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100 anos Psicologia das massas

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Editora CRV
Curitiba – Brasil
2021
Jacqueline de Oliveira Moreira
Ana Carolina Dias Silva
(Organizadoras)
100 ANOS PSICOLOGIA DAS MASSAS: 
atualizações e reflexões
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Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Foto de Capa: Samantha Hurley
Revisão: Os Autores
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506
2021
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
ESTA OBRA TAMBÉM ENCONTRA-SE DISPONÍVEL 
EM FORMATO DIGITAL.
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AN615
100 anos Psicologia das Massas: atualizações e reflexões / Jacqueline de Oliveira Moreira, 
Ana Carolina Dias Silva (organizadoras) – Curitiba : CRV, 2021.
262 p.
Bibliografia 
ISBN Digital 978-65-251-1665-5
ISBN Físico 978-65-251-1664-8
DOI 10.24824/978652511664.8
1. Psicologia 2. Psicanálise 3. Fenômenos de Massa 4. Freud, Sigmund I. Moreira, Jacqueline 
de Oliveira. org. II. Silva, Ana Carolina Dias. org. III Título IV. Série.
CDU 159.964.2 CDD 150.1952
Índice para catálogo sistemático
1. Psicologia – 150.1952
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Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Comitê Científico:
Andrea Vieira Zanella (UFSC)
Christiane Carrijo Eckhardt Mouammar (UNESP)
Edna Lúcia Tinoco Ponciano (UERJ)
Edson Olivari de Castro (UNESP)
Érico Bruno Viana Campos (UNESP)
Fauston Negreiros (UFPI)
Francisco Nilton Gomes Oliveira (UFSM)
Helmuth Krüger (UCP)
Ilana Mountian (Manchester Metropolitan 
University, MMU, Grã-Bretanha)
Jacqueline de Oliveira Moreira (PUC-SP)
João Ricardo Lebert Cozac (PUC-SP)
Marcelo Porto (UEG)
Marcia Alves Tassinari (USU)
Maria Alves de Toledo Bruns (FFCLRP)
Mariana Lopez Teixeira (UFSC)
Monilly Ramos Araujo Melo (UFCG)
Olga Ceciliato Mattioli (ASSIS/UNESP)
Regina Célia Faria Amaro Giora (MACKENZIE)
Virgínia Kastrup (UFRJ)
Conselho Editorial:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro)
Carmen Tereza Velanga (UNIR)
Celso Conti (UFSCar)
Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional 
Três de Febrero – Argentina)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Élsio José Corá (UFFS)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR)
Gloria Fariñas León (Universidade 
de La Havana – Cuba)
Guillermo Arias Beatón (Universidade 
de La Havana – Cuba)
Helmuth Krüger (UCP)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ)
João Adalberto Campato Junior (UNESP)
Josania Portela (UFPI)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO)
Lourdes Helena da Silva (UFV)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ...........................................................................................9
Jacqueline de Oliveira Moreira
Ana Carolina Dias Silva
INTRODUÇÃO
PAIXÃO E POLÍTICA: subsídios para uma discussão crítica ......................... 15
Carlos Roberto Drawin
Jacqueline de Oliveira Moreira
SEÇÃO I
O (IN)ATUAL AUTORITARISMO BRASILEIRO
A PSICOLOGIA DAS MASSAS E O RECRUDESCIMENTO 
AUTORITÁRIO BRASILEIRO: um diálogo em duas cenas .........................49
Angela Bucciano do Rosário
Fuad Kyrillos Neto
Thales Fonseca
O FENÔMENO DO BOLSONARISMO E A NEGAÇÃO DA ALTERIDADE: 
notas sobre psicanálise e política no Brasil contemporâneo ..............................63
Evilene Abreu Silva
Emanuel Ramos Sales
Jerzuí Mendes Tôrres Tomaz
Leônia Cavalcante Teixeira
O MILITARISMO BRASILEIRO COMO DISCURSO 
NÃO ANALISADO E SUA ESTRUTURA DE MASSAS ..............................79
Alberto Antunes Medeiros
Roberto Calazans
SEÇÃO II
DESILUSÃO E DEMOCRACIA: algumas facetas
RECORDAR, REPETIR E... REPETIR: 
as massas e os autoritarismos de ontem e de hoje .....................................101
Domingos Barroso da Costa
NEM HORDA PRIMEVA, NEM ALÉM DO ÉDIPO: 
a “psicologia das massas” como possível solução à 
nossa melancólica pós-modernidade ...........................................................117
Marcelo Ricardo Pereira
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SEÇÃO III
POPULISMO: algumas leituras
O TIPO DE ESCOLHA OBJETAL NARCISISTA E A CONSTITUIÇÃO 
DAS MASSAS DE FREUD: uma releitura a partir de Ernesto Laclau .......... 139
Ana Carolina Dias Silva
AS MASSAS, O POPULISMO E A CORRUPÇÃO 
NO BRASIL: uma leitura psicanalítica .........................................................153
Hélio Cardoso de Miranda Júnior
A PSICOLOGIA DAS MASSAS E AS TÉCNICAS DE CONSTRUÇÃO 
EQUIVALÊNCIA POVO-LÍDER NO POPULISMO DIGITAL ....................165
Henrique de Oliveira Lee
SEÇÃO IV
ERA DIGITAL: duas leituras
A PSICOLOGIA DAS MASSAS FREUDIANA E AS ATUAIS 
MASSAS DIGITAIS: totalitarismo, distopia e sonhos .................................187
Rose Gurski
Cláudia Perrone
A REDE SOCIAL TIKTOK E A MODULAÇÃO DE NOVAS 
FORMAÇÕES GRUPAIS ...........................................................................201
Ana Catharina Paixão Vasconcellos
Jacqueline de Oliveira Moreira
Bianca Ferreira Rodrigues
Juliana Morganti
SEÇÃO V
COLONIALIDADE 
UM OLHAR DA PSICANÁLISE SOBRE A BRANQUITUDE A 
PARTIR DE ‘PSICOLOGIA DAS MASSAS E ANÁLISE DO EU’ .............219
Andréa Máris Campos Guerra
PODEM AS MASSAS PENSAR? FREUD E O 
DESAFIO POLÍTICO DA EMANCIPAÇÃO ...............................................237
Rodrigo Goes e Lima
ÍNDICE REMISSIVO ..................................................................................251
SOBRE OS AUTORES ...............................................................................257
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APRESENTAÇÃO
Ocaso do século
(Wislawa Zsymborska)
Era para ter sido melhor que os outros o nosso século XX.
Agora já não tem mais jeito,
os anos estão contados,
os passos vacilantes,
a respiração curta.
Coisas demais aconteceram,
que não eram para acontecer,
e o que era para ter sido
não foi.
Era para se chegar à primavera
e à felicidade, entre outras coisas.
Era para o medo deixar os vales e as montanhas.
Era para a verdade atingir o objetivo
mais depressa que a mentira.
Era para já não mais ocorrerem
algumas desgraças:
a guerra por exemplo,
e a fome e assim por diante.
Era para ter sido levada sério
a fraqueza dos indefesos,
a confiança e similares.
Quem quis se alegrar com o mundo
depara com uma tarefade execução impossível.
A burrice não é cômica.
A sabedoria não é alegre.
A esperança
já não é aquela bela jovem
et cetera, infelizmente.
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Era para Deus finalmente crer no homem
bom e forte
mas bom e forte
são ainda duas pessoas.
Como viver – me perguntou alguém numa carta,
a quem eu pretendia fazer
a mesma pergunta.
De novo e como sempre,
como se vê acima,
não há perguntas mais urgentes
do que as perguntas ingênuas.
Em 2021, conturbado ano em que o célebre Psicologia das massas e 
análise do eu completa seu centenário, reunimos um grupo de pesquisadoras 
e pesquisadores para colocar em pauta a atualidade desse texto freudiano. Por 
um lado, temos a advertência lacaniana no contexto das dissidências referentes 
às instituições psicanalíticas: “meço o efeito do grupo pelo que ele acrescenta 
de obscenidade imaginária ao efeito do discurso” (LACAN, [1972]/2003, p. 
475). Por outro lado, encontramos releituras da constituição de identidades 
coletivas que recuperam a potencialidade democrática da instituição libidinal 
das massas. Assim, faz-se possível traçar uma espécie de movimento pendular, 
entre a obscenidade e o fascínio que a constituição de grupo pode despertar, 
e a diversidade coletiva que pode ser igualmente despertada. 
Neste volume, tratamos de pensar, na atualidade, a força dos postulados 
freudianos. A questão da constituição social, frente à formação ‘associal’ da 
neurose – para Freud, em Totem e Tabu, os instintos sociais são uma junção 
de elementos egoístas, referentes às exigências de autopreservação, e eróti-
cos, relativos aos impulsos sexuais, ao passo que na formação da neurose, 
as exigências sexuais predominariam – traz uma tensão inerente ao laço 
social. Freud perguntava-se, após a criação de seu mito de explicação da 
origem da sociedade, o que mantinha os seres humanos unidos, indepen-
dentemente das características de tais agrupamentos. E em sua proposição 
de impulsos sexuais de meta inibida na base da constituição grupal, Freud 
optou por despatologizar as massas. Assim, toda inclinação para associa-
ções humanas, seja qual for sua natureza, partilha do mesmo fundamento 
psíquico segundo a concepção da psicanálise freudiana. Na ótica de Freud, 
as forças que nutrem os laços sociais constituídos entre os indivíduos são 
sustentadas pela energia da libido. Foi esse movimento que permitiu que 
ele complexificasse a constituição dos grupos, analisando os mecanismos 
psíquicos de formação do Eu e suas relações com objetos externos, a saber, 
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identificação, enamoramento e hipnose, em detrimento a análises superficiais 
que justificavam o grupo utilizando-se de noções de contágio e sugestiona-
bilidade, mas não eram capazes de explicar tais mecanismos.
