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Indaial – 2022 Brasileira Prof.ª Thamirez Lutaif Lopes 1a Edição antropologia Elaboração: Prof.ª Thamirez Lutaif Lopes Copyright © UNIASSELVI 2022 Revisão, Diagramação e Produção: Equipe Desenvolvimento de Conteúdos EdTech Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI Ficha catalográfica elaborada pela equipe Conteúdos EdTech UNIASSELVI Impresso por: C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO LEONARDO DA VINCI. Núcleo de Educação a Distância. LOPES, Thamirez Lutaif. Antropologia Brasileira. Thamirez Lutaif Lopes. Indaial - SC: UNIASSELVI, 2022. 173p. ISBN 978-85-515-0621-9 ISBN Digital 978-85-515-0617-2 “Graduação - EaD”. 1. Antropologia 2. Brasil 3. Etnia CDD 306 Bibliotecário: João Vivaldo de Souza CRB- 9-1679 Olá, acadêmico! Bem-vindo ao livro da disciplina de Antropologia Brasileira. Essa disciplina tem por objetivo introduzir esse campo de conhecimento no contexto do Brasil. Vamos abordar diversos importantes para aqueles que querem entender desde os debates tradicionais até os debates atuais da antropologia brasileira. Na Unidade 1, abordaremos o desenvolvimento da antropologia no Brasil, analisando suas especificidades e tendências. Vamos refletir sobre os principais temas e preocupações teóricas e metodológicas encontrados na antropologia produzida no Brasil. Em primeiro lugar será apresentado o desenvolvimento do campo da Antropologia no Brasil para entendermos o que é a disciplina da antropologia, por que a antropologia é considerada uma ciência social e um panorama histórico da antropologia brasileira. Em segundo lugar serão abordados obras e autores clássicos da antropologia brasileira, percorrendo o contexto dos principais debates nas áreas de etnologia indígena, dos estudos sobre o negro e dos estudos sobre feminismo. Em terceiro lugar, serão levantadas questões a respeito da cultura brasileira, como o próprio conceito de cultura brasileira, temas de cultura popular e folclore brasileiro e o contexto dos estudos pós- coloniais. Em seguida, na Unidade 2, estudaremos mais alguns dos autores e obras clássicas da antropologia brasileira, tendo em vista as discussões sobre identidade, raça, etnia e gênero. Para isso, apresentaremos o conceito de cultura, diferenciaremos os conceitos de raça e etnia e abordaremos as questões de gênero no contexto brasileiro. Em seguida, as discussões étnicas e raciais serão aprofundadas, pormenorizando a discussão sobre o racismo no Brasil, entendendo a noção de sincretismo religioso e apresentando a ideia de racismo religioso. Depois, resumiremos alguns dos principais temas sobre antropologia rural, antropologia urbana e antropologia nas mídias digitais. Por fim, na Unidade 3, aprenderemos o desenvolvimento do campo institucional e acadêmico da antropologia no Brasil, analisando temas contemporâneos da antropologia brasileira. Primeiro, apresentaremos um panorama geral da graduação e da pós-graduação em antropologia no Brasil, percorrendo a formação do antropólogo, o trabalho do chamado antropólogo de “gabinete” e o trabalho do antropólogo de campo. Depois, abordaremos temas contemporâneos de antropologia brasileira, como a globalização cultural, entendendo o seu conceito e outros conceitos como modernidade, pós-modernidade e multiculturalismo. Em último lugar, trataremos da questão do antropoceno e sua relação com o Brasil pós-pandemia, analisando o conceito de antropoceno, tratando da questão da antropologia multiespécie e trazendo um debate atual sobre as doenças infecciosas e sua relação com o agronegócio no Brasil. Bons estudos! Prof.ª Thamirez Lutaif APRESENTAÇÃO Olá, acadêmico! Para melhorar a qualidade dos materiais ofertados a você – e dinamizar, ainda mais, os seus estudos –, nós disponibilizamos uma diversidade de QR Codes completamente gratuitos e que nunca expiram. O QR Code é um código que permite que você acesse um conteúdo interativo relacionado ao tema que você está estudando. Para utilizar essa ferramenta, acesse as lojas de aplicativos e baixe um leitor de QR Code. Depois, é só aproveitar essa facilidade para aprimorar os seus estudos. GIO QR CODE Olá, eu sou a Gio! No livro didático, você encontrará blocos com informações adicionais – muitas vezes essenciais para o seu entendimento acadêmico como um todo. Eu ajudarei você a entender melhor o que são essas informações adicionais e por que você poderá se beneficiar ao fazer a leitura dessas informações durante o estudo do livro. Ela trará informações adicionais e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto estudado em questão. Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é o material-base da disciplina. A partir de 2021, além de nossos livros estarem com um novo visual – com um formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura –, prepare-se para uma jornada também digital, em que você pode acompanhar os recursos adicionais disponibilizados através dos QR Codes ao longo deste livro. O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com uma nova diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página – o que também contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo. Preocupados com o impacto de ações sobre o meio ambiente, apresentamos também este livro no formato digital. Portanto, acadêmico, agora você tem a possibilidade de estudar com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador. Preparamos também um novo layout. Diante disso, você verá frequentemente o novo visual adquirido. Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa continuar os seus estudos com um material atualizado e de qualidade. ENADE LEMBRETE Olá, acadêmico! Iniciamos agora mais uma disciplina e com ela um novo conhecimento. Com o objetivo de enriquecer seu conheci- mento, construímos, além do livro que está em suas mãos, uma rica trilha de aprendizagem, por meio dela você terá contato com o vídeo da disciplina, o objeto de aprendizagem, materiais complementa- res, entre outros, todos pensados e construídos na intenção de auxiliar seu crescimento. Acesse o QR Code, que levará ao AVA, e veja as novidades que preparamos para seu estudo. Conte conosco, estaremos juntos nesta caminhada! Acadêmico, você sabe o que é o ENADE? O Enade é um dos meios avaliativos dos cursos superiores no sistema federal de educação superior. Todos os estudantes estão habilitados a participar do ENADE (ingressantes e concluintes das áreas e cursos a serem avaliados). Diante disso, preparamos um conteúdo simples e objetivo para complementar a sua compreensão acerca do ENADE. Confi ra, acessando o QR Code a seguir. Boa leitura! SUMÁRIO UNIDADE 1 - PANORAMA INICIAL DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ................................. 1 TÓPICO 1 - O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO DA ANTROPOLOGIA NO BRASIL ...............3 1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................................3 2 O QUE É A ANTROPOLOGIA? ..............................................................................................3 3 A ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA SOCIAL NO BRASIL ...................................................8 4 UM BREVE HISTÓRICO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ............................................. 12 RESUMO DO TÓPICO 1 ......................................................................................................... 16 AUTOATIVIDADE .................................................................................................................. 17 TÓPICO 2 - OBRAS E AUTORES CLÁSSICOS NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ............. 19 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 19 2 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE INDÍGENAS .............................................................19 3 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE NEGROS ................................................................. 28 4 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE MULHERES ............................................................. 31 RESUMO DO TÓPICO 2 ........................................................................................................ 35 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................. 36 TÓPICO 3 - ENTENDENDO A CULTURA BRASILEIRA ........................................................ 39 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 39 2 CONCEITO DE CULTURA BRASILEIRA ............................................................................ 39 3 CULTURA POPULAR E FOLCLORE .................................................................................. 43 4 ESTUDOS PÓS-COLONIAIS ..............................................................................................47 LEITURA COMPLEMENTAR ................................................................................................ 52 RESUMO DO TÓPICO 3 ........................................................................................................ 58 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................................59 REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 61 UNIDADE 2 — ANTROPOLOGIA BRASILEIRA ..................................................................... 65 TÓPICO 1 — ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E A QUESTÃO DA CULTURA NACIONAL ........67 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................67 2 CULTURA ...........................................................................................................................67 3 RAÇA E ETNIA ................................................................................................................... 71 4 GÊNERO .............................................................................................................................75 RESUMO DO TÓPICO 1 ........................................................................................................ 80 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................................81 TÓPICO 2 - ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E AS DISCUSSÕES ÉTNICO-RACIAIS .......... 83 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................... 83 2 RACISMO .......................................................................................................................... 83 3 SINCRETISMO RELIGIOSO ...............................................................................................87 4 RACISMO RELIGIOSO ...................................................................................................... 92 RESUMO DO TÓPICO 2 .........................................................................................................95 AUTOATIVIDADE ..................................................................................................................96 TÓPICO 3 - ANTROPOLOGIA BRASILEIRA: ESTUDOS RURAIS E URBANOS ....................99 1 INTRODUÇÃO .....................................................................................................................99 2 ANTROPOLOGIA RURAL ...................................................................................................99 3 ANTROPOLOGIA URBANA ..............................................................................................103 4 ANTROPOLOGIA DA MÍDIA .............................................................................................106 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................108 RESUMO DO TÓPICO 3 ....................................................................................................... 114 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................ 115 REFERÊNCIAS .....................................................................................................................117 UNIDADE 3 - O CAMPO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA .............................................. 119 TÓPICO 1 - PANORAMA DA GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA NO BRASIL .......................................................................... 