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UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Pensamento Antropológico do Brasil SEMESTRE 5 UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Créditos e Copyright Este curso foi concebido e produzido pela Unimes Virtual. Eventuais marcas aqui publicadas são pertencentes aos seus respectivos proprietários. A Unimes Virtual terá o direito de utilizar qualquer material publicado neste curso oriunda da participação dos alunos, colaboradores, tutores e convidados, em qualquer forma de expressão, em qualquer meio, seja ou não para fins didáticos. Copyright (c) Unimes Virtual É proibida a reprodução total ou parcial deste curso, em qualquer mídia ou formato. ROMANI, Carlos. Pensamento Antropológico do Brasil. Carlos Romani: Núcleo de Educação a Distância da UNIMES, 2015. 106p. (Material didático. Curso de ciências sociais). Modo de acesso: www.unimes.br 1. Ensino a distância. 2. Ciências Sociais. 3. Antropologia do Brasil CDD 301 http://www.unimes.br/ UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS FACULDADE DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS PLANO DE ENSINO CURSO: Licenciatura em Ciências Sociais COMPONENTE CURRICULAR: Pensamento Antropológicodo Brasil SEMESTRE: 5º CARGA HORÁRIA TOTAL: 80 horas EMENTA: Os principais pensadores em antropologia do Brasil, bem como suas ideias e ideários sobre o homem brasileiro e suas relações políticas, sociais e econômicas. A missão francesa na USP; O Departamento de Cultura; A crítica à democracia racial; O Museu Nacional; Da aculturação à fricção Inter étnica; O estruturalismo chega à Antropologia; Rumo ao Planalto Central; A influência da antropologia inglesa e a Unicamp; A institucionalização da política indígena. O perspectivismo e a etnologia indígena; A antropologia política; Sobre a demografia e a economia ecológica; Direitos dos povos tradicionais; Populações quilombolas; Populações de pescadores marinhos; Outras populações caboclas. Antropologia social e urbana; Grupos urbanos; Violência urbana; Novas religiões; Questões de gênero; Família e reprodução humana; Sexualidade; Tudo é objeto da antropologia. OBJETIVO GERAL: UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Apresentar o processo de construção do campo de conhecimento da antropologia no Brasil e apresentar a institucionalização do pensamento antropológico no ambiente acadêmico brasileiro. OBJETIVOS ESPECÍFICOS: Unidade I - A formação do pensamento antropológico no Brasil. Objetivos da unidade Apresentar o pensamento científico que influenciou os primeiros estudos de caráter antropológico no Brasil e as primeiras interpretações dadas pelos pesquisadores para a constituição do povo brasileiro. Unidade II - A institucionalização da Antropologia no Brasil Objetivos da unidade Apresentar como a antropologia se institucionalizou no meio acadêmico enquanto ciência específica e como a pesquisa, o pensamento antropológico, e os cursos de antropologia se desenvolveram nas principais universidades brasileiras e chegaram, também, ao palco da política nacional. Unidade III - A Antropologia das populações tradicionais Objetivos da unidade Apresentar a nova etnologia para os povos tradicionais em curso desde a década de 1980 e como ela se relaciona com a agenda ambiental que também se torna relevante a partir dessa mesma época. Discutir como as novas teorias da antropologia, em conjunto com a temática da preservação ambiental, trazem para o plano institucional a questão dos direitos de todos os povos tradicionais como fundamentais para a manutenção do equilíbrio ecológico do planeta. Unidade IV - A ampliação do campo antropológico no Brasil. Objetivos da unidade UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Apresentar a multiplicação dos estudos antropológicos no Brasil a partir da década de 1970, que lhe tiraram o caráter de uma disciplina de estudos específicos sobre os povos tradicionais. A nova antropologia brasileira passou a pesquisar todos os grupos sociais urbanos, as relações de gênero, a sexualidade, entre outros campos, criando-se também antropologias específicas para a educação, para o consumo, para a saúde e outras áreas do conhecimento. CONTEÚDO PROGRAMÁTICO: UNIDADE I: A formação da Antropologia no Brasil UNIDADE II: A institucionalização da Antropologia no Brasil UNIDADE III: A Antropologia das populações tradicionais UNIDADE IV: A ampliação do campo antropológico no Brasil Bibliografia Básica: DAMATTA, Roberto. Relativizando, Uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro, Rocco, 1991. FERNANDES, Florestan. Integração do negro na sociedade de classes. São Paulo, Editora Globo, 2008. FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala. Rio de Janeiro, Editora Mauad, 2006. Bibliografia Complementar: OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Sobre o pensamento antropológico. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1988. ZALUAR, Alba. A Máquina e a Revolta. São Paulo: Brasiliense, 2002. SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. São Paulo, Companhia das Letras, 1993. CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo, Ateliê editorial, 2001 RIBEIRO, Darcy. O povo Brasileiro. São Paulo, Companhia de Bolso, 2006. http://campus16.unimesvirtual.com.br/eduead/mod/resource/view.php?id=15481 UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS METODOLOGIA: A disciplina está dividida em unidades temáticas que serão desenvolvidas por meio de recursos didáticos, como: material em formato de texto, vídeo aulas, fóruns e atividades individuais. O trabalho educativo se dará por sugestão de leitura de textos, indicação de pensadores, de sites, de atividades diversificadas, reflexivas, envolvendo o universo da relação dos estudantes, do professor e do processo ensino/aprendizagem. AVALIAÇÃO: A avaliação dos alunos é contínua, considerando-se o conteúdo desenvolvido e apoiado nos trabalhos e exercícios práticos propostos ao longo do curso, como forma de reflexão e aquisição de conhecimento dos conceitos trabalhados tanto na parte teórica como na prática e habilidades. Prevê ainda a realização de atividades em momentos específicos como fóruns, chats, tarefas, avaliações a distância e Prova Presencial, de acordo com a Portaria de Avaliação vigente. A Avaliação Presencial, está prevista para ser realizada nos polos de apoio presencial, no entanto, poderá ser realizada em home seguindo as orientações das autoridades da área da saúde e da educação e considerando a Pandemia COVID 19. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Sumário Aula 01_ A Antropologia no século XIX ........................................................................................ 9 Aula 02_ O imperialismo europeu e a nação brasileira. .............................................................12 Aula 03_ O debate científico no nascente Brasil republicano. ...................................................15 Aula 04_Os Museus e a etnografia nacional. ..............................................................................18 Aula 05_ As expedições de integração nacional.........................................................................21 Aula 06_ A escola Nina Rodrigues. ..............................................................................................24Aula 07_Cultura e aculturação. .....................................................................................................27 Aula 08_ A democracia racial. ......................................................................................................30 Resumo I .........................................................................................................................................33 Aula 09_A missão francesa na USP. ...........................................................................................35 Aula 10_O Departamento de Cultura em São Paulo. .................................................................37 Aula 11_A crítica à democracia racial. .........................................................................................39 Aula 12_ O Museu Nacional. ........................................................................................................41 Aula 13_Da aculturação à fricção interétnica. .............................................................................43 Aula 14_O estruturalismo chega à Antropologia. ........................................................................45 Aula 15_Rumo ao Planalto Central. .............................................................................................48 Aula 16_ A Unicamp e a influência inglesa. ................................................................................50 Aula 17_ Rumo a uma política indígena comum.........................................................................53 Resumo II ........................................................................................................................................56 Aula 18_O perspectivismo e a etnologia indígena. .....................................................................58 Aula 19_ A antropologia política das sociedades indígenas. .....................................................61 Aula 20_ Sobre a demografia e a economia ecológica ..............................................................64 Aula 21_Direitos dos povos tradicionais. .....................................................................................67 