Portanto, para Freud, torna-se impossível uma abordagem puramente 
individual do sujeito, uma vez que em sua subjetividade está inscrita a trans-
versalidade de outrem, sendo, por conseguinte, a própria manifestação da 
sociabilidade, a qual ele demonstra em sua obra:
Na vida psíquica do indivíduo, o outro é, via de regra, considerado como 
modelo, como objeto, como auxiliar e como adversário, e por isso a psi-
cologia individual é também, de início, simultaneamente psicologia social, 
nesse sentido ampliado, mas inteiramente legítimo. A relação do indivíduo 
com seus pais e com seus irmãos e irmãs, com seu objeto de amor, com 
seu professor e com seu médico, logo, todas as relações que foram até 
agora objeto privilegiado da investigação psicanalítica, podem reivindicar 
ser consideradas fenômenos sociais [...] (FREUD, [1921]/2020, p. 137).
Freud considera impossível o exercício de uma psicologia pautada estri-
tamente sob uma ótica reducionista da atividade psíquica do ser humano, a 
qual, portanto, se restringiria à abordagem pura do indivíduo e em razão disso 
não se contemplaria a incidência dos fatores sociais sobre sua constituição 
psíquica. Tais fatores são advindos de seus relacionamentos tanto em espectros 
mais abrangentes – constituídos na inserção do indivíduo em associações mais 
extensas da sociedade – quanto nos mais estreitos como demonstrou Freud. 
Mas resta ainda uma questão em relação aos impulsos de satisfação asso-
ciais e a constituição da fratria humana. Uma relevante reflexão empreendida 
por Freud refere-se à possibilidade de um instinto social do ser humano, isto 
é, uma espécie de inclinação inata do homem para a sociabilidade. A posi-
ção teórica tomada por Freud diante de tal premissa é de rechaçá-la. O que 
Freud assevera como uma possibilidade sustentável é que a sociabilidade é 
originária de um ambiente menos abrangente, como a família, e que apresenta 
uma evolução a partir de então. A sociabilidade não constitui, segundo Freud, 
algo pertencente à natureza humana, mas constitui-se como uma manifesta-
ção adquirida na vida do sujeito já em sua relação com as figuras materna e 
paterna. Portanto, convencionada desde os primórdios de sua existência. “[...] 
Nossa expectativa será orientada para duas outras possibilidades: a de que a 
pulsão social não deve ser originária nem indivisível e a de que os inícios de 
sua formação podem ser encontrados em um círculo mais estreito como o da 
família” (FREUD, [1921]/2020, p. 138-139).
Neste ínterim, o conceito de Ideal do Eu, empregado pela teoria freu-
diana, é essencial para a compreensão acerca dos fenômenos que irrompem na 
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constituição de laços psíquicos que sustentam (fundamentam) a sociabilidade 
do ser humano. Ora, o ideal do Eu, podemos situá-lo em primeira instância, 
como um agente psíquico que atua a partir de uma “introjeção simbólica” 
(LACAN, 1960-1961/2010, p. 434). Em termos freudianos, esse agente 
partiu da influência crítica dos pais intermediada pela voz, aos quais se 
juntaram no curso do tempo os educadores, instrutores e, como uma hoste 
inumerável e indefinível, todas as demais pessoas do meio (o próximo, a 
opinião pública) (FREUD, [1914]/2010, p. 42).
Dessa maneira, Freud apresenta o fenômeno social tal como se expressa 
na subjetividade de um indivíduo, afirmando que a vida psíquica de um ser 
humano é formada por um processo de influência de seu entorno na plura-
lidade de suas expressões sociológicas. Mas também aponta que o entorno 
recebe do indivíduo uma participação constitutiva, atentando-se ainda para o 
fato de que não se estabelece uma relação determinista do grupo em relação 
ao indivíduo. Esse último possui, segundo Freud ([1921]/2020), algo que o 
realça e o distingue como sua característica específica.
Cada indivíduo é uma parte constitutiva de muitas massas, é ligado de 
maneira multilateral por identificação e construiu seu Ideal do Eu segundo 
diversos modelos. Assim, cada indivíduo é parte integrante da alma de 
muitas massas, a de sua raça, a de sua classe, a da comunidade de fé, a 
de seu Estado, etc., e pode, além disso, aceder a uma pequena parcela de 
autonomia e de originalidade (p. 207).
O ideal do Eu, agente psíquico crítico, procura estabelecer um vínculo 
com o objeto alvo dos impulsos libidinais do ego, mediante sua introjeção, 
isto é, o objeto torna-se uma referência na medida em que o Eu aspira por 
uma transformação em seu estado psíquico no sentido de empenhar-se pela 
atenuação das dessemelhanças entre este e seu objeto. Desta forma, Freud 
corrobora seu postulado que apresenta o registro de uma gradação distinta no 
Eu e estabelece, por conseguinte, uma diferenciação sistemática no aparelho 
psíquico. Assim, ele nos fornece a distinção conceitual entre Eu e ideal de Eu:
Reconhecemos que aquilo com que pudemos contribuir para o esclarecimento 
da estrutura libidinal de uma massa reconduz à distinçãoentre o Eu e o Ideal 
do Eu e ao duplo modo de ligação tornado possível por ela – identificação e 
colocação do objeto no lugar do Ideal do Eu (FREUD, [1921]/2020, p. 208). 
Essa fórmula freudiana, resultou em sua representação gráfica da cons-
tituição libidinal dos grupos e tornou-se uma ferramenta ímpar de análises 
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críticas em relação ao Estado. Ainda que Freud não aplicasse diretamente 
suas considerações a tais questões, como pontua Balibar (2016), a análise 
de aparelhos ideológicos do Estado, que combinam coerção externa e laço 
libidinal, a saber, Exército e Igreja, permitem um deslizamento metonímico à 
investigação de um certo tipo autoritário de Estado. O que se revela aí é que a 
artificialidade de tais organizações, apontadas por Freud como constituídas sob 
ameaça constante de desagregação, demonstra a inexistência de uma estrutura 
total, haja vista “a ameaça constitutiva da dissolução, que é necessário afastar 
por uma identificação reiterada” (BALIBAR, 2016, p. 46). 
Neste livro, as leitoras e os leitores encontrarão, de maneira predomi-
nante, análises críticas orientadas pela psicanálise a respeito da constituição de 
uma arquitetura autoritária, acrescida dos mecanismos da era digital que por 
vezes pendem para o desmantelamento de esforços democráticos emergentes, 
ainda que por outras, possam apontar alternativas que sustentam tais esforços. 
Afinal, não podemos ignorar os mecanismos vigentes que retroalimentam 
uma política da morte – especialmente em um período pandêmico, com o 
Brasil liderando ranking mundial de mortes e infecções pela Covid-19. Mas 
também não negligenciamos que a análise da estrutura que sustenta tal política 
revela, ao contrário de uma predeterminação, a contingência que a desarticula. 
Eugène Enriquez (1990), pioneiro da psicossociologia e da sociologia clínica, 
analisará que a equivalência entre psicologias social e individual indica uma 
necessidade de transformação dos fundamentos da própria sociedade, a fim 
de que os remanejamentos das relações por parte dos sujeitos, ou seja, a 
reestruturação do status quo das posições intersubjetivas, seja possibilitada 
pelo tecido social mais amplo. Resta-nos, assim, uma pergunta poética, nada 
ingênua: qual século será melhor que os outros?
Jacqueline de Oliveira Moreira
Ana Carolina Dias Silva
Belo Horizonte, julho de 2021.
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REFERÊNCIAS
BALIBAR, Étienne. Psychologie des masses et analyse du moi: Le moment 
du transinsdividuel. Research in Psychoanalysis, n. 21, 2016, p. 29-49. Dis-
ponível em: https://www.cairn.info/revue-research-in-psychoanalysis-2016-
1-page-43a.htm.
ENRIQUEZ, Eugène. Da Horda ao Estado: Psicanálise do vínculo social. 
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990.
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do Eu (1921). In: IANNINI, 
Gilson; TAVARES, Pedro Heliodoro. Cultura, sociedade, religião: o mal-estar 
na cultura e outros escritos. Tradução de Maria Rita Salzano Moraes. Obras 
incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020. 
FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo (1914). In: FREUD, Sigmund. 
Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. Tradução 
de Paulo César de Souza. Obras completas volume 12. São Paulo: Companhia 
das Letras, 2010.
LACAN, Jacques. O aturdito. In: LACAN, Jacques. Outros escritos. Tradução 
de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 448-497.
LACAN, Jacques. O seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). Tradução 
de Dulce Duque Estrada Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
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INTRODUÇÃO
PAIXÃO E POLÍTICA: 
subsídios para uma discussão crítica
Carlos Roberto Drawin
Jacqueline de Oliveira Moreira
Ao relembrarmos os cem anos da publicação do livro de Freud “Psico-
logia de massas e análise do Eu” não o fazemos com o intuito da veneração 
como se tratasse de um monumento literário intocável, digno de respeito para 
logo ser esquecido e abandonado no passado. Freud o escreveu numa época 
de especial turbulência: a Primeira Guerra havia terminado com a derrota das 
potências centrais, deixando um rastro de destruição e o anúncio das catástro-
fes futuras: a ascensão do fascismo e, posteriormente do nazismo, a perversão 
totalitária do regime bolchevista, a crise econômica do capitalismo e, enfim, o 
choque cada vez mais intenso das ideologias com o seu desencadeamento das 
paixões políticas cujo descontrole produziu uma série inaudita de violências. 