121 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 121 2 FORMAÇÃO EM ANTROPOLOGIA NO BRASIL ................................................................ 121 3 O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO EM CAMPO ..............................................................126 4 O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO NO GABINETE .........................................................128 RESUMO DO TÓPICO 1 ....................................................................................................... 131 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................132 TÓPICO 2 - TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL I: GLOBALIZAÇÃO CULTURAL ...........................................................................135 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................................135 2 O QUE É GLOBALIZAÇÃO CULTURAL? ..........................................................................135 3 MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE ........................................................................ 140 4 MULTICULTURALISMO .................................................................................................. 144 RESUMO DO TÓPICO 2 .......................................................................................................148 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................149 TÓPICO 3 - TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL II: ANTROPOCENO E BRASIL PÓS-PANDEMIA ................................................. 151 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 151 2 O QUE É ANTROPOCENO? .............................................................................................. 151 3 ABORDAGENS DA ANTROPOLOGIA MULTIESPÉCIE .....................................................156 4 DOENÇAS INFECCIOSAS, AGRONEGÓCIO E BRASIL PÓS-PANDEMIA .......................159 LEITURA COMPLEMENTAR ...............................................................................................164 RESUMO DO TÓPICO 3 .......................................................................................................169 AUTOATIVIDADE ................................................................................................................170 REFERÊNCIAS .................................................................................................................... 172 1 UNIDADE 1 - PANORAMA INICIAL DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • entender o conceito geral de antropologia; • perceber a antropologia enquanto ciência social no Brasil; • conhecer um panorama histórico da antropologia brasileira; • compreender o contexto dos debates em etnologia indígena no Brasil; • analisar o contexto dos debates em estudos sobre questões raciais no Brasil; • explicar o contexto dos debates emestudos sobre feminismo no Brasil; • assimilar o conceito de cultura brasileira; • apreender alguns temas de cultura popular e folclore brasileiro. A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO DA ANTROPOLOGIA NO BRASIL TÓPICO 2 – OBRAS E AUTORES CLÁSSICOS NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA TÓPICO 3 – ENTENDENDO A CULTURA BRASILEIRA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 2 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 1! Acesse o QR Code abaixo: 3 O DESENVOLVIMENTO DO CAMPO DA ANTROPOLOGIA NO BRASIL 1 INTRODUÇÃO No Tópico 1, abordaremos a definição de antropologia, como se deu o desenvolvimento no Brasil e um panorama histórico da antropologia brasileira. Antes de avançarmos nossos estudos, é importante que você entenda o conceito geral de antropologia e qual é a diferença entre essa disciplina e as outras ciências sociais e humanas. Do mesmo modo, é importante que entenda qual é o objeto de estudo da antropologia e o que fazem antropólogos do mundo. Em seguida, vamos refletir sobre os avanços da antropologia no nosso país. Depois de aprender o objeto de estudo geral da antropologia mundial, vamos compreender quais os principais objetos de estudo dos antropólogos brasileiros, pensando na diversidade étnica do nosso país. Por fim, conheceremos datas e períodos importantes da história da antropologia brasileira desde o século XIX até os dias atuais. Ainda que a formalização da disciplina no país tenha acontecido na década de 1960, repassaremos alguns fatores importantes que permitiram a consolidação dessa disciplina no Brasil. 2 O QUE É A ANTROPOLOGIA? Afinal, o que é a antropologia? Você já pode ter ouvido falar sobre esta disciplina, mas vamos aprofundar o seu conceito ao longo da nossa disciplina, refletindo juntos sobre o seu desenvolvimento no nosso país. A palavra “antropologia” possui uma origem grega, sendo que anthropos significa homem e logos, estudo. Assim, podemos assumir que a antropologia versa sobre o estudo do homem, ou, melhor ainda, sobre o estudo dos seres humanos. TÓPICO 1 - UNIDADE 1 Nos livros de ciências humanas é comum que a palavra “homem” seja utilizada como um sinônimo de seres humanos. Contudo, é importante lembrar que o termo “seres humanos” é mais adequado porque não exclui as mulheres. IMPORTANTE 4 Outras disciplinas, como a fi losofi a e a biologia, também versam sobre o estudo dos seres humanos. Mas o que a antropologia tem de diferente em relação às outras disciplinas? Podemos dizer que a antropologia foi baseada no estudo comparativo entre diversas sociedades das mais variadas regiões do mundo. Enquanto disciplinas como a biologia e a fi losofi a estavam baseadas principalmente nas sociedades consideradas “civilizadas”, a antropologia se voltou para as sociedades consideradas “primitivas” (LAPLANTINE, 1987). O movimento da antropologia partiu de regiões da civilização europeia e norte- americana em direção a regiões distantes tidas como inexploradas. Em resumo, o trabalho dos primeiros antropólogos estava voltado para o estudo de sociedades com uma localização bem defi nida, que não tiveram muito contato com outras sociedades próximas e que