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TT: 054 Emissão: 30/08/2011 Revisão: 00 SUA EMPRESA JÁ FEZ DIAGNÓSTICOS INTANGÍVEIS? (publicada originalmente na edição de março / abril de 2011 pela HSM Management) SUA EMPRESA JÁ FEZ DIAGNÓSTICO DE INTANGÍVEIS? A entrevista e de Adriana Salles Gomes, editora-executiva de HSM MANAGEMENT. EM ENTREVISTA EXCLUSIVA, CARMEN MIGUELES E MARCD TULIO ZANINI, CONSULTORES DA SYMBALLEIN E PROFESSORES ASSOCIADOS DA FUNDAÇÃO DOM CABRAL, CONTAM SOBRE A EVOLUÇÃO DO DIAGNÓSTICO DE INTANGÍVEIS NO PAÍS E ALERTAM SOBRE OS RISCOS DA INFLUÊNCIA DOS PASSIVOS DA CULTURA BRASILEIRA SOBRE NOSSAS CULTURAS ORGANIZACIONAIS Symbállein, nome grego que dá origem a palavra “símbolo”, significa: lançar (bállein) junto (syn). O sentido é “re-unir” as realidades, congregá-las a partir de diferentes pontos e fazer convergir forças num único feixe. Mais que o nome da empresa de consultoria de Carmen Migueles e Marco Tulio Zanini, Symballein é a própria tradução de um fator de competitividade que até há pouco tempo era mal compreendido pelos gestores: a cultura organizacional. Até hoje cultura não é vista exatamente como ativo intangível - algo que remete muito mais a marca ou capital humano. Mas cultura influi muito na competitividade de um país e de uma empresa. Sem dúvidas a esse respeito, Migueles gosta de fazer um paralelo entre duas culturas - a brasileira e a indiana - utilizando o exemplo da vaca: se passar fome, o brasileiro não hesitará em matar e comer o animal, enquanto o indiano, que o considera sagrado, procurará outra solução, podendo até reverenciá-lo. Ou seja, cultura define a racionalidade e molda a prática. Especializado em ativos intangíveis, como cultura, confiança e liderança, o casal Migueles e Zanini criou uma metodologia de diagnóstico de cultura único no mundo, que vem sendo aplicado há pouco mais de três anos em grandes empresas, a fim de viabilizar o enfrentamento de desafios tão variados quanto fusões, mudanças, internacionalização e a gestão de SSMA (saúde, segurança e meio ambiente). Em entrevista exclusiva a Adriana Salles Gomes, editora-executiva de HSM Management, eles explicam como a ferramenta pode mudar negócios e que aspectos da cultura nacional devem ser reforçados e evitados nas culturas organizacionais. Na HSM MANAGEMENT n0 77, do final de 2009, Zanini escreveu um artigo em primeira mão para nos sobre a metodologia da gestão integrada dos ativos intangíveis (GIAI). Sei que, de lá para cá, varias empresas tem contratado esse diagnóstico de intangíveis com vocês. Elas estão mais preocupadas com sua cultura e os relacionamentos entre as pessoas do que antes? O que esta acontecendo? Carmen Migueles: Com o excesso de competição que vivemos, o aumento da incerteza e a correspondente necessidade de agregar conhecimento e inteligência aos processos organizacionais, perdemos gradativamente aquela capacidade histórica de coordenação formal que vinha do sistema taylorista. A entropia, o nível geral de desorganização e a perda de energia dos sistemas organizacionais se multiplicaram. Aumentou a sensação de que se trabalha muito e se produz pouco. A solução possível de uma empresa para entregar valor aos stakeholders é recorrer a organização informal, a cultura da empresa. O diagnóstico dos intangíveis faz basicamente uma análise dos fatores de relacionamento, das condições de coordenação informal de uma organização. AS 8 FUNÇÕES DE UM DIAGNÓSTICO DE INTANGÍVEIS PARA SUA GESTÃO INTEGRADA • Apoiar processos de mudança organizacional, reduzindo riscos e identificando oportunidades para a manutenção de ativos intangíveis. • Apoiar o desenvolvimento da cultura organizacional para a construção de um contexto capacitante, de forma a consolidar um padrão de qualidade, empreendedorismo e inovação. • Apoiar processos de internacionalização e a busca de soluções para possíveis choques de cultura. • Definir os elementos relevantes para a gestão estratégica de pessoas. • Implementar um modelo de gestão por resultados. • Apoiar processos de parcerias, fusões e aquisições. • Nortear o desenvolvimento de lideranças. • Implementar programas de excelência na operação, relativos à segurança, saúde e preocupação