O século passado, iniciado sob a égide do progresso racional, enveredou num 
destino aparentemente incompreensível. Como a Europa, orgulhosa por ter 
construído uma sociedade moderna e flexível, mergulhou em tamanha barbá-
rie? Por que as massas aderiram tão facilmente a crenças simplistas e banais 
e por que seguiram cegamente os programas insensatos propostos por seus 
líderes? O que ocorreu no coração da civilização das Luzes? Ou teria sido 
aquela uma época histórica de excepcional obscurantismo e, felizmente, já 
ultrapassada? Nada parece justificar tamanho otimismo. 
Seria suficiente condenar a insensatez do comportamento das massas e 
atribuí-la à ignorância ou à incorrigível estultícia humana? Mas como conde-
nar a cegueira se renunciamos por princípio ao recurso de toda luz racional? 
Como é possível a ordem política se a maioria das pessoas parece ser motivada 
por paixões irracionais? Por que indivíduos, grupos e grandes segmentos da 
população parecem agir contra os seus próprios interesses? O que fazer diante 
da destrutiva e reiterada insensatez?
Perguntas como essas mobilizaram imensas energias intelectuais no 
decorrer dos séculos suscitando as mais diversas respostas e contribuindo para 
a acumulação de um formidável patrimônio intelectual. Diante de problema 
de tão desafiante e de tão grande envergadura o nosso texto, propiciado pelo 
centenário do livro freudiano, se propõe como um recorte bastante limitado 
e genérico de um problema cuja vastidão ombreia com sua complexidade. 
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Não temos outra pretensão para o nosso texto senão proporcionar uma breve 
introdução ao assunto. O seu ponto de partida repousa numa convicção óbvia: 
a contribuição freudiana somente pode ser justamente avaliada, sem ser arti-
ficialmente agigantada ou minimizada, quando inserida no domínio muito 
mais amplo da história das ideias. 
A problemática da inter-relação de paixão e política já pode ser nitida-
mente discernida no nascedouro da experiência civilizacional do Ocidental. 
A questão reverbera ainda mais intensamente em nosso tempo, no qual o 
individualismo exacerbado converge com o surgimento das sociedades de 
massa. A solução clássica para essa indagação consiste na submissão das 
paixões à razão, mas teria a razão poder tão grande? Elas não penetram no 
domínio supostamente autônomo da razão abalando a sua pretensa soberania? 
Seria possível eliminá-las ou submetê-las de modo a vivermos no seguro 
repouso da apatia? Qualquer que seja a alternativa prática escolhida, parece 
imprescindível empenharmo-nos em compreender melhor o significado das 
paixões na dinâmica geral do psiquismo. 
No que se segue três tópicos são abordados em nossa exposição: a con-
cepção clássica da primazia da razão sobre as paixões; alguns elementos da 
nova configuração da relação entre racionalidade e paixão na teoria política 
moderna; a especificidade da psicanálise freudiana para a compreensão da 
paixão política das massas. Como, todavia, evitar que esses tópicos sejam lidos 
como pequenos resumos independentes e carentes de vinculação intrínseca? 
No empenho de combater o risco da dispersão e do ecletismosugerimos como 
fio condutor da exposição a seguinte hipótese: com o fim da cristandade – de 
uma sociedade de ordens, hierarquizada, controlada e orientada por instituições 
religiosas – cuja expressão espiritual mais elevada se deu na aliança da razão 
metafísica com a teologia, se iniciou um processo de proliferação crescente 
de crenças e alternativas de interpretação e ação no mundo. Essa hipótese da 
secularização provocou nos diversos e acirrados debates acerca de sua ori-
gem, significado e consequências (MARRAMAO, 1995; IDEM, 1997). De 
qualquer forma, parece indiscutível, conforme mostrou Charles Taylor em 
seu grande estudo, o advento e expansão, nos dois últimos séculos de nossa 
história cultural, de uma “era secular” na qual não mais dispomos de referen-
ciais simbólicos estáveis e de ampla aceitação (TAYLOR, 2020, p. 357-444). 
Nas sociedades tradicionais – e aqui temos um aspecto essencial da hipótese 
– a desigualdade e a opressão eram contrabalançadas pela resposta às duas 
demandas fundamentais de qualquer configuração civilizacional: a ordem e o 
sentido (VOEGELIN, 2009-2010). Ambas convergiam e eram garantidas pela 
legitimação religiosa. Apesar de muitas explosões de violência e crueldade a 
aliança entre a religião e o poder provia os meios repressivos e pedagógicos 
necessários à canalização das paixões de modo a suportar o insuportável dos 
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muitos males daqueles tempos (PIKETTY, 2020, p. 61-126). A implosão da 
cristandade, devastada pelas guerras de religião, e a ascensão da nova visão de 
mundo propiciada pela ciência moderna erodiram essas formas tradicionais de 
legitimação da vida social e política. Numa sociedade do risco, da incerteza e 
da fragmentação das alternativas de sentido para a existência humana, quando 
não mais se conta com os antigos parâmetros simbólicos, o conhecimento do 
lugar e alcance das paixões torna-se cada vez mais imprescindível. Vamos 
indicar essa tendência acompanhando o novo papel das paixões na filosofia 
moderna, em contraste com a visão clássica, para, no final do texto, tecermos 
algumas breves considerações acerca da teoria psicanalítica dos afetos.
A política sob a primazia da razão metafísica
A invenção grega da democracia descortinou um problema fundamen-
tal e ainda hoje, e com maiores motivos, intensamente presente em nossas 
sociedades: o do conflito ético e político entre os indivíduos, o choque dos 
interesses particulares como empecilho para a consecução da vida em comum. 
Certamente sempre houve confrontos violentos entre grupos e povos, mas a 
nova experiência de participação da diversidade dos partidos na cidade demo-
crática grega permitiu que viesse à tona, ao plano da consciência reflexiva, a 
indagação acerca das causas dos confrontos entre os homens, assim como a 
antecipação dos riscos neles envolvidos e a busca de remédios para evitar a 
eclosão da violência e desagregação da sociedade. A elaboração discursiva da 
Ética e do Direito acompanhou a par e a passo o nascimento da democracia e 
suas sucessivas crises: se o indivíduo se põe como medida de todas as coisas, 
então a existência política não pode ser justificada por si mesma e deve dar 
lugar ou a anarquia, a luta generalizada ou a tirania, a imposição de uma das 
partes sobre todas as outras. Logo se percebeu que a particularidade do indi-
víduo empírico, cujo índice mais óbvio reside na visibilidade de seu corpo, 
tem também a sua marca nas manifestações afetivas. Se, portanto, o indivíduo 
deve transcender a si mesmo em suas características idiossincráticas, para 
poder participar da vida política, então ele deve encontrar e desenvolver a sua 
dimensão de universalidade, descobrir a essência racional ou inteligível que 
todos os indivíduos compartilham entre si e define a sua mesma humanidade.
A razão, parte ativa da alma, deve prevalecer sobre as emoções e impulsos 
que interferem, perturbam e afetam a sua atividade tornando-a fácil presa da 
cegueira passional e da ambição desmedida (hybris). A ação ética e política 
(práxis) implica o domínio dos afetos e paixões (páthos) possibilitando na 
esfera individual a sua modelagem pela virtude (areté) e na esfera social a 
sua contenção pela lei (nómos). As virtudes individuais básicas, como tempe-
rança, fortaleza e prudência e a lei da cidade, perante a qual todos são iguais 
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(isonomia), encontra a sua correlação na virtude arquitetônica da justiça, na 
qual se dá o nexo entre indivíduo e sociedade. As virtudes e as leis, ultrapas-
sando as inclinações individuais, seriam a medida (métron) necessária para 
a convivência boa e justa entre os homens. 
Seria essa, em palavras poucas e simples, a poderosa matriz clássica de 
onde deriva a grande tradição do domínio racional das paixões como exigência 
incontornável da atividade política na busca do bem comum. Dela brota-
ram diferentes perspectivas na inter-relação da razão e das paixões, algumas 
acentuando a mais completa submissão das segundas e outras a integração 
razoável entre ambas. Um de seus modelos mais bem sucedidos e influentes 
dessa visão clássica foi a “Ética a Nicômaco” de Aristóteles, uma teoria ética 
modelar, por seu raro equilíbrio entre o particular e o universal, atenta ao valor 
positivo dos afetos e seu inegável papel na motivação da ação humana. Com 
o declínio da cidade democrática da época clássica (pólis) e a ascensão dos 
impérios helenísticos e, posteriormente, do Império Romano, o exercício da 
cidadania, a participação dos indivíduos nos negócios públicos, tornou-se 
impossível, levando, de um lado, à prevalência do direito positivo ou abstrato 
e, de outro, ao distanciamento entre o ideal ético de sabedoria e a efetividade 
política (REALE, 1994, p. 5-17; VAZ, 1988 b, p. 135-147).
Como o indivíduo poderia viver uma vida verdadeiramente humana 
quando não mais poderia realizá-la através da participação política? Inviabi-
lizado o exercício da cidadania ele estaria fadado a deixar-se arrastar por seus 
desejos cegos, motivações contraditórias e persistentes ilusões? Ou descobrir 
em si mesmo, para além de sua natureza sensível e da participação na cidade, 
tornada inviável na organização imperial, um elemento racional capaz de 
vinculá-lo à inteligibilidade imanente da ordem cósmica? Na ausência da 
cidade exterior a única alternativa não consistiria em construir em si mesmo 
uma “cidadela interior” suficientemente forte para resistir aos assaltos dos 
infortúnios da vida? Será essa a alternativa proposta pelo estoicismo, que 
se tornou uma das grandes matrizes espirituais da civilização ocidental: em 
tempos adversos, com o estreitamento do espaço da ação política, quando 
facilmente nos deixamos iludir pelo caráter vão e efêmero dos êxitos mun-
danos, tão variáveis e facilmente reversíveis, somente o sábio pode aspirar à 
uma felicidade sólida e genuína. A sabedoria consistiria em forjar e exercitar 
uma “disposição espiritual” (diáthesis) com o intuito de propiciar, nas diver-
sas situações da vida, um juízo racional firme (orthós lógos) capaz de nelas 
diferenciar as ações moralmente boas das más e separá-las das coisas que 
frequentemente nos seduzem, mas devem ser tratadas como “indiferentes”, 
porque não dependem de nós e não podem embasar a autêntica felicidade. 