não tinham uma tecnologia considerada desenvolvida. Para simplifi car, podemos dizer que o objeto de estudo inicial da antropologia foi o estudo das sociedades não ocidentais pelos antropólogos vindos de sociedades ocidentais (LAPLANTINE, 1987). Vale lembrar que os termos “civilizado” e “primitivo” devem ser usados com cuidado, pois se corre o risco de soar etnocêntrico. Em outras palavras, dizer que uma sociedade é civilizada e outra primitiva pode dar a entender que tal sociedade civilizada é melhor que a sociedade primitiva, o que é um grande erro. Um dos maiores desafi os dos antropólogos é fazer com que as sociedades mais afastadas tenham sua importância reconhecida, validando suas próprias culturas e modos de viver. O termo “etnocêntrico” é muito usado no campo da antropologia e deriva da palavra “etnocentrismo”. O etnocentrismo está relacionado ao pensamento de quem entende que a sua etnia é mais importante que as outras, lembrando que devemos tomar cuidado para não pensar dessa maneira, pois cada grupo tem a sua importância. IMPORTANTE NOTA 5 Em resumo, a antropologia foi tida como a disciplina que estuda as sociedades humanas a partir de diversidades culturais, geográficas e históricas. Existem vários setores de estudos especializados dentro da antropologia, como antropologia biológica, arqueologia, antropologia linguística, antropologia psicológica e antropologia social e cultural (LAPLANTINE, 1987). A antropologia biológica também ficou conhecida como antropologia física e está direcionada ao estudo do ser humano enquanto um animal social. Ela estuda o ser humano a partir da relação entre o meio ambiente e o seu modo de viver (LAPLANTINE, 1987). FONTE: <https://bit.ly/3BypRIM>. Acesso em: 16 jun. 2022. Hoje em dia, não podemos mais dizer que os objetos de estudo da antropologia são as sociedades não ocidentais por parte dos antropólogos de sociedades ocidentais. Existem novas áreas na antropologia, como a antropologia urbana, que possui como objeto de estudo as relações sociais da cidade. Por isso, podemos dizer que o trabalho do antropólogo está mais no modo de analisar as sociedades a partir de teorias antropológicas que no movimento do ocidental para o não ocidental. Aqui vale nos atentarmos para uma questão importante sobre a ideia de tecnologia. Podemos pensar que tecnologia tem a ver somente com equipamentos da cidade como grandes máquinas e produtos que dependem de eletricidade, mas esse pensamento é equivocado. Antes de qualquer coisa, a tecnologia diz respeito a um conjunto de métodos e técnicas que também fazem parte daquelas sociedades não ocidentais. Por exemplo, o uso de ferramentas, como o arco e flecha, para caçar animais, por parte de sociedades indígenas, é uma grande tecnologia. IMPORTANTE FIGURA 1 – INDÍGENA BRASILEIRO DA ETNIA KAYAPÓ 6 A arqueologia está baseada no estudo do ser humano considerando a pré- história, ou seja, aquele período anterior à invenção da escrita. A partir de vestígios materiais, como fósseis, a arqueologia busca presumir qual eram os modos de organização social de sociedades humanas que não mais existem (LAPLANTINE, 1987). FIGURA 2 – ARQUEOLOGIA FONTE: <https://bit.ly/3SjYmZv>. Acesso em: 16 jun. 2022. A antropologia linguística, por sua vez, tem a ver com o estudo das sociedades humanas a partir da linguagem, tanto oral como escrita. Devemos ter em mente que a linguagem não diz respeito somente a palavras faladas, mas também a outras formas de comunicação não verbal, como o conjunto de gestos presente em performances e danças (LAPLANTINE, 1987). A antropologia psicológica está voltada para a compreensão dos processos psicológicos do ser humano em sua individualidade. Antes de analisar determinada sociedade em seu conjunto de pessoas, o antropólogo entra em contato com indivíduos particulares, e é isso que a antropologia psicológica leva em consideração. Por fim, a antropologia social e cultural pode ser considerada a área mais abrangente da antropologia. Ela estuda os diversos segmentos das sociedades humanas, considerando elementos como o casamento, organização social, o parentesco, a família, a divisão social do trabalho, a educação, a religião, entre outros. 7 Outro ponto fundamental para entendermos o que é a antropologia tem a ver com a questão da alteridade. Ora, o que é a alteridade? Em poucas palavras, a alteridade é uma qualidade de quem é distinto de nós, ou seja, de quem é outro! Quando os primeiros antropólogos pesquisaram sociedades distantes, eles se deparavam com grupos de pessoas muito diferentes das sociedades das quaisvinham. Isso os fez perceber que aquilo que achavam que era natural nos seus modos de viver não era algo natural, mas sim cultural. A partir do contato com grupos de pessoas que vivem de um modo diferente do nosso, passamos a refletir mais sobre nós mesmos e sobre a nossa sociedade. Além disso, apenas a distância em relação a nossa sociedade (mas uma distância que faz com que nos tornemos extremamente próximos daquilo que é longínquo) nos permite fazer esta descoberta: aquilo que tomávamos por natural em nós mesmos é, de fato, cultural; aquilo que era evidente é infinitamente problemático. Disso decorre a necessidade, na formação antropológica, daquilo que não hesitarei em chamar de “estranhamento” (depaysement), a perplexidade provocada pelo encontro das culturas que são para nós as mais distantes, e cujo encontro vai levar a uma modificação do olhar que se tinha sobre si mesmo. De fato, presos a uma única cultura, somos não apenas cegos a dos outros, mas míopes quando se trata da nossa. A experiência da alteridade (e a elaboração dessa experiência) leva-nos a ver aquilo que nem teríamos conseguido imaginar, dada a nossa dificuldade em fixar nossa atenção no que nos ́e habitual, familiar, cotidiano, e que consideramos ”evidente”. Aos poucos, notamos que o menor dos nossos comportamentos (gestos, mímicas, posturas, reações afetivas) não tem realmente nada de “natural”. Começamos, então, a nos surpreender com aquilo que diz respeito a no ́s mesmos, a nos espiar. O conhecimento (antropológico) da nossa cultura passa inevitavelmente