Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO KARINA QUINTANILHA FERREIRA A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR SÃO PAULO 2012 PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE DIREITO KARINA QUINTANILHA FERREIRA A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA NO CONTEXTO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL PÓS-DITADURA MILITAR Trabalho de Iniciação Científica do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo produzido sob a orientação do Professor Mestre Airton Andrade Leite. SÃO PAULO 2012 À comunidade sem voz: pela construção de uma existência digna, a todos nós. Agradeço ao Professor Ivan Llamazares Valduvieco por ter me inspirado a dar continuidade aos estudos de teoria política. Ao Professor Amálio, pela solidariedade em ter concedido algumas tardes preciosas para me auxiliar com questões que iam além do universo jurídico e pelas críticas construtivas que me servirão de apoio para novas reflexões a serem desenvolvidas ulteriormente. Ao Professor Antonio Rago Filho, pela maestria com que transmite os conhecimentos sobre a história e a arte humanistas e, sobretudo, por trazer um sopro de esperança de emancipação social à comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. À Anna Claudia Pardini Vazzoler e Sérgio Gomes, por terem me ajudado tão prontamente em momentos em que uma decisão havia que ser tomada para o seguimento do trabalho. Ao Eduardo Quintanilha e Adriana Quintanilha, por terem gentilmente, e de forma muito carinhosa, me auxiliado na finalização do texto por meio de comentários pertinentes e sagazes. Aos meus amigos(as) da PUC, por terem compartilhado momentos de alegrias e tristezas, de indignação e de utopia na prainha e na curva do rio durante os cinco anos de faculdade. À minha família, mesmo que por vezes distante, pela insistência naquela palavra chamada: companheirismo. Agradecimentos especiais aos meus pais, Carolina e Itamar, pelo amor, compreensão, apoio sempre presente e amizade, sem os quais nada disso teria significado. Ao Professor Airton Andrade Leite, orientador dessa iniciação científica, por ter sempre as palavras certas para me encorajar e por ter me deixado livre para criar, sem deixar de orientar com a mesma admirável dedicação. Muito Obrigada Acredite apenas “Acredite apenas no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem! Também não acredite no que seus olhos vêem e seus ouvidos ouvem! Saiba também que não crer algo significa algo crer!” (BRECHT, Bertold. Poemas 1913-1956/ Bertold Brecht; seleção e tradução de Paulo César de Souza - São Paulo: Ed. 34, 2000, p. 80) SUMÁRIO RESUMO _______________________________________________________________________________ 8 1. INTRODUÇÃO _________________________________________________________________________ 9 2. A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA OCIDENTAL NA FASE DESCENDENTE DA BURGUESIA _________________________________________________________ 14 2.1. A desconfiguração da questão social pela democracia burguesa do século XIX __________________ 14 2.2. A naturalização das desigualdades socioeconômicas no contexto da democracia burguesa do século XIX 19 2.3. Breve histórico do surgimento do monopólio dos meios de comunicação de massa _______________ 23 2.4. O “consenso fabricado” pelo paradigma liberal através dos meios de comunicação de massa _______ 28 3. AS BARREIRAS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL APÓS A DITADURA MILITAR ____________________________________________________________________ 32 3.1. A história da introdução do direito à comunicação na Constituição Federal Brasileira de 1988 como afirmação do Estado Democrático de Direito _________________________________________________ 36 3.2. O embate entre empresariado e movimentos sociais em torno da regulação da radiodifusão no Brasil a partir da transição para o regime democrático ________________________________________________ 43 3.3. A disputa entre o discurso hegemônico e o discurso contra-hegemônico na esfera pública da comunicação social eletrônica no Brasil pós 1985 _____________________________________________ 55 3.4. A relação entre o serviço público de radiodifusão e o poder político no Estado democrático de direito no Brasil________________________________________________________________________________ 63 3.5. A desconstrução da política como meio popular de transformação social durante a ditadura militar: uma crítica à atual política nacional de direitos humanos ___________________________________________ 69 3.6. A atual resistência à privatização do público no contexto da mercantilização da radiodifusão no Brasil: as rádios comunitárias em ação ___________________________________________________________ 76 3.7. O modelo de negócios tende a configurar as políticas públicas: crítica ao modelo de televisão digital adotado pelo Brasil _____________________________________________________________________ 85 4. A SOCIOLOGIA DO DIREITO COMO METODOLOGIA DE ESTUDO __________________________ 95 5. CONTEXTUALIZAÇÃO DA ABORDAGEM HISTÓRICA DA COMUNICAÇÃO SOCIAL NOS CENTROS DE PESQUISA DA AMÉRICA LATINA ___________________________________________ 103 6. CONSIDERAÇÕS FINAIS ______________________________________________________________ 109 BIBLIOGRAFIA ________________________________________________________________________ 115 REFERÊNCIAS ________________________________________________________________________ 122 Artigos de Jornais _____________________________________________________________________ 122 Publicações periódicas _________________________________________________________________ 122 Eventos _____________________________________________________________________________ 122 Documentos eletrônicos ________________________________________________________________ 123 Documentário ________________________________________________________________________ 125 ANEXOS ______________________________________________________________________________ 126 RESUMO O processo de democratização dos meios de comunicação eletrônica no Brasil, em especial o rádio e a televisão, apresenta muitas barreiras relativas não apenas à esfera legislativa, como também a outras, concernentes à problemática da concepção liberal da democracia ocidental, de uma determinada realidade socioeconômica e de uma formação legalista-formal em torno das declarações de direitos humanos. O objetivo central deste trabalho, fundamentado em pesquisa bibliográfica, é, por meio de uma abordagem interdisciplinar, problematizar, genericamente, que barreiras são essas e, especificamente, em que medida contribuem para a não efetivação do direito à comunicação na sociedade brasileira, tendo como recorte espacial e temporal o contexto da radiodifusão no Brasil pós- ditadura militar. A relação entre o serviço público de radiodifusão e o poder político, bem como a desconstrução da política como meio popular de transformação social durante o regime militar, resultaram na monopolização da comunicação social eletrônica. Ademais, a noção liberal da propriedade privada contribuiu para que fosse perpetuado um discurso dominante baseado na apropriação do espaço público pelo agente privado, em plena contradição com os princípios de liberdade e igualdade. A concretização do direito à comunicação faz parte da afirmação do Estado Democrático de Direito, motivo peloqual a democratização dos meios de comunicação tem sido pauta essencial dos movimentos sociais na esfera da contra-hegemonia. Palavras-chave: Emancipação; Regulação; Direitos humanos. CREATIVE COMMONS - Alguns direitos reservados Este trabalho de iniciação científica é disponibilizado pela Licença Pública Creative Commons “Atribuição - Uso não-Comercial - Vedadas Obras Derivadas 3.0”, desta forma qualquer um pode livremente obter, copiar e distribuir este texto sem qualquer custo, sob as seguintes condições: Seja indicado e atribuído crédito ao autor; Este trabalho não pode ser utilizado para qualquer fim comercial ou de lucro; Não é permitida a modificação de seu conteúdo; Essa licença deve ser mantida em todas as cópias; A licença completa está disponível em <http://creativecommons.org/licences/by-nc-nd/3.0/br/legalcode>. anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce 9 1. INTRODUÇÃO Por mais estranho que possa parecer, sinto que uma das maiores dificuldades ao longo deste trabalho esteve relacionada com a elaboração da introdução. Para ser sincera, somente após desenvolver o conteúdo da pesquisa, e ter inclusive finalizado as considerações finais, é que comecei a escrever a parte introdutória. A introdução me pareceu um desafio não apenas por representar o pontapé inicial de todo um estudo que foi materializado durante, em realidade, os cinco anos de faculdade, mas principalmente por ter a função, de certa forma, de convidar e, quem sabe, seduzir o leitor que entre em contato com o trabalho. Consciente disso, acredito ser importante expressar, ainda que brevemente, um pouquinho dos devaneios que levaram à existência desse estudo que agora apresento. Nas aulas de teoria política que foram brilhantemente ministradas pelo Professor Ivan Llamazares na Universidad de Salamanca no ano de 2010, tive o privilégio de adentrar num espaço de conhecimento vivo em que se discutia desde conceitos como política, liberdade, comunidade, (des)igualdade, autoridade e revolução, até outros como nação, feminismo e multiculturalismo. Os debates eram sempre precedidos da leitura