Aula 22_As populações quilombolas. ..........................................................................................70 Aula 23_Populações de pescadores marinhos. ..........................................................................73 Aula 24_Outras populações caboclas. .........................................................................................76 Resumo III.......................................................................................................................................78 Aula 25_ Antropologia social e urbana. .......................................................................................81 Aula 26_Grupos urbanos...............................................................................................................84 Aula 27_Violência urbana. ............................................................................................................87 Aula 28_Novas religiões. ...............................................................................................................90 UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 29_Questões de gênero. ......................................................................................................93 Aula 30_Família e reprodução humana. ......................................................................................96 Aula 31_Sexualidade. ....................................................................................................................99 Aula 32_Tudo é objeto da Antropologia. ....................................................................................101 Resumo IV ....................................................................................................................................103 UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 01_ A Antropologia no século XIX Antes de tudo vamos começar pelo nome. Antropologia é uma palavra de origem grega que significa anthropos, homem, logos (estudo), portanto, trata do estudo sobre o ser humano. Assim, o comportamento dos humanos já era estudado pelos gregos antigos há mais de 2.500 anos. Porém, a Antropologia somente se tornaria uma ciência moderna, passando a levar este nome no final do século XVIII. Em sua fase inicial, o pensamento antropológico brasileiro foi fortemente influenciado pelo desenvolvimento da Antropologia Física bastante em voga na Europa da segunda metade do século XIX. Esse ramo da Antropologia estudou os aspectos animais, físicos, dos diversos tipos humanos habitantes do planeta, portanto, entendia o homem como um ser biológico e, ela se constituiu como uma ciência natural, ou, em termos mais atuais, biológica. Ao contrário, aAntropologia Cultural, que será dominante na primeira metade do século XX, utilizará a cultura como o conceito central para o entendimento da constituição da vida dos homens em sociedade. Dessa forma, privilegiando os aspectos culturais (os ritos, os costumes, relações sociais, festas, hábitos alimentares, entre outros) a Antropologia transforma-se definitivamente numa ciência social. Durante o século XIX os estudos antropológicos procuravam compreender o ser humano como produto de um longo processo evolutivo. As origens remotas da espécie humana, a relação genética mantida pelos homens com outros grupos de primatas extintos (p. ex., o australopitecus, um dos primeiros homídeos) ou ainda vivos (macacos, chimpanzés, gorilas), as modificações em sua estrutura física, as influências que os grupos humanos sofreram do meio ambiente (habitat, clima, relevo), foram os grandes objetivos dos estudos antropológicos desse século. Para alcançar esses objetivos a Antropologia Física estudava o ser humano do ponto de vista biológico como se analisa um animal. Dessa forma, alguns campos de conhecimento ligados à Genética foram privilegiados. Entre eles, os estudos sobre a hereditariedade, ou seja, a passagem dos genes de pai para filho e assim sucessivamente, portanto, a constituição genética dos seres humanos. Um outro campo bastante difundido entre os primeiros antropólogos foi o da Somatologia. Esse é o nome que se deu à ciência especializada em descrever UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS detalhadamente as características físicas dos seres humanos, utilizando-se basicamente das técnicas antropométricas. Essas técnicas foram procedimentos de mensuração com o emprego de instrumentos específicos através dos quais eram medidas a estrutura física dos vários grupos de seres humanos, sua altura, a proporção dos membros em relação ao tronco, as dimensões do crânio e outras. O objetivo desses estudos era o de demonstrar as variações entre os diferentes tipos humanos e as classificações deles em raças e sub-raças distintas. Tudo isso voltado para o mais controverso dos antigos estudos antropológicos que era o estudo da raça. Conceito puramente biológico, a divisão e a classificação dos seres humanos em grupos raciais portadores de características físicas hereditárias e transmissíveis, marcou a Antropologia Física no século XIX. Foram reconhecidos três grandes troncos raciais distintos e, dentro deles, uma enorme variedade de tipos internos. Esses troncos seriam o da raça branca, ou eurasianos, o da raça asiática, ou mongoloides, e o da raça africana ou, dos negroides. Particularmente esse estudo antropológico sobre as raças humanas sofreu a influência decisiva do evolucionismo, um ramo da Biologia que teve em Charles Darwin o seu pai fundador (1859). A evolução da espécie humana émotivada por algumas razões basicamente genéticas que sofreram, também, a influência do meio ambiente onde viveram e se desenvolveram as diferentes populações. Dentre essas razões, há a teoria da seleção natural das espécies, segundo a qual, os mais fortes sobrevivem e se desenvolvem em detrimento dos mais fracos, gerando o que seria uma competição dentro dos diferentes agrupamentos humanos e também entre eles. As teorias evolucionistas aplicadas à Antropologia trouxeram para o campo de estudo sobre as raças humanas um tipo de classificação hierárquica preconceituoso, uma vez que formulado por integrantes de um dos grupos raciais classificados. Essa ordem hierárquica definia graus de evolução diferenciados colocando no topo a raça branca, logo abaixo os asiáticos e, por último, os negros. Iniciamos nosso estudo sobre o pensamento antropológico brasileiro com esta aula, pois os primeiros estudos antropológicos feitos no Brasil na passagem do século XIX para o XX foram completamente influenciados por esses conceitos criados em relação às raças humanas. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Exercício Um bom filme para se perceber e discutir a questão da natureza humana e da civilização é O Enigma de KasparHauser, de 1976, (em VHS) no qual o diretor Werner Herzog narra a história de um menino que viveu distante da civilização, sendo alimentado à distância durante mais de dezesseis anos. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 02_ O imperialismo europeu e a nação brasileira. Os estudos antropológicos no século XIX estiveram orientados para o ramo físico, em particular para se compreender a evolução das raças humanas e classificá-las em uma ordem hierárquica. Esses estudos foram desenvolvidos por cientistas, em sua maioria biólogos e médicos, que produziram uma visão de mundo de acordo com o lugar de onde eles se originaram, a Europa, e, portanto, o modo de pensar da civilização ocidental, a que chamamos de modernidade. Os pesquisadores de países como a Inglaterra, a França, a Alemanha e a Holanda, foram os pioneiros nesses estudos, não sem razão, uma vez que essas nações adotaram políticas imperialistas no século XIX que tiveram como objetivo a conquista e a expansão colonial em direção aos territórios nos continentes africano e asiático. E qual seria a relação entre a Antropologia e o imperialismo das nações europeias? Antes de tudo, a Antropologia nasceu no fim do século XVIII como uma ciência moderna cujo objeto de estudo foram as populações não europeias ou não brancas. Assim, as nações que conseguiram alcançar a maior expansão colonial e se constituíram em grandes impérios foram aquelas que mais campo tiveram para as pesquisas antropológicas. No final do século XIX, o Império Britânico ocupava metade da África central e meridional, a maior parte do Oriente Médio, a Índia, parte da China, a Oceania, e muitas ilhas do Caribe. A França por sua vez dominava todo o norte da África e metade da parte central desse continente, além do sudeste asiático e ilhas no Pacífico e no Caribe. Nesses territórios ocupados, a maior parte da população constituía-se de povos negroides e asiáticos, segundo aquela grande classificação racial criada. E foram justamente esses os povos estudados pelos primeiros antropólogos físicos que, a partir da visão de mundo construída pela perspectiva evolucionista da ciência moderna, eram tidos como civilizações mais atrasadas. Foram essas teorias científicas criadas na Europa que chegaram ao Brasil na metade final do século XIX. Do ponto de vista prático, uma de suas aplicações foi o estabelecimento de uma política nacional de imigração. Em 1883, foi fundada no Rio de Janeiro a SCI, Sociedade Central de Imigração, cuja pauta nos anos seguintes foi UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS o do estímulo à imigração de trabalhadores europeus ao Brasil. A tese a favor da imigração