pelo conhecimento das outras culturas; e devemos especialmente reconhecer que somos uma cultura possível entre tantas outras, mas não a única (LAPLANTINE, 1987, p. 14). Vamos entender isso melhor? Por exemplo, quem vive nas cidades, está acostumado a dormir na cama, acordar, acender as luzes da casa, tomar água do filtro ou da torneira da cozinha, tomar banho com a água quente que vem do chuveiro, fazer comida no fogão e colocar roupas e sapatos para sair de casa. Fazem isso todos os dias, o que os faz pensar que é algo natural. Hoje em dia, não podemos mais dizer que os objetos de estudo da antropologia são apenas as sociedades humanas. Como herança da antropologia biológica, surgiu a chamada antropologia multiespécie, que vem sendo muito discutida nos cursos de pós-graduação em antropologia. O objeto da antropologia multiespécie é a análise das relações entre seres humanos e não humanos ou mesmo das relações entre os não humanos entre si a partir de teorias antropológicas. INTERESSANTE 8 Agora, vamos supor que você decide fazer uma pesquisa de campo em antropologia e vai a uma sociedade indígena afastada da cidade e experimenta viver como aquelas pessoas. Você chega na aldeia, que não possui luz elétrica, dorme na rede, precisa buscar água no rio para beber, toma banho na água gelada do rio, busca lenha para fazer comida na fogueira, não precisa colocar tantas roupas ou mesmo sapatos. Isso causaria uma sensação de estranhamento, certo? Essa sensação de estranhamento é o ponto chave da alteridade! A partir dela, entendemos que o que pensávamos que era algo natural, porque fazia parte dos nossos hábitos cotidianos, não é tão natural assim, mas sim cultural. Do mesmo modo, para as pessoas dessa suposta sociedade indígena, nossos hábitos cotidianos soariam muito estranho! Se você conversasse com uma criança, ela provavelmente iria perguntar se na sua cidade tem um rio e, se você respondesse que não, em seguida ela logo perguntaria: mas como você faz para tomar água e tomar banho? Assim, voltamos para a base de todo o pensamento antropológico: os nossos modos de viver não são naturais, mas sim culturais! 3 A ANTROPOLOGIA COMO CIÊNCIA SOCIAL NO BRASIL Depois de entendermos o que é a disciplina da antropologia em linhas gerais no item anterior, agora podemos pensar sobre a antropologia no nosso país. A antropologia começou a ser difundida como uma ciência social no Brasil a partir da década de 1960, como um desdobramento de outra disciplina que era a sociologia. Levando em consideração a pluralidade étnica do país, marcada pela relação entre os brancos e as diversas etnias indígenas e os negros, surgiu a necessidade de ser consolidada uma disciplina que soubesse refl etir sobre essa relação: a antropologia (PEIRANO, 2000). O estudo voltado para os povos indígenas, bem como para os afrodescendentes, já era um dos objetos dos sociólogos em atividade no país antes da década de 1960. No entanto, a relação entre esses povos e o restante da população brasileira gerava uma série de confl itos que não poderiam ser resolvidos apenas pelos conceitos próprios da sociologia e foi preciso ir além (PEIRANO, 2000). Para não gerar dúvidas, podemos entender que a principal diferença entre a antropologia e a sociologia é que a antropologia busca entender as relações humanas a partir de elementos culturais em nível micro e a sociologia, a partir de instituições sociais a nível macro. NOTA 9 Depois, a própria Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231, reconheceu aos indígenas suas próprias organizações sociais, costumes, línguas nativas e tradições, o que foi uma grande conquista para o movimento a favor do reconhecimento dos direitos das populações tradicionais. Se tiver curiosidade a respeito dos confl itos que nasceram da tentativa de homogeneizar as diversas etnias indígenas do Brasil e o resto da sociedade envolvente em um único Estado soberano que representasse a todos, leia o artigo Nações dentro da nação: um desencontro de ideologias, da antropóloga Alcida Rita Ramos da Universidade de Brasília. INTERESSANTE DICA De um lado, havia a sociedade envolvente que era regida pela legislação brasileira e suas grandes instituições e, de outro, havia uma série de sociedades espalhadas pelo país que eram regidas por seus próprios elementos culturais. O principal confl ito se ateve ao fato de que a sociedade nacional estava carregada pelo processo de expansionismo e integração, enquanto as outras sociedades tidas como tradicionais tentavam manter seus próprios modos de viver desvinculados do desenvolvimento capitalista (PEIRANO, 2000). Podemos dizer que a principal contribuição da antropologia enquanto ciência social no Brasil foi a de unir os ideais de integração, próprios da sociedade nacional, e os ideais de diversidade, próprios das sociedades tradicionais. Em outras palavras, a antropologia foi importante na medida em que foi capaz de permitir um diálogo entre o povo brasileiro e os povos das mais variadas etnias que habitavam o país. Os antropólogos fi zeram um mapeamento da diversidade étnica no Brasil, de modo que essas etnias pudessem ser organizadas fazendo parte da população brasileira, mas ainda assim com suas diferenças culturais e sociais marcadas (VELHO, 2008). Em suma, existe uma relação direta entre a antropologia como ciência social no Brasil e a própria construção da nação brasileira, fazendo o casamento da unidade e da diversidade. Enquanto a antropologia ao redor do mundo estava preocupada em estudar os “outros” de regiões mais afastadas, a antropologia brasileira passou a se preocupar com as relações entre as diversas etnias e a sociedade envolvente que ora compunham a população brasileira (VELHO, 2008). 