com o meio ambiente. Como é feito esse diagnóstico? Marco Tulio Zanini: Combinamos metodologia etnográfica (qualitativa) - nossa equipe inclui cinco antropólogos - com survey (dados quantitativos) para fazer uma análise integrada dos intangíveis, como cultura, relações de confiança e reputação, em uma empresa e fornecemos um diagnóstico estratégico a partir daí, que possa se desdobrar em ações gerenciais e programas para o desenvolvimento de lideranças e gestão de pessoas. Avaliamos desde a filosofia fundadora até como a empresa resolve seus problemas nos dias do hoje, entendendo sua essência, “quem” ela é, como se estruturou, quais são os intangíveis que lhe dão suporte na entrega de valor ao longo do tempo, se há conflito de cultura ou não, se há falta de gestão ou liderança. Esse diagnóstico revela a organização informal, pelo que entendi. Mas para que serve isso, do ponto de vista da competitividade? Migueles: Atualmente, todo o diferencial tangível de mercado tende a ser copiado e a se transformar rapidamente em commodity. Os fatores de diferenciação encontram-se cada vez mais ancorados nos intangíveis. Quando bem compreendida e gerenciada, a cultura de uma empresa pode se tornar um elemento de coordenação informal e criar contextos capacitantes para a excelência operacional, motivação, qualidade e sustentabilidade do negócio. Zanini: O objetivo final é criar um contexto capacitante que tende a reduzir a entropia e, assim, aumentar a produtividade, a competitividade. Migueles: Em todas as pesquisas e análises que tenho feito em empresas brasileiras, confirmo que há uma relação inversa entre concentração de poder / autoritarismo, de um lado, e desempenho do capital humano, de outro, Quanto maior o primeiro, menor o segundo. Isso impede a inovação, aumenta as taxas de acidentes, impede a gestão com foco nos valores e a ação de longo prazo voltada para a sustentabilidade. For incrível que pareça, concentração de poder se correlaciona negativamente até mesmo com excelência em combate a infecção hospitalar. Zanini: Esse autoritarismo é o que chamo de modelo “casa-grande e senzala”. Ainda não nos libertamos do paradigma revelado por Gilberto Freyre. Um exemplo claro disso é a relação tradicional entre a empregada e a dona de casa. Convivem no mesmo espaço físico ao longo de anos, porem percebem-se ontologicamente como desiguais. Saem de contextos diferentes e se veem com direitos e deveres distintos. Essa percepção de desigualdade muitas vezes é mais forte do que a lei que declara a igualdade de direitos e deveres. Em que situações as empresas costumam procurar vocês? É o RH que os contrata? Zanini: Geralmente essa não é uma demanda do diretor de RH, porque não é para rearrumar cargos e salários ou simplesmente avaliar o clima, questões para as quais há ferramentas no mercado. O CEO ou outro executivo sênior, que pode ser um RH estratégico, nos chama quando tem um problema complexo a resolver, como internacionalizar a empresa, fazer uma fusão, reduzir o número de acidentes de trabalho [veja quadro acima]. Geralmente nos procuram depois de terem contratado outras consultorias que não deram solução satisfatória a suas demandas. Os executivos seniores se envolvem? Zanini: Sim. eles precisam se envolver no projeto para criar legitimidade para o trabalho dentro da empresa. Vocês acham que as empresas fazem o diagnostico com o objetivo de formatar sua cultura? Se sim, eu pergunto: é realmente possível formatar pessoas? Migueles: Essa visão de formatar cultura vem muito de especialistas norte-americanos que tentaram tratar esse desafio buscando alinhar a “cultura da organização” aos objetivosda estratégia. E acreditava-se, além disso, que uma organização com cultura forte (com valores fortes) teria sucesso e uma com cultura fraca pereceria. Ou seja, deu-se um tratamento quase messiânico a cultura da organização e acreditou-se, per muito tempo, que, com boas estratégias de comunicação, haveria o alinhamento desejado e todos os problemas estariam resolvidos. Nada pode ser mais falso; esse é um entendimento equivocado da cultura e produz um viés extremamente prejudicial às empresas. A questão da cultura é bem mais complexa do que isso, mas, respondendo