europeia no Brasil foi difundida pelo médico francês Louis Couty, uma das referências teóricas da SCI. Essa proposta acenava para a melhor qualidade da mão de obra branca, tida como mais ativa e inteligente e a superioridade de costumes dos europeus como forma de civilizar o povo brasileiro. Essas teorias científicas baseadas em critérios raciais penetrarão sensivelmente no Brasil e formarão toda uma geração da elite intelectual brasileira sustentando a tese do branqueamento da população como uma missão histórica inerente ao progresso do país. Passado o longo período de escravidão, no qual o escravo não era considerado brasileiro por não ser cidadão, com a chegada da República, aumentam ainda mais as questões centrais colocadas pela nossa elite intelectual: afinal quem é o povo brasileiro, ou melhor, seguindo essa argumentação, qual o povo brasileiro que desejamos? Na impossibilidade histórica, ou seja, na falta de condições intelectuais e técnicas para os cientistas brasileiros criarem modelos científicos e analíticos próprios, o modelo evolucionista das teorias raciais chegou ao país com o atraso característico, já em fins do século XIX. É nesse contexto particular que se inicia e se desenvolve o pensamento antropológico brasileiro, partido por uma aparente dicotomia – a fantasia de uma elite que se pensa formada e descendente de uma civilização colonizadora e a realidade de uma nação e um povo mestiço, meio índio, meio negro, um pouco caboclo e um pouco mulato. Como então seria possível empreender um pensamento científico no país, no qual o objeto de estudo não seria o “outro”, o diferente, como foi para os cientistas europeus, mas sim o próprio povo brasileiro fruto de uma mistura racial ocorrida durante os quatro séculos de colônia e império? É por isso que muitos autores falaram da inexistência de uma antropologia brasileira, mas sim, de pesquisas antropológicas feitas no país. No decorrer deste curso, tentaremos desvendar e responder essa questão: Antropologiado Brasil ou Antropologia no Brasil? UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Exercício Procure estudar, discutir e perceber essa questão que se coloca para a antropologia realizada no Brasil, a partir da perspectiva da ciência criada na Europa. Como os brasileiros podem ou devem se perceber, sujeitos ou objetos de estudo? UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 03_ O debate científico no nascente Brasil republicano. As duas escolas sociológicas que mais influenciaram a formação do pensamento social brasileiro nesse período foram a do Positivismo e a do Evolucionismo. Augusto Comte foi o criador do termo Sociologia em 1839 e sua teoria ficou conhecida como positivista, pois confiava que a humanidade, com base na evolução das ideias, que na época se chamava evolução do espírito, seguia sempre em direção ao progresso científico e social. O lema de nossa bandeira republicana “ordem e progresso”, por exemplo, é um lema positivista. Isso já revela a grande influência dessa escola na formação política da Republica. Por outro lado, já vimos como a teoria da evolução foi decisiva no campo biológico e ela se desenvolveu também no campo social através de Herbert Spencer, para quem as sociedades mais simples (famílias) movem-se em direção a sociedades mais complexas (primeiro os clãs – reunião de famílias, depois tribos – reunião de clãs, depois os estados e as nações). Dessa segunda escola surgiu um ramo que marcou decisivamente o pensamento científico e social brasileiro dessa época, o darwinismo social, que é uma transposição da teoria darwiniana da evolução para a Sociologia. Para os seguidores dessateoria, o fator biológico é determinante para a transformação social, portanto, os componentes genéticos do indivíduo e do grupo a que ele pertence, indicariam o grau de evolução desse grupo também no campo social. Essa teoria foi a base para as interpretações sobre a evolução das raças que já estudamos. No Brasil, país mestiço, cuja formação étnica da população se constituiu na diversidade, sendo influenciada por um conjunto enorme de povos, essa teoria provocou grandes debates. Se for verdade que a evolução social depende da constituição racial da sociedade e de que há uma hierarquia entre as raças, então a sociedade brasileira mestiça estaria sempre fadada a permanecer num degrau evolutivo mais baixo. O problema se agravaria ainda mais com a mestiçagem, pois a mistura racial tenderia a degenerar as qualidades das raças superiores levando a sociedade à decadência. Vários autores levantaram essa questão e apresentaram soluções diferentes. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS O jornalista Euclides da Cunha, ligado ao Instituto Histórico e Geographico Brasileiro, IHGB, ao descrever o conflito de Canudos em Os Sertões, na parte dedicada ao homem, apresenta o sertanejo nordestino como um desequilibrado e degenerado, por ser fruto de raças muito diferentes. Ao mesmo tempo, devido às circunstâncias inóspitas do meio, o apresenta como uma rocha na célebre frase “antes de tudo o sertanejo é um forte”. Ora, se esse sertanejo é um dos grandes frutos da mestiçagem brasileira, Euclides da Cunha não conseguiu explicar as causas de sua sobrevivência, que contradisseram a teoria racial então dominante. Outro importante intelectual da Faculdade de Direito do Recife, Silvio Romero, entendia como positiva a mestiçagem brasileira, e justamente por isso seríamos uma nação de gente igualitária, afeiçoada aos valores da democracia. Para ele era importante admitir esse fato constitutivo de nossa formação étnica e não ter preconceito em relação a ele. Romero será um dos precursores da tese da democracia racial brasileira. Outros intérpretes do país como Oliveira Viana, do IHGB, e Nina Rodrigues, da Faculdade de Medicina da Bahia, também partiram da tese do evolucionismo aplicada às raças, o que, daquele ponto de vista científico, levava o país a um impasse. Seguindo essa teoria dominante, o país se tornaria inviável. Foi no meio desse debate que a tese do branqueamento da população floresceu e saiu do campo da ciência para se tornar uma política pública. Isso porque a teoria evolucionista prevê que algumas misturas genéticas são favoráveis e outras não. João Batista Lacerda, do Museu Nacional do Rio de Janeiro, defensor da mistura genética através da importação de indivíduos brancos, procurou mostrar que o Brasil, adotando políticas migratórias, através da seleção natural faria com que sua população em menos de cem anos se tornasse totalmente branca. Aquilo que, com o desenvolvimento das ciências, hoje é tido como puro preconceito, na época era o mais puro conceito científico. Para sair desse impasse o pensamento social brasileiro fundado com base nas teorias raciais importadas com atraso da Europa, teve que fazer uma “negociação” com essa mesma teoria para explicar e viabilizar a existência da própria nação. A antropóloga Manuela Carneiro da Cunha dirá que “a país mestiço, ciência mestiça”. Esse debate sobre a constituição da população brasileira e sobre o UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS que fazer para melhorar a evolução de nossa sociedade inaugurou os estudos antropológicos no Brasil no começo do século XX. Exercício Vale a pena ler o livro de Euclides da Cunha ou assistir a versão de Sérgio Rezende feita para o cinema nacional de Os Sertões (cópia em DVD) para se perceber o choque de culturas no nascente Brasil republicano. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 04_Os Museus e a etnografia nacional. No século XIX, as primeiras pesquisas etnográficas (mapeamento das características de um dado grupo social) não eram realizadas nos ambientes acadêmicos das universidades. Eram nos museus científicos e nos institutos de estudos históricos e geográficos que a pesquisa e os debates se desenvolviam. O primeiro museu brasileiro a ser criado foi o Museu Nacional do Rio de Janeiro durante a passagem da corte portuguesa pelo Brasil em 1808. Mas a ideia de se transformá-lo em um museu científico nos moldes dos museus etnográficos e de história natural existentes na Europa e nos Estados Unidos, somente foi implementada no ano de 1876 sob a direção de João Batista Lacerda. Caberá aos museus científicos brasileiros com essa experiência pioneira, a pesquisa e produção das ciências naturais no país. Antes da institucionalização da pesquisa científica no ambiente dos museus, quem produzia esses trabalhos de campo sobre a flora, a fauna e as populações indígenas existentes no país, foram os chamados viajantes. Desde o século XIX, principalmente, uma série de exploradores naturalistas europeus percorreu o Brasil levantando, demarcando, desenhando as características da natureza e da população brasileira e, também, coletando espécimes de plantas exóticas para o enriquecimento das coleções de museus e de particulares estrangeiros. Duas expedições realizadas no início desse século deram impulso significativo aos trabalhos etnográficos no Brasil. A primeira, do francês Auguste de Saint-Hilaire (1816-22) quando observou o “distrito dos diamantes” (Minas, Goiás e Mato Grasso) e o litoral do Brasil, do Rio Grande do Sul ao Espírito Santo. Depois, a expedição do alemãoLangsndorff (1825-29) que, a partir de São Paulo, refez a rota dos bandeirantes pelo rio Tiete, passou por Cuiabá e chegou a Santarém no rio Amazonas, descrevendo também as populações nativas lá encontradas. Numa escala de importância dada pela quantidade de artigos publicados na Revista do Museu Nacional, a pesquisa científica abrangia a Zoologia, a Botânica, a Geologia e só então vinha a Antropologia, cujos temas versavam sobre a anatomia humana, ou melhor, dos diferentes tipos humanos. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Os índios botocudos, por exemplo, habitantes do sul da Bahia e leste de Minas Gerais, tiveram seu grau de evolução mensurado por Batista Lacerda a partir de crânios guardados no acervo. O grande mérito do diretor foi o de ter ministrado o primeiro curso de Antropologia no país, no ano de 1887. Um curso de Antropologia Física no Museu com a parte prática voltada para os estudos anatômicos da espécie humana, tendo como materiais de pesquisa partes de esqueletos de indígenas brasileiros. O estado de São Paulo seguiu o exemplo carioca e inaugurou no ano de 1894 o seu museu etnográfico chamado de Museu Paulista e que ficou conhecido como Museu do Ypiranga. O objetivo declarado da nova instituição era o do “estudo da história natural da América do Sul e em particular do Brasil, por meios científicos”. Os trabalhos do museu, liderados pelo zoólogo alemão Von Ihering, viam a Antropologia apenas como um ramo dos estudos zoológicos e botânicos. Marcado pelo evolucionismo, Ihering afirmava que as leis que valem para os animais e para a natureza valem também para os humanos em sua evolução. É em Belém, no Museu Paraense, que posteriormente levará o nome de Emílio Goeldi, onde se encontrará a maior quantidade de pesquisa de campo etnográfica. Esse zoólogo suíço, contratado em 1893 para ser diretor do museu, deu a ele o caráter mais científico entre todos. Instalado na entrada da Amazônia, portanto, na região de maior diversidade natural e humana da América do Sul, com a direçãode Goeldi a etnografia das populações indígenas amazônicas recebeu grande impulso e produziu os primeiros trabalhos de efetiva qualidade no país. Seu etnólogo pesquisador, Curt Nimuendaju, dedicou a vida ao estudo das populações indígenas sul-americanas, praticamente criando a etnologia sobre os Guarani. Além disso, teve o grande mérito de divulgar internacionalmente a existência do tronco populacional Jê residente no Brasil central, diferente dos outros grupos Tupi já conhecidos. Deve-se a ele o estabelecimento de uma etnologia sobre os Jê com o estudo de uma de suas tribos, os Apinajé, que o adotaram como membro do grupo. Ao instalar-se e viver junto aos índios para pesquisá-los e compreendê-los, ao ser por eles rebatizado, Nimuendaju modificou completamente a compreensão que se tinha no Brasil sobre o que é ser um antropólogo. Exercício UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Procure estudar e compreender o que vem a ser um etnólogo e o que são os estudos etnográficos, comparando os antigos trabalhos desenvolvidos nos museus com aqueles que foram realizados por Curt Nimuendaju. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 05_ As expedições de integração nacional. A República brasileira, desde sua proclamação, sempre teve como um de seus principais objetivos políticos o povoamento, a ocupação e a integração à “civilização” dos habitantes das regiões mais distantes do território nacional e de suas áreas de fronteira. Vários foram os órgãos criados entre o fim do século XIX e início do XX com essa missão: as sociedades para a imigração e migração; as missões colonizadoras; as comissões de povoamento; as comissões telegráficas; as comissões de limites. Uma dessas comissões, iniciada no ano de 1907, a Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (CLTEMTA), será a ponta de lança daquilo que se tornará anos mais tarde a primeira política indigenista do Brasil. Essa comissão ficou mais conhecida para o público brasileiro como Comissão Rondon, levou o nome de seu comandante, o Marechal Rondon, e é associada à ideia de integração nacional, ou de desbravar as áreas mais distantes do sertão. O objetivo específico dessa expedição, que durou de maio de 1907 a janeiro de 1915, foi o de instalar a linha telegráfica Cuiabá-Madeira. Os novos 1.500 quilômetros de linha ligaram através do telégrafo a capital federal do Rio de Janeiro, que já estava conectada a Cuiabá, e a partir dessa última capital, o Acre, o Alto Purus e Alto Juruá, afluentes da margem direita do Amazonas. Mas esse objetivo administrativo colocou Rondon em contato com populações antes quase que desconhecidas dos brasileiros dito civilizados. Dentro daquela visão social e científica que já estudamos, a civilização aqui é compreendida como o modo de vida daquela parte da sociedade brasileira que já havia sofrido a influência, seja racial, seja cultural, da civilização moderna europeia daquele tempo, ou seja, a parcela da população brasileira já colonizada segundo a disciplina e os costumes europeus. Esse contato obtido na longa viagem realizada criou no Marechal uma espécie de missão a ser cumprida: o de levar aos índios os valores da nascente civilização brasileira, ou como ele dizia a nacionalização dos índios. Ele próprio era fruto desse contato entre índios e civilizados (sua mãe descendia de índios Terena e Bororo) e achava que a integração dos índios à civilização seria a UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS única forma de salvá-los do crescente extermínio provocado pelo encontro belicoso com o homem branco que explorava economicamente a selva. De formação positivista, sua ideia de integração estava ligada à noção de evolução social. Para ele, o índio não era um homem racialmente inferior ao branco, à questão era que sua organização social era inferior, ela encontrava-se num estágio de civilização inferior. Portanto, como em Rondon o problema não é racial, o índio, uma vez educado, disciplinado nos moldes da sociedade branca, se tornaria parte integrante da civilização mais evoluída. Rondon, que é tido como o pai dos índios, o defensor de suas vidas contra o agressor, na prática, a sua política de nacionalização e integração dos índios serviu para descaracterizar os valores das culturas indígenas e transformá-los em brasileiros de origem indígena. Nas aldeias por onde passaram as diferentes comissões das quais fizeram parte Rondon e outros expedicionários, o hino nacional devia ser cantado todas as manhãs, a língua portuguesa passou a ser ensinada nas escolas, o batismo na fé católica tornou-se prática comum, o registro de nascimento em cartório, a identificação com os valores nacionais da bandeira, o alistamento militar dos jovens, foram todas práticas incorporadas a essas culturas tradicionais. Assim, se por um lado, com o projeto de integração o Marechal criou uma escola de sertanistas preocupados em resguardar os índios mais distantes do genocídio que fatalmente sofreriam, impuseram-se a eles a subordinação de suas tradições aos valores oficiais da nação brasileira. Do ponto de vista institucional, a atuação de Rondon foi determinante para a criação do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, já na era Vargas, do qual foi diretor, que teve durante muitos anos a missão de formular políticas de defesa e preservação dos valores indígenas. O Marechal e outros expedicionários e sertanistas sucessores (Major Luiz Thomás Reis, os irmãos Villas-Boas, entre outros) iniciam e põem em curso dois grandes trabalhos: detiveram um pouco o massacre que sofriam e os trouxeram para o palco de uma política nacional de direitos para os índios. A partir da década de 1960 essas causas serão abraçadas e transformadas pelos antropólogos ligados às causas indígenas. A velha política indigenista, ou seja, a política dos civilizados para com os índios, será lentamente substituída por uma política indígena, ou seja, uma política realizada UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS com a participação da comunidade indígena e a posição da vontade dos índios nela envolvidos na determinação de uma política pública para eles mesmos. Exercício Procure assistir ao filme Ao redor do Brasil dirigido pelo Major Luiz Thomas Reis e reeditado em VHS pela Funarte, Ministério da Cultura, (www.decine.gov.br) numa coleção denominada “Tesouros do cinema latino-americano”. Acompanhe uma aventura de expedição de fronteiras realizada em 1932 pelo interior do Pará, Amazonas e Mato Grosso. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 06_ A escola Nina Rodrigues. O debate sobre a determinação racial na evolução da sociedade ocorreu em vários lugares do país onde se praticava uma ciência e um pensamento nacional. As escolas de medicina no Recife, no Rio de Janeiro e na Bahia, foram alguns dos lugares privilegiados onde se aprofundaram essas teses. A Faculdade de Medicina da Bahia ocupou um lugar de destaque com a presença do médico maranhense lá radicado, Raimundo Nina Rodrigues. Para nos iniciarmos em suas teorias, que fizeram a escola valer à pena, reproduzirmos a citação de Silvio Romero, que Nina faz em seu livro Os africanos no Brasil, escrito por volta de 1906, mas publicado pela primeira vez somente em 1933: “Quando vemos homens como Bleek refugiarem-se dezenas e dezenas de anos nos centros da África somente para estudarem uma língua e coligir uns mitos, nós que temos o material em casa, que temos a África em nossas cozinhas, a América em nossas selvas e a Europa em nossos salões, nada havemos produzido nesse sentido!