10 Um dos maiores desafi os dos antropólogos brasileiros foi, e ainda é, trabalhar com as pessoas dessas etnias, não como se fossem simples informantes para os escritos de antropologia, mas verdadeiros interlocutores e aliados políticos. Por isso, antropólogos brasileiros possuem o dever ético de lutar pelos direitos dessas etnias em conjunto com elas, e não as tratar como se fi zessem parte apenas daqueles “outros” distantes (VELHO, 2008). Nesse contexto, nasceram as maiores vertentes da antropologia brasileira: a Etnologia e a Antropologia da Sociedade Nacional. De um lado, o campo da Etnologia costumava ser defi nido pelo estudo de grupos minoritários:indígenas, negros ou brancos colocados à margem da sociedade, como os favelados ou trabalhadores rurais. De outro lado, o campo da Antropologia da Sociedade Nacional seguiu os passos da sociologia (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). A Etnologia, embora também concentrasse os estudos de negros, favelados ou trabalhadores rurais, acabou fi cando mais conhecida pela Etnologia Indígena. Conforme comenta o importante antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira, a Etnologia Indígena possuía algumas áreas de pesquisa mais signifi cativas, como Organização Social, Religião e Cosmologia, Relações Interétnicas e Etnicidade, Indigenismo (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). Assim, a preocupação da Etnologia Indígena girava em torno da noção de cultura e de todas essas áreas mencionadas por Cardoso de Oliveira. Sugerimos que assistam aos fi lmes Ex-Pajé e A última fl oresta, dirigidos por Luiz Bolognesi, que foram premiados internacionalmente e podem ser considerados novos clássicos dos fi lmes da antropologia brasileira. Esses fi lmes são importantes, sobretudo, porque os roteiros foram escritos em conjunto com os próprios indígenas das etnias Suruí Paiter e Yanomami, respectivamente. Vale lembrar que o termo “favelados” não deve ser usado de maneira pejorativa ou preconceituosa, mas diz respeito a uma pessoa que vive em uma favela – um conjunto de habitação popular urbana que normalmente é construída em torno de morros. DICA NOTA 11 Se quiser saber mais sobre essa etnia, sugerimos que leiam o livro “A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami”, escrito pelo Yanomami Davi Kopenawa e pelo antropólogo francês Bruce. Esse livro é um clássico importante da antropologia produzida no Brasil, que ficou muito famoso ao redor do mundo. Como comentamos, era comum que antropólogos europeus buscassem sociedades mais afastadas em outras regiões do mundo para se pesquisar e por isso Bruce Albert veio ao Brasil. Ele passou anos de sua vida morando junto com os Yanomami em Roraima, produzindo escritos etnográficos e lutando pelos direitos desse povo. Isso nos mostra como é interessante que o antropólogo construa uma relação duradoura com seus interlocutores. DICA Já a Antropologia da Sociedade Nacional tinha outras áreas de pesquisa, como “a Sociedade Agrária e Campesinato, a Antropologia Urbana, as Minorias Sociais e Étnicas, a Família, os Movimentos Sociais, as Religiões Populares e a Cultura Nacional” (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998). Logo, a preocupação da Antropologia da Sociedade Nacional estava mais baseada na questão da estrutura e da organização da sociedade e por isso estava um pouco mais próxima da sociologia. Para refletirmos mais sobre a Etnologia Indígena, vamos pensar em um exemplo e ver as figuras a seguir que retratam a etnia Yanomami que fica localizada na maior terra indígena do Brasil nos estados do Amazonas e de Roraima, a Terra Indígena Yanomami (TIY). Essa etnia é uma das mais famosas e provocou interesse de antropólogos estrangeiros e brasileiros. A primeira foto retrata um indígena da etnia Yanomami, e a segunda a casa coletiva em que as pessoas dessa etnia costumam viver. FIGURA 3 – INDÍGENAS DA ETNIA YANOMAMI FONTE: <https://bit.ly/3BB3yC8>. Acesso em: 16 jun. 2022. 12 FIGURA 4 – CASA COLETIVA YANOMAMI FONTE: <https://bit.ly/3vuJfl Z>. Acesso em: 16 jun. 2022. 4 UM BREVE HISTÓRICO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA Conforme comentamos no item anterior, a antropologia passou a ser consolidada no Brasil a partir da década de 1960. Nessa década, surgiram os primeiros programas de pós-graduação em antropologia nas universidades federais brasileiras, o que foi um marco importante para a formalização dessa disciplina no nosso país. Até a década de 1960, os estudos próximos da antropologia estavam concentrados em outras áreas, como a arqueologia, a paleontologia e a própria sociologia. Depois da década de 1960, surgiu uma nova antropologia que passou a ser mais independente das outras áreas (PEIRANO, 2000). Como também comentamos, os primeiros antropólogos do mundo vieram de sociedades ocidentais e buscavam estudar sociedades não ocidentais mais afastadas. Podemos afi rmar que a antropologia sempre esteve baseada na questão da alteridade, ou seja, no estudo dos “outros”. Entretanto, no Brasil, isso aconteceu de um jeito diferente! Os primeiros antropólogos brasileiros não precisaram ir a outros países em busca de sociedades afastadas para se pesquisar, mas começaram a pesquisar as diversas sociedades das mais variadas etnias no nosso próprio país. Em linhas gerais, a antropologia brasileira é uma antropologia feita no Brasil com sociedades do Brasil (PEIRANO, 2000). Hoje em dia, não podemos mais dizer que são somente os antropólogos brancos vindos da sociedade envolvente que estudam as sociedades mais afastadas do Brasil. Já existem muitos antropólogos de sociedades tradicionais, como quilombolas e indígenas, que pensam suas próprias culturas e mesmo a cultura dos brancos a partir de noções da antropologia. IMPORTANTE 13 Conforme nos ensina o pesquisador Francisco Salzano (2009), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, a história da antropologia brasileira pode ser dividida em três períodos: (1) os pioneiros; (2) período formativo; e (3) fase contemporânea. Vamos entender melhor esses períodos! De acordo com o autor, o primeiro período foi datado entre os anos de 1835 e 1933. O ano de 1835 foi importante, pois marcou a descoberta de um material arqueológico na Lagoa Santa em Minas Gerais, por Peter Lund. Já o ano de 1933 marcou o fim do período, considerando que a fundação da Universidade de São Paulo (USP) aconteceu em 1934. A tabela, a seguir, nos traz alguns dos principais antropólogos da época e seus focos de estudos (SALZANO, 