a sua pergunta, é possível, sim, trabalhar a cultura de uma empresa. Fazemos isso. Só que pessoas não são páginas em branco sobre as quais é possível escrever a cultura que se quer. Então, sobra algum sentido para a palavra “alinhamento”, utilizada a torto e a direito no universo empresarial? Migueles: Eu diria que, no contexto da cultura nacional brasileira, obter resultados por meio de alinhamento da cultura organizacional é inútil. Tanto a cultura nacional como as culturas organizacionais tendem a trazer ativos e passivos intangíveis. É ativo intangível tudo que aumenta as promessas de entrega de valor futuro e é passivo o que impede essa entrega. A cultura brasileira traz em si alguns passivos consideráveis; • Imensa tendência a concentração de poder. • Tendência ao foco no curto prazo. • Tendência a excessiva simplificação dos problemas (tenta-se resolver problemas complexos com “jeitinho”, planejamento reativo no curto prazo e sem tempo para envolver as pessoas). • Baixa confiança entre as pessoas e das pessoas nas organizações. “CONFIANÇA É UM MECANISMO DE REDUÇÃO DE RISCO RELACIONADO AO COMPORTAMENTO DA OUTRA PESSOA” Por exemplo, no Brasil, não acreditamos como verdade “verdadeira” que as pessoas sejam a fonte da excelencia organizacional - muito pelo contrário. E, por conta disso, não criamos mecanismos para que elas possam contribuir de maneira sistemática e consistente. Nesse contexto, tentar obter resultados com alinhamento de valores é inútil? Percebo nitidamente, para meu desgosto... Zanini: Devo acrescentar que essa meritocracia financeira de curto prazo se tomou um vício de gestão no Brasil, no sentido de que condicionou muito nossa gestão. Criou um círculo vicioso: sacrificamos valores em nome do curto prazo e o longo prazo fica comprometido. Esse impulso de capturar imediatamente o valor de tudo, aproveitando demandas de oportunidade no mercado que satisfazem interesses imediatos dos executivos - porque lhes dão bônus -, tornou-se um paradigma de sucesso imediato, um estilo de gestão predominante que não se preocupa com a perenidade do negócio e com a construção de diferenciais competitivos de longo prazo. É algo relativamente comum em países cuja economia se baseia em commodities, com empresas que agregam baixo valor ao negócio. Mas esse vício de gestão destrói os ativos intangíveis... Zanini: Sim, porque quebra os vínculos de confiança e cooperação que se constroem sob expectativas de benefícios mútuos no longo prazo. Defina confiança, por favor... Zanini: Confiança é, basicamente, um mecanismo de redução do risco relacionado ao comportamento da outra pessoa, ou grupo de pessoas - algo que, entre outras coisas, pode conferir grandes vantagens aos negócios, reduzindo custos de transação. Mas é importantíssimo entender que a confiança esta apoiada no pilar da reciprocidade. Quando se faz uma gestão sem muitos critérios, baseada em corte de custos com foco no curto prazo, geralmente acaba-se com a reciprocidade e, por tabela, com a confiança mútua. E, quando a confiança se quebra, restaurá-la sai muitíssimo mais caro - isso, quando e possível restaurá-la. Isso é assustadoramente comum no Brasil, não é? Zanini: Com certeza. Nossa gestão ainda é muito baseada nesse tipo de profissional que entra na empresa e quer logo mostrar resultados cortando custos (muitas vezes sacrificando ativos intangíveis valiosos). Ele ainda impressiona seus superiores, que não enxergam os prejuízos para a perenidade do negócio. E, na verdade, ele é pouco competente; fez aquilo porque não conseguiu entender a maior complexidade do negócio e elaborar um projeto para melhorá-lo. Eu conheço uma empresa do Rio de Janeiro, por exemplo, que cortou a qualidade do papel higiênico um mês antes do acordo sindical. Foram um desastre tanto o acordo como o clima de trabalho. Mexer com coisas que tem peso emocional e psicológico para as pessoas é burrice. Não é uma gestão inteligente. Gera um benefício mínimo de curto prazo e produz um grande dano. Agora, ou muito me engano, ou crescimento rápido demais é outro grande destruidor de intangíveis. Se sim, vale a pena? Zanini: Acho que vale, do ponto de vista empreendedor capitalista, mas é preciso ter