homem para produzir coisas”, é, a bem dizer, “o substi-
tuto masculino do ventre feminino”.
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A título de conhecimento doutra tradição religiosa, como premissa
de recusa à universalidade do conceito freudiano de superego, Fromm
(1986a) afirma, em Afluência e Tédio em Nossa Sociedade, que o budismo
também nunca assimilou a figura autoritária. Isso naturalmente deve ser
compreendido, como ele o faz, a partir da leitura de Suzuki (FROMM,
1986a)7.
Os dois princípios, matriarcal e patriarcal, embora sejam fortes
determinantes sociológicos, são antes uma contradição inerente à existên-
cia humana; correspondem a uma polaridade básica de nossa natureza, e o
“lado produtivo de seus dois termos deve ser aceito” (FROMM, 1983, p.
59). Os dois pólos, uma vez integrados, atingem uma unidade dinâmica e
se harmonizam numa complementaridade circular e totalizante. Com isso,
Fromm pretende dizer que no processo da individuação há uma necessida-
de ética, em cada homem e em cada mulher, de desenvolvimento e integração
de duas virtudes indispensáveis à perfeição moral: a compaixão e a justiça.
A compaixão exprime uma qualidade materno-feminina, enquanto a justi-
ça revela paternidade e masculinidade – uma espécie de amor que nasce da
exigência condicional da ação correta e merecedora. Esta síntese, contudo,
jamais poderá ser obtida numa sociedade patriarcal.
O mais profundo anseio dos seres humanos parece ser uma conste-
lação em que os dois pólos (masculinidade e feminilidade, macho e
fêmea, misericórdia e justiça, sentimento e pensamento, natureza e
intelecto) estão unidos numa síntese, em que ambos os aspectos dapolaridade perdem seu antagonismo e, em vez disso, dão os matizes
reciprocamente (FROMM, 1987, p. 145-6).
Mas, segundo Bachofen, a sociedade matriarcalista também possui
características negativas para o crescimento humano, na medida em que ela
só afirma a face sensível, afetiva, fraterna e comunitária do ser, esquecendo-
se do lado masculino, eminentemente racional e individualista, também
necessário à maturidade dos homens. Caso não se somem os lados positivos
de ambos os princípios – o amor e a razão –, e prevaleça na sociedade so-
mente a pura estrutura matriarcal, isso será tão maléfico ao homem quanto
tem sido a atual dominação do patriarcalismo no Ocidente. É o que se pode
deduzir das palavras de Fromm (1983, p. 56):
O aspecto negativo da estrutura matriarcal também foi claramente
visto por Bachofen: por estar atado à Natureza, ao sangue e ao solo,
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o homem é impedido de desenvolver a sua individualidade e a sua
razão. Permanece uma criança e incapaz de progredir [...]. A escola
marxista abraçou com grande entusiasmo as teorias de Bachofen
devido ao elemento de igualdade e liberdade à estrutura matriarcal
(cf. Friedrich Engels, A Origem da Família, da Propriedade Privada
e do Estado). Depois de muitos anos de não se haver prestado muita
atenção às teorias de Bachofen, os filósofos nazistas adotaram-nas,
demonstrando igual entusiasmo, porém por razões opostas: atraía-
os a irracionalidade dos vínculos do sangue e do solo, que é o outro
aspecto da estrutura material [sic., isto é, maternal], tal como a ex-
pressou Bachofen.
No ano de 1932, Fromm escreve ao público alemão uma resenha de
Briffault, onde ressalta a idéia de que o altruísmo nasce, em princípio, do
amor maternal, ao longo da gestação e do cuidado pós-natal; também que
a polaridade masculino/feminino não é devida a diferenças sexuais biológi-
cas, mas, em grande parte, a determinações da cultura (FROMM, 1974).
Dessa forma, há razões filogenéticas que justificam o porquê da existência
espontânea de uma capacidade especial de amar que as mães possuem.
Capacidade esta que é “instintivamente” diferenciada do sentimento pater-
no, devido à própria natureza animal específica da mulher; o que não im-
pede o homem de desenvolver um amor maternal. É preciso dizer que o
amor paterno é aqui referido pelo autor não como sendo do Pai X ou do Pai
Y, mas no sentido de um “tipo ideal”, usado por Weber (FROMM, 1986a).
Contudo, para E. Fromm, a hegemonia ocidental do típico amor masculi-
no, de controle e compensação, sobre ambos os sexos, é resultado de toda
uma determinação do império da cultura patriarcal.