2009). TABELA 1 – OS PIONEIROS FONTE: <https://bit.ly/3zQVVq5>. Acesso em: 16 jan. 2022. O segundo período, portanto, começou em 1934, justamente por causa da criação da USP. A tabela, a seguir, por sua vez, revela algumas pessoas que foram fundamentais para o campo da antropologia na época. O termo sociedade diz respeito à sociedade nacional brasileira em seu sentido amplo em contraposição às sociedades tradicionais, como as indígenas e quilombolas. NOTA 14 TABELA 2 – PERÍODO FORMATIVO FONTE: <https://bit.ly/3zQVVq5>. Acesso em: 16 jan. 2022. Por fim, o terceiro período começou em 1955 de se estendeu até os dias atuais, tendo em vista a criação da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) naquele ano. A tabela, a seguir, revela duas fases da ABA, sendo que a primeira era conhecida por ser uma instituição mais elitista, com dificuldades para o ingresso, e a segunda, por ser uma instituição que os estudantes de graduação e pós-graduação poderiam participar com mais facilidade. TABELA 3 – FASE CONTEMPORÂNEA 15 FONTE: <https://bit.ly/3zQVVq5>. Acesso em: 16 jan. 2022. A organização desses três períodos da história da antropologia brasileira nos permite visualizar melhor como essa disciplina progrediu ao longo do tempo no contexto do nosso país. A partir das tabelas, você pode conferir de referência para a área da antropologia e pesquisar mais sobre seus trabalhos! 16 Neste tópico, você aprendeu: • A antropologia tem a ver com o estudo dos seres humanos a partir da comparação entre várias sociedades de diferentes regiões do mundo. • Os primeiros antropólogos vieram da civilização europeia e norte-americana e foram em busca de regiões afastadas e pouco exploradas. • Existem diversas áreas da antropologia, como a antropologia biológica, arqueologia, antropologia linguística, antropologia psicológica, antropologia social e antropologia cultural. • Os conceitos de alteridade e estranhamento são pontos-chave para a antropologia e os modos de viver dos seres humanos não são naturais, mais sim culturais. • A antropologia brasileira concentrou sua atenção nos estudos sobre indígenas, negros e brancos colocados à margem da sociedade. • A diversidade étnica do Brasilgerou uma série de conflitos, os quais tentaram ser compreendidos pelas antropólogas e antropólogos brasileiros. • Enquanto os primeiros antropólogos do mundo buscavam pesquisar sociedades afastadas em outros países, os antropólogos brasileiros começaram a pesquisar temas e sociedades do nosso próprio país. RESUMO DO TÓPICO 1 17 AUTOATIVIDADE 1 Enquanto estudiosos de outras disciplinas, como a Biologia e a Filosofia, estavam voltados para o estudo das sociedades que consideravam civilizadas, os estudiosos da antropologia estavam voltados para as sociedades que consideravam primitivas. Sobre as noções de “civilizado” e “primitivo”, que são fundamentais para o saber antropológico, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) O termo “civilizado” tem a ver com as sociedades europeias, e o termo “primitivo” tem a ver com as sociedades indígenas, sendo que as sociedades civilizadas são melhores que as sociedades primitivas. b) ( ) Desde o início do desenvolvimento da antropologia até os dias atuais, os objetos de estudo dos antropólogos ocidentais são as sociedades não ocidentais primitivas. c) ( ) É importante tomar cuidado ao utilizar os termos “civilizado” e “primitivo” porque, ainda que algumas sociedades fossem consideradas civilizadas e outras primitivas no tempo dos primeiros antropólogos, corremos o risco de sermos etnocêntricos. d) ( ) É importante saber o que significam os termos “civilizado” e “primitivos” porque as sociedades civilizadas são mais desenvolvidas e mais tecnológicas que as sociedades primitivas. 2 A antropologia é a disciplina que tem como objeto principal o estudo dos seres hu- manos, considerando diversidades culturais, geográficas e históricas. Existem diver- sas áreas de estudos especializados dentro do campo da antropologia: antropologia biológica, arqueologia, antropologia linguística, antropologia psicológica, antropolo- gia social e antropologia cultural. Sobre essas áreas, analise as sentenças a seguir: I- A antropologia biológica estuda os seres humanos tendo em vista somente o meio ambiente e não considera seu modo de viver nem elementos culturais. II- A arqueologia considera vestígios materiais para estudar sociedades que não existem mais. III- A antropologia linguística estuda as sociedades humanas a partir da linguagem oral, desconsiderando a escrita. IV- A antropologia psicológica entende os grupos de pessoas levando em consideração os indivíduos particulares. V- A antropologia social e a antropologia cultural fazem parte das áreas mais abrangentes da antropologia e compreendem os mais diversos setores das sociedades humanas, como organização social e divisão social do trabalho. 18 Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I, II e III estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças II, IV e V estão corretas. d) ( ) As sentenças I e V estão corretas. 3 A história da antropologia brasileira pode ser dividida em três grandes fases: a fase dos pioneiros, a fase do período formativo e a fase contemporânea. Sobre essas fases, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas. ( ) A fase dos pioneiros data dos anos 1835 a 1933. ( ) O ano de 1835 foi importante devido à descoberta do material arqueológico na Lagoa Santa em Minas Gerais. ( ) O antropólogo Nina Rodrigues faz parte da fase do período formativo. ( ) O antropólogo Florestan Fernandes faz parte do período dos pioneiros. ( ) O antropólogo Darcy Ribeiro faz parte do período formativo. ( ) A criação da ABA aconteceu na fase contemporânea. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F – V – F – F. b) ( ) V – V – F – F – V – V. c) ( ) F – V – V – F – F – V. d) ( ) F – F – V – V – V – F. 4 A história da antropologia mundial está relacionada ao princípio alteridade, tendo em vista o estudo de sociedades distantes. Porém, no Brasil, a alteridade na antropologia pode ser entendida de uma maneira diferente já que nosso país abriga uma grande diversidade étnica. Disserte sobre a questão da alteridade e na sensação de estranhamento que ela implica, considerando as particularidades do Brasil. 