consciência de que será preciso gastar lá na frente o dinheiro ganho para corrigir os danos feitos aos intangíveis e, dessa maneira, garantir a competitividade no longo prazo. Geralmente atropelam-se os processos e a comunicação. Os passivos intangíveis da cultura de uma organização composta majoritariamente por brasileiros? Como se trabalha cultura corporativa efetivamente? Migueles: Para trabalhar cultura organizacional, é necessário primeiro diagnosticar o problema, fazendo entrevistas de cima a baixo na empresa, de um lado a outro. Depois, desenhamos uma estratégia para tingir um novo patamar de capacidade de entrega de valor, com maior quantidade e qualidade de inteligência embutida. É um esforço que envolve desde melhor governança até novos desenhos de processos. Quando removemos alguns desses entraves, (re)encontramos nossos ativos fortes, que vêm de nossa cultura nacional e são aproveitáveis nas culturas organizacionais: forte predisposição a cooperação e muita criatividade. Mas há muito trabalho a ser feito antes que consigamos capitalizar sobre esses ativos. Zanini: Também estamos buscando modelos de como trabalhar melhor os intangíveis fora do âmbito empresarial estrito. Temos pesquisado, por exemplo, o vinculo das pessoas em organizações que produzem excelência, como no Hospital Albert Einstein, e o Batalhão de Operações Policiais Especiais do Rio de Janeiro, o Bope, agora famoso com o filme Tropa de Elite, que mantém o compromisso com o que faz nas condições mais adversas. Voces podem citar empresas que diagnosticaram? Migueles: A Petrobras foi uma delas. Apesar de todo o esforço que a empresa vinha empreendendo para obter níveis de excelência de classe mundial em programas de SSMA [saúde, segurança e meio ambiente], os resultados não apareciam como esperado. Quem acompanhou o episódio recente da British Petroleum no Golfo do México compreende a preocupação que empresas do setor precisam ter com esse tema. Descobrimos fatores invisíveis que estavam por trás de riscos não mensurados. Fizemos diagnósticos estratégicos de cultura também em empresas como Metalfrio, TAM, Gerdau, Natura, Embraer, Braskem e RNP, entre outras. Zanini: No caso da Metalfrio, nosso objetivo foi ajudá-los a melhor identificar seus ativos intangíveis para a internacionalização. A empresa adquiriu várias unidades no mundo inteiro, na Turquia, no México e na Dinamarca, entre outros países, e tinha de criar um modelo de gestão unificado. Então, era preciso investigar a filosofia original de negócios da empresa - que, é enorme hoje, com 75% do mercado nacional de refrigeradores para cervejas e refrigerantes - para estruturar como exportá-la e, depois, fazer um treinamento de liderança com base nisso, entre outras medidas. SAIBA MAIS SOBRE ZANINI E MIGUELES Marco Tulio Zanini e Carmen Migueles são sócios na firma de consultoria Symballein e professores associados da Fundação Dom Cabral. Migueles é doutora em sociologia das organizações, mestre em antropologia pela Universidade de Sophia (Tóquio, Japão) e historiadora pelaPontifícia Universidade Católica gaúcha. Escreveu três livros, entre os quais Criando o habito da excelência (ed. Qualitymark, patrocinado pela Petrobras) e Antropologia do consumo (ed. FGV). Zanini é professor e pesquisador, pioneiro no Brasil nos temas confiança nas empresas e gestão integrada de ativos intangíveis, doutor em management pela Universidade de Magdeburg, da Alemanha, mestre pela Fundação Getúlio Vargas, pós-graduado em marketing pela FGV e graduado em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ). Escreveu Confianca - O principal ativo intangível de uma empresa (ed. Campus/Elsevier), e organizou os livros gestão Integrada de Ativos Intangíveis (ed. Qualitymark) e, com Carmen Migueles, Liderança baseada em valores (ed. Campus/Elsevier). Entre outras medidas... As recomendações de vocês são complexas? Migueles: Sim, tanto que o tipo de resistência que eventualmente encontramos é certa decepção em relação à complexidade da gestão desses fatores. Muitos executivos gostariam de poder tratar isso com esforços de comunicação internos e programas de desenvolvimento de lideranças apenas. Decepcionam--se quando percebem que é