de obras clássicas como “O príncipe” de Nicolau Maquiavel; “Leviatã” de Thomas Hobbes; “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens” de Jean Jacques Rousseau. Também outras obras consagradas como “A ideologia alemã” de Karl Marx; “O conceito do político” de Carl Schmitt e “Eichmann em Jerusalém” de Hanna Arendt. Aos poucos, fui me libertando das burocráticas sombras do direito positivado, incapazes de fornecer uma base sólida para explicar e oferecer soluções para certas contradições da nossa sociedade, e uma visão mais ampla e otimista sobre as possibilidades históricas de uma emancipação social começaram a surgir no horizonte, ainda que distante. Ao retornar à faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo já com planos de projetar algumas ideias concebidas durante o período de estudos na Espanha, através da indicação de colegas do curso, tive o prazer de conhecer o Professor Airton Andrade Leite, orientador desta iniciação científica, cujas pesquisas anteriores se voltaram à questão da comunicação social contra-hegemônica. Em trabalho desenvolvido junto ao núcleo 10 de projetos sociais do Escritório Modelo Evaristo Arns da PUC-SP, cuidou especialmente do tema relativo às rádios comunitárias. Foi então que, após diversos encontros tomados por indagações e reflexões, chegamos à conclusão de que um estudo que pretenda abordar a comunicação social deve conter uma perspectiva multidisciplinar da realidade em que se insere. Por isso, nos permitimos à miscigenação entre autores, e autoras, das variadas áreas de conhecimento, com especial interesse pela filosofia e sociologia. Diante de uma verdadeira biblioteca infinita de livros sobre o tema desse trabalho, o percurso que levou ao afunilamento do objeto de estudo passou por uma verdadeira revolução. Digamos que uma importante linha de raciocínio começou a ser trilhada, no início do segundo semestre do ano passado, junto com as aulas lecionadas de forma inesquecível pelo Professor Antonio Rago Filho no curso de História e Arte da faculdade de História da PUC- SP. Percorrendo desde François Rabelais, Mikhail Bakthin, Rousseau, até Walter Benjamin e Marshall Berman, a proposta do curso era apresentar aos alunos as curiosas redes que ligam a história e a arte humanista, e mais do que isso, resgatar uma proposta crítica de desestabilização da hierarquia social com base na cultura popular. A partir de então, alguns conhecimentos básicos sobre o pensamento jurídico moderno, a teoria política e a história foram sendo cruzados a fim de permitir a reflexão sobre um novo paradigma da comunicação social que correspondesse aos anseios emergentes de emancipação social. Para tanto, foi imprescindível desconstruir as bases do paradigma dominante que se espelham na história da democracia burguesa. Os estudos realizados até aquele ponto me fizeram crer que eu deveria abordar a problemática da monopolização da radiodifusão no Brasil não apenas como um problema decorrente da realidade socioeconômica brasileira, mas como resultado de uma crise paradigmática, qual seja a da concepção liberal da democracia nas sociedades ocidentais no período pós Revolução Francesa. O salto qualitativo da pesquisa, a partir dessa constatação, posso dizer que foi significativo e exigiu um grande esforço no sentido de alinhar a bibliografia. A elaboração de um eixo de pesquisa que atendesse a essas expectativas me permitiu entrar em contato com questões teóricas até então obscuras para mim, mas fundamentais para a discussão do tema, como a problemática da abstração e da universalização de direitos, a 11 “ilusão jurídica”, a naturalização das desigualdades sociais e o deslocamento da questão social para a questão do indivíduo. Após ter problematizado tais fenômenos da democracia ocidental contemporânea, pude reconhecer o quanto a ignorância das atuais teorias de conhecimento pela realidade socioeconômica decorre de uma ideologia que desconsidera o social em detrimento do individual e reflete um modelo de democracia que marginaliza a participação das classes subalternas nas instituições políticas. Diante desse material teórico, que remete ao período da história em que a burguesia tomou o poder, posso dizer que a maior dificuldade foi criar uma linha condutora para relacionar a crítica à concepção liberal da democracia na fase descendente da burguesia com a problemática da concentração da radiodifusão no Brasil pós-ditadura militar. A estratégia utilizada, então, foi a de tentar organizar as ideias em capítulos e subcapítulos de forma a criar uma parte teórica e outra prática que permitisse o movimento no texto sem perder a sua característica orgânica, sempre que possível contextualizando o período histórico. Sem mais devaneios, faço agora uma breve introdução dos capítulos, que foram divididos entre os itens 2, 3, 4 e 5. Logo no item 2, a fim de problematizar a concepção liberal da democracia na fase descendente da burguesia entraram em cena autores como Domenico Losurdo, com as suas indagações sobre a democracia e a tradição liberal; José Chasin para abordar o fenômeno da abstração e da universalização dos direitos; o Mészáros para discutir a ideologia liberal; a Chaui e o Lyra Filho para questionar a liberdade e a igualdade no Estado democrático de direito da sociedade capitalista; o Meksenas para fazer a ponte entre cidadania, poder e comunicação. Situamos, ainda nesse capítulo, o momento do surgimento do monopólio dos meios de comunicação de massa com o intuito de demarcar o período histórico em que a burguesia abandonou o seu ideal de livre formação da opinião pública. Ressaltamos também o fenômeno identificadopor Orwell de “censura voluntária em sociedades livres” e aquele denominado por Chomsky como “consenso fabricado” como forma de levantar um questionamento sobre a legitimidade da democracia representativa. Pontuamos tais questões na tentativa de obtermos embasamento teórico para a argumentação do que entendemos por democratização dos meios de comunicação. Com base nessa ideia, a concepção liberal da democracia, de caráter superficial, baseada na representatividade e na igualdade formal-abstrata, bem como na centralização política, não anaco Realce anaco Realce anaco Realce 12 encontra seu locus de identidade nesse trabalho. Pelo contrário, a democracia participativa, de caráter popular, com a descentralização das tomadas de decisão, e com a efetivação dos ideais de liberdade e igualdade se mostra como norteador da democracia que defendemos. Com base nisso, já no item 3, discutimos as dificuldades do processo de democratização da comunicação social eletrônica no Brasil, que deveriam ser vistas criticamente tanto como fruto do coronelismo eletrônico, como decorrentes de um paradigma dominante fundamentado no direito à propriedade individual do social. Argumentamos que a concentração dos meios de comunicação constitui em uma afronta à democracia como um todo, e é particularmente oposta aos direitos de liberdade e igualdade de todos os cidadãos em concreto. Impede, em última instância, a livre formação da opinião pública, bem como inutiliza o direito à comunicação. Como referência histórica demarcamos a dominação do serviço público de radiodifusão no Brasil por poucas famílias aristocratas e políticos, que deu origem a uma verdadeira oligarquia multimidiática, muitas vezes chamada de coronelismo eletrônico, o que nos permitiu substituir a nomenclatura de Estado democrático de direito por Estado oligárquico de direito. Para situarmos o objeto de estudo no espaço e no tempo, nos esforçamos para fazer um recorte do contexto da radiodifusão no Brasil no período que se estendeu após a ditadura militar, com tudo o que sobrou dela. O rádio e a televisão foram escolhidos por ainda constituírem, muitas vezes, a única fonte de contato com a esfera pública por grande parte da população brasileira, motivo pelo qual ainda são considerados poderosos agentes de convencimento e de formação do senso comum. Recorremos ao pensamento lúcido de Paulo Arantes para obtermos um panorama realístico da sociedade brasileira contemporânea, especialmente no que diz respeito à atual política nacional de direitos humanos. Para fazer o diálogo entre democracia, poder e comunicação no Brasil nos baseamos, primordialmente, em Paulo Meksenas, Paulo Freire e Marilena Chaui. No tocante ao conceito jurídico do serviço público de radiodifusão e o seu tratamento constitucional foi utilizada a doutrina de Dalmo de Abreu Dallari, Celso Antônio Bandeira de Melo e José Afonso da Silva. Ainda, com relação à abordagem multicultural do direito à comunicação sob uma perspectiva contra hegemônica, emprestamos a análise de Boaventura de Sousa Santos, leitura que foi obrigatória ao longo de toda a pesquisa. anaco Realce Hoje acredito que tenha se passado par redes de comunicações mais atuais, como computadores e celulares anaco Realce 13 Verificamos que, apesar do poder institucional da comunicação exercido pelos latifundiários da informação perpetuarem um discurso (des)emancipatório da democracia, como se a apropriação do público pelo privado fizesse parte do processo democrático, não se trata de um poder hegemônico. Através do conflito, seja com as instituições políticas, seja com as burocráticas legislações e tribunais que criminalizam e dificultam a participação cidadã no serviço público de radiodifusão, o poder popular, em conjunto com os movimentos sociais, vem a questionar a naturalidade por detrás dessa dominação e vem ocupando cada vez mais