Para conquistar o equilíbrio deve-se rejeitar com firmeza a injustiça, o vício, 
a devassidão, a intemperança e cultivar as virtudes cardeais da moderação, 
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da fortaleza, da prudência e da justiça. A grande dificuldade em abandonar os 
comportamentos maus consiste em sua associação com as coisas consideradas 
pelos estoicos como “indiferentes”,aquelas que podem ser convenientes à 
nossa natureza, de maior ou menor valor, mais ou menos preferíveis, mas 
nunca moralmente essenciais, como a beleza, a saúde e a riqueza. Somente o 
exercício da “ação virtuosa” (kathórtoma) pode convir à felicidade do sábio 
e garantir de modo estável a sua paz de espírito (ataraxia), numa época de 
grandes conturbações políticas e choques culturais. 
A educação e integração racional das paixões tinha sido uma condição 
necessária para a participação política na cidade democrática clássica de modo 
a evitar tanto a anarquia, quanto a tirania. Na época helenística e romana, 
fechado o horizonte da cidadania e em meio à ruína das antigas instituições 
democráticas, se impunha ainda com maior vigor o controle e a submissão das 
paixões. A paixão (páthos) era vista como uma emoção, uma moção anímica 
caracterizada pelo excesso e por sua frequente oposição à existência racional. 
Não era vista, porém, como algo inteiramente proveniente de nossa animalidade 
e inteiramente estranha à racionalidade, porque ela adviria das distorções e 
errâncias de nossa capacidade de julgar. Ela certamente não reside no âmago 
da reta razão e sim em seus possíveis desdobramentos, nos efeitos perversos 
dos nossos juízos errôneos. Assim, por exemplo, podemos julgar que o prazer, 
cujo valor humano pode ser admitido, deva ser tomado como um bem moral e 
enquanto tal deva orientar a nossa ação, assim fazendo, contudo, não só pertur-
bamos gravemente a nossa relação com os outros, como também arruinamos 
a nossa própria felicidade. A insidiosa penetração das paixões no domínio 
cognitivo suscita inúmeros equívocos judicativos o que nos impõe o contínuo 
trabalho do discernimento racional de modo a extirpar as suas consequências 
morais danosas e nos impede alcançar a impassibilidade necessária para a 
perquirição dos verdadeiros bens da existência (REALE, 1994, p. 328-362). 
Apesar da imensa influência do estoicismo em diferentes épocas histó-
ricas e de sua presença difusa em pensadores modernos e contemporâneos 
bastante heterogêneos, também não foram poucos os seus críticos. Muitos 
consideraram a extirpação das paixões uma tarefa impossível e, pior, uma ina-
ceitável mutilação da integridade humana. Os afetos são parte constitutiva de 
nossa humanidade e não poderemos encontrar o caminho de nossa realização 
pessoal e tampouco entendermos os impasses e os enovelamentos da política 
se desconsiderarmos o seu significado antropológico e a sua dinâmica psicos-
social. Além disso, não seria difícil concluir que não há ação sem motivação, 
nem motivação carente de um poderoso componente afetivo. 
Com a profunda transformação do modo de pensar moderno, solapando 
o objetivismo da tradição clássica, se impôs a reconsideração do lugar das 
paixões na teoria política. Na Grécia clássica e em sua difusão helenística, 
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no grande arco que vai de Aristóteles ao Estoicismo, a concepção da razão 
funda-se na ideia da íntima relação entre a inteligência humana e a inteligibi-
lidade intrínseca da totalidade ordenada da realidade (kósmos). Assim, o ato 
de julgar, núcleo lógico de todo conhecimento, rompe os limites das repre-
sentações mentais e apreende a essência das coisas mesmas em seu conjunto. 
Pode-se, então, estabelecer um nexo analógico entre a essência espiritual do 
indivíduo, a sua inteligência espiritual (noûs), a comunidade política voltada 
para o bem comum (pólis) e a natureza inteligível da totalidade (kósmos), 
por isso o ser humano pertencendo ao gênero animal transluzia em cada ato 
de conhecer o signo de sua transcendência em relação ao mundo sensível e, 
por conseguinte, a sua pertinência ao mundo racional e político (VAZ, 2001, 
p. 57-76). Com o advento da Revolução Científica do século XVII, esse 
modo de pensar de caráter centrado na racionalidade do todo como fonte da 
normatividade social vai se tornar insustentável, a analogia de sentido entre 
o homem e a natureza se desfaz e não se pode mais falar da sociabilidade 
natural de cada ser humano. 
A ascensão das paixões na filosofia política moderna
Com o impacto da Revolução Científica o grande desafio do pensa-
mento político será o de conceber a sociedade não mais a partir da analogia 
do Homem com o Cosmos, mas a partir da realidade dos indivíduos em sua 
natureza específica. Afinal, por que o indivíduo, movido por suas necessidades 
e condições empíricas suporta viver sob as inúmeras constrições da sociedade 
e coerções do poder? Haveria alguma alternativa para o pensamento moderno 
distanciado da antiga metafísica clássica? Ou, antes, se em decorrência da 
precariedade da vida individual, somos obrigados a deixar o isolamento e nos 
agregarmos em grupos mais ou menos extensos e estáveis seria possível esta-
belecer, para além da mera necessidade de sobrevivência, alguma justificação 
racional para a vida social? A pergunta reverbera do início da época moderna 
até os nossos dias. No entanto, na economia do nosso texto essa indagação 
de grande abrangência será ilustrada com breves referências a dois filósofos 
modernos: Hobbes e Spinoza. 
Pequeno excurso na teoria política de Hobbes
Os efeitos éticos e políticos derivados da nova visão do mundo não se 
fazem esperar e a obra de Thomas Hobbes os expressam de modo exemplar. 
A ciência da natureza, de caráter empírico e matemático, leva ao descrédito 
a antiga metafísica. Nas palavras de Hobbes, “a vã filosofia de Aristóteles”, 
assim como aquelas das outras escolas gregas mostravam-se inúteis, pois a 
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metafísica “era mais um sonho do que uma ciência...exposta numa linguagem 
insignificante e sem sentido... a sua filosofia moral não passa da descrição 
das suas próprias paixões” (HOBBES, 2008, p. 556-557). A sua insignificân-
cia consiste na busca de “essências separadas” que à luz da nova ciência da 
natureza não passam de fantasmagorias, pois esta mostra como tudo o que é 
encontra-se situado na exterioridade do espaço como elementos apreendidos 
por nossas sensações. A razão não apreende a substância em si dos fenômenos, 
apenas relaciona os dados empíricos na forma de um cálculo (computatio) e a 
função da racionalidade é simplesmente operatória e justamente aí residiria a 
sua utilidade em contraposição com a inútil pretensão metafísica de alcançar 
a verdade das coisas em si mesmas, para além das nossas representações e 
dos signos linguísticos por nós utilizados. Se tudo o que nos é dado se situa 
na exterioridade do espaço e nada provém da interioridade de nosso pen-
samento, então tudo pode ser interpretado como matéria e o conjunto dos 
objetos materiais pode ser incluído na noção abrangente de corpo: “qualquer 
parte do universo é corpo e aquilo que não é corpo não é parte do universo”, 
tudo o que é situa-se no espaço, nas dimensões de comprimento, largura e 
profundidade (HOBBES, 2008, p. 559). Todo ser é corpóreo e pode ser orde-
nado segundo o princípio da causalidade mecânica. Também o homem e seu 
psiquismo, como todas as outras coisas, é um corpo determinado por outros 
corpos e não uma inteligência espiritual dotada de um dinamismo capaz de 
transcender o domínio da corporeidade. O pensamento não é, portanto, como 
supôs Descartes, uma atividade originária e irredutível do humano, mas tão 
somente uma propriedade do corpo, pois não há qualquer substância mental 
(res cogitans), como ainda acreditava Descartes, sendo o “pensamento mero 
resultado do movimento da matéria” (VAZ, 1999, p. 298). Por conseguinte, 
não se pode deduzir uma ética da essência humana ou fundá-la na inteligibi-
lidade da realidade e o único ponto de partida possível para a ética deve ser 
a observação do comportamento empírico dos homens. Se tudo se reduz ao 
movimento dos objetos corpóreos no espaço, entãotambém os indivíduos 
são movidos por tais objetos e a eles se dirigem em busca da preservação da 
sua vida. A sua interioridade não passa do impacto e apreensão dos objetos 
em sua produção de prazer ou dor no caso de beneficiarem ou prejudicarem a 
conservação de sua vida. O desejo se resume ao impulso em direção aos obje-
tos favoráveis à manutenção da vida e não visa qualquer fim transcendente, 
porque sua função se resume em sua completa imanência, em sua integra-
ção ao esforço autoconservação do indivíduo corpóreo (endeavour, conatus) 
(VAZ, 1999, p. 301; GASKIN, 2010, p. XIV-XLIX). Não há algo como um 
“soberano bem”, uma finalidade suprema, uma vez que “todo homem, por 
sua própria conta, chama de bem aquilo que lhe agrada e é deleitável, e de 
mal aquilo que lhe desagrada...não há tal coisa chamada de agathón haplôs, 
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quer dizer, algo simplesmente bom” (HOBBES, 2010, p. 28-29). Há somente 
a agitação derivada das idas e vindas entre os objetos, sempre motivada pela 
possessividade, pela cupidez (cupiditas naturalis) ou pela evitação da morte 
violenta (ratio naturalis). A explicação científica do comportamento humano, 
suscita a seguinte questão: se não há mais uma natureza dotada de sentido 
humano, passível de ser eticamente interpretada, como é possível a vida em 
sociedade, o que permite erigir uma ordem política e jurídica se os indivíduos 
empíricos são egoisticamente orientados e movidos pela busca do prazer e a 
evitação da dor? 