ineficiente e há muito mais do que isso envolvido. Zanini: Mas isso não exclui medidas práticas também, como, por exemplo, construir um museu virtual para manter viva a história e a filosofia fundadora da empresa. Os clientes não se decepcionam com os custos? Zanini: Empresas que querem alcançar patamares superiores de excelência como diferenciação têm de começar a entender que alguns custos são afundados, e não há retorno imediato para eles. Voltamos a nosso vício de gestão, que nos leva a avaliar tudo com métricas financeiras de curto prazo. A pessoa errou? Manda embora. Não há tolerância ao erro honesto por aqui. Esse diagnóstico de cultura não aumenta as vendas no trimestre seguinte? Não vamos fazer. “NOSSA FORMA DE RESOLVER PROBLEMAS COM JEITINHO PODE SER EXTREMAMENTE OFENSIVA NOS PAÍSES NÓRDICOS EUROPEUS” A gente sabe hoje que, para uma Apple entregar valor, por exemplo, ela teve uma enormidade de custos afundados, que são o conhecimento desenvolvido no caminho percorrido por meio de tentativas e erros. Certos resultados muito grandes você só adquire depois de uma série histórica de custos afundados. O intangível trabalha assim geralmente. Mas essa é uma mudança de mentalidade muito grande para os gestores brasileiros; nós ainda somos um país que quer se resolver no curto prazo. Enquanto China e Índia, nossos concorrentes BRIC diretos, são países que pensam no longo prazo... Que tipo de empresa esta preocupada com cultura hoje? Zanini: Basicamente empresas que acreditam em valores como pilares para uma gestão bem-sucedida. Temos bons exemplos no Brasil; Odebrecht, Natura, Laboratório Sabin. Essas empresas chegam a sacrificar possíveis ganhos imediatos de curto prazo, porque possuem objetivos muito claros baseados nos valores que sustentam seu modelo de gestão. Geralmente preocupam-se em formar e reter talentos, gastam dinheiro na contratação, fazendo várias entrevistas e colocando entre os entrevistadores o presidente, os diretores-executivos etc. São processos de seleção que podem demorar seis meses ou mais. E como se internacionaliza uma cultura organizacional? Ela não vai necessariamente brigar com a cultura nacional de cada lugar? Migueles: A influência da cultura nacional na cultura organizacional não é nada desprezível, mas é possível, sim, transmitir características culturais a outros países. Devemos, no entanto, ficar atentos a alguns riscos. Por exemplo, empresas brasileiras que se internacionalizam precisam saber que nossa forma de resolver problemas com “jeitinho”, o poder desproporcional dos chefes em relação aos subordinados, o foco na tarefa, o comando e controle podem ser extremai ente ofensivos nos países nórdicos europeus. As pessoas tenderão a sentir-se absolutamente desrespeitadas. O fato de o chefe poder jogar com as regras e de o “jeitinho” valer como maneira “mais rápida e flexível” de resolver problemas pode ser visto como afronta. Vamos encarar os fatos: em alguns lugares, já somos conhecidos como bárbaros na forma como gerenciamos nossos negócios. Você acha que o executivo brasileiro expatriado tem noção disso? Migueles: De modo gral, o executivo brasileiro, apesar de ter grandes qualidades, come ser flexível e ajustar-se facilmente, e pouco preparado para compreender a complexidade das diferenças de cultura, não só em termos de gestão e alinhamento interno, mas em termos da relação entre cultura e comportamento dos consumidores. Isso é responsabilidade também, diga-se, de nossas escolas de administração, que tratam desse tema de maneira muitíssimo superficial, quando tratam. Há muitas oportunidades para as empresas brasileiras, até porque nossa “marca-país de origem”, que e a marca Brasil, produz contágios positivos nas marcas das empresas de vários segmentos. Mas tenho visto esforços muito tímidos ainda em compreender e construir em cima desses elementos. Há outros elementos fortes nossos, como sociabilidade, comunicação, religiosidade. Essas características mais ajudam ou mais atrapalham? Zanini: Na realidade, a sociabilidade que marca longas horas de permanência na empresa não está associada à cooperação e a alta produtividade. Mas, em um contexto capacitante positivo, são aspectos que podem ser