espaços públicos como forma de exercitar a cidadania. No item 4, a sociologia do direito foi apresentada como metodologia de estudo a fim de dar embasamento teórico à forma como o trabalho foi realizado, além do que nos serviu para problematizar o direito a partir de uma visão social dialética. Por fim, no item 5, desde uma perspectiva interdisciplinar, apresentamos a abordagem histórica da comunicação social nos centros de pesquisa da América Latina para que o leitor seja contextualizado a respeito da relevância dos estudos originados em terras latino- americanas após a introdução do rádio e da televisão. Esse item foi importante para deflagramos que, desde cedo, os pesquisadores latinos perceberam que os modelos de análise e crítica importados do primeiro mundo não se encaixavam nas peculiaridades do nosso solo mestiço, e que deveriam ser reformulados a partir de uma ótica do Sul. Observamos que a mediação histórica foi utilizada por todo o percurso, não como símbolo do progresso, mas para demonstrar como o ocultamento de determinados aspectos da história revelam, na verdade, um viés ideológico. anaco Realce anaco Realce 14 2. A PROBLEMÁTICA DA CONCEPÇÃO LIBERAL DA DEMOCRACIA OCIDENTAL NA FASE DESCENDENTE DA BURGUESIA Nesse capítulo, pontuamos as primordiais circunstâncias históricas da Modernidade que contribuíram para que o processo de democratização iniciado após a Revolução Francesa rumasse para a categoria dos “universais abstratos” e para uma concepção de social como sinônimo de “soma de indivíduos”, na medida em que o senso crítico de toda a estrutura econômica se banalizava para ocultar a complexidade por detrás da concretização da democracia substancial 1 . De forma plural e não estática buscamos, na interdisciplinariedade entre diversos autores de variadas áreas do conhecimento, verificar como que a perspectiva liberal da democracia almeja à emancipação de uma classe social e não à emancipação humana integralmente, a princípio imaginada por alguns ideólogos iluministas. Por considerar a livre formação da opinião pública como uma conquista fundamental para a democracia real, recorremos à problemática da concentração dos meios de comunicação desde o surgimento do capitalismo monopolista para analisar como a ideologia 2 dominante marginaliza a participação das classes subalternas nas instituições políticas. 2.1. A desconfiguração da questão social pela democracia burguesa do século XIX O caráter (des)emancipatório da análise liberal que tomou forma após a Revolução Francesa não leva em consideração a relação entre a questão social e as instituições político- sociais, deslocando a discussão para a problemática do livre-arbítrio do indivíduo, ou seja, 1 As diferenças entre a democracia formal e a democracia substancial podem ser encontradas em Losurdo (2004: 257-261). 2 Segundo Lyra Filho (1987: 123), ideologia é “uma crença falsa, uma 'evidência' não refletida que traduz uma deformação inconsciente da realidade (...) Raciocinamos a partir dela, mas não sobre ela, de vez que considerá-la como objeto de reflexão e fazer incidir sobre aquilo o senso crítico já seria o primeiro passo da direção superadora, isto é, iniciaria o processo da desideologização”. 15 legitima a exploração de uma classe mediante o princípio da justiça, conforme o mérito pessoal de cada ser individualmente considerado. 3 O individualismo liberal, como assinala Losurdo (1998: 204): “tende a dissolver a questão social em um problema atinente exclusivamente, ou em primeiro lugar, ao indivíduo, a um problema que não põe tanto em causa a objetiva configuração das relações jurídicas e sociais, mas a capacidade, as atitudes e também a disposição de espírito do indivíduo afligido pela pobreza”. Na contramão do liberalismo (des)emancipador que estava por vir, Hegel, antes mesmo de Marx, tendo observado que a desigualdade, acima de um grau tolerável, anula a liberdadedo indivíduo, teorizou sobre a existência de “direitos materiais” irrenunciáveis, sem os quais a liberdade concreta e os direitos não podem subsistir. 4 Ainda no contexto de uma Inglaterra aristocrata Hegel denunciou a irracionalidade com que se equiparava o direito à vida ao direito de propriedade no momento de atribuir penas de morte tanto aos crimes de assassinato quanto de roubo na Inglaterra anterior a 1848. Também adquiriu preocupação central na crítica de Hegel o aspecto formal da liberdade em que uma minoria da aristocracia inglesa se apropriava da esfera pública para utilizar dos direitos políticos atribuídos por uma quantidade bem maior de pessoas. Com a burguesia no poder pouco, ou nada, mudou para avançarmos no sentido da emancipação humana, até então idealizada pelos teóricos do iluminismo. Foi no período posterior à Revolução Francesa (1789), exemplo consolidado da luta de classes em que as estruturas sociais foram obrigadas a mudar, que as pretensões liberais de liberdade e igualdade do período ascendente da burguesia 5 , que sustentaram a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, foram abandonadas em troca de uma ideologia acrítica com relação à ordem socioeconômica e política capitalista. 6 3 MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 491. 4 LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, Estado. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 184. 5 Chaui (2010: 99) relata que “Esse otimismo da classe burguesa ascendente desaparecerá quando, no século XIX, os movimentos populares e proletários revelarem a injustiça das leis e a inexistência concreta dos direitos declarados nas várias revoluções. Os trabalhadores são vistos como “classe perigosa” e dão medo”. 6 “Reparem, por exemplo, no caso da burguesia: como classe ascendente, quando estava na vanguarda, enriqueceu o patrimônio jurídico da humanidade. Quando chegou ao poder deu a “coisa” por finda, isto é, quis deter o processo para gozar os benefícios e se recusou a extrair as consequências de sua revolta contra a aristocracia e o feudalismo. Ficou, portanto, uma contradição entre a libertação parcial, que favoreceu os burgueses, e o prosseguimento da libertação, que daria vez aos trabalhadores”. (LYRA FILHO, 1987: 176) anaco Realce 16 Desde então, a burguesia, naquilo que pode ser concebido como a sua fase descendente, se ancorou na corrente do cientificismo positivista a fim de barrar qualquer indício de transformação radical do status quo. A concepção original do cientificismo positivista estava vinculada às grandes expectativas de um otimismo evolucionista um tanto simplório. Compreensivelmente, a repetida erupção de crises capitalistas na segunda metade do século XIX pôs um fim em tudo isso. Resultou disso a remodelação da ideologia do cientificismo em um molde profundamente cético, se não completamente pessimista. Sua abordagem anti-histórica dos problemas encontrados tornou-o extremamente adequado à “eternização” e legitimação ideológica do sistema estabelecido, especialmente porque também apresentava a ilusão de temporalidade: uma ilusão diretamente emanada da própria ciência. (MÉSZÁROS, 2010: 254). Essa nova tendência de pensamento intelectual foi responsável por garantir a propagação da teoria liberal que sustentava a abstração das categorias de liberdade e igualdade. Durante esse período, o desenvolvimento pleno do capital acentuou a contradição entre os interesses da burguesia e o interesse geral. Os limites expostos pela propriedade privada evidenciaram a sectarização entre tais interesses. Com o tempo, as próprias conquistas da burguesia, como o sufrágio universal e a liberdade de imprensa, foram paulatinamente sendo reprimidas em nome do capital e da dominação. Como forma de protestar contra a democracia burguesa de sua época, respeitadas as divergências ideológicas com Hegel e Marx, Lassale teve razão em observar que: “Os direitos que o liberalismo pretende... nunca os quer para o indivíduo enquanto tal, mas sempre para um indivíduo que se encontre numa situação particular, que pague certas taxas, seja provido de capitais etc.”. 7 Assim, a racionalidade contida na representação liberal da democracia subsume a discussão da problemática de classes à ideologia liberal de uma suposta igualdade formal entre indivíduos forjada por categorias de termos universais. 8 A corrente liberal, quanto mais degenerada, se apropria de universais abstratos, de maneira que a análise em concreto é substituída pela generalização em abstrato através da utilização da categoria social como “soma dos indivíduos”. Segundo Chasin (2000: 82) “... na medida em que o social é a soma de indivíduos, o jurídico não pode deixar de ser a aparência que elide a desigualdade concreta”. Tal precedente 7 LASSALE, Ferdinand apud LOSURDO, Domenico. Hegel, Marx e a tradição liberal. Liberdade, igualdade, Estado. São Paulo: Editora UNESP, 1998, p. 186. 8 CHASIN, José. A Determinação Ontonegativa da Politicidade. Ensaios Ad Hominem - edição especial, Tomo III - Revista de Filosofia/ Política/ Ciência da História. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000. 17 encontra suas raízes nas relações de troca de mercadorias, já que a ideologia liberal coisifica as relações humanas em troca de garantir a igualdade formal entre os indivíduos. A expressão “soma dos indivíduos” deve ser compreendida no contexto do formalismo jurídico abstrato em que se ampararam os teóricos liberais da democracia burguesa. Para Santos (2010: 284): A teoria política liberal - o máximo de consciência teórica da modernidade capitalista - sempre privilegiou, como dispositivo ideológico, o universalismo antidiferencialista que accionou politicamente através das ideias da cidadania e dos direitos humanos. Nessa concepção liberal, protege-se legalmente o universal, formal e abstrato, para mistificar a (des)emancipação de cada ser individual concretamente considerado. 