Com tais premissas Hobbes não pode nem fundar a ética na metafísica 
e nem a política na ética. Ao rejeitar taxativamente a metafísica clássica, ele 
deve realizar em sua exposição um movimento logicamente inverso ao da 
fundamentação aristotélica: a ética é absorvida pela política e pelo direito 
positivo que, por sua vez, são justificados pela física, pelo conhecimento do 
modo de funcionamento humano segundo causas naturais e estas mostram o 
homem agindo em conformidade com as suas paixões (VAZ, 1999, p. 306; 
FRATESCHI, 2008, p. 17-46). 
Se a razão se resume ao cálculo dos signos linguísticos derivados dos 
dados sensoriais e não pode ser concebida como uma realidade relativamente 
autônoma em relação ao corpo, então a passagem da existência pré-política, 
o “estado de natureza” (status naturae) para a existência política (common-
wealth), na qual se dá o domínio do direito e da lei, deve ser explicada por 
meio das condições presentes nesse mesmo estado de natureza a ser superado. 
Segundo a hipótese hobbesiana o indivíduo antecede à sociedade, todos os 
indivíduos são iguais e todos buscam por todos os meios a autoconserva-
ção e a posse dos objetos requeridos por sua satisfação e para isso todos os 
meios são válidos. A liberdade natural e espontânea é egoística e não contém 
nenhuma inclinação à sociabilidade, ao contrário, dela só pode derivar o 
conflito generalizado, pois a natureza fez os homens dissociados pela com-
petição, pela desconfiança e pelo desejo de prevalecer uns sobre os outros. 
Se assim é, então o “estado de natureza” se caracteriza por “uma guerra que é 
de todos os homens contra todos os homens... (a qual)... não consiste na luta 
real, mas na conhecida disposição para tal... todo homem é inimigo de todo 
homem” (HOBBES, 2008, p. 109). Em tais condições não há tempo para a 
paz e o trabalho, necessários ao cultivo e ao gozo dos objetos e, portanto, 
“não há sociedade e o que é pior do que tudo, um medo contínuo e perigo 
de morte violenta. E a vida do homem é solitária, miserável, sórdida, brutal 
e curta” (HOBBES, 2008, p. 109). 
No estado natural pré-político prevalecem as paixões e as ações delas 
derivadas, nada é pecado ou injusto e nada é certo ou errado antes da exis-
tência de uma lei, de um “poder comum” que forneça o critério para julgá-las 
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condenáveis ou injustas. Os indivíduos são inteiramente livres e também 
inteiramente miseráveis, pois vivem sob a mais terrível ameaça de aniquila-
ção. Em semelhante situação há uma condição na qual se reúne uma paixão 
fundamental e nela se pode reconhecer a razão natural geradora da sociedade: 
o medo. Dessa mistura de paixão e razão, de temor e expectativa emerge o 
laço social garantido pelo contrato instituinte da soberania política: “as pai-
xões que fazem os homens tender para a paz são o medo da morte, o desejo 
daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança 
de as conseguir por meio do trabalho. E a razão sugere adequadas normas 
de paz, em torno das quais os homens podem chegar a um acordo” (HOB-
BES, 2010, p. 110-111).
Há no direito natural primigênio a tendência à liberdade possessiva abso-
luta e, ao mesmo tempo, nele se encontra uma lei natural, um princípio de 
limitação e contenção impulsionando na direção do estabelecimento de um 
pacto a partir do qual emergem todos os outros critérios para a determinação 
do justo e do injusto, bem e mal, certo e errado e, desse modo, todo conteúdo 
da ética dele deriva. Como já foi dito, a ética não antecede e funda a política, 
mas é posterior e por ela fundada. Por sua vez a sociedade política surge 
desse estranho amálgama de paixão e razão presente na natureza concebida 
pela nova ciência física cuja pressuposição é uma ontologia da corporeidade. 
A razão deixa de ser a instância primordial na constituição da vida social e 
política, porque não há domínio da razão sobre o corpo quando tudo, inclusive 
a mente, passa ser concebido como de natureza corpórea. O passo crucial da 
introdução das paixões na teoria política foi proveniente da recepção da revo-
lução científica, representada pela física galileana. Todavia, a breve descrição 
das paixões com seus desdobramentos psicológicos, tal como foi apresentada 
no sexto capítulo do “Leviatã”, obra mais célebre o autor, não encontrou um 
respaldo suficientemente amplo e radical na inversão materialista propiciada 
pela ontologia hobbesiana e muitas perguntas dela podem emergir.
A liberdade política em sua acepção clássica, era um produto da atividade 
autônoma da razão, na perspectiva do individualismo egoísta e possessivo 
hobbesiano a única alternativa seria a abdicação da liberdade em nome do 
poder absoluto garantidor da ordem e do direito? Seria este o preço a pagar 
para a obtenção e manutenção da paz social? Como compreender o enigma 
político da “sociabilidade insociável” do animal humano a suscitar tantas 
perplexidades quando observamos o comportamento das massas com relação 
à sua própria soberania? (TERREL, 1997, p. 11-26) 
Não se pode simplificar excessivamente a concepção de Hobbes como se 
fosse mera justificação do despotismo de modo a desconhecer o seu potencial 
crítico em relação aos privilégios feudais ainda tão persistentes. Como mos-
tra Janine Ribeiro, num livro hoje clássico, deve-se evidenciar em Hobbes 
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a modernidade de um pensamento que “não é assim do despotismo (à Mon-
tesquieu) nem do absolutismo (à Luis XIV), é da soberania: reconhecer no 
interior do corpo político um poder soberano perante o qual nenhum privilégio 
localizado, nenhum direito adquirido subsista; fundar tal poder na represen-
tação, fazendo este foco central haurir dos súditos a sua força”, enfatizando 
que a representação está assentada não apenas numa paixão, o medo, mas 
também a esperança (RIBEIRO, 1984, p. 43). Há sempre, no entanto, o risco 
de ruptura da soberania e a manipulação não somente do medo na luta pelo 
poder, mas também da esperança de modo a seduzir a multidão, atiçar o seu 
ódio à ordenação racional da sociedade e colocá-la a serviço dos interesses 
cambiantes desta ou daquela facção política (RIBEIRO, 1978, 60-66). De toda 
forma, ao liquidar a ideiade inteligência espiritual e conceder proeminência 
às paixões, a única solução seria colocar toda instância normativa sob a égide 
do poder do Estado e do direito positivo. No entanto, sem retomar o modelo 
da metafísica transcendental da tradição filosófica, eleva-se no horizonte 
moderno, com Spinoza, a alternativa de uma razão abrangente e integradora. 
Pequeno excurso na teoria política de Spinoza
Baruch (Benedictus) Spinoza construiu um sistema de pensamento de rara 
consistência lógica cujo propósito maior não era o conhecimento em si mesmo e 
sim a condução dos seres humanos pela via da sabedoria e da libertação. Poucos 
filósofos traduziram o seu pensamento em sua vida com tamanha coerência e 
virtude, assim como poucos também foram tão odiados. Vivendo na Holanda, 
pertencente à uma família de judeus marranos vinda de Portugal, ele recebeu a 
formação tradicional do judaísmo ortodoxo, estudando até a sua adolescência o 
hebraico, a Torah e o Talmud. Vinculado aos círculos cartesianos de Amsterdã 
desenvolveu precocemente uma concepção filosófica original e independente. O 
conflito com a ortodoxia tornou-se inevitável, apesar dos esforços da comuni-
dade judaica em prol da conciliação com aquele jovem judeu de indesmentível 
talento. Spinoza, embora prudente e discreto, jamais cedeu em sua busca pela 
verdade e em 1656 foi excomungado pelas autoridades da sinagoga. O seu 
ateísmo virtuoso foi também vigorosamente rejeitado por todas as vertentes 
cristãs: pelos católicos e pelos diversos ramos do calvinismo holandês. Viveu 
retirado, exercendo o trabalho de polidor de lentes e apesar da admiração que 
suscitava num círculo crescente de estudiosos, o seu nome amplamente estig-
matizado e seu pensamento audacioso caiu sob a suspeita de ser ameaçador 
para a ordem política vigente. Tendo publicado anonimamente em 1670 o 
“Tratado teológico-político”, as ideias que circulavam em seu nome produziam 
escândalo, quer por suas posições filosóficas e visão da religião estabelecida, ao 
distanciar-se da fé bíblica, quer pelas supostas consequências políticas de suas 
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ideias, ao propugnar a favor da liberdade religiosa como benéfica à manutenção 
e à autoridade do Estado. A sua obra princeps, a “Ética demonstrada segundo 
a ordem geométrica” somente foi publicada postumamente. Esta alusão quase 
corriqueira à vida e à obra de Spinoza, deixando de lado um itinerário bem 
mais matizado, responde em nosso texto a dois objetivos. Em primeiro lugar, 
ressaltar a sua independência intelectual na produção de uma obra única em 
seu tempo, impossível de ser resumida sem de algum modo a deformar. Em 
segundo lugar, assinalar igualmente, a impossibilidade de tratar a sua teoria das 
paixões sem inseri-la no conjunto de sua exposição rigorosamente sistemática 
e concebida conforme o método dedutivo da geometria (MOREAU, 1982, p. 