Palestrando numa rádio suíça sobre a crise da ordem patriarcal,
Fromm se remete à literatura grega para exemplificar o conflito entre a
mensagem autoritária e o humanismo. Trata-se da Antígona, de Sófocles,
que representaria o embate entre o patriarcalismo de Creonte, para quem a
lei do Estado é soberana e que só acredita no poder, e o princípio matriarcal
de Antígona, que segue a mais alta de todas as leis, o espírito da compaixão,
dos laços de sangue e da humanidade. A peça mostra a grande derrota de
Creonte que, traduzindo-se em fundamentos psicológicos da política con-
temporânea, seria – como Fromm (1986a, p. 30) o disse na ocasião – “um
típico líder fascista”.
Quando ele se remete à análise de sua própria época, percebe que a
sociedade ocidental realizou a quase total extinção do amor materno; que
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a estrutura capitalista dominante mantém seus postulados patriarcais, a saber:
a) o controle da Natureza; b) o uso da força na exploração dos seres huma-
nos; e c) o utilitarismo econômico da finalidade essencial de lucro. Em
conseqüência, declinam-se as características psicológicas do homem mo-
derno nesta sociedade: sem compaixão, solitário, fragmentado e, por isso,
violento. É essa situação de crise que o leva a buscar alguma política alter-
nativa de não-violência como resposta à crise do seu tempo.
A EVOLUÇÃO DO SEU PENSAMENTO POLÍTICO
Mudanças de Opinião sobre o Conceito de Liberdade
Para se evitar um risco de superficialidade na leitura, é mister escla-
recer como se situa na obra de Fromm a clássica interrogativa: o indivíduo
é determinado pelo meio ou, antes, é ele quem o faz? Pode-se dizer que há
duas fases no pensamento do autor, não separadas radicalmente, mas bem
distintas, quando se considera o peso de sua reflexão sobre o ponto de vista
político da liberdade.
O Caráter Social como Determinismo Rigoroso
Em seus escritos iniciais, na língua alemã materna, Fromm ainda
não concebe definições originalmente suas em relação às necessidades essen-
ciais e ao processo social oriundos da condição humana. Basicamente, seu
esforço concentra-se nas repercussões sociológicas do freudismo. Sua psico-
logia social analítica é exposta como uma ciência natural, materialista, que
busca compreender o comportamento irracional como uma conduta
motivada inconscientemente pela influência da infra-estrutura socioeco-
ômica sobre os impulsos psíquicos elementares. Nesta fase, localizada entre
as décadas de 1920 e 1930, Fromm é, conforme diz Rouanet (1989, p. 70)8,
um teórico estreitamente freudo-marxista.
Foi através de sua obra que, pela primeira vez, se fundiu de maneira
concreta o pensamento de Marx e Freud; e isso se deu em 1930, em o Dogma
de Cristo. Quem o afirma, com razão, é Franz Borkenau (apud JAY, 1974),
erudito do partido comunista que freqüentou o ambiente do Instituto de
Frankfurt e escreveu uma resenha do mesmo texto no lançamento da revista
Zeitschrift für Sozialforschung, de publicações desta Escola. Trata-se ali do
uso da psicanálise aplicado aos fenômenos históricos, compreendendo as
idéias e ideologias individuais como um resultado de necessidades psíqui-
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cas básicas submetidas a condições sociais e econômicas específicas. No
entendimento de Martin Jay, Fromm então afirmara em termos psicológi-
cos o que Horkheimer e Marcuse, depois de sua ruptura com Heidegger,
diziam sobre a noção abstrata de historicidade.
Antes, porém, de abordar o referido artigo e outros congêneres da
época, é importante recordar, com o Prof. Sérgio P. Rouanet, qual era o
estatuto político que norteava as primeiras preocupações naquele tempo dos
freudo-marxistas do Institut für Sozialforschung, de 1923 a 1933, e dos
frankfurteanos do Instituto Psicanalítico, fundado por Horkheimer em 1929,
uma vez que Fromm esteve vinculado a ambos. Segundo Rouanet, naquele
tempo a classe operária não era totalmente absorvida pelo sistema capitalis-
ta, devido a uma forte depressão econômica. Ademais, a ortodoxia então
reinante do marxismo ainda acreditava ser o proletariado, e não outros
agentes históricos, a grande alavanca da revolução social. É deste contexto
que nasce a pergunta mor: “como é possível que a classe operária pense e aja
contra os seus próprios interesses?” (ROUANET, 1989, p. 70)9.