9 A abstração, portanto, se mostra como uma contradição da própria estrutura social estabelecida, motivo pelo qual supõe seja a categoria dos direitos um campo independente e auto- regulado. 10 No intuito de situar o momento da incorporação da teoria da abstração dos direitos pela ideologia apologética, nos valemos do jurista José Afonso da Silva (2008: 117), para quem o Estado de Direito: (...) é uma criação do liberalismo. Por isso, a doutrina clássica repousa na concepção do Direito natural, imutável e universal, daí decorre que a lei, que realiza o princípio da legalidade, essência do conceito de Estado de Direito, é concebida como norma jurídica geral e abstrata. Nesse Estado de direito, o direito humano de liberdade é sinônimo de direito humano da propriedade privada, motivo pelo qual sucumbe em utopia o direito à autonomia real do 'ser social' teorizado por Marx. 11 Na concepção marxiana o Direito faz parte de um 'processo social' de 'libertação permanente' do homem, em que “(...) esse 'ser real' - esse homem na sociedade - não é apenas um boneco sem vida que as forças sociais movimentam. Ele se conscientiza, reage e se liberta dos condicionamentos”. 12 9 Como assinala Chasin, ao se referir ao pensamento de André Vachet: “O individualismo não é indiferenciado, nem abstrato, identifica-se com um conteúdo determinante, a propriedade, que toma um caráter absoluto e definitivo. É representado como a raiz das manifestações da pessoa: a liberdade, a igualdade e a segurança. Resume positivamente os interesses, os poderes, os direitos e deveres, determina os valores e as significações e caracteriza o indivíduo como totalidade. /.../ A propriedade, sobretudo a propriedade-capital /.../ obtém assimuma posição imperialista capaz de submeter a outros direitos e valores /.../ Em todos os setores a propriedade terá a posição de primeiro princípio”. 10 MÉSZÁROS, István. O Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 506. 11 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 50. 12 LYRA FILHO, Roberto. O Que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 175. anaco Realce 18 Chaui (2010: 100) observa que, para Marx, o Estado de Direito nas sociedades capitalistas é sempre uma abstração, uma vez que a igualdade e a liberdade reivindicada pela sociedade civil e formalizada pelo Estado em forma de lei não existem. Nessa perspectiva, os direitos do homem e do cidadão, além de ilusórios, estão a serviço da exploração e da dominação, não sendo casual, mas necessário, que o Estado se ofereça como máquina repressiva e violenta, provocando medo nos sem- poder, uma vez que o Estado e o direito nada mais são do que o poderio particular da classe dominante sobre as demais classes sociais. 13 Para os ideólogos liberais, a garantia em abstrato da igualdade e liberdade pelo Estado é suficiente para que cada indivíduo tenha iguais condições de negociar o contrato social. Oculta-se, através do campo jurídico em abstrato, ou melhor, das constituições liberais protetoras dos direitos formais de primeira, segunda e terceira geração, a hegemonia da classe dominante. A ficção legal criada em torno da igualdade ao nível dos direitos abstratos é denominada de “ilusão jurídica” que, para Mészáros (2008: 163): é uma ilusão não porque afirma o impacto das ideias legais sobre os processos materiais, mas porque o faz ignorando as mediações materiais necessárias que tornam esse impacto totalmente possível. As leis não emanam simplesmente da 'vontade livre dos indivíduos', mas do processo total da vida e das realidades institucionais do desenvolvimento social-dinâmico, dos quais as determinações volitivas dos indivíduos são parte integrante. A negação do fetichismo jurídico, por sua vez, nos ajuda a compreender que a centralidade do debate está na estruturação contraditória das relações jurídicas e sociais 14 , e não apenas na questão da formalidade dos direitos estabelecidos sob a égide da propriedade privada. Detemo-nos um instante para refletir sobre como o teor ideológico da análise liberal resvala na crença daqueles que não conseguem imaginar um mundo civilizado em que seja garantido o direito à propriedade privada 15 dos meios sociais de produção para todos e acabam por ser coniventes com o controle e as disparidades sociais, por medo de uma qualquer teoria do caos e perda de poder, como o próprio Rousseau imaginou: 13 CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a ed., 2010, pp. 100-101. 14 Com base em Marx, Lyra Filho (1987: 175) afirma que: “As relações sociais - inclusive as relações de produção - constituem relações entre homens, e não entre peças duma máquina. Aliás, se não fosse assim, se tudo fosse aparelho, precisaríamos de um 'deus dos aparelhos' para movimentar a História e fazer com que a 'máquina' funcionasse”. 15 Segundo Chaui (2010: 103): “É preciso que os não-proprietários dos meios sociais de produção também sejam considerados proprietários - do seu corpo, de sua pessoa, dos bens necessários à vida e, evidentemente, de sua força de trabalho -, sem o que os indivíduos não se acham validados para as relações firmadas em contratos (...)”. anaco Realce anaco Realce 19 É certo que o direito de propriedade é o mais sagrado de todos os direitos da cidadania, e até mais importante, em alguns aspectos, que a própria liberdade: a propriedade é a base verdadeira da sociedade civil, e a garantia real dos empreendimentos dos cidadãos, pois, se a propriedade não fosse adequada às ações pessoais, seria muito fácil burlar os deveres e rir das leis. (ROUSSEAU apud MÉSZÁROS, 2008: 202). Os teóricos liberais partem do pressuposto de que essa realidade social é formada por indivíduos naturalmente egoístas ou de que a alienação decorre das “instituições sociais perversas” insuperáveis, motivo pelo qual os cidadãos devem legitimar o Estado como instância separada e superior que possui direito de coagir mediante leis estabelecidas pelos próprios homens, no melhor estilo do “uso legal da violência” pelo Estado a que se refere Weber. 16 Sob essa perspectiva, as categorias de liberdade e igualdade serão sempre ideais abstratos. 17 A ideologia liberal rejeita, portanto, a tese de que essa abstração é fruto das contradições do próprio sistema. Não vislumbra que a alienação e a impossibilidade de aplicação real dos direitos fundamentais decorrem da questão social, qual seja a relação desigual de trabalho imposta por uma estrutura dominante de opressão. Para superar o universalismo abstrato, Santos (2010: 21) propõe: “um universalismo concreto, construído de baixo para cima, através de diálogos interculturais sob diferentes concepções da dignidade humana”. 2.2. A naturalização das desigualdades socioeconômicas no contexto da democracia burguesa do século XIX Para compreender como a estrutura econômica 18 imposta pelo capital dificulta a problematização da democracia além do seu aspecto meramente formal e alimenta o pensamento jurídico contemporâneo conservado na distinção entre Estado político e sociedade civil, situamos brevemente o período histórico em que se desenvolveu a democracia burguesa no século XIX. 16 CHAUI, Marilena. Simulacro e Poder: Uma Análise da Mídia. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2a ed., 2010, p. 94. 17 MÉSZÁROS, István. Filosofia, Ideologia e Ciência Social. São Paulo: Boitempo, 2008, pp. 159-161. 18 Mészáros (2008: 164) explica que, para Marx, a estrutura econômica da sociedade “não é uma entidade material bruta, mas um conjunto de relações humanas determinadas, que, precisamente como tais, estão sujeitas a mudanças, e até mesmo à mudança mais radical proveniente de uma deliberação humana socialmente consciente (socialista)”. anaco Realce anaco Realce 20 No século XIX, o processo de industrialização alavancado pela nova classe social fez emergir uma fase histórica da modernidade em que a mercadoria se torna o centro das relações pessoais. Nessa conjuntura, verificamos um processo de mercantilização que atinge grande parte das criações humanas, como a arte e a literatura. Como referência de pensamento crítico sobre a modernidade, evocamos os desdobramentos teóricos benjaminianos. Walter Benjamin, integrante que foi da Escola de Frankfurt, analisou a história cultural desse período através do estabelecimento de relações entre o desenvolvimento da cidade, meios de reprodução e produção literária. Disso resultou o seu estudo das modificações do modo capitalista, suas implicações na vida e na história. Escreveu sobre como a Europa no século XIX, pela primeira vez até então, se deslocou motivada pelo desejo de possuir mercadorias. 