11-25; KLEVER, 2011, p. 33-87).
O duplo obstáculo acima apontado não nos impede, contudo, de tecer 
algumas considerações sobre o significado da teoria das paixões em seu 
alcance político. Estudioso da filosofia de Descartes, tomando como modelo 
o seu rigor metódico e a ordenação matemática do pensamento, a sua obra 
maior, a “Ética”, é um tratado de metafísica dividido em cinco partes e arti-
culado em definições, axiomas, corolários e demonstrações. Se é um tra-
tado de metafísica, por que designá-lo como ética? Porque partindo de seis 
definições fundamentais e estabelecendo a “existência necessária de Deus”, 
na sua primeira parte, conclui a exposição, na quinta parte, com o poder do 
entendimento na indicação do caminho a se seguir para alcançar a liberdade 
por meio da transfiguração racional das paixões (SPINOZA, 1965, p. 30, 307). 
Como não é viável, já se disse, acompanhar o desdobramento axiomá-
tico-dedutivo da “Ética” nós vamos recorrer à magnífica apresentação geral 
feita por Robert Misrahi, acrescida de algumas indicações extraídas de alguns 
estudos mais especializados do “The Cambridge Companion” e já traduzidos 
para o português (GARRET, 2001). 
Se Descartes visando combater o ceticismo toma como ponto de par-
tida indubitável a experiência do “Eu penso” (Cogito), isto é, se ele parte 
do sujeito finito pensante, Spinoza, ao contrário, parte de Deus, da substân-
cia infinita, eterna e subsistente por si mesma, como causa sui, causa de si 
mesmo e, por conseguinte, como mostra a primeira definição do seu tratado, 
como o ente pensado cuja essência implica necessariamente a sua existência 
(SPINOZA, 1965, p. 21). Por quê partir de Deus? Porque o Homem somente 
pode alcançar a felicidade, a verdadeira alegria, por ele designada como “bea-
titude”, se ele for capaz de ultrapassar a sua visão de um indivíduo isolado, 
aprisionado em sua finitude, para se compreender como parte da totalidade 
das coisas. E por que razão a sua filosofia foi amplamente rejeitada como 
ateísta? Porque em seu sistema Deus não é o Ser transcendente criador do 
mundo a partir do nada conforme está posto na Revelação Bíblica. O Deus de 
Spinoza é a própria realidade enquanto totalidade imanente de todas as coisas 
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e pensada para além de seus aspectos particulares, concepção consagrada na 
célebre proposição da equivalência de Deus e da natureza (Deus sive natura). 
Daí decorre a acusação de ateísmo feita ao sistema de Spinoza: por negar 
a transcendência e pessoalidade de Deus, por concebê-lo como substância 
única da qual tudo mais pode ser deduzido e sendo, portanto, rigorosamente 
equivalente à totalidade do mundo. Somente compreendendo a sua integração 
nesta totalidade, na qual tudo encontra a sua necessidade e sua razão de ser 
o indivíduo obtém a serenidade e a paz de espírito por ele sempre almejada 
em sua incansável procura por prazer e felicidade. O homem não é definido 
como um animal essencialmente racional, atribulado por paixões considera-
das como intrusões e vícios a serem dominados. Não há como submeter as 
paixões à razão, mesmo porque o que constitui o ser humano em sua essência 
é o desejo, não deste ou daquele objeto, porque no fundo as paixões e ações 
humanas expressam sempre, na particularidade de seus desígnios, “o desejo 
de ser, ou seja, o desejo de existir como potência sempre crescente e plenitude 
cada vez mais rica e mais satisfeita” (MISRAHI, 2011, p. 360). O Homem é 
essencialmente desejo. Por seu sentido ontológico, por seu enraizamento no 
próprio ser, o desejo, e suas manifestações afetivas, não pode ser sufocado e 
a tentativa de fazê-lo é inevitavelmente destinada ao fracasso ou, pior, produz 
efeitos perniciosos nos indivíduos e nas sociedades. Todavia, o desejo não se 
confunde com as inclinações individuais, ao contrário, o risco de entregar-se 
às paixões consiste em se perder do sentido fundamental do desejo na vã 
perseguição de objetos e objetivos imaginários. A imaginação alimenta expec-
tativas falsas e irrealizáveis, dentre elas, a do livre-arbítrio, da independência 
e autossuficiência dos indivíduos, ilusões que os desviam do movimento de 
integração na totalidade do ser, tornando-os amargurados, atemorizados e 
violentos. O resultado da perdição do desejo de ser é a tristeza, enquanto a sua 
crescente satisfação leva à verdadeira alegria (MISRAHI, 2011, p. 360-361). 
Por conseguinte, a finalidade do conhecimento não é o próprio conheci-
mento, assim como a consecução da razão não é o domínio das paixões e sim 
o seu direcionamento intelectual para sua verdadeira realização: a superação 
da cisão do indivíduo em relação ao todo. Desse modo, o pacto constitutivo do 
Estado não visa a segurança e o bem-estar material dos indivíduos, que estariam 
dispostos a pagar por ele o alto o preço de sua autonomia. Ao contrário do que 
propunha Hobbes, somente o indivíduo livre e semmedo pode, no cultivo de 
sua inteligência desencobrir a verdade de sua liberdade reconhecendo-a na 
necessidade racional do ser e, assim, cabe ao Estado garantir a estabilidade e 
a ordem sem as quais se instalaria a anarquia dos interesses individuais e dos 
afetos desordenados. Por outro lado, a soberania do Estado não pode sequestrar 
o direito inalienável dos indivíduos de pensar e expressar o seu pensamento, 
pois o exercício da liberdade não representa o menor risco para a paz social. 
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As tentativas de cercear o livre exercício da razão, são inúteis e contraprodu-
centes, porque, em primeiro lugar são esforços vãos de barrar a afirmação do 
“supremo direito de natureza” de cada um “preservar o seu ser” e, em segundo 
lugar, porque somente o cultivo da inteligência pode impedir a deriva caótica 
dos afetos (SPINOZA, 1965 a, p. 327-336; GARRET, 2011, p. 339).
O Homem não pode ultrapassar a sua natureza por meio de uma razão 
supostamente vocacionada para a transcendência, pode, no entanto, satisfazer 
o seu movimento intrínseco em direção à totalidade imanente à qual ele per-
tence originariamente. “Os afetos humanos, como são o amor, o ódio, a ira, a 
inveja, a glória, a misericórdia e as restantes comoções do ânimo” não devem 
ser vistos como “vícios da natureza humana”, mas como “suas propriedades” 
e a sua compreensão não é uma domesticação por meio da razão, mas, antes, a 
sua transfiguração na positividade do desejo (SPINOZA, 1966, p. 12). Somente, 
então, seria possível pacificar a multiplicidade contraditória dos afetos na ale-
gria e na beatitude e nesta paixão benéfica e fundamental a política encontraria 
a sua legítima vocação, a de colocar-se a serviço da sabedoria ou, segundo as 
suas palavras, ao conhecimento orientado “ao mais elevado contentamento da 
alma” que é o “o amor intelectual de Deus” (SPINOZA, 1965 b, p. 330-331). 
O percurso filosófico até aqui traçado não teve outro propósito senão 
oferecer algumas indicações do vasto campo especulativo no qual se entre-
cruzam a teoria das paixões e da política. A visão clássica não era ingênua, 
pois a força dos afetos na mobilização e direcionamento das ações sempre 
foi um dado evidente na compreensão espontânea do Homem acerca de si 
mesmo. A indagação filosófica não negava essa evidência, mas procurava 
escavar na experiência humana outras possibilidades e alternativas viáveis 
para a construção de uma regulação social e política razoavelmente justa e 
pacífica. No curso do processo de modernização os desafios não minoraram, 
antes se agigantaram. Conforme a hipótese proposta do início do nosso texto 
o avanço da secularização, o enfraquecimento da força de legitimação da 
teologia e das instituições cristãs, pôs em questão os referenciais simbólicos 
que serviam como parâmetros de convergência das duas demandas funda-
mentais das comunidades humanas: a ordem e o sentido. A implosão das 
crenças numa miríade de perspectivas heterogêneas colidiu com a proposição 
de Spinoza segundo a qual somente a integração numa totalidade de sentido 
poderia levar às paixões positivas da paz e da alegria. A versão mais chã e 
pragmática da teoria de Hobbes parece ter triunfado. Insubmissas à razão e 
à sabedoria caberia ao Estado disciplinar as paixões e a sua autoridade, não 
teria outra justificação, senão o seu poder em ser bem-sucedido na tarefa de 
modelar a matriz de todo movimento pulsional: o medo e a esperança, pois, 
se a energia das ações provém das paixões, então o Estado deve ser capaz de 
coloca-las a ao seu objetivo de contê-las e configurá-las. O círculo vicioso 
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aqui esboçado pode nos ajudar a compreender porque as chamadas “razões 
de Estado” em sua feição meramente instrumental podem se distanciar da 
razão em sua significação substantiva (lógos, noûs), integradora da teoria 
e da prática, do conhecimento e da ética e ao fazê-lo colocar a seu serviço 
as paixões obscuras e contraditórias das massas (HORKHEIMER, 1973, 
p. 15-68; BODEI, 1995).