Precisamente na mesma data Reich e Fromm deram suas maiores
contribuições à aliança entre os pensamentos de Freud e Marx. Fromm
demonstrou um forte interesse de criar regras básicas para uma psicologia
social. Nisto criticou seriamente a idéia de que a psicologia era aplicada só
ao indivíduo em particular. Neste sentido é que Fromm chamou a atenção
para a primeira obra de Reich (1971).
Em O dogma de Cristo, o conteúdo da ideologia é dado numa con-
dição política localizada, onde a base social do cristianismo primitivo era
formada pelo proletariado e pelos pequenos burgueses. Entretanto, sua forma
é proporcionada pelo conflito edipiano: a estrutura pulsional, intrapsi-
quicamente, enfatiza o elemento revolucionário do ódio contra o pai na
exaltação inconsciente do parricídio. A partir do ponto de vista ideológico
da Igreja, Cristo, em seus sofrimentos humanos, é transfigurado para os
proletários, afligidos por injustiças, comosendo ele a imagem substitutiva
do filho que todos são. Isto é, a pobreza econômica das classes oprimidas
encontra uma gratificação substitutiva na identificação psicológica com o
filho e com o desejo de morte do pai, propiciando, assim, uma imaginária
revolução social. A crucificação de Cristo no passado suprime, inconscien-
temente no presente, a tensão edipiana entre o filho e o pai, entre o prole-
tário e as classes dominantes. Mediante a superioridade absoluta do pai
original, sob a força atuante do cristianismo dogmático, o filho-proletário
internaliza a revolta política num sentimento de culpa coletivo que preser-
va as relações vigentes de poder e impede a renovação do parricídio primi-
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tivo. A mesma estrutura pulsional que antes centrava-se no ódio, agora, num
momento histórico seguinte, modela ideologicamente uma nova dimensão
conservadora e conformista através do amor institucional a Deus.
Assim, nesta obra, cada sociedade contém uma estrutura libidinal
típica determinada pelas condições sócio-econômicas sobre as tendências
pulsionais. As superestruturas ideológicas são estabelecidas por vínculos
afetivos inconscientes de obediência pelas classes inferiores, que por esse
mecanismo aceitam passivamente a opressão restritiva. Rouanet (1989)
assinala que embora Marx e Engels compreendessem a ligação entre ideo-
logia e sua base infra-estrutural, não dispunham de uma psicologia cientí-
fica, que viria a ser a psicanálise, que explicasse a transposição psíquica dos
conteúdos dos meios materiais de produção para os conteúdos e intensida-
de das excitações pulsionais. A correlação direta entre o conceito marxista
de ideologia e o conceito psicanalítico de racionalização veio a ser feita por
Fromm (1971, p. 153-4), no artigo Método e Função de uma Psicologia
Social Analítica, onde ele afirma:
A Psicanálise pode mostrar que as ideologias do homem são produ-
tos de certos desejos, impulsos instintivos, interesses e necessidades,
os quais, em grande medida, inconscientemente, encontram sua
expressão como racionalizações – isto é, como ideologias. A Psicaná-
lise pode mostrar que, embora os impulsos instintivos se desenvol-
vam, de fato, na base de instintos biologicamente determinados, a
sua quantidade e conteúdo são grandemente afetados pela situação
ou classe sócio-econômica do indivíduo. Marx diz que os homens são
os produtos de suas próprias ideologias; a psicologia social analítica
pode descrever empiricamente o processo de produção de ideologi-
as, da interação dos fatores ’naturais’ e sociais. ‘Portanto, a Psicaná-
lise pode mostrar como a situação econômica é transformada em
ideologia, através dos impulsos do homem’.
A teoria posterior do “caráter social”10 já está pré-formulada nessa
estrutura libidinal típica, que é deduzida da soma de caracteres individuais
de uma sociedade de classes. Teoria esta, aliás, que Fromm originalmente
aplicar à Psicologia Social, propiciando uma sólida crítica à cultura e ao
comportamento contemporâneos. Interessante destacar sua carta a Martin
Jay, em 14 de maio de 1971, onde afirma textualmente que o conceito de
“caráter social” foi, sem dúvida, sua “mais importante contribuição ao campo
da psicologia social” (JAY, 1974, p. 172). Esse caráter se constitui de uma
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base ou norma de socialização que atende interesses da elite dominante e
serve de modelo à feitura de um caráter individual. O tipo de caráter social
é produzido e recompensado individualmente pela comunidade conforme
o que cada época exige. Então a necessidade social é internalizada num
impulso da personalidade, de tal forma que ela se aproximará automatica-
mente mais do comportamento coletivo e sustentará a coesão da estrutura
sócio-econômica geradora dessa mesma necessidade.