19 As exposições universais transfiguram o valor de troca das mercadorias. Criam uma moldura em que o valor de uso da mercadoria passa para segundo plano. Inauguram uma fantasmagoria a que o homem se entrega para se distrair. A indústria de diversões facilita isso, elevando-o ao nível da mercadoria. O sujeito se entrega às suas manipulações, desfrutando a sua própria alienação e a dos outros. (BENJAMIN, 1985: 35). A troca generalizada de mercadorias colocou em evidência, de forma inaugural, a relação social trabalho. A centralidade da categoria trabalho, no entanto, passou a ser problemática quando inserida num contexto de exploração pelo poder através da divisão de classes sob o critério da propriedade privada. Marshall Berman, escritor já do século XX, em suaobra “Tudo que é sólido desmancha no ar”, também refletiu sobre o impacto do processo de modernização burguesa sobre a sociedade. Berman se baseou em Marx para afirmar que existe uma relação dialética entre burguesia, processo de modernização 20 , que implica todo o conjunto de transformação de uma sociedade agrária em uma sociedade urbano-industrial em que o capital é o centro das relações, e o processo de modernidade, caracterizado pelo fluxo de transformações permanentes em que as relações humanas são fluídas, dinâmicas e instáveis, dada a necessidade da expansão permanente do sistema econômico para a reprodução do capital. A reflexão do autor deflagra, assim, um processo de modernização em que o capital só é capaz de se reproduzir mediante a sua própria expansão desenfreada. 19 Das diversas acepções que a palavra mercadoria pode receber, Benjamin se refere à matéria envolta de valor superfaturado pelo fetichismo e exposta como objeto de luxo em galerias. 20 Processo de modernização no sentido dado por Berman (2007: 158), como “um complexo de estruturas e processos materiais - políticos, econômicos, sociais - que, em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e da alma humana”. anaco Realce anaco Realce anaco Realce 21 A partir da Revolução Industrial, a alienação gerada pelo modo de produção capitalista produziu a fragmentação da capacidade humana através da dominação material e espiritual dos meios de produção sociais. (...) a alienação predomina em todas as ocupações e sobre todas as facetas da vida, desde o funcionamento das estruturas econômicas fundamentais até as relações pessoais mais íntimas dos indivíduos que constituem a sociedade. (MÉSZÁROS, 2008: 158) O capital se apoderou o quanto pôde, tanto do poder concreto das forças produtivas, pelo qual o proletariado está sujeito à divisão de trabalho, quanto do domínio abstrato, ou seja, busca limitar, pela via da determinação econômica, mas não apenas, a liberdade sobre as criações do espírito humano. Dessa forma, há quem defenda, como Mészáros e Chaui, que os homens, despidos de real liberdade e igualdade, se tornaram menos livres após a Revolução Francesa, por terem sido subjugados ao poder das coisas (contratos privados), independentemente de sua vontade de ingressar nesse contrato social. 21 A liberdade e a igualdade do iluminismo foram transformadas em categorias de classe em detrimento da perpetuação da dominação por meio da propriedade privada. 22 Nessa conjuntura, a crise da teoria liberal clássica é fruto das contradições da implantação do capital, com a consequente perda da legitimidade do Estado burguês. A exploração do trabalho humano e a miséria, que se instaurava na mesma medida em que aumentava o desagrado do povo frente a essa (des)emancipação das pretensões burguesas do período iluminista, culminaram nas revoluções populares de 1848. A organização da Comuna de Paris, como ilustração histórica da auto-organização do povo, se destacou pela agilidade através da qual o movimento popular articulou a transformação do descontentamento com a burguesia na imposição da vontade das classes subalternas. O triunfo do poder revolucionário, de 18 de março à 28 de maio de 1871, inspirado no Manifesto Comunista, foi responsável pela abolição das estruturas permanentes, como o Estado e o exército, e instauração de formas de poder democrático através da destruição da burocracia estatal. Não foi muito duradoura devido à violência com que foi suprimida e o seu 21 De acordo com Chaui (2010: 96): “Os autores clássicos afirmam que, por natureza, os homens não conseguem garantir seus direitos naturais; para garanti-los, recorrem ao contrato social, a partir do qual decidem alienar seus direitos naturais a uma instância soberana que os transforme em direitos civis e positivos, por meio das leis. Essa instância é o Estado”. 22 Para Lyra Filho (1987: 178): “A grande inversão que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam”. anaco Realce anaco Realce anaco Realce 22 caráter localizado, seguida de um massacre de parisienses de proporções jamais vistas naquele século (HOBSBAWN, 2006: 126). No final do século XIX, a constante necessidade de expansão do capital resultou no capitalismo exercido em sua vertente monopolista, exigindo que a dominação implicasse em naturalizar as contradições da burguesia através de uma defesa apologética desse sistema. Essa naturalização consiste em omitir e deturpar a conscientização em torno da exploração de uma classe pela outra, bem como combater com violência o poder revolucionário. 23 A filosofa Chaui (2010: 100) reparte esse ocultamento em duas linhas de frente, quais sejam: O primeiro ocultamento da divisão de classes se dá no interior da sociedade civil (isto é, dos interesses dos proprietários privados dos meios sociais de produção) pela afirmação de que há indivíduos e não classes sociais, de que esses indivíduos são livre e iguais, relacionando-se por meio de contratos (...) O segundo ocultamento da divisão de classes se faz pelo Estado, que, por meio da lei e do direito positivo, está encarregado de garantir as relações jurídicas que regem a sociedade civil, oferecendo-se como pólo de universalidade, generalidade e comunidade imaginárias. Nesse período, a burguesia dá início ao projeto de supressão das ideias socialistas a fim de garantir a supremacia da propriedade e do lucro. Para tanto, reduziu a amplitude democrática de suas próprias instituições, dentre elas o direito ao sufrágio universal, os direitos civis e a liberdade de imprensa, com o intuito de possibilitar o fortalecimento do Poder Executivo e retomar o controle sobre os negócios privados. Com efeito, são os anos nos quais a burguesia é forçada a recorrer, como vimos, a instrumentos políticos suplementares (imposição legal de taxas onerosas e garantias para a publicação em órgãos de imprensa), com o objetivo de reduzir ao máximo ou cancelar inteiramente a influência ideológica das classes subalternas. (LOSURDO, 2004: 153). Os teóricos liberais, após terem abandonado a crítica da estrutura econômica e das formas superestruturais correspondentes de dominação do homem pelo homem, se limitaram, numa espécie de reificação, ao questionamento da esfera política. Nesse aspecto, a democracia advinda do modelo liberal é conduzida como imagem e semelhança de uma superestrutura jurídica fundada na generalização abstrata. (...) o argumento é que a “abstração” que testemunhamos não é apenas um traço da teoria jurídica, que em princípio poderia ser remediado através de uma solução teórica adequada, mas uma contradição insolúvel da própria estrutura social. (MÉSZÁROS, 2008: 159). 23 Ao se referir ao pensamento de Marx, Chaui (2010: 100) discorre que “a sociedade capitalista, constituída pela divisão interna de classes e pela luta entre elas, requer para seu funcionamento, a fim de recompor-se como sociedade, aparecer como indivisa, embora seja inteiramente dividida”. anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce utiliza-se do direito como forma de ocultar a divisão de classes anaco Realce 23 A crítica marxiana 24 tem contribuição central nesse debate, por compreender que a sociedade civil é a condição material de existência das relações jurídicas e das formas de Estado. No Estado burguês, a sociedade civil forma uma indivisível categoria histórico-social em que a força produtiva revela ser o mais importante elemento para o desenvolvimento humano. Nesse sentido, orompimento com a ideologia liberal clássica se dá pela percepção de que a existência social do ser humano é que determina a sua consciência, e não o contrário. 25 Lembramos, com Marx, que consciência é conscientização; e também que liberdade é libertação; isto é, consciência não é uma coisa que nós temos, porém que vamos construindo, vamos livrando do que nossos dominadores botam lá (ideologia); e liberdade também não é uma coisa que nós possuímos; pelo contrário: ela vive amarrada e nós temos de cortar os nós. (LYRA FILHO, 1987: 175). A teoria crítica de Marx trata de visualizar, em cada caso concreto, a relação entre a estrutura social e política e a produção, já que o material, ou seja, a condição de vida dos indivíduos, é o determinante para o materialismo histórico. Quando a análise política fica alienada de sua forma econômica ou social o resultado é a perpetuação de uma análise totalizante que desagua na crise da generalidade abstrata. 26 Por isso, a distinção entre Estado político e sociedade civil é parte fundamental para a superação desse processo político alienante. 2.3. Breve histórico do surgimento do monopólio dos meios de comunicação de massa Como já foi dito aqui, num contexto de monopólio do controle dos meios de produção material, a classe dominante se esforça para controlar também os meios de produção 24 Santos (1988: 70) enaltece a importância da teoria marxista para o pensamento de transformação social e aponta que devemos “fertilizá-la com os resultados científicos de outras tradições teóricas, numa atitude científica pluralista, ainda que não eclética, e sem abrir mão da lógica (que não apenas das categorias) da teoria marxista (para o que terá de atender-se a condições tão diferentes como o nível cultural dos participantes em debates democráticos cada vez mais amplos e a materialidade das condições políticas de cada país)”. 