Como vimos a filosofia sempre se debruçou sobre esses problemas. No 
século XIX também as ciências biológicas e as psicologias contribuirão deci-
sivamente para a explicação e compreensão do papel das emoções e senti-
mentos no comportamento humano. Aqui utilizamos os termos “emoção” e 
“sentimento”, embora em nosso texto não tenhamos feito distinção conceitual 
entre “paixão” e “afeto”. Não obstante, considerando o uso bastante diferen-
ciado dos termos pelos diversos autores vamos nos restringir a três rápidas 
observações. A primeira diz respeito à palavra e à noção de emoção. O termo 
“emoção”, encontrado em psicólogos e filósofos mais recentes, corresponde 
à noção de “paixão” dos filósofos precedentes, como aqueles a que anterior-
mente nos referimos. A noção implica um estado mental produzido por algo, 
uma situação ou acontecimento, que de alguma forma se impõe a nós e nos 
mobiliza. Essa afetação pode se traduzir numa reação fisiológica e involuntá-
ria ou numa ação intencional (GORDON, 2006, p. 258). Em segundo lugar, 
a neurobiologia propõe distinções detalhadas cobrindo um espectro de que 
vai das reações homeostáticas mais simples até os sentimentos, explicados 
como percepções relativas à regulação básica da vida e associadas a conteú-
dos mentais e temáticos mais ou menos elaborados. Assim, as emoções em 
suas diversas modalidades seriam, do ponto de vista evolutivo, anteriores 
aos sentimentos (DAMÁSIO, 2004, p. 34-100). Como não podemos entrar 
nessas discussões advertimos, finalmente, que utilizamos “paixão” e “afeto” 
como sinônimos e, em ambos os casos os termos indicam estados mentais 
mobilizadores e dotados de conteúdo, porém carentes de prévia justificação 
racional. Na parte anterior do nosso texto, referente às filosofias clássica e 
moderna, utilizamos em geral o termo “paixão” e na parte que se segue, refe-
rente à psicanálise, usaremos preferencialmente o termo “afeto”. 
A teoria psicanalítica dos afetos 
A psicanálise freudiana não nasceu qual um “deus ex machina”, como uma 
produção miraculosa saída da cabeça de um gênio. A originalidade de Freud 
consistiu em sua capacidade de articular e entrecruzar uma grande diversidade 
de influências filosóficas e científicas para delas forjar uma concepção original 
e de grande impacto em diversos domínios culturais. Não é o caso de aqui reto-
marmos, sequer brevemente, o modo como interagiram as diversas e mesmo 
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heterogêneas correntes intelectuais que desaguaram na fundação da psicanálise. 
Basta-nos a seguinte indicação sobre o tema que estamos abordando: na tradição 
racionalista as paixões ou afetos eram vistos como uma atividade mental inferior 
ou como um modo confuso de conhecimento e, por isso, eles eram relegados a 
um papel secundário. Os afetos considerados como manifestações de ocorrências 
corporais e sem a dignidade das “faculdades superiores” do espírito poderiam 
ser abandonados na fronteira ainda obscura da psicologia com a fisiologia. O 
reconhecimento do papel dos afetos para a compreensão do psiquismo foi um 
passo essencial para o estabelecimento de uma psicologia científica. Assim, dentre 
muitas outras, uma das influências recebidas por Freud, foi o modelo científico 
do psiquismo proposto por Johann Herbart no qual os afetos jogam um papel 
fundamental, justamente aquele de evidenciar o caráter dinâmico e quantitativo 
do psiquismo e, por isso, passível de tornar-se objeto de uma ciência rigorosa. 
Para Herbart a análise dos processos psíquicos mostra a sua composição 
em elementos simples (mônadas) cujo impulso primordial – como já vimos nas 
filosofiasde Hobbes e de Spinoza – consiste na procura da conservação de si 
mesmo. Por isso as diferentes representações mentais estão em contínua luta 
umas com as outras, mas não se dispersam inteiramente porque estabelecem 
vínculos associativos entre si. As representações (sensações, imagens, ideias) 
uma vez surgidas não mais desaparecem, mas em seu conflito algumas podem 
se ocultar para depois reaparecerem novamente na superfície da vida cons-
ciente. Em meio ao conflito das representações o campo da consciência, por 
elas disputado, pode ficar mais ou menos estreito, oscilando entre os extremos 
da plena consciência e a inibição completa decorrente do mecanismo de repres-
são. Esse dinamismo dos elementos psíquicos implica que as representações 
possuam sempre certa intensidade, maior ou menor, por serem formadas não 
apenas por conteúdos mentais, mas também por forças ou afetos. Há uma 
mecânica psíquica abrangendo os conflitos atuais entre as representações em 
sua luta para ocupar um espaço na consciência e o desenvolvimento dessa luta 
no tempo. Os afetos podem ser entendidos como manifestações dessas forças 
que emergem dos conflitos entre as representações. Apesar de sua crítica ao 
racionalismo a nova psicologia científica busca esclarecer, numa perspectiva 
iluminista, como as moções afetivas podem ser encaradas como uma perturba-
ção ou obstáculo para a inserção e a atuação racionais dos indivíduos em suas 
interações com os outros. A psicologia alemã e austríaca – aqui exemplificada 
por Herbart, sem minimizar outras influências igualmente importantes como, 
por exemplo, a de Franz Brentano – exerceu claro impacto nos primórdios da 
psicanálise freudiana em sua pretensão de cientificidade. A ênfase dada aos 
afetos a distanciava da psicologia filosófica de cunho intelectualista. Não há, 
contudo, como acompanhar em toda sua extensão o entramado conceitual 
da teoria freudiana dos afetos, seja por seus múltiplos aspectos e intrincado 
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itinerário, seja porque não há como separá-la do conjunto complexo que forma 
as diversas etapas na construção de sua metapsicologia. Limitamo-nos a algu-
mas observações básicas (BERCHERIE, 1988).
No período de criação da psicanálise – cuja datação se estende da “Comu-
nicação Preliminar” de 1893 colocada como introdução aos “Estudos sobre 
histeria” escrito em colaboração com Joseph Breuer até a publicação da 
“Interpretação dos sonhos” em 1900 – pode-se observar ao menos três des-
locamentos teóricos essenciais na demarcação da originalidade da concepção 
freudiana. O primeiro se deu ao afastar-se da etiologia fisiológica da histe-
ria para enfatizar a sua causalidade psíquica e seu enraizamento na história 
dramática dos sujeitos. O segundo refere-se à generalização da explicação 
psicológica, baseada nas vivências e fantasias dos sujeitos, ao conjunto das 
afecções englobadas sob a designação de psiconeurose. Esses dois desloca-
mentos convergiram na proposição da teoria da defesa cujo núcleo reside no 
mecanismo prototípico do recalque (Verdrängung). O terceiro deslocamento, 
consequência lógica dos dois anteriores, levou à postulação da continuidade 
entre o normal e o patológico na proposição de uma teoria geral do psiquismo 
e, portanto, uma teoria envolvendo não só a psicologia individual, mas também 
e necessariamente a sociedade e a cultura. 
No que se segue fazemos, em primeiro lugar, uma rápida observação 
acerca dos primeiros dois deslocamentos de modo a enfatizar o papel dos 
afetos na crescente generalização teórica com a passagem do modelo ainda 
inspirado na neuroanatomia para o modelo psicológico geral das neuroses 
e, posteriormente, para a metapsicologia, isto é, para uma teoria econômica, 
dinâmica e estrutural do psiquismo como um todo e tomado como campo epis-
têmico da nova ciência. Em segundo lugar, a partir do terceiro deslocamento, 
procuramos ressaltar a importância doa afetos nos comportamentos políticos. 
a) A conceptualização do afeto na Primeira Tópica
Pode-se seguir com alguma minúcia as transformações das ideias de 
Freud no período de 1892 a 1896 não somente através de seus artigos psi-
copatológicos visando a demarcação das psiconeuroses, mas e sobretudo, as 
cartas e manuscritos enviados a Wilhelm Fliess, que ocupou o lugar de seu 
supervisor e mentor intelectual (DRAWIN; MOREIRA, 2020). Numa conhe-
cida carta a Fliess de 1896, ele se confessa o surgimento de sua vocação até 
então oculta: “quando jovem, eu não conhecia nenhum outro anseio senão o 
de conhecimentos filosóficos, e agora estou prestes a realizá-lo, à medida que 
vou passando da medicina para a psicologia” (FREUD, 1896/1986, p. 181).