convertidos em vantagens. Migueles: Vejo a relevância da espiritualidade em três fatores: • a espiritualidade nos ajuda na conexão com o sentido daquilo que estamos fazendo, • ela nos ajuda a superar as dificuldades e tentar aprender com elas, crescendo nas adversidades, e • ela nos leva a acreditar que fazer comas pessoas faz muito mais sentido do que fazer apesar delas. Isso tudo é fundamental, porque, sem essas capacidades, não é possível falar em liderança verdadeira. Aquela de homens poderosos e temidos é a antiliderança. A liderança de fato seria o oposto: o líder é quem desvela as possibilidades das outras pessoas para atingir objetivos que sejam de interesse coletivo, criando situações em que todos ganham. No último livro de vocês, Liderança baseada em valores, há um capítulo escrito por Sérgio Cavalieri, presidente do conselho do grupo Asamar, em que ele decreta: “O primeiro pilar da minha empresa é o religioso”. A empresa não deveria ser uma organização laica? Zanini: Não precisa ser se não quiser, diferentemente do Estado. E notamos que existe uma ética religiosa que anima o Sérgio Cavalieri, que é bem-vinda, porque faz com que ele se sinta chamado a realizar a tarefa de desvelar os outros, gerando benefícios mútuos. Essas questões se misturam há muito tempo. A ética protestante, por exemplo, que dá origem as noções de “indivíduo” e de “empreendedorismo”, e que chama a pessoa para a responsabilidade de realizar seu dom pessoal, faz parte da essência da liderança que age com base em princípios e valores. Um dos melhores exemplos de empresas do Brasil, a Odebrecht, baseia-se muito na TEO [Tecnologia Empresarial Odebrecht], que veio do doutor Norberto, muito influenciado pela ética protestante em sua educação. Certamente essa filosofia influenciou bastante sua visão sobre empreendedorismo. A RELEVÂNCIA DA ESPIRITUALIDADE ESTÁ EM DAR SENTIDO AO QUE FAZEMOS. AJUDAR A SUPERAR DIFICULDADES E ESTIMULAR A EQUIPE Nesses diagnósticos, é importante identificar as lideranças momentâneas? Zanini: Sim, as lideranças influem muito na organização informal; as lideranças as moldam efetivamente. Vale frisar que liderança é uma dimensão coletiva da organização, não a invenção de um indivíduo. A organização pode fomentar sua prática e alguém, por opção própria, pode apropriar-se dela durante certo tempo. A todo momento eu, como funcionário, posso escolher entre atuar como líder e me abster disso. A liderançaé situacional. Perpassa o desvelamento de outras pessoas, como diz a Carmen, e também a construção de uma coalizão - ela incentiva a entrega de um valor superior pela coletividade. Então, liderança como desvelamento dos outros é o que vocês querem dizer com liderança baseada em valores... Migueles: Exato. Mas é preciso acrescentar que os homens não são muito capazes de discernir os lideres verdadeiros. É por isso que, ao longo da história, usaram artifícios como Excalibur, a espada magica do rei Arthur, para identificar os líderes. A similaridade com nossa situação hoje é grande: grandes empresas, empresários e executivos estão agindo quase como os grandes lordes medievais - lutando por mais poder e dinheiro e tentando simular características de liderança para obter mais colaboração a menor custo, aumentando a pressão sobre pessoas exaustas. Enquanto isso, discutimos nosso desejo de encontrar lideranças verdadeiras que nos permitam transformar o mundo em um lugar melhor, onde o trabalho tenha mais sentido e possamos viver e cooperar em um contexto de paz produtiva. O nível de conflito e pressão com o qual estamos trabalhando globalmente nos últimos cinco anos e pesado é desnecessário, mas esbarramos no problema das virtudes dos indivíduos e na cegueira para alternativas melhores. VANTAGENS CULTURAIS NÃO SÃO APROVEITADAS POR CARMEN MIGUELES É uma pena, mas o foco excessivo no curto prazo nos faz perder muito da vantagem que os grandes ativos intangíveis de nossa cultura nacional nos dão, tais como a capacidade de aprender e criar. Neutraliza os fatores positivos de nossa cultura e o capital intelectual de nossas organizações. Temos muito mais a oferecer ao mundo. A cultura nacional brasileira é inclusiva, não temos os problemas com diversidade