Para Fromm, o processo de ideologização é politicamente determi-
nado por vários agentes sociais, como a escola e a comunicação de massa,
entre outros. Porém, em sua visão teórica, nos anos 1920 e 1930, é a família
a mais importante modeladora do caráter social, porque está imbricada em
todos os mecanismos culturais. Desde a primeira infância, o indivíduo é
educado conforme aos valores extrafamiliarmente constituídos e legitima-
dos pela autoridade paterna. Segue-se, então, uma correspondência entre o
medo inconsciente do Pai e a normatividade social. Assim, o medo psicopa-
tológico da cultura patriarcalista, mais o medo consciente e objetivo do
aparelho regulador do Estado (polícia, exército), conjugam-se para formar
um ego enfraquecido e dependente de um poder superior. Decorre que a
família, especialmente a pequeno-burguesa, a classe média, transforma-se
numa “agência psicológica da sociedade” (FROMM, 1971, p. 142), uma
máquina ideológica capaz de produzir em massa a estrutura libidinal pró-
pria das relações de produção capitalista, ou seja: o caráter autoritário.
A base pulsional desse caráter, conceito nevrálgico da teoria da auto-
ridade irracional, é a personalidade sadomasoquista. A submissão incondici-
onal ao Pai evita a punição e garante o seu amor protetor, de tal maneira que
com o tempo diminui-se o conflito edipiano-econômico e também o senti-
mento de culpa pela hostilidade filial. Logo, o sofrimento redentor transforma-
se em causa de prazer. É essa a análise que Fromm faz do nacional-socialismo,
tema central dos freudo-marxistas, capaz de explicar o porquê de tantas pes-
soas aceitarem com tranqüila resignação a opressão sofrida.
Dentro do freudismo clássico, segundo o qual para o “jovem Fromm”
a origem da formação do caráter está na relação com o Pai, Rouanet observa
o quanto ele ainda mantinha-se influenciado pela teoria psicanalítica das
pulsões, porém, já tendia a distanciar-se dela.
Fromm critica Freud, entretanto, por não ter visto que esse processo
[de identificação projetiva da autoridade paterna via superego] serve
à manutenção da sociedade de classe, e constitui, não o pressuposto
da cultura em geral, mas a pré-condição para assegurar o poder da
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maioria sobre a minoria. É por isso que Fromm, aceitando as cate-
gorias freudianas, tenta historicizá-las (ROUANET, 1989, p. 60).
Mas se, por um lado, Freud fora influenciado pela teoria do totemismo
de Sir James Frazer, por outro, Fromm foi beber nos círculos socialistas a teoria
do matriarcalismo, onde se afirmava que a sociedade patriarcal está vinculada
à sociedade de classes. Entre os antropólogos mais ortodoxos, houve Bachofen
(1861), Morgan, Malinowski (1927), o já referido Briffault etc. Mas, sobre-
tudo, a relevância fundamental da teoria matricêntrica dava-se antes por in-
teresse político numa sociedade alternativa que por uma simpática leitura
histórica, visto sua existência real no passado ser de fato algo indemonstrável.
Na verdade, Fromm queria mesmo é negar a universalidade do Complexo de
Édipo, a mescla arbitrária de biologia e psicologia. Para ele, o ódio edipiano
contra o Pai vinha pelo temor do filho de fracassar na sua utilidade econômi-
ca como herdeiro da propriedade. O que tornava este complexo apenas uma
resultante do peso econômico das relações de produção.