25 Para reforçar essa imagem, Freire (2006: 12) afirma que: “O mundo da consciência não é criação, mas sim, elaboração humana”. 26 CHASIN, José. A Determinação Ontonegativa da Politicidade. Ensaios Ad Hominem - edição especial, Tomo III - Revista de Filosofia/ Política/ Ciência da História. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, 2000. anaco Realce 24 espiritual. Por seus amplos poderes de persuasão e desinformação, os mass media 27 , como são atualmente chamados, nas mãos dos maiores interessados na manutenção dessa ordem social e na reprodução do capital, possuem central relevância no processo de (des)emancipação da democracia burguesa. A fim de viabilizar a livre formação da opinião pública, Marx, ainda antes do surgimento do capitalismo monopolista, ressaltava a importância da existência de uma imprensa livre para a prática social, e consequentemente para o processo democrático. A imprensa livre é o olhar onipotente do povo, a confiança personalizada do povo nele mesmo, o vínculo articulado que une o indivíduo ao Estado e ao mundo, a cultura incorporada que transforma lutas materiais em lutas intelectuais, e idealiza as suas formas brutas. (MARX, 2010: 60) A definição de imprensa livre idealizada por Marx é semelhante à visão que Hegel tinha da imprensa de sua época. Para este, a imprensa era como um meio de exercício da cidadania, por aproximar o individual ao coletivo na formação de consciência. 28 Foi o caso da função primordial exercida pelo jornal durante a Revolução Francesa que serviu de instrumento do Terceiro Estado na promoção de debates e na articulação da sociedade civil. Também há relatos de que o estilo rabelaisiano de crítica política ressurgiu nesse período com o uso da pornografia contra a realeza, a nobreza e o clero, constituindo em uma arma importante de ridicularização dessas figuras. 29 Ainda nesse momento, o baixo custo de produção e publicação permite o acesso das camadas populares aos meios de informação. O papel revolucionário da imprensa escrita, fundamental nos levantes revolucionários do século XVIII e XIX, fez com que, depois desses eventos, a burguesia acentuasse o rigor das multas e penas, contra os jornais populares, previstas nas leis de imprensa além de onerar as garantias em espécie que deveriam ser depositadas para o registro de um órgão de imprensa. Tem-se notícia de que as decisões proferidas pelo Poder Judiciário, a partir de 27 Chaui (2010: 80) revela que: “Em latim, meio se diz medium e, no plural, media, os meios. É essa palavra latina que aparece na expressão inglesa mass media (cuja pronúncia, em inglês, é mídia), que, literalmente, significa dar a perceber as coisas por intermédio de imagens visuais e sonoras, isto é, por meio de signos ou sinais”. 28 ARBEX, José. A escola Goebbels. São Paulo, 2006. Artigo disponível em <http://www.apropucsp.org.br/revista/revista_25.htm>. Acesso em 15 de dezembro de 2011. 29 O estilo rabelaisiano de crítica política ressurgiu na Revolução Francesa pelo uso da pornografia contra a realeza, a nobreza e o clero como uma arma importante de ridicularização dessas figuras. Nesse período “(A mídia radical) moldou a opinião pública de duas maneiras: fixando o descontentamento em impressos (preservando e propagando a palavra) e o inserindo em narrativas (transformando a conversa em discurso coerente)”. (DARNTON apud DOWNING, 2002: 203) anaco Realce anaco Realce anaco Realce Pessoas que não faziam parte da nobreza nem do clero anaco Realce anaco Realce anaco Realce 25 então, também passaram a tratar com mais rigorismo as penas impostas, em especial contra a imprensa operária 30 . Com a conquista do direito ao sufrágio universal pelas lutas populares, a possibilidade de participação política e a ascensão da camada subalterna se transformaram em uma preocupação constante da classe dominante. Por esse motivo, os efeitos da crise do liberalismo na democracia se estenderam para além da problemática da propriedade privada, o que corroborou para aniquilar o próprio núcleo das pretensões emancipatórias do período iluminista, como aconteceu com o ideal da livre formação da opinião pública a ser tratado em tópico posterior. Às vésperas da derrocada generalizada das restrições censitárias que se seguiria à Primeira Guerra Mundial e à Revolução de Outubro, Lenin analisa de que modo, apesar da grande extensão do sufrágio conquistada através de uma longa luta, as instituições políticas continuam a excluir ou marginalizar as classes subalternas: por um lado, há 'a organização puramente capitalista da imprensa cotidiana'; por outro, alguns aspectos menores na legislação eleitoral desestimulam os pobres 'a participar ativamente da democracia' (Lenin, 1965b, p. 918ss.). (LOSURDO, 2004: 330) O início da formação do monopólio privado da comunicação data da segunda metade do século XIX e propiciou, juntamente ao processo de modernização, o surgimento de uma comunicação de massa. 31 Segundo Hobsbawn (2006: 82), nos anos de 1890, um jornal na Inglaterra alcançou a marca de um milhão de exemplares vendidos. A transição para o capitalismo monopolista não apenas dificultou a utilização dos meios de comunicação como aparatos contra-hegemônicos, como também possibilitou a utilização desses veículos como fonte de controle e censura estatais e privados. Como vimos, após ter abandonado o projeto liberal clássico em nome da modernização em favor de uma classe, a burguesia deu início ao projeto de naturalização das contradições socioeconômicas, fortalecida pela disseminação daquela ideologia apologética através dos meios de comunicação. O desenvolvimento de tecnologia cada vez mais sofisticada e de alto custo, atrelada à constante necessidade de expansão do capital, permitiu aos donos dos meios de produção a dominação dos veículos de comunicação de massa.30 LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, pp. 148-151. 31 Temos comunicação de massa quando a Fonte é única, centralizada, estruturada segundo os modos da organização industrial; o canal é um achado tecnológico que influi sobre a própria forma do sinal; e os destinatários são a totalidade (ou um número muito grande) de seres humanos em diferentes partes do globo. (Eco, 1984: 171) anaco Realce anaco Realce anaco Realce 26 Os sindicatos, partidos populares e operários, desarticulados pela institucionalização de suas categorias e enfraquecidos pela publicidade conservadora, que lhes taxava de manipuladores de uma massa “criança” e repressores do “indivíduo”, também foram vítimas do projeto de extirpação da política como forma de libertação das classes subalternas. 32 Isso sem falar das legislações contemporâneas que dificultam, por meio da burocratização, a mobilização popular pelo uso dos meios de comunicação, especialmente no que se refere às rádios comunitárias. A categoria de “massas”, no entanto, não pode ser restringida à problemática do mundo moderno e da modernidade, sob pena de recair na análise liberal que sustenta o absenteísmo político da “multidão criança”, como acabou fazendo a teoria crítica de Adorno ao longo do tempo, que deixou de lado a relação entre o popular e a estrutura do capital, negligenciando a dimensão do popular. Mais útil é a análise de Benjamin que descobriu na mediação histórica entre os meios de produção e a cultura popular a chave para pensar a experiência social. A partir disso é lícito dizer que, não apenas o processo econômico é que se mostra determinante para a desarticulação do processo de emancipação política em torno de uma imprensa revolucionária, como comenta Losurdo (2004: 157): O domínio da burguesia não estará suficientemente sólido e garantido enquanto o monopólio da força armada não estiver completado pelo monopólio da produção espiritual, isto é, pela supressão seja dos meios de informação, seja dos partidos que, por causa da sua organização e da sua relação com classes sociais antagônicas em relação às dominantes, se configuram, ou não suscetíveis de se configurar, em situações de crise, como uma alternativa de poder. A classe dominante, exercendo o domínio, a princípio, da imprensa escrita, depois do cinema, do rádio e da televisão, por meio do patrocínio das empresas de publicidade, e muitas vezes do Estado, descobriu um potente mercado consumidor que poderia servir tanto como fonte de lucro quanto de publicidade para os ideais liberais e reprodutor da cultura hegemônica 33 . Para além da censura estatal pré-existente em diversos países ao longo da história, em maior ou menor grau, sob o pretexto de proteger o interesse público, a consolidação do capitalismo imperialista foi o divisor de águas para o aparecimento, em escala global, do 32 Losurdo, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, pp. 159-165. 33 Para Santos (2010: 295), com o deslocamento da sociabilidade real para uma sociabilidade virtual: “em sociedades de consumo dominadas pela cultura de massas e pela televisão, a escola deixou de ter o papel privilegiado que dantes tivera na socialização das gerações mais jovens”. anaco Realce 27 fenômeno denominado “censura voluntária em sociedades livres”, expressão que foi concebida na introdução da obra A revolução dos bichos escrita por George Orwell. 34 A expressão “censura voluntária”, a que nos referimos acima, serve para identificar um fato social das sociedades contemporâneas em que se cria um ambiente favorável para que algumas ideias sejam silenciadas. Nas palavras de Orwell, ao se referir à Inglaterra livre de seu tempo, afirmou que a censura é: “amplamente voluntária. Idéias impopulares podem ser silenciadas e fatos inconvenientes podem ser mantidos na ignorância, sem necessidade nenhuma de proibição oficial.” 