É uma desgraça. O negro não é somente uma máquina econômica; ele é antes de tudo, e malgrado sua ignorância, um objeto de ciência.” (RODRIGUES, 1988:XV). A citação é significativa, pois, para a nascente antropologia brasileira, o objeto de estudo não se encontrava distante, em outros continentes, ele era parte integrante da sociedade, ou melhor, ele era a própria sociedade brasileira. Percebendo esse vazio científico, o doutor Rodrigues tornou-se o pioneiro dos estudos etnográficos, sobre os diferentes grupos de africanos que chegaram ao país durante o longo período de escravidão, procurando perceber as diferenças e as hierarquias entre as etnias de seus ascendentes africanos. Nina Rodrigues, que faleceu precocemente em 1906 antes de concluir esse trabalho, se converteu no principal difusor no Brasil dessa ideia científica do darwinismo racial, internacionalmente aceita na época, de que a mistura de raças seria prejudicial. Portanto, segundo essa visão, um país formado por raças muito diferentes estava fadado à decadência. Além disso, ele pregava a separação das raças, assim, a seleção natural num regime competitivo daria cabo das raças UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS inferiores que seriam eliminadas ou controladas. Esse diagnóstico do médico tinha respaldo nos exemplos de embriaguez, de loucura, de epilepsia e de violência encontrados em marginais e documentados pela medicina legal. Durante o século XIX, os estudos antropométricos dos crânios humanos foram realizados como modo de sustentação das hipóteses da antropologia criminal, preocupada em encontrar um tipo físico comum aos indivíduos criminais. O médico italiano Cesare Lombroso foi o principal expoente dessa vertente antropológica aplicada ao Direito que procurava identificar e classificar os criminosos através dos traços físicos de suas cabeças. A ideia de que essa seria uma visão científica era apenas aparente, uma vez que não existiam pesquisas com amostras significativas no conjunto da população para determinar se esse era um problema racial ou social. Na hipótese defendida por Rodrigues estava embutida uma evidente conotação ideológica de um grupo racial dominante em busca de evidências para provar a tese já corroborada, e não o contrário, o que seria o procedimento científico correto. Esses exemplos de indivíduos degenerados encontrados entre mestiços e negros criminosos, também poderiam ser encontrados em pessoas de outras raças, mas a restrição desse estudo aos grupos não brancos sustentava as ideias para o melhoramento genético da população brasileira. Nascia na Bahia toda uma escola de médicos legistas ligados a Nina Rodrigues que se dedicavam a provar como os criminosos eram fruto da degeneração das raças. Feito o diagnóstico o médico aplicava o remédio. O darwinismo social condenava os cruzamentos inter étnicos alertando para a imperfeição da hereditariedade mista. Campanhas enfatizando a pureza da raça como forma de contribuição para a grandeza da pátria se sucederam em várias localidades. O Brasil viu o pensamento médico ser tomado pelo discurso da eugenia, a ciência dedicada ao melhoramento genético e reprodutivo da raça humana. Pontes de Miranda, em 1923, clamava pela regeneração somática de nossa raça na Gazeta Médica da Bahia, veículo que se tornou o porta-voz dos seguidores de Nina Rodrigues. Não somente na Bahia, mas também em outros centros do país o trabalho inicial de etnógrafos empenhados em decifrar as múltiplas etnias existentes no território nacional e as características de seus descendentes foi influenciado pelos trabalhos UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS dos médicos legistas que seguiram as hipóteses de seu pioneiro nos estudos etnográficos sobre o afrodescendente brasileiro. Exercício Para que nós também, já no século XXI, não caiamos em um novo preconceito, procure perceber e discutir as proposições racistas desenvolvidas por Nina Rodrigues, relacionando-as com o aparato intelectual disponível naquela época. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 07_Cultura e aculturação. Os discípulos deixados por Nina Rodrigues em seu trabalho na Bahia oficializaram essa escola informal de médicos legistas com a criação do Instituto Nina Rodrigues, um lugar que se tornou referência desse campo em todo o Brasil. Até o final da década de 1920, a maior parte dos legistas ligados ao instituto ainda seguia as orientações teóricas do velho mestre, ou seja, a questão da superioridade da raça branca e o problema da degeneração da raça com a mestiçagem. Foi nesse momento histórico que se inicia no Brasil a passagem de uma visão antropológica baseada nos aspectos físicos para a entrada das teses da cultura como o elemento determinante na constituição social. Essa nova geração foi influenciada pela divulgação dos trabalhos dos antropólogos culturalistas norte- americanos, entre eles Franz Boas (1858-1942). Essa transformação de ideias afetou também os pesquisadores do Instituto Nina Rodrigues que começaram a reinterpretar as teses elaboradas pelo médico maranhense. Partindo das pesquisas realizadas por Rodrigues, uma nova geração de médicos dedicados à etnografia dos descendentes africanos no Brasil abandonou as hipóteses da hierarquia racial para ler essas mesmas pesquisas pelo prisma da influência cultural. Artur Ramos é o médico alagoano cujos trabalhos mais se destacam nessa nova fase. Em 1933, com a conclusão de O negro brasileiro, Ramos reinterpreta completamente o trabalho anterior de Rodrigues, Os africanos no Brasil. Sua maior contribuição foi perceber a diversificada contribuição da imigração africana ao Brasil na construção de fenômenos culturais (festivos, religiosos, culinários, entre outros) difusos, e que dependiam das áreas africanas culturais de origem dessas populações. Nina Rodrigues, utilizando a antropometria, identificou duas grandes áreas de imigração africana ao Brasil. Uma de etnia bantu (originária do Congo e de Angola) que se estabeleceu no sudeste brasileiro, e outra de etnia sudanesa (do Golfo da Guiné) estabelecida no nordeste, principalmente na Bahia. Por esse entendimento o afrodescendente baiano herdaria o padrão social relativo à etnia sudanesa. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Por outro lado, Artur Ramos estudou os aspectos culturais relativos aos bantus e aos sudaneses trazidos desde suas áreas de origem. Percebeu que havia uma significativa influência da cultura bantu, basicamente animista (que acredita na presença de almas na manifestação dos fenômenos da natureza), na formação do candomblé baiano, enquanto que boa parte dos sudaneses já chegou aqui islamizada (muçulmana) e sua contribuição ao candomblé teve menor peso. Assim, procurou mostrar como era a cultura dos grupos e a circulação cultural entre esses grupos que constituía determinada sociedade e não o caráter étnico de origem desses grupos. Em 1935 publicou As culturas negras no Novo Mundo, trabalho no qual faz um vasto mapeamento das áreas culturais negras da América do Norte, do Caribe e da América do Sul. Com esse trabalho, o médico alagoano se tornará internacionalmente conhecido e será convidado a chefiar o Departamento de Ciências Sociais da UNESCO (a organização da ONU para a escolarização e cultura) em Paris, onde faleceu em 1949. Sua maior contribuição ao debate antropológico nacional foi trazer o conceito de aculturação definido pelo norte-americano Melville Herskovits ao Brasil. A aculturação compreenderia “fenômenos resultantes do contato, direto e contínuo, dos grupos de indivíduos de culturas diferentes, com as mudanças consequentesnos padrões originais culturais de um ou ambos os grupos” (RAMOS, 1979: 244). Seriam três os resultados do processo de aculturação: a) Aceitação: pelo qual a nova cultura é aceita com a perda ou esquecimento da herança cultural mais velha. b) Adaptação: no qual, ambas as culturas, a original e a estranha combinam-se intimamente. c) Reação: quando surgem movimentos contra-culturais por causa da opressão ou problemas causados pelo cruzamento de traços culturais diferentes. Se nos Estados Unidos a aceitação e a reação foram os resultados mais marcantes, o processo de aculturação brasileiro levou a uma adaptação entre as diferentes culturas, formando uma sociedade culturalmente complexa. A adaptação UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS cultural que seria a formação da cultura mestiça cabocla no país, ainda era um problema para Ramos. Para o alagoano, a aceitação deverá prevalecer todas as vezes que duas culturas diversas se põem em contato e, em suas próprias palavras “para esta solução é que se encaminharão os grupos negros, no Brasil”. (RAMOS, 1979:246) Em outras palavras, a cultura dominante, ou seja, a europeia deveria ser aceita pela cultura inferior, assim, migramos com Ramos da fase antropológica da hierarquia racial para a da hierarquia cultural. O economista Marcelo Paixão, da Universidade Federal do Rio de Janeiro chamará a isso de “racismo à brasileira”. Exercício Assista ao filme realizado em 2004 “Quanto vale ou é por quilo” do cineasta Sérgio Bianchi, analise a proposta do diretor à luz da questão do “racismo à brasileira” e posicione-se em relação a ela. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 08_ A democracia racial. Se, podemos considerar Artur Ramos como o pioneiro na passagem dos estudos sobre os componentes físicos e raciais para os culturais como formadores do homem brasileiro, quem ficará para a história como o grande intelectual da fase culturalista das ciências sociais no Brasil será o antropólogo Gilberto Freyre. Em uma vasta obra realizada durante a década de 1930, esse autor pernambucano construiu uma verdadeira etnografia histórica da constituição da sociedade brasileira, especialmente na região açucareira do nordeste, a partir das relações escravistas estabelecidas no ambiente da produção e no ambiente doméstico. Freyre vem a público com a edição de Casa Grande e Senzala em 1933, que recebe o subtítulo de “Introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil”. Nessa obra, pela qual ele é mais conhecido, temos o retrato histórico da formação do patriarcado brasileiro, ou seja, de uma sociedade agrária que gira em torno do grande proprietário de terras, no caso pernambucano o latifundiário dono do engenho de cana de açúcar. Essa figura do poder rural brasileiro, o proprietário do latifúndio, cujo nome se modificará dependendo da época ou do lugar, senhor de engenho, coronel ou o barão, cuja vontade é lei, será central na constituição das relações sociais no país. Um exercício de poder que é autoritário, por que as normas e o cumprimento da lei em seus domínios dependem de sua vontade pessoal e não de um sistema jurídico- normativo regulado no âmbito do Estado. Mas, ao mesmo tempo, esse poder é paternalista, porque exercido de modo diferenciado para com os mais próximos, os compadres, os familiares os amigos, gerando as situações de contorno que ficarão conhecidas como o jeitinho brasileiro. Esse tema será depois retomado na década de 1980 por Roberto Da Matta. A preocupação de Freyre é com a constituição da família brasileira que seria híbrida, pois miscigenada desde sua nascença. Assim, primeiramente ele estudará o indígena como sendo o elemento fundamental para a formação familiar devido ao cruzamento e o casamento entre os colonizadores portugueses com as índias nativas. Essa ligação entre o português conquistador e a população Tupi dos interiores originará, por exemplo, o bandeirante paulista, tese posteriormente mais UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS bem desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda em seu livro Caminhos e Fronteiras (1957). Buarque de Holanda nos mostra como até meados do Império (1850), a língua falada pela maioria dos paulistas era o nhãgatu, um dialeto que misturava o português ao tupi. Feita esta primeira mistura racial entre indígenas e portugueses, formadora original da família brasileira, Freyre se dedica a compreender o papel social e familiar do negro trazido como escravo para o trabalho no engenho de cana. E vai encontrar a principal função social do elemento da raça negra, na condição da escrava negra, a mucama que participará do ambiente doméstico, seja na cozinha como formadora dos gostos e sabores dos brasileiros, seja no quarto, tanto dos filhos em sua iniciação na vida sexual, quanto do pai e senhor, na satisfação dos desejos sexuais moralmente condenáveis. O resultado desse contato último é a geração de uma prole mulata no seio da sociedade, na maior parte das vezes não reconhecida como sua legítima herdeira. O trabalho de Gilberto Freyre é inovador para a época, pois apresenta de forma escancarada um tema tabu na conservadora sociedade brasileira: o da sexualidade reprimida no casamento e o da promiscuidade tolerada para o homem de família. Na perspectiva da construção ideal da nação e do fortalecimento da sociedade, o antropólogo pernambucano também pode ser considerado o primeiro pensador genuinamente nacional. Aonde Nina Rodrigues encontrou a degeneração dos costumes e do caráter dos indivíduos na mistura racial, aonde Artur Ramos encontrou a aculturação mal resolvida dos negros em forma de adaptação cultural, Gilberto Freyre encontrará a grande qualidade brasileira, uma sociedade menos preconceituosa, pois formada na mistura étnica entre diferentes raças. Como conclusão de suas pesquisas constrói-se a tese em que aparece a característica diferencial da sociedade brasileira dentro da América. Uma sociedade multirracial, na qual o cruzamento étnico não ocorre como resultado de uma violência física gerada na conquista, mas como processo contínuo de negociação entre os grupos envolvidos. Está aberto o caminho para a tese que vai ser veiculada mundo afora, até hoje bastante defendida e, durante bastante tempo praticamente sem refutação: a da democracia racial brasileira. Tese na qual se elogia o caráter mestiço da UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS população como motivo de orgulho, pois conquista social, em que se afirmam as qualidades igualitárias trazidas pela mistura de índios, negros e brancos, e a construção de uma sociedade onde não haveria racismo, pois a mistura étnica encontrara-se integrada dentro da própria família brasileira. A partir da década de 1950, a tese de Gilberto Freyre passará a ser muito criticada. Exercício Analise a obra de Gilberto Freyre procurando perceber não somente os conceitos teóricos existentes em seu trabalho, mas também, como essas ideias por ele difundidas estão incorporadas e compõem o imaginário de boa parte da população brasileira. Analise, por exemplo, letras, músicas e novelas que mitificam a ideia da mulata como objeto sexual procurando perceber o quanto isso tem de invenção e o quanto isso está relacionado ao nosso passado escravista. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Resumo I A Antropologia realizada no século XIX estava ainda totalmente ligada às ciências biológicas e era tida como uma ciência natural. O ramo da Antropologia Física foi decisivamente influenciado pelo evolucionismo, pelo darwinismo sociale pelo positivismo. As questões relativas ao entendimento da evolução humana, os diferentes grupos étnicos e os estudos raciais predominaram nessa época. O pensamento antropológico brasileiro do século XIX e início do século XIX, como não poderia deixar de ser, foi construído com base nesses conceitos. A maioria dos pesquisadores brasileiros dessa época foi ligada às ciências biológicas: médicos, zoólogos, etnólogos e naturalistas. Alguns cientistas sociais também entraram no debate formador do pensamento antropológico nacional. Os trabalhos de pesquisa realizavam-se, sobretudo, nos museus etnográficos, entre os quais merece destaque o Museu Paraense Emílio Goeldi. Nesse museu trabalhou como etnólogo Curt Nimuendaju que, com suas pesquisas junto aos índios Tupi e Jê, pode ser considerado o precursor de uma etnologia brasileira. O médico Nina Rodrigues foi o pensador mais importante do período com a aplicação das teses da hierarquia racial para a população brasileira. Essas teses levaram à elaboração de políticas públicas de eugenia como a imigração de brancos, o combate à miscigenação e a melhoria genética da população. Num segundo momento a influência da Antropologia Cultural mudou o foco do debate da questão da raça para a questão da cultura. Artur Ramos foi o protagonista dessa passagem com a tese da aculturação e a definição da existência de uma hierarquia cultural entre as civilizações. Na prática, em relação aos índios, foi o Marechal Rondon quem contribuiu para a aplicação dessa teoria com a formulação de uma política indigenista. Encerramos o período formador do pensamento antropológico nacional com a presença de Gilberto Freyre e sua tese sobre a positividade da mestiçagem para a criação de valores sociais igualitários. Essa visão da sociedade brasileira ficou conhecida como democracia racial. Referências Bibliográficas UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS CUNHA, E. Os Sertões, Cultrix, São Paulo, 1973. CUNHA, M. C. Antropologia do Brasil, Brasiliense/EDUSP, São Paulo, 1986. FREYRE, G. Casa Grande & Senzala, 42 ª. ed., Record, Rio de Janeiro, 2001. HOLANDA, S. B. Caminhos e Fronteiras, 2 ª. ed., José Olympio, Rio de Janeiro, 1973. RAMOS, A. As Culturas negras no Novo Mundo, 4 ª. ed., Editora Nacional, São Paulo, 1979. __________ O Negro brasileiro, 3 ª. ed., Editora Nacional, São Paulo, 1950. RODRIGUES, N. Os Africanos no Brasil, 7 ª. ed., Editora Nacional, 1988. SCHWARCZ, L. M. O Espetáculo das raças, Companhia das Letras, São Paulo, 2005. SOLAZZI, J. S. A Ordem do castigo no Brasil, Imaginário, São Paulo, 2007. Link www.decine.gov.br http://www.decine.gov.br/ UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 09_A missão francesa na USP. Em outubro de 1934, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss apresentou sua candidatura para a vaga de professor de Sociologia na Universidade de São Paulo, USP. Na ocasião, além da docência, o objetivo do estudante recém-formado era o de fazer etnografia junto aos índios brasileiros que imaginava ainda viverem nos arredores da capital paulista. Esse e outros relatos sobre sua chegada ao Brasil e a constatação de que os índios a serem pesquisados estavam localizados a mais de 3.000 quilômetros de distância de São Paulo podem ser encontrado no livro Tristes Trópicos, um dos clássicos da narrativa etnológica, escrito no século passado no qual narra sua passagem por nosso país. Ao mesmo tempo em que essa passagem mostra a enorme falta de conhecimento sobre o Brasil que havia no estrangeiro, revela o esforço que a recém- criada USP fez para melhor qualificar seu grupo de professores e os cursos lá oferecidos. O jovem etnólogo francês em início de carreira lecionou pela primeira vez no novo departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras no ano de 1935. A etnografia ficou para a etapa final de sua passagem pelo país quando Lévi-Strauss vai ao encontro dos Cadiueu, dos Bororo e dos Nambiquara, sobre quem apresentará uma das mais belas leituras etnográficas feitas no Brasil. Durante sua passagem por aqui Lévi-Strauss ainda não adquirira a fama mundial que o consagrou, talvez, como o maior antropólogo do século XX ao desenvolver a teoria do estruturalismo na década de 1950 (ver As Estruturas elementares do parentesco). Além de Lévi-Strauss e de sua companheira Dina, Roger Bastide, que se dedicou ao estudo das manifestações da religião afro-brasileira e permaneceu por aqui até 1955, e o geógrafo Pierre Monbeig professor até 1946, compunham a missão francesa na USP, que depois se internacionalizou com a passagem do alemão Emilio Willems na década de 1940. O impacto do pensamento francês na formação da Filosofia da USP na década de 1930 foi completo, pois até essas aulas dos professores estrangeiros em diferentes cadeiras eram lecionadas em língua francesa. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Com esse convívio, alguns poucos especialistas brasileiros formavam o recente time de Antropologia da USP, como Plínio Ayrosa, que chefiava o gabinete de Etnografia Brasileira e tinha uma cadeira dedicada ao estudo da língua Tupi- Guarani. Não por coincidência, EgonSchaden, o primeiro estudante a se doutorar em Antropologia na USP em 1945 sob a orientação do professor Fernando de Azevedo, tornou-se um especialista na etnografia dos índios Tupi (A Mitologia heroica de tribos indígenas no Brasil). Além de Schaden, Gioconda Mussolini (com um estudo sobre os pescadores do litoral paulista Ensaios de antropologia indígena e caiçara) formou o primeiro grupo de mestres e doutores brasileiros específicos da área de Antropologia que lecionaram na Universidade durante as décadas de 1940/50. Assim, a formação antropológica na USP na década de 1940, numa fase em que o pensamento social brasileiro resumia-se a alguns poucos intelectuais, iniciou- se com uma missão de professores estrangeiros, em sua maioria franceses, que marcou as primeiras gerações de graduados em Sociologia na década seguinte: Florestan Fernandes, Antônio Cândido, Eunice Durham e Ruth Cardoso, entre outros. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 10_O Departamento de Cultura em São Paulo. A década de 1930 marca a época em que os antigos conceitos raciais passam a ser substituídos pelos culturais e essa nova visão do pensamento antropológico se institucionaliza. Isso leva a uma ligação entre o conceito de cultura e o estabelecimento de uma política cultural como meio de construção da nacionalidade brasileira. Na cidade de São Paulo, a Faculdade de Filosofia que estudamos na aula anterior, e a Escola Livre de Sociologia e Política, estreitaram a ligação com as associações de pesquisa (a Sociedade de Etnografia e Folclore e a Sociedade de Sociologia) existentes no município. Ambas encontravam-se dentro do Departamento de Cultura da prefeitura e essa nova ligação com a universidade. Foi um dos projetos de Mário de Andrade quando ele foi o diretor municipal de Cultura entre 1935 e 1938. Mário de Andrade tinha um projeto cultural bastante diferenciado para a época, de procurar, registrar e resgatar os valores culturais formadores da identidade brasileira em várias regiões do país. Ele tinha clara visão de que essas tradições e costumes estavam desaparecendo e sabia de seu valor fundamental para o estudo e entendimento de que vem a ser o povo brasileiro, ou, em que o brasileiro se diferencia dos demais. Entre o folclórico e o antropológico, o trabalho de Andrade foi inovador e situou-se numa época em que a questão da cultura se tornou central para o reconhecimento da diversidade da identidade brasileira. Ovínculo que se estabeleceu entre a USP e o DC, com a contratação para as duas associações de investigadores sociais, entre eles o casal Lévi-Strauss, permitiu, pela primeira vez no país, o surgimento de projetos de pesquisa etnográficos institucionais fora do ambiente dos museus. A Sociedade Etnográfica e Folclórica (SEF) teve como diretor Mário de Andrade, através do qual os levantamentos etnográficos confundiram-se com as pesquisas folclóricas, um modelo comum aos antropólogos ingleses e norte-americanos do início daquele século. Mas, com o trabalho de Dina Lévi-Strauss como secretária da Sociedade imprimindo procedimentos metodológicos para a elaboração dos questionários e UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS teóricos na análise dos resultados, a SEF adquiriu o caráter de um laboratório de pesquisa universitário. Para o professor Herbert Baldus da Escola de Sociologia, o etnógrafo recolhe os fatos e o etnólogo os analisa. Por isso a nova etnografia proposta por Andrade necessitava dos acadêmicos, que com o domínio do campo teórico poderiam deixar de lado o velho diletantismo da etnografia nacional. Um segundo ponto a que essa mudança de direção levou será a crítica que o conceito de aculturação posteriormente sofrerá. Com Macunaíma, Mário já nos mostra um personagem brasileiro que com seu caráter devorador não é um ser aculturado, é um intérprete de diferentes legados, mas, acima de tudo, é o criador de uma nova cultura. Exercício Faça uma reflexão sobre a ideia para a criação do personagem Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. Tente perceber em algumas situações cotidianas como se manifesta a capacidade presente em Macunaíma de utilizar e recriar invenções e culturas diferentes da brasileira. Veja, por exemplo, como isto se manifesta na culinária, quando pratos estrangeiros são abrasileirados. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 11_A crítica à democracia racial. Ao final da década de 1940, a chamada missão francesa na USP já havia sido superada pela formação de uma primeira geração de sociólogos brasileiros, entre os quais Florestan Fernandes e Antônio Cândido que ocupavam lugares de destaque, ingressando, também, no debate teórico no campo antropológico. Após os trabalhos de Artur Ramos e de Gilberto Freyre, internacionalmente divulgados, o conceito de aculturação tornou-se dominante em todo o Brasil. As primeiras críticas a esse conceito proveniente do culturalismo americano e cuja influência era ainda predominante na Antropologia da USP, partiram do professor Florestan Fernandes em debate público com o professor Emílio Willems. A ideia de aculturação implicava na existência de um grupo culturalmente dominante em relação a outro no país. Portanto, segundo essa visão, a dominação se faria através da cultura. Fernandes procurou mostrar o contrário, afirmando que a dominação no Brasil era uma questão de classe social, ou seja, econômica, e não cultural. Para Fernandes a análise sociológica considera as classes como estruturas sociais variáveis no tempo, registrando o aparecimento e a repetição de situações sociais que provocam o crescimento e a perpetuação das formas de atuação dessas mesmas classes. Com essa interpretação, ele traz o marxismo para a sociologia brasileira adequado à leitura da estrutura social. Em outras palavras ele sugere ao antropólogo abandonar a leitura exclusivamente culturalista e se dedicar a entender a situação dos diversos grupos sociais em relação à estrutura de classe existente na sociedade brasileira. Daí para o desmonte da ideia da existência de uma democracia racial no Brasil foi um passo. Pela perspectiva acima apresentada, o fator determinante na constituição da sociedade brasileira é o econômico, então o nosso modelo social montado com base na relação de dominação econômica entre senhor-escravo, e que foi trazido através do sexo para dentro da estrutura da família brasileira, já é discriminatório desde o princípio. Longe de haver uma democracia racial o que há seria uma discriminação social que se torna também racial e funciona como regra, não como exceção. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS O debate que se iniciava nos anos cinquenta era também uma tomada de posição pró ou contra o marxismo, teoria que entrava aos poucos na universidade. O doutorado de Antonio Cândido (Os parceiros do Rio Bonito, 1954) sobre a transformação do modo de vida dos caipiras no interior paulista analisada sob a influência do marxismo, já era um corte em relação aos estudos culturalistas. Mas, foram os sociólogos com suas pesquisas sobre o negro visando o estudo das relações raciais que trouxeram para a USP um desdobramento teórico que a distanciou do culturalismo. Os principais trabalhos realizados nessa década foram os estudos de Fernandes em colaboração com Roger Bastide investigando as relações entre negros e brancos na capital paulista, Brancos e negros em São Paulo, e também a pesquisa que Oracy Nogueira realizou sobre o mesmo tema. Na década seguinte, Fernandes escreveria O negro no mundo dos brancos, dando continuidade aos estudos dos diferentes grupos étnicos dentro de uma sociedade de classe e desmontando assim, a ideia de Gilberto Freyre sobre a democracia racial. Quem radicalizará as críticas de Fernandes ao conceito de aculturação será seu aluno de doutorado, Roberto Cardoso de Oliveira (doutor em 1966), que na ocasião já era professor dos cursos de especialização em Antropologia do Museu Nacional do Rio de Janeiro. Analisadas as relações raciais entre brancos e negros pelos sociólogos, caberia agora aos etnólogos a tarefa de analisar as relações que se estabeleceram entre brancos e índios. Exercício Compare a tese de Florestan Fernandes baseada no conceito marxista das classes sociais com a formulação da democracia racial proposta por Gilberto Freyre e tente se posicionar, o que você pensa e acha, em relação a elas. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 12_ O Museu Nacional. Na cidade do Rio de Janeiro, ainda capital da república na década de 1950, encontrava-se o SPI, Serviço de Proteção ao Índio, herdeiro do rondonismo e do programa de integração nacional dos povos indígenas que já estudamos. No SPI estava Darcy Ribeiro, um médico mineiro que havia estudado Sociologia em São Paulo e agora trabalhava na elaboração de políticas indigenistas. Em 1954, chega ao Rio Roberto Cardoso de Oliveira recém-saído da Filosofia da USP e ambos, Darcy e Cardoso, foram lecionar nos cursos de Antropologia oferecidos pelo Museu do Índio, fundado em 1955. Poucos anos depois, com esse museu enfrentando crise financeira, Darcy deixa os cursos de Antropologia e migra para os estudos no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, acabando a parceria entre ambos. Roberto Cardoso de Oliveira faz uma troca de museus e passou para o Museu Nacional, o velho museu dos tempos de antropologia física que, com o jovem professor na coordenação de pesquisas etnológicas e cursos de especialização em Antropologia, ganha vida nova entre 1960 e 1962. A Cardoso, se junta, em 1962, o inglês David Maybury-Lewis, phd em Antropologia por Oxford (Inglaterra) e que antes havia estudado em São Paulo. Ambos montaram a Divisão de Antropologia do Museu Nacional que se tornará Departamento em 1972 e criaram toda uma nova geração genuína de antropólogos quase sem a influência das outras ciências sociais, como ocorria até então na USP. Esses novos pesquisadores irão engordar os quadros de docência do Museu, Roque Laraia e Roberto Da Matta foram alguns deles, e criarão nele a principal referência na décadade 1970 para uma antropologia do Brasil. A grande inovação trazida pelo programa de estudos do Museu Nacional foi concentrar as pesquisas na área de Etnologia e pesquisar o encontro de índios com camponeses. Foi este segundo estudo sobre os trabalhadores agrícolas que distinguiu os trabalhos do Museu em nível nacional, tanto no campo da pesquisa como no campo teórico. A primeira dissertação defendida no Museu foi a de Otávio Velho, Frentes de expansão e estrutura agrária. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Na explicação do autor, uma frente de expansão regional é entendida como aqueles “segmentos da sociedade brasileira que avançam, no decorrer de uma atividade de exploração econômica, em áreas antes só ocupadas por silvícolas.” (VELHO, 1982:30) Tomando por base a pesquisa realizada por Otávio Velho, os trabalhos que estavam sendo desenvolvidos no Museu Nacional com camponeses, na verdade eram pesquisas que buscavam entender as consequências do contato inter étnico envolvendo populações indígenas e brasileiros. O risco da perda da identidade cultural era o efeito mais importante da expansão agrícola percebido pela ótica do índio, mas do lado do trabalhador agrícola a questão que se colocava era a passagem de uma situação de camponês(pequeno proprietário da terra) para a de proletário rural (trabalhador assalariado na grande fazenda) e todas as situações intermediárias decorrentes da industrialização no campo. Através desse campo do trabalho rural, a partir da década de 1970 foi sendo realizada no Museu Nacional uma série de pesquisas voltadas para o estudo do desenvolvimento regional e de seus impactos, tanto nas populações nativas como nas migrantes, nas áreas de expansão da fronteira agrícola. Sob a coordenação de Moacir Palmeira, as pesquisas estavam inicialmente concentradas na área litorânea da zona da mata do Nordeste brasileiro, particularmente no estado de Pernambuco, com os conflitos envolvendo a mão de obra dedicada à agroindústria. Posteriormente, essa linha de pesquisa sobre o trabalho no campo se tornaria a marca registrada do Museu sendo ampliada para quase todos os estados do país e mantendo-se até a atualidade como uma das áreas de destaque nos estudos de pós-graduação em Antropologia. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 13_Da aculturação à fricção interétnica. A formação dos cursos de Antropologia no Museu Nacional deveu-se em grande parte à parceria de pesquisa realizada por Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis. No início da década de 1960 ambos coordenavam um projeto chamado “Estudo das áreas de fricção interétnica no Brasil”. Como se refere o título, também um novo conceito estava sendo apresentado no campo da etnologia brasileira, o que acabaria provocando uma mudança de paradigma teórico em toda antropologia nacional, com o declínio de sua fase culturalista e o ingresso no que se tornaria a Antropologia Social. O primeiro trabalho de Cardoso de Oliveira, O processo de assimilação dos Terena, nome do livro de estreia do autor publicado em 1960, ainda era marcado pela utilização do conceito clássico de aculturação derivado da antropologia cultural norte-americana e seguido pelos autores brasileiros desde a década de 1930. Mas já se delineavam nesse trabalho as críticas à teoria da aculturação antevendo-se a passagem dos estudos culturais para uma análise etnológica baseada no resultado de mudança sócio-cultural que se produzia no contato entre índios e não índios. Nos anos seguintes, o desdobramento desse trabalho levou Cardoso e o curso de Antropologia do Museu Nacional a se distanciar das teses culturalistas ainda defendidas pelos antropólogos ligados a Darci Ribeiro. A definição de fricção interétnica encontra-se no livro O índio e o mundo dos brancos, publicado em 1964, e é dada pelo seu autor como sendo o contato entre grupos tribais e segmentos da sociedade brasileira que é caracterizado por seus aspectos competitivos, geralmente conflituosos, envolvendo toda a conduta da tribo e de fora dela. Cardoso de Oliveira mostra em seguida que o tipo de abordagem dado pela antropologia social de origem britânica é mais adequado para o entendimento da nova situação tribal vivida pelos índios após o contato. O que está em jogo não é mais a compreensão de que houve a assimilação da cultura branca civilizada, nem sua aceitação, nem a adaptação a ela. O contato entre índios e brancos passa a ser entendido como provocador de uma mudança social na conduta da tribo. Nem a UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS perda total dos valores tradicionais, com a consequente descaracterização da cultura original, nem o romantismo idílico do índio selvagem. No caso específico da pesquisa realizada com os Terena, durante o seu processo de contato com o mundo urbano dos brancos eles não foram nem aceitos nem assimilados pela sociedade brasileira, que os continuou a ver como bugres. Porém, a conduta interna da tribo, como resultado de seu contato com objetos e costumes diferentes dos seus, sofreu uma mudança de comportamento, uma mudança parcial, que não foi suficiente para descaracterizar completamente aquela tribo de sua identidade Terena. Essa clivagem na leitura dos trabalhos de campo sustentada por um novo arcabouço teórico antropológico se estenderá, inclusive, à prática política na década seguinte, com o fim da velha política indigenista de integração nacional e o início de políticas indígenas trazidas ao cenário político nacional pelos antropólogos e que tanto incomodaram o governo federal durante o período de ditadura. Na perspectiva acadêmica, iniciava-se uma nova fase na qual o culturalismo entrava em decadência e a antropologia britânica influenciaria os novos estudos feitos no Brasil, particularmente os realizados na Unicamp. Exercício Faça uma comparação entre os conceitos já estudados de aculturação e de fricção interétnica. UNIVERSIDADE METROPOLITANA DE SANTOS Núcleo de Educação a Distância 9 CIÊNCIAS SOCIAIS Aula 14_O estruturalismo chega à Antropologia. A mudança da orientação teórica para a etnologia indígena iniciada com Roberto Cardoso de Oliveira e David Maybury-Lewis institucionalizou-se no âmbito do Museu Nacional, em 1968, com a criação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social e o projeto “Estudo comparado do desenvolvimento regional”. Os dois professores também inovaram no campo teórico trazendo para o curso a leitura das obras mais recentes escritas por Lévi-Strauss. A análise estrutural aplicada às sociedades tribais brasileiras tornou-se o campo teórico principal para a produção acadêmica realizada nos cursos do Museu Nacional. O estruturalismo aplicado à Ciência Social é uma teoria derivada dos estudos linguísticos e desenvolvida a partir da década de 1940, que teve como principal objetivo encontrar e delimitar estruturas sociais comuns a diferentes grupos étnicos. A linguagem, ou melhor, uma língua falada, é constituída de estruturas elementares cuja diferenciação entre elas e não a sua semelhança, é que permite o surgimento de uma fala complexa. Por exemplo, o fonema “ti” diferente de “pi”, ou “te” diferente de “de”, e assim por diante. No campo da Antropologia, Lévi-Strauss seguiu essa mesma premissa válida para a linguagem e procurou provar que há uma ordem familiar nos casamentos tribais com base numa separação não aleatória, pois, os sistemas, “embora definindo todos os membros do grupo como parentes, dividem-nos em duas categorias, a dos cônjuges possíveis e a dos cônjuges proibidos.” (LÉVI-STRAUSS, 1976: 19) A união entre os chamados primos cruzados, ou seja, entre primos pertencentes
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