Em 1941, seu livro Medo à liberdade merece grande atenção do
público, pois que em plena guerra ele discursa sobre o autoritarismo e toma
como fácil exemplo a Alemanha. Ali acentua o pessimismo de Freud e nega
seu instinto de Tânatos, equiparando-o, no entanto, com a necessidade de
destruição, dizendo que o desejo de destruir é bastante variável em grupos
sociais diferentes e mesmo dentro da própria cultura. Para Fromm (1983),
o instinto de morte ou a necessidade de destruição eram produtos da frus-
tração do instinto de vida. Afastada a dualidade dos instintos de vida e morte,
ele retorna à dicotomia freudiana anterior, aos impulsos eróticos e de con-
servação. Nessa obra, ainda recusa a teoria metapsicológica da libido,de
Freud. A novidade é que com esta também rechaça sua própria interpreta-
ção ‘psicologista’ em O dogma de Cristo, onde pretendera explicar “a for-
mação do cristianismo primitivo como o resultado da ambivalência face à
imagem do pai” (FROMM, 1983, p. 223).
Ao se fazer uma incursão na obra de Fromm sobre a questão da liber-
dade, observa-se que em 1941 tem fim a ênfase no determinismo social
absoluto. Abriu-se espaço para a possibilidade de escolhas reais na socieda-
de, na medida em que o indivíduo adquire um maior grau de conscientização
de sua psique. Pela primeira vez, surge o conceito de “natureza humana”,
mediante a necessidade individual de relacionar-se com o mundo exterior
e assim evitar a solidão intolerável. Mas o quadro geral das necessidades
essenciais do homem só viria a ser plenamente elaborado em Psicanálise da
sociedade contemporânea, em 1955. Dessa forma, ainda não há uma visão
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clara, aos seus olhos, daquela essência humana, definida em si mesma, para
além das variáveis culturais. Schaar (ano, p. 51), numa crítica a Fromm, diz
algo a respeito:
É interessante especular sobre as razões que Fromm teve para modi-
ficar a posição sobre a questão da natureza humana essencial, contra
o determinismo social. Talvez a explicação possa ser explicada em
termos de um crescente otimismo ostensivo, quase fanático, em sua
obra. Em O Medo à Liberdade, Fromm propôs uma tese determinista
pesadamente social, como um antídoto ao pessimismo freudiano. Em
suas obras posteriores, teve de reformular a natureza humana, con-
siderando o otimismo intrínseco a ela, porque a ameaça ao homem
passou a ser não o pessimismo freudiano, mas as sociedades insanas.
O otimismo de Fromm permaneceu aproximadamente o mesmo, mas
os inimigos do otimismo se haviam modificado.
A Liberdade Potencial do ser Humano
No contexto geral de sua obra, vê-se que Fromm é um pensador essen-
cialmente moral, e que o problema da liberdade é intrínseco ao discurso
ético. Mas, se em princípio ele afirma um pesado determinismo sociológi-
co, já no final da década de 1940, em Análise do homem (1947), pode-se
observar uma nova perspectiva em seus livros. Há uma primeira argumen-
tação geral sobre a natureza humana que se normatiza socialmente a partir
das condições existenciais do homem, impostas pela situação histórico-
biológica do nascimento da civilização e, similarmente, do indivíduo. Ins-
pirado por Spinosa e Dewey, Fromm então acrescenta à sua psicologia social
um completo sistema ético universal baseado nas condições existenciais do
homem. Conforme sua opinião, “é impossível compreender o homem e os
seus distúrbios mentais sem compreender a natureza dos conflitos morais
e de valores” (FROMM, 1970, p. 16).
Se antes o conceito de liberdade dependia exclusivamente do meio
socioeconômico, das relações exteriores à individualidade, depois, com a
Análise do homem e, mais ainda, com Psicanálise da sociedade contempo-
rânea, este conceito tornou-se também uma característica da “essência”
homem, que existe independentemente da cultura. É o que afirma o autor:
ao dizer que a estrutura sócio-econômica da sociedade molda o ca-
ráter do homem, refiro-me apenas a um dos pólos da interconexão
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entre a organização social e o homem. O outro pólo a ser levado em
conta é a natureza humana, que por sua vez molda as condições so-
ciais em que o homem vive. Só entenderemos o processo social se
partirmos do conhecimento da realidade do homem tanto de suas
propriedades psíquicas como fisiológicas, e se estudarmos a interação
entre a natureza do homem e a natureza das condições externas sob
as quais ele vive e que terá de dominar para que possa sobreviver
(FROMM, 1983, p. 88-9).