35 . O termo “censura” é assim empregado para designar uma circunstância em que a classe no poder, com o domínio da mídia, não necessita de uma proibição oficial para que algum fato contrário a seus interesses seja abafado, basta que ele não ganhe os holofotes da imprensa. E o termo “voluntária” quer dizer que, a sociedade civil, mesmo no exercício da liberdade de agir sob um regime aparentemente democrático, aceita a subordinação aos detentores dos meios de comunicação de massa, o que gera um ciclo vicioso de controle da opinião pública, pelo poder privado, segundo os ditames do discurso da competência e do consenso fabricado, como observa Chomsky. 36 Nesse ambiente de hegemonia capitalista, segundo Downing (2002: 45), merece destaque a reflexão sobre o poder, o capitalismo e a cultura elaborada por Gramsci, que sempre buscou ressaltar que: a) a hegemonia nunca é um cadáver congelado, sendo constantemente negociada pelas classes sociais superiores e subordinadas, b) a hegemonia cultural capitalista é instável e sujeita a graves crises intermitentes, ainda que, ao mesmo tempo, c) possa desfrutar longos períodos de uma normalidade raramente questionada. 37 A autocensura dirigida pelos profissionais da mídia tradicional também foi tema da análise do pensamento gramsciniano, que propõe um ativismo dos comunicadores em conjunto com as classes trabalhadoras 38 , e nos fornece suporte para discutir o papel da mídia radical alternativa 39 como fonte de contrainformação. Ramos (2007: 39) dá destaque a essa 34 CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 203. 35 ORWELL, George apud CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 202. 36 CHOMSKY, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 205. 37 DOWNING, John D. H. Mídia radical: rebeldia nas comunicações e movimentos sociais. São Paulo: SENAC São Paulo, 2002, p. 50. 38 Ibid, p. 48. 39 Para Downing (2002: 41), que afirma a mídia radical como uma alternativa ao paradigma hegemônico; “A cultura popular é a matriz genérica da mídia radical alternativa. Ela também se entrelaça com a cultura de massa comercializada e com as culturas de oposição. Nas audiências ativas, multiculturais, podemos ver os co-arquitetos - juntamente com os produtores de texto - dos significados da mídia, surrupiando, às vezes, o anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce 28 ideia de aparelhos privados de hegemonia, contida em Gramsci, e esclarece que: “(...) a Mídia é, no sentido teórico gramsciano que aqui se aplica à análise de suas funções socioculturais e político-econômicas, parte integrante, e fundamental, da sociedade civil”. A partir disso podemos indagar como podemos democratizar uma instituição que emerge da própria sociedade civil. 2.4. O “consenso fabricado” pelo paradigma liberal através dos meios de comunicação de massa Como nenhum aspecto da vida social poderia ficar de fora do controle do capital, os processos educacionais passaram também a refletir os processos sociais de reprodução segundo uma lógica global de um determinado sistema de produção. Afirma Emir Sader (apud MÉSZÁROS, 2010: 16) que: “O enfraquecimento da educação pública, paralelo ao crescimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e o consumo”. O estímulo à passividade e ao entretenimento supérfluo propagados pelos veículos de comunicação hegemônicos se torna a combinação perfeita para a segurança da perpetuação da reprodução social burguesa. Se, por um lado, a passividade ensinada nas escolas, na imprensa e nos núcleos familiaresignoram a prática social e garantem a camuflagem da irracionalidade por detrás da desigualdade gerada pela propriedade privada; por outro, a indústria do entretenimento e a mídia se responsabilizam pela criação de desejos artificiais e pela conformação acrítica do ócio, desenvolvendo uma relação entre persuador e persuadido. Esclarece Meszáros (2008: 30) que “a exploração capitalista do ‘tempo dedicado ao lazer’ levada hoje à perfeição sob o domínio do ‘espírito comercial’ mais atualizado, parecia ser a solução, sem que se alterasse minimamente o núcleo alienante do sistema”. O caráter manipulador da imprensa na criação de desejos artificiais e na dissuasão da opinião pública, dominada por uma elite com motivos para ser desonesta com o povo, foi identificado por Noam Chomsky (2006: 222) como um produto histórico desde a Primeira Guerra Mundial sob a alcunha de “consenso fabricado”. A expressão serve para indicar que a que desejam dos produtos da mídia e subvertendo os valores originalmente pretendidos. Por sua vez, alguns desses co-arquitetos, recorrendo aos movimentos populares e às culturas de oposição, podem tornar-se, eles próprios, produtores da mídia radical e, então, expor-se ao risco dos larápios de texto.”. 29 censura estatal e o uso da violência contra o povo são dispensados quando a comunidade empresarial, que exerce o domínio sobre a imprensa escrita e sobre o serviço público de radiodifusão na maioria dos países democráticos, é unânime quanto ao fato de que alguns pensamentos devem ser eliminados da esfera social. Segundo Chomsky, a disseminação do controle da sociedade pela propaganda no século XX se deu primeiramente pelas agências de propaganda do Estado, que experimentou o auge da perversão através das experiências realizadas por Joseph Goebbels, o ministro da propaganda da Alemanha nazista, e depois pelas grandes indústrias de relações públicas, publicidade e cultura de massa. Como observa Losurdo (2004: 299), Goebbels: estava plenamente convencido da eficácia de uma propaganda baseada no modelo de publicidade comercial, da repetição sistemática e destituída de argumentos racionais. No entanto, desenvolvendo-se entre dois conflitos mundiais e na preparação de uma guerra total, a propaganda nazista (e fascista) não pode deixar de ser imediata e explicitamente ideológica. E, ao contrário, é no âmbito do bonapartismo soft e dos períodos de normalidade que a propaganda política tende não só a se modelar de acordo com a publicidade comercial, mas a se identificar com ela 40 . O impacto da propaganda sobre a opinião pública durante a Segunda Guerra Mundial recebeu os holofotes dos doutrinadores da moderna democracia política. Pouco depois do fim da guerra, Edward Bernays publicou um manual da indústria de Relações Públicas, em que sustentava ser o consentimento manipulado pela “minoria inteligente” a base do processo democrático. 41 Dessa forma, a existência de uma subordinação voluntária ao poder, inclusive à mídia, nas sociedades contemporâneas, foi analisada por Chomsky. Esse fenômeno remete a uma crítica à democracia representativa, referindo-se à problematização de uma “submissão implícita” dos governados a um pequeno grupo de governantes, já traçada há mais de dois séculos por David Hume. Chomsky polemiza a submissão do povo ao “clero secular”, termo batizado pelo filósofo Isaiah Berlim para designar o grupo formado por intelectuais da elite que apostam num sistema de democracia no qual as decisões devem ser tomadas pelos detentores da “sabedoria”. Conclui o autor que, quanto mais livre um governo, maior será a tarefa do “clero 40 Losurdo utiliza o termo “bonapartismo soft” para se referir à incorporação da democracia burguesa com elementos do bonapartismo que veio a caracterizar o cenário político do século XX. A base teórica desse regime, fixado no fortalecimento do Executivo, encontra-se na tradição liberal de discriminação de amplas classes sociais da participação política. 41 Chomsky, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 226. anaco Realce 30 secular” de limitar ao máximo a liberdade de agir do povo, que apresenta considerável poder sobre uma superpotência. 42 Em um ensaio publicado no Brasil, Chomsky (1996) questiona a premissa maior do pensamento progressista moderno de que o povo deve se submeter, ou seja, nas sociedades democráticas os governados possuem apenas o direito ao consentimento. O pensamento de Chomsky rebate a teoria dos ideólogos liberais da esfera política que considera o público como meros espectadores e não como participantes e continuam a disseminar a teoria da massa “criança”, que necessita ser governada para o seu “bem”, bem como a problemática da distinção entre Estado e sociedade civil idealizada pela doutrina liberal. 43 A democracia representativa da concepção liberal de política e economia é um problema pois, de acordo com Chomsky (2006: 230): o regime neoliberal solapa a soberania popular, transferindo o poder decisório dos governos nacionais para um 'parlamento virtual' de investidores e credores, organizados principalmente em instituições corporativas. Esse parlamento virtual pode brandir o 'poder de veto' contra o planejamento governamental, por meio da fuga de capital e de ataques à moeda, graças à liberalização dos fluxos financeiros, que fez parte do sistema de Bretton Woods, instituído em 1944. Assim, constatamos que, uma vez que o moderno capitalismo monopolista acentua as contradições das categorias de liberdade e igualdade, o controle e a manipulação das massas se fazem cada vez mais presentes, tanto quanto necessários, para a omissão da crise de legitimidade dessa democracia representativa. Por uma via, requer um Estado capaz de reprimir e desarticular a sociedade civil; pela outra, depende do poder sobre os meios de comunicação para a propagação da ideologia dominante. Desse modo, os grupos concentrados, amparados por legislações, ora sem eficácia jurídica, ora protetoras dos interesses hegemônicos, são fortalecidos pela carência de pressão popular para coibir a formação de monopólios e garantir o direito à comunicação, reduzindo o potencial democrático das tecnologias de comunicação e omitindo a guerra travada pelo controle global dos conteúdos informativos e de entretenimento. Podemos dizer, portanto, que assistimos à descaracterização da liberdade de expressão cidadã em favor de uma liberdade de expressão comercial, em outros termos, a 42 A visão daqueles que creem nesse modelo de democracia representativa remete às ideias defendidas por Locke e Benjamin Constant que compartilhavam o pensamento de que os indivíduos das classes trabalhadoras são como crianças, sem tempo e habilidade para se aculturalizar (Losurdo, 1998: 212). 