Concomitante à compreensão psicológica dos fenômenos clínicos 
também se consolida uma nova posição terapêutica: ele passa da sugestão 
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autoritária e da hipnose ao método catártico e valoriza cada vez mais a rela-
ção entre o terapeuta e o paciente. No primeiro caso do método catártico 
(Emmy von N.) sua técnica ainda era análoga a de Janet: tornar conscientes 
as representações patógenas e eliminá-las por meio de sugestão. Aos poucos, 
o “drama humano”, conforme a expressão de Politzer, encontrado nas nar-
rativas dos pacientes ocupará o primeiro plano e a personalidade do médico 
torna-se fator decisivo no tratamento. Pode-se dizer que Freud passa da téc-
nica objetiva da hipnose, ainda concebida com base em estados fisiológicos 
predisponentes, para, aos poucos, ganhar proeminência clínica a relação 
transferencial, a livre associação, a escuta e a atenção flutuante. O enigma 
aqui envolvido e especialmente desafiante para um médico com rígida forma-
ção em neuroanatomia, como Freud, pode ser formulado da seguinte forma: 
segundo as explicações científicas as afecções psíquicas devem ser efeitos ou 
mesmo epifenômenos derivados de causas objetivas e constatáveis por meio 
da investigação da anatomia patológica e, por conseguinte, a intervenção 
terapêutica somente é justificável e efetiva se for capaz de interferir nessa 
causalidade objetiva. Um programa de pesquisa cientificamente consistente 
deveria ser capaz de determinar as conexões entre as ocorrências patológicas 
no plano da anatomia e os sintomas psicológicos descritos pela psicopatolo-
gia. Se os fatores psicológicos se tornam preponderantes tanto no diagnóstico 
quanto no tratamento, então a dimensão subjetiva ganha certa autonomia com 
relação à causalidade objetiva, abrindo o espaço para considerar a sua sobre-
determinação pela causalidade psíquica. Mas pode-se manter ainda a ideia 
de causalidade quanto se trata das relações entre elementos exclusivamente 
psíquicos ou quando se aceita como possível a “determinação” psíquica dos 
processos corporais objetivos? A questão filosófica é bastante intrincada, 
pois depende do modo de compreendermos as ideias de “determinismo” 
e de “causalidade” e suas inter-relações (BEROFSKY, 2006, p. 225-226; 
KIM, 2006, p. 123-126). De qualquer forma, o enfrentamento da dificuldade 
implica a pressuposição de uma antropologia pluridimensional, ou seja, a 
aceitação do ser humano como um jogo de continuidade e descontinuidade 
na contínua interação ente natureza e cultura. Freud não tematizou filosofi-
camente o problema, mas o desenvolvimento de sua conceptualização aponta 
na direção da afirmação tanto da relativa autonomia do psíquico em relação 
ao biológico e, do social em relação ao psíquico, quanto de sua imbricação 
dialética (GREEN, 1995, DUFOUR, 2016, p. 19-101). 
Pode-se atribuir à conceptualização freudiana dos afetos, desde suas 
primeiras formulações, não somente, óbvia importância em sua teoria da 
sexualidade, mas, também, um lugar estratégico na articulação dos três pla-
nos antropológicos antes mencionados: o corporal, o psíquico e o social.Não 
havendo como acompanhar detalhadamente essa trajetória teórica vamos 
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nos ater a alguns poucos elementos conceituais presente no “Projeto de 
uma psicologia” de 1895 e na “Carta 52” de 1896 (FREUD, 1895/1995; 
FREUD, 1896/1986, p. 208-216).
Como entender a noção de causalidade psíquica neste contexto espe-
cífico da teorização freudiana? Como as ideias, os registros mnêmicos das 
vivências podem produzir efeitos atuais e posteriores? A resposta, numa linha 
semelhante à de Herbart, seria a seguinte: as ideias ou representações não 
devem ser concebidas apenas como conteúdos cognitivos, mas como forças, 
elementos mentais dotados de energia, investidos por uma quantidade de 
afeto. Instaura-se, então, uma fecunda inter-relação entre a teoria e a clínica: 
os fenômenos apreendidos na prática clínica são traduzidos em conceitos e a 
articulação dos conceitos lança uma nova luz sobre a significação dos fenô-
menos afetivos. Assim, por exemplo, os sintomas possuem uma significação 
psicológica, porém não são simplesmente “fatos de sentido”, isto é, apesar de 
serem eventos mentais a intencionalidade consciente não esgota nem o seu 
conteúdo e nem a lógica de seu funcionamento. Por isso o inconsciente, objeto 
paradoxal da psicanálise, não pode ser apreendido intuitivamente ou captado 
nas significações explícitas do discurso na atualidade de seus enunciados, exi-
gindo a intervenção de dois recursos conceptuais aparentemente heterogêneos: 
por um lado, remete à abordagem da história singular e concreta do sujeito 
aquilo que somente ele pode narrar, por outro, à abordagem do funcionamento 
objetivo do seu psiquismo por meio de uma teorização universal e abstrata, 
como se houvesse um mecanismo incrustrado no “interior” da subjetividade. 
A expressão “aparelho psíquico” indica essa dupla natureza da teorização 
psicanalítica: as narrativas do sujeito devem ser reconstruídas, porque não 
se procura simplesmente compreender uma máquina, mas descrever o seu 
funcionamento e explicar o seu nexo causal (RICOEUR, 1965, p. 13-153).
A etiologia das psiconeuroses de defesa em contraposição às explica-
ções fisiológicas, pressupõe que a causalidade não se restringe a estados e 
eventos corporais, localizáveis em lugares físicos e que podem ser tomados 
como antecedentes determinantes de estados e eventos mentais. Ao pressupor 
a cisão do psiquismo em lugares heterogêneos, a ocorrência da causalidade 
pode ser transposta para a relação entre diferentes grupos de representações 
incompatíveis. Por que incompatíveis? Porque o psiquismo não é transparente 
para o próprio sujeito por ser o resultado do entrecruzamento de realidades 
que o transcendem: a natureza e a cultura. Por conseguinte, apesar da ilusão de 
transparência e autodomínio derivada da atividade sintética do Eu, há espaços 
mentais que escapam às suas intenções conscientes e nelas produzem desvios, 
interferências e perturbações. Pode-se designar como causalidade psíquica o 
processo de inter-relação dinâmica desses lugares heterogêneos. Freud não 
discorre filosoficamente sobre o modo da interpenetração das realidades da 
natureza e da cultura na conformação do psiquismo. Não obstante, o estudo 
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comparativo das psiconeuroses, como se pode ver na contraposição entre a 
histeria e a neurose obsessiva, evidencia nos diferentes percursos do afeto o 
atravessamento do corpo e da linguagem (SCHNEIDER, 1993).
O conceito de pulsão (Trieb), explicitado apenas posteriormente na obra 
freudiana, permite reconstruir teoricamente este atravessamento e esta afeta-
ção do psiquismo, constatados clinicamente, como resultado de um impulso 
(treiben) que lhe é simultaneamente interno e externo e por isso Freud o 
define como “um conceito-limite entre o psíquico e o somático”. Enquanto 
conceito-limite (Grenzbegriff) a pulsão recobre tanto os estímulos provenientes 
do interior do corpo, quanto sua transposição num “representante psíquico” 
(Repräsentant), sendo o afeto o elemento vinculante entre os domínios corporal 
e representacional (FREUD, 1915/1999, p. 214; LAPLANCHE, 2016, p. 194-
197). No manuscrito enviado a Fliess e designada “Carta 52”, Freud apresenta 
um diagrama bastante elucidativo. O aparelho psíquico é apresentado segundo 
o modelo do arco reflexo, ou seja, um esquema constituído por uma entrada 
e uma saída de energia ou informação, percorrendo um circuito composto de 
etapas intermediárias na formação de uma cadeia associativa descontínua. 
A energia ou informação atravessa diversos meios e neles alguns elementos 
ficam retidos e não são transmitidos para a etapa posterior e outros seguem 
o percurso até se expressarem num comportamento verbal ou não. A entrada 
refere-se à percepção de algo vindo de fora, a recepção da energia ou infor-
mação, ora, se designarmos esta “exterioridade interior” como pulsão (Trieb), 
então ela se torna uma primeira inscrição no psiquismo. Esta primeira inscrição 
ou “signo de percepção” (Wahrnehmungszeichen) pode ser designada como 
“representante da pulsão” (Triebrepräsentanz), e este representante pulsional, 
por sua vez, pode ser diferenciado em dois componentes: o “representante 
representação” (Vorstellungsrepräsentanz) e uma pura quantidade de afeto 
(Affektbetrag). Esses dois componentes – a representação e a quantidade de 
afeto – têm diferentes destinos. As representações, separadas da quantidade 
de afeto, formam uma cadeia associativa, como um caminho pelo qual a quan-
tidade de afeto se desloca. Algumas representações permanecem fixadas no 
inconsciente como “representação-coisa” (Sachvorstellung) enquanto outras, 
associadas aos significados, podem emergir como “representação-palavra” 
(Wortvorstellung), permanecendo acessíveis e estocadas no pré-consciente 
ou aparecendo na superfície da consciência e se traduzindo na ação e lin-
guagem comunicacionais. E o destino do afeto? Separado da representação 
a que estava originariamente ligado ele deixa de ser uma quantidade pura e 
se manifesta em seu colorido qualitativo como medo, amor, ódio, ciúme etc. 
O “quantum” afetivo percorre uma trilha de representações e se distancia de 
seu vínculo primitivo, tornando-se aparentemente insensato, por seu caráter 
excessivo ou injustificável. Assim, por exemplo, uma bela e inocente borboleta 
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azul torna-se, para um sujeito fóbico, motivo de incontrolável pavor, porque 
em virtude da separação entre o afeto e a representação, a representação 
“borboleta” é apenas o invólucro das vivências primitivas de onde proveio 
o afeto. Este pode, também, ser diretamente descarregado como pura inten-
sidade desvinculada da representação, como ocorre numa crise de angústia 
na qual não se consegue nomear o motivo do mal-estar. A angústia mesmo 
quando não invasiva na forma de um “ataque” ronda o tempo todo os afetos 
e comportamentos (LAPLANCHE, 1987, p. 64-65). 
Certamente não podemos avançar na discussão dos diversos significados 
e desdobramentos do conceito de pulsão, mas dele aqui nos servimos apenas 
para indicar porque os afetos possuem uma dupla cidadania psíquica: são 
manifestações conscientes, aquilo que sabemos sentir, podemos descrever 
e atribuir certa razoabilidade, e são irredutíveis aos conteúdos mentais, aos 
propósitos racionais e ao trabalho associativo do Eu. Aquilo que não sabermos 
por que sentimos e temos dificuldade de justificar.
A primeira clínica freudiana mostra como o afeto quando não elabo-
rado associativamente produz um efeito traumático, aparecendo no sintoma 
como um “corpo estranho”, caracterizado por seu isolamento, incongruência e 
insensatez com relação à consistência da narrativa egóica. A cura inicialmente 
proposta

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