O conceito de essência humana – pode-se dizer que é a medula de
seu pensamento – não pode ser confundido com substância metafísica a
priori. Isto, para ele, seria o equívoco de uma universalidade abstrata em
que o indivíduo está exaurido da sua historicidade. O conhecimento dessa
natureza humana, ou seja, da psique, deve basear-se unicamente na análise
existencial das necessidades básicas do homem resultantes da singularidade
e contradições da situação humana. A essência psíquica do homem resulta
de dicotomias existenciais que nascem da debilidade biológica da espécie
humana, seja na criança seja no imaginário do início da civilização, e que
motivam os indivíduos e povos a desenvolverem suas potencialidades in-
trínsecas. Noutras palavras, poderia-se dizer que o que faz humano o ani-
mal é racionalidade e amorosidade próprias. Assim, por um “capricho do
universo” (FROMM, 1983, p. 36), pessoas ou povos são impulsionados
por força da sua natureza, isto é biopsiquicamente, a cumprirem sua huma-
nidade em latência. Conseguindo, serão plenamente humanos. Caso con-
trário, des-humanos e, por isso mesmo, existencialmente infelizes, imorais
e neuróticos.
Assim, o ponto principal do conceito de liberdade em Fromm mora
na busca da realização existencial do homem, considerando as característi-
cas antropológicas de sua natureza biológica e psíquica, não se limitando
à questão de saber se o homem é ou não determinado pelo meio. É dessa forma
que a liberdade deve ser alcançada: mediante o sentido da evolução humana
através da superação de barreiras, internas ou externas, que impedem o
desenvolvimento espontâneo de cada indivíduo. Nesse processo evolutivo
há dois tipos de liberdade: ela pode se definir negativamente em relação a
alguma coisa ou pessoa – definindo-se como “liberdade de”, isto é, uma
independência em relação às várias autoridades paternas e às sociais. Nesse
sentido, em relação ao indivíduo, a liberdade é “a aptidão de preservar sua
integridade pessoal em face ao poder, é a condição básica da moralidade”
(FROMM, 1970, p. 209). Mas a liberdade também se afirma positivamen-
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te, como realização da individualidade no sentido de uma “liberdade para”
o exercício da razão e do amor. Esta liberdade não se refere somente à eman-
cipação da coação, em relação à desobediência, mas à capacidade latente do
homem em ser autêntico, cheio de vida e alegria. O primeiro tipo de liber-
dade não é condição suficiente para a total realização humana; por outro
lado, é somente sob a ótica dessa “liberdade para” que pode o homem con-
cretizar a plena liberdade ético-humanista, seja ela ao nível do indivíduo ou
da política. Para Fromm, este segundo tipo de liberdade é condição neces-
sária à felicidade, assim como à virtude.
Em O coração do homem (1964), ele afirma que, ao se falar da li-
berdade, costuma-se fazê-lo de maneira abstrata e teórica, deixando a
questão prática de fato insolúvel. Para o autor, ainda que se reflita sobre
as idéias relativas à liberdade, isso nada vale se o problema não é
experienciado ao nível dos sentimentos e transformado em realidade por
meio de atitudes concretas. Como simples e válida ilustração, o autor traz
à luz o velho dilema de ser livre ou não para escolher entre fumar ou deixar
de fumar. Imaginariamente, Fromm supõe um inveterado fumante que se
informou sobre os riscos para a saúde que existem no fumo e concluiu
querer parar de fumar. Porém, esta aparente decisão não é mais que a
formulação de uma esperança, visto que nada o impede de mais tarde
continuar no vício. No fundo, uma decisão verdadeiramente consciente
exige um ato concreto, específico e singular. Logo, no exemplo citado,
para ser honesto com o problema, seria preciso tornar real a escolha: di-
ante de um único cigarro, decidir se deve ou não fumá-lo; e, novamente,
mais tarde, teria de se perguntar acerca de um outro cigarro. É dessa maneira
que, para Fromm, a questão da liberdade da consciência só é remetida ao
instante real do presente.
É importante entender que não há verdadeira liberdade ética de es-
colha entre duas alternativas boas. A preocupaçãode fato entre o
determinismo e o indeterminismo deve-se unicamente à liberdade para
escolher o melhor contra o pior...
e melhor ou pior sempre interpretados com referência à questão moral
básica da vida – a que existe entre progredir e regredir, entre amor e
ódio, entre independência e dependência. A liberdade nada mais é do
que a capacidade para seguir a voz da razão, da saúde, do bem-estar,
da consciência, contra as vozes das paixões irracionais [...]. O que estou
procurando destacar é que a liberdade para seguir as ordens da razão
é um problema psicológico... (FROMM, 1981, p. 146).