étnica e cultural que a maior parte do mundo tem. Não temos uma relação belicosa entre os gêneros e convivemos com alegria com pessoas de outras culturas. Temos também muita liberdade criativa e uma relação especial com a beleza e as artes. Essas são vantagens maiores do que podem parecer. Mas temos a desvantagem de concentrar poder excessivamente e não abrir espaços adequados para a participação efetiva das pessoas, ter o foco muito restrito na hora de trabalhar e ignorar alternativas por pressa de chegar a resultados. Os japoneses, os norte-americanos e os alemães tiveram sucesso criando modelos de gestão adequados a suas necessidades e a sua cultura. Nós ainda não paramos para fazer isso. Os chineses estão caminhando na direção de criar uma maneira chinesa de aumentar o valor de seus produtos e serviços. Os indianos investem fortemente em educação de altíssima qualidade para grande numero de pessoas. E nós continuamos copiando soluções que deram certo em outras empresas no exterior e simplificando problemas que merecem um tratamento mais adequado. Em termos de cultura e instituições, temos algumas vantagens em relação a China e a Índia, mas precisamos aprender a cooperar como eles cooperam - se quisermos dar passes maiores. Carmen, você fez um trabalho de cultura com o governo fluminense. Pode traçar uma comparação entre gestão de intangíveis nas organizações privadas e públicas? Migueles: Na área pública o que mais me impressiona é o contexto incapacitante que leva a enorme desperdício de alentos e capacidades humanas. Fala-se muito da desmotivação do funcionário público, mas por que deveria ser de outro modo? Muitos sabem o que precisa ser feito, mas há sempre alguém tentando ludibriá-los apresentando soluções para todos os males, e eles sabem que não funcionam. Não há um sistema de incentivos e punição adequado para os políticos e eles acabam lançando mão de comportamentos oportunistas com maior frequência do que o sistema consegue tolerar. A ruptura das relações de confiança é clara e a baixa predisposição a cooperação é a consequência mais perceptível. E com o descrédito vem muita desilusão e desesperança. Agora, tenho visto quadros técnicos de altíssimo nível tentando modelar a organização pública para ter melhor governança e transparência. O que me impressiona nesses indivíduos é o sentimento de missão e o comprometimento com a criação de um Estado mais eficaz. Já na área privada temos um cenário mais heterogêneo: há desde empresas geniais, que capturam a imaginação das pessoas e seu desejo de criar e pertencer, até aquelas onde há o jogo de interesse mais direto, embora algumas vezes mascarado pelos discursos sobre valores. Sob a ótica da teoria dos jogos, temos empresas que praticam com seus stakeholders jogos perde-perde e outras que praticam jogos gana-ganha, em um grande espectro de combinações possíveis. Ao comparar o engajamento na área publica e na área privada, me impressiona como “missão” tem um poder motivador na área pública que muito raramente vejo na área privada, onde sucesso profissional, crescimento pessoal e foco no resultado econômico tendem a predominar, A sociedade brasileira precisa fazer sua pequena revolução baseada em valores: uma versão mais light e tropical da revolução francesa, inglesa ou americana, que nos ajude a fundar um pacto social capaz de controlar melhor aqueles encarregados de tocar a coisa pública. Por fim, lembro de ouvir Muricy Ramalho, técnico de futebol, dizendo que time vencedor é uma “mistura de jogadores e ambiente”, nao bastam os atletas talentosos. Esse ambiente equivale aos intangíveis que vocês diagnosticam? Migueles: Sim! Grande parte das oportunidades de crescimento sustentável está bem próxima de nós, mas não conseguimos sequer identifica-las, por não haver as precondições necessárias, como os sistemas de tratamento da informação e as estratégias para solucionar problemas persistentes que drenam as energias de todos, entre outras. E o esforço mais complexo de ser realizado e descobrir como criar tais precondições no ambiente de cada empresa. Esse "ambiente" é precisamente do que tratamos - o contexto capacitante propício.
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