43 Chomsky, Noam. Sobre Natureza e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 225-230. anaco Realce 31 mercantilização da esfera pública. 44 Após a consolidação do capitalismo imperialista rumamos à consolidação da dependência econômica, social e cultural do capital, representado pelo mercado global. À medida em que a emancipação social está relacionada com uma organização política através de uma comunicação democrática, certamente o caminho para a conquista de uma democracia real passa pela desvinculação entre a mídia e o sistema político, o sistema produtivo e a publicidade comercial. 45 Por fim, diante do reconhecimento histórico de que os direitos civis e sociais não foram meras concessões do regime liberal 46 , mas conquistas das lutas populares, a contragosto dos ideólogos da moderna democracia burguesa,especialmente no que diz respeito ao direito à representação das classes subalternas, compreendemos também que os meios de comunicação contra-hegemônicos representam um veículo essencial de manifestação popular para a construção de novas formas de participação e democracia. E ainda mais do que isso, a partir do momento em que o sistema democrático liberal não é capaz de demonstrar a sua legitimidade, as suas instituições devem ser submetidas ao controle do povo. Por outro lado, para que as garantias formais da consulta ao povo sejam legitimadoras, é preciso não só que se façam sem as restrições capciosas de leis cheias de manhas, como também permitam o trabalho de conscientização popular pelos líderes progressistas, sem restrições de pessoas e correntes, no acesso livre aos meio de comunicação e organização de massas. Isso é uma questão jurídica também. (LYRA FILHO, 1987: 170). Nesse sentido, a comunicação deve ser compreendida como meio constitutivo da condição humana. A soberania da comunicação midiática hegemônica, portanto, não pode prevalecer no enfoque do debate, sob o risco de assumirmos, bem como a análise liberal, a condição de inferioridade da comunicação humana, em que a alienação, produto da racionalidade mercantil, deturpa a consciência social. Em resumo, não se trata apenas de denunciarmos a dominação institucional e o poder do mercado da comunicação social. A fim de avançarmos na análise desse poder que tem a pretensão de ser hegemônico, necessário considerar o poder da comunicação contra-hegemônica para a emancipação social. 44 SEL, Susana. Politicas de comunicacion en el capitalismo contemporaneo: America Latina y sus encrucijadas/ coord. Susana Sel ; Daniel Hernandez ... et al. Buenos Aires: CLACSO, 2010, p. 9. 45 ZOLO, Danilo. apud LOSURDO, Domenico. Democracia ou bonapartismo: triunfo e decadência do sufrágio universal. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/ Editora UNESP, 2004, p. 329. 46 Adverte Chaui (2010: 111) que: “É evidente que a classe dominante moderna, liberal ou conservadora, jamais foi nem pode ser democrática, e, se as democracias fizeram um caminho histórico, isto se deve justamente às lutas populares pelos direitos que, uma vez declarados, precisam ser reconhecidos e respeitados. A luta popular pelos direitos e pela criação de novos direitos tem sido a história da democracia moderna”. anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce anaco Realce 32 3. AS BARREIRAS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DA RADIODIFUSÃO NO BRASIL APÓS A DITADURA MILITAR Desde que a democracia burguesa 47 abandonou seus ideais do liberalismo clássico e se desintegrou para um processo (des)emancipatório de uma democracia baseada na representação de uma classe dominante, na apropriação do espaço público pelo privado e na dicotomia entre sociedade civil e Estado, fundamentados no direito à propriedade privada, assistimos ao esvaziamento da politização e da referência ao poder popular que, como vimos, não ocorreu apenas por determinismos econômicos. Assim, por concepção liberal da democracia nos referimos a um modelo de representação política baseado em uma superestrutura jurídica arquitetada sob a igualdade e a liberdade formal abstrata de uma universalidade de indivíduos em que a estrutura de poder reflete a sua estrutura econômica. Como foi exposto no capítulo precedente, a abstração se tornou uma característica das ordenações jurídico-formais contemporâneas. Especialmente nos anos que seguiram à Segunda Guerra Mundial, a decadente democracia burguesa encontrou, na “ilusão jurídica” da legislação dos direitos humanos e nas Constituições liberais, uma maneira de atender, em nível abstrato, aos anseios da luta popular por direitos sociais e econômicos, sem a necessidade de tocar na questão da concentração da propriedade e na questão social como forma de opressão decorrente de uma estrutura econômica desigual. 48 A questão social foi negligenciada pela ideologia liberal, a qual defende a ideia de que os direitos institucionalizados são mais essenciais para a diminuição das desigualdades do que a participação ativa dos sujeitos na vida política. 49 No campo jurídico, essa ideologia dominante se expressa pelo pragmatismo positivista ou iusnaturalismo metafísico baseados no estímulo à institucionalização de direitos formais, ainda que continue sem solução a questão 47 De acordo com Ramos (2007: 32): “A idéia ocidental de democracia é semente que começou a germinar nos países capitalistas centrais há pouco mais de 200 anos, na esteira do pensamento iluminista e das revoluções burguesas na Inglaterra e França, e da guerra de independência dos Estados Unidos. Nesses três cenários formou-se o conceito moderno de democracia representativa, republicana ou monárquica, parlamentar ou presidencialista, politicamente liberal e economicamente capitalista.”. 48 Lyra Filho (1987: 169) recorda que: “De qualquer maneira, em sistema capitalista ou socialista, a questão classista não esgota a problemática do Direito: permanecem aspectos de opressão dos grupos, cujos Direitos Humanos são postergados, por normas, inclusive legais. Já citamos a questão das raças, religiões, sexos - que hoje preocupam os juristas do marxismo não dogmático”. 49 MEKSENAS, Paulo. Cidadania, Poder e Comunicação. São Paulo: Cortez, 2002, p. 72. 33 em torno da efetivação desses direitos, em detrimento da criação de alternativas a esse estado das coisas com base na crítica ao modelo socioeconômico e na participação do cidadão na esfera pública 50 . A conversão da política numa prática social específica atingiu a culminância na teoria política liberal, pois tanto impunha o controle da incorporação/exclusão da classe operária no exercício do poder político capitalista. A ideia de cidadania ficava à porta da fábrica para que a política das relações de produção não se reconhecesse nas relações de produção política. (SANTOS, 1988: 74). Para Mészáros (2008: 159), uma vez que esse sistema não é capaz de garantir liberdade e igualdade real para todos os indivíduos, “(...) essa insistência sobre 'os direitos do homem' não é mais que um postulado legalista-formal e, em última instância, vazio”. Embora a relação entre os direitos fundamentais e a liberdade real tenha sido teorizada inclusive por autores liberais, como Bobbio e Arendt, não pode ser compreendida sem a tradição cultural e política que propõe a superação da divisão de classes. No plano jurídico internacional acontece que, por meio de marcos legais protetores de todas as formas de dignidade humana, cria-se a ilusão de estarmos evoluindo para uma democracia substancial global, enquanto no mundo real verificamos algo mais parecido com uma democracia formal constantemente ameaçada pelo estado de exceção, para citarmos um estado de organização jurídico-social extensamente trabalhado por Giorgio Agambem 51 . Assim, em nossas sociedades, a lei e o Estado, que devem proteger a propriedade privada, porque esta é um direito do homem e do cidadão, só poderão defendê-la contra os sem-propriedade, de sorte que a defesa do direito de alguns significa a coerção, a opressão, a repressão e a violência sobre outros, no caso sobre a maioria. (CHAUI, 2010: 101) Se ainda há aqueles que resistem em reconhecer que essa relação de opressão, narrada por Chaui, decorre, principalmente, da exploração de uma classe sobre a outra por meio do trabalho, uma coisa é certa, não é uma estrutura que pode a longo prazo se manter. 50 Alguma relação entre os direitos formais e a sociedade da aparência, esta ensaiada pela nobreza há séculos atrás como pode ser constatado pela leitura da obra Lazarillo de Tormes, demonstra como muitas vezes
Compartilhar