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Merece relevância o valor ético que Fromm confere em sua obra à
idéia de “melhor” ou “ótimo”, tanto para negar o conhecimento puramen-
te racional e ilimitado11, quanto para fugir ao maniqueísmo, à pseudo mútua
exclusão das meras possibilidades entre o sim e o não; entre o bem e o mal
ou o certo e o errado absolutos. Com essa idéia, o conceito de liberdade não
tem em mira o idealismo fantasioso, mas a realidade crítica tal como ora se
nos apresenta, dentro de nossas reais possibilidades. É o reconhecimento,
inclusive, de nossa responsabilidade para com o desenvolvimento da vida.
Eis como ele o diz:
Em cada pessoa há um ponto ótimo daquilo que ela pode se tornar.
Nem tudo é possível, e muitos homens perdem a vida tentando tor-
nar-se o que não podem ser, e negligenciando o que poderiam tor-
nar-se. É uma perda de tempo e um fracasso. Cada um deveria então
começar imaginando quais são seus limites e suas possibilidades
(FROMM, 1989, p. 41-2).
No seu esquema conceptual, a questão do determinismo versus a
liberdade de escolha é indiscutivelmente apresentada dentro do entendi-
mento terapêutico das forças inconscientes e não independentemente de-
las, sejam estas psicoindividuais ou psicossociais. Segundo Fromm, é
imprescindível a um indivíduo, que busca a liberdade máxima como ser
humano, tomar consciência das forças internas e exteriores que atuam so-
bre ele, impedindo-o de ir além. As pessoas iludem-se na crença de que suas
escolhas determinam sua liberdade; contudo, são quase sempre inconscien-
tes da motivação por traz dessas escolhas. À maneira de Freud, Marx e
Spinoza, Fromm também é ao mesmo tempo determinista e indeterminista.
Por outras palavras, eles não negam as poderosas exigências da complexa
influência social, econômica e biológica sobre o indivíduo; porém, acredi-
tam que só poderão mudar o curso dos acontecimentos conscientizando-se
da totalidade do problema.
De fato, Spinoza é citado amiúde como determinista; Freud e Marx
também já o foram. A alegação é até certo ponto verídica; a parte
essencial, todavia, é freqüentemente ignorada, e é a que todos os pensa-
dores disseram: ’Sim, o homem é determinado. Mas a missão da vida
é superar esse determinismo, seja das forças econômicas ou das paixões
irracionais de cada um, e alcançar um máximo de liberdade’ (EVANS,
1967, p. 90).
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Fromm (1970, p. 10), examinando o problema da liberdade, isto é,
o autoritarismo político e moral, chega à conclusão de que este é uma fun-
ção da estrutura psicológica da pessoa, e que “a própria neurose é, em últi-
ma instância, um sintoma da falência moral”. Logo, a fim de que possa ser
melhor avaliada e aquilatada, a personalidade deve-se contextualizar na
análise do caráter social de que faz parte e, por conseguinte, apoiar-se tam-
bém no âmbito da filosofia política. Entretanto, não faltaram críticas à fé
individualista que nosso autor tanto defende. Sob a acusação de alguns
críticos de que se tornara uma “Pollyanna” (JAY, 1974, p. 173-4), fechando
os olhos ao determinismo histórico, ele responde que sempre manteve a
mesma opinião de que a capacidade do homem para a liberdade, para o
amor etc., depende quase totalmente das condições socioeconômicas da-
das, sendo “fenômeno relativamente raro” (FROMM, [19_ _], p. 60), a
chance de encontrar amor em uma sociedade de indiferença e ódio. Nem
por isso, segundo Fromm, se deve perder a fé nas próprias capacidades
benignas. A simples idéia de que, em relação à destrutividade do autorita-
rismo, nada pode ser feito, resulta apenas numa defesa psicológica contra a
exigência interna de uma consciência que se sente culpada.
Certamente, há graves limitações ao desenvolvimento pessoal, deter-
minadas pela estrutura social. Mas os supostos radicais que aconse-
lham que nenhuma transformação é possível ou mesmo desejável,
dentro da sociedade dos nossos dias, valem-se de sua ideologia revo-
lucionária como uma escusa para a sua resistência pessoal às mudan-
ças interiores (FROMM, 1987, p. 579).
Notas
1 Para uma opinião contrária, ver: “Conhecendo a União Soviética apenas da boca de terceiros e extra-
indo seus conceitos sobre ela dos escritos dos ideólogos burgueses que procuram dar informação
antecipadamente deformada sobre o país soviético, Fromm identifica os sistemas sociais do socialismo
e do capitalismo fundamentando-se apenas em que a ambos seria inerente o mesmo método industrial
de produção’, que propicia o desenvolvimento das grandes uniões industriais... Em verdade, Fromm
partilha os pontos de vista de William Rostow e Raymond Aron, criadores e divulgadores da teoria segundo
a qual a sociedade moderna entrou numa fase de desenvolvimento industrial em que não tem qualquer
importância quem seja o dono dos meios de produção, como se dirige a produção”.
2 Cf. também Evans (1967, p. 81-2).
3 “Mas algo posso constatar: no meio de pessoas mais simples encontrei maiores problemas – e mais
felicidade, mais sofrimento – a uma grande satisfação por coisa pequena, mais dificuldades – e mais
alegria pelo encontro, a visita, uma atenção. Talvez os desafios tenham permitido menos que alguém
se envolvesse tão exclusivamente em seus problemas particulares – a necessidade de sobreviver levou
para fora da casa, do subterfúgio, da depressão: Tem algo para eu fazer – vou tentá-lo! Quem sabe,
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se vou conseguir...” (GNISS, p. 100). Para uma leitura do caráter cumulativo em economias
desfavorecidas, ver Fromm (ano).
4 “um autor que, lamentavelmente, já deixou de ser muito conhecido. Foi ele o primeiro pensador a
descobrir a sociedade matriarcal... Com Bachofen estive em minoria, porque os seguidores de Bachofen
são em reduzido número e não posso evitar ser minoritário” (FROMM, 1986b, p.104-6).
5 “Deus é descrito como uma grande autoridade a que devemos todos obedecer” (FROMM, 1986b, p. 31).
6 “A la luz de la temprana religiosidad de Fromm, vale la pena senãlar su discusión del judaísmo en este
contexto. Aunque reconociera en su núcleo al Dios patriarcal, también destacaba en el pensamento
judío elementos tales como la visión de la tierra de la leche y la miel, claramente matriarcales. Los
Hasidim, arguyó (nuevamente como hubiera podido harcelo Buber), eran especialmente matriarcales
en su caráter” (JAY, 1974, p. 167, nota 47).
7 Ver também outras duas obras do mesmo autor: Em nome da vida: um retrato através do diálogo
(FROMM, 1986b) e Zen-Budismo e psicanálise (FROMM, [19_ _]).
8 “... se continua, em tese, fiel a Freud e Marx, privou tanto o freudismo como o marxismo de seu con-
teúdo polêmico. Sua psicanálise é o freudismo menos a teoria das pulsões, e seu marxismo é o
materialismo histórico menos a luta de classes” (ROUANET, 1989, p. 70).
9 Aproximadamente em 1930, na Alemanha, E. Fromm dirigiu uma pesquisa estatística para saber as
possibilidades de Hitler ser derrotado pela população: 10% dos trabalhadores e funcionários seriam
nazistas ardentes, 15% militantes antinazistas e 75% representariam uma mistura desses extremos
(FROMM, 1986. p. 114-5).
10 Esse conceito foi bem desenvolvido no apêndice de Fromm (1983), mantendo-se a idéia de liberda-
de sob forte determinação social. Entretanto, o caráter social foi apresentado pela primeira vezem
Fromm (1931).
11 “O conhecimento científico não é absoluto, mas ’ótimo’; ele encerra o ótimo de verdade atingível em
determinado período histórico...” (FROMM, 1970, p. 202). Cf. também Fromm (1988, p. 51).
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ROUANET, S. P. Teoria crítica e psicanálise, 3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
Abstract: the article introduce an analysis according to thought of Erich
Fromm, about the pathology of the unconscious psychic alienation of the
industrial society that characterizes itself for the consumer social behavior
and for the authoritarian patriarcalista system. Identified the problem he
search to examine his vision humanist of the social freedom, that it intends
to be an urgent ethical necessity for the socio-economic determination.
Key words: psychic alienation, consumer, psychoanalysis and freedom
WILL GOYA
Mestre pela Universidade Federal de Goiás. Filósofo clínico pelo Instituto Packter/POA. E-mail: http:/
/willgoya.com; willgoya@gmail.com

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