5 O estudo relacionado aos povos indígenas e afrodescendentes também era um objeto de estudo dos sociólogos que trabalhavam no Brasil antes da década de 1960. Contudo, a década de 1960 marcou a consolidação de fato dessa disciplina no nosso país. Nesse contexto, disserte sobre como a antropologia surgiu no Brasil e qual foi sua importância na época. 19 OBRAS E AUTORES CLÁSSICOS NA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA 1 INTRODUÇÃO No Tópico 2, abordaremos as principais obras e autores clássicos da antropologia brasileira. Partiremos de um dos mais importantes campos da antropologia que é a Etnologia Indígena. Os estudos voltados para os povos indígenas, suas culturas e seu modo de viver é um ponto fundamental da antropologia mundial e, em particular, da antropologia brasileira. Assim, conheceremos alguns dos pesquisadores que realizaram importantes trabalhos entre as mais de 300 etnias presentes no Brasil. Depois, voltaremos nossa atenção para os estudos sobre os negros no nosso país, ou seja, para os africanos e afrodescendentes. Vamos passar por algumas figuras importantes que iniciaram os estudos sobre os negros no Brasil e que são uma importante referência até os dias atuais. Em seguida, vamos entender os estudos de gênero no nosso país, tendo em vista o enquadramento social das mulheres. Entenderemos como se deu o surgimento dos primeiros debates de feminismo no Brasil, seu contexto histórico e quem foram seus protagonistas. 2 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE INDÍGENAS Os estudos sobre indígenas na antropologia brasileira estão diretamente relacionados ao campo da Etnologia Indígena. A Etnologia, como aprendemos no tópico anterior, foi fortalecida com os primeiros programas de pós-graduação em antropologia no país. As primeiras pesquisas em antropologia brasileira voltadas para os povos indígenas foram feitas por estudiosos estrangeiros, mas em seguida as antropólogas e antropólogos brasileiros também começaram a avançar nessa área (MELATTI, 2018). Conforme aponta o antropólogo brasileiro Julio Cezar Melatti, a fundação do primeiro curso de pós-graduação em antropologia coincidiu com a criação da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Desde então, os conflitos que envolviam a sociedade nacional e as populações indígenas começaram a ser mais divulgados na imprensa. Nesse sentido, o autor também comenta que: Sem dúvida, essa atenção da imprensa contribuiu para a formação de um público mais alerta para os temas referentes aos índios, culminando com a criação de entidades não governamentais de UNIDADE 1 TÓPICO 2 - 20 apoio aos índios – hoje em número de, pelo menos dezesseis em todo o Brasil – e com a mobilização dos próprios indígenas e ainda com o interesse pelo estudo de grupos indígenas por parte de pesquisadores ligados a disciplinas não antropológicas (MELATTI, 2018, p. 254). O setor de Divisão de Estudos e Pesquisas da FUNAI era quem autorizava as pesquisas sobre etnologia no país. Entre os anos de 1974 e 1980, foram feitos 86 projetos de pesquisa por brasileiros e 17 por estrangeiros, o que nos confi rma que a temática nacional era de fato um interesse para estudiosos vindos de outros países em busca da alteridade e dos próprios estudiosos brasileiros. No entanto, naquela época, esses poucos projetos eram feitos por um grupo de antropólogos mais restrito em que a maioria deles se conhecia. Hoje em dia, isso mudou! Existem incontáveis pesquisadores na área da etnologia, envolvidos ou não com entidades não governamentais e cursos de pós-graduação (MELATTI, 2018). Tendo em vista os estudos clássicos sobre indígenas no país, Melatti (2018) organizou um compilado dos principais autores desse campo, das quais destacaremos cinco temáticas: (1) organização social e política; (2) mitologia e ritual; (3) relações com o meioambiente; (4) arte, artesanato e tecnologia; e (5) contato interétnico. Para que você conheça esses autores, confi ra as tabelas a seguir! Sobre os estudos em organização social e políticas, os principais pesquisadores se voltaram para as regiões do Centro-Oeste e do Sudoeste Amazônico e alto rio Xingu. Essa era de pesquisas foi iniciada pelo antropólogo inglês David Maybury-Lewis da Universidade de Oxford, que realizou um estudo entre a etnia Xavante no Brasil. Tal estudo foi fundamental na medida em que abriu espaço para que esse antropólogo, que era professor na Universidade de Harvard nos EUA, criar um convênio com o Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro voltado para o estudo dos indígenas do Brasil Central. Vamos conhecer no quadro, a seguir, mais alguns dos pesquisadores que pesquisaram esse tema depois do impulso dado por Maybury-Lewis! Existem mais de 300 etnias indígenas no Brasil! Caso tenha interesse e deseje se aprofundar nos estudos de alguma etnia indígena em particular, sugerimos que use os quadros a seguir para tomar como base os autores que também estudaram essa etnia para que assim comece suas pesquisas. Em qualquer pesquisa, é importante recorrermos às primeiras pessoas que estudaram aquela etnia, ou seja, aos clássicos! NOTA 21 QUADRO 1 – CLÁSSICOS DOS ESTUDOS EM ORGANIZAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA FONTE: Adaptado de Melatti (2018) Etnias indígenas pesquisadas Pesquisadores Apinayé Roberto da Matta Asuriní Roque de Barros Laraia Awetí George de Cerqueira Leite Zarur Borôro Jon Christopher Crocker; Zarco Levak; Renate Brigitte Viertler; César Albisetti; Angelo Jaime Venturelli Cinta Larga Carmen Junqueira; Betty Lafer Juruna Adélia Engracia de Oliveira Kaapór Roque Laraia Kalapalo Ellen Basso Kamayurá Carmen Junqueira, Roque Laraia Kayapó Terence Sheldon Turner; Donald Hunderfund; Simone Dreyfus, Gustaaf Verswijver Krahô Julio Cezar Melatti; Manuela Carneiro da Cunha; Gilberto Azanha Kreen Akarôre Etephan Schwartzman Krinkatí Jean Elisabeth Carter Lave Makú Peter Silverwood-Cope; Howard Reid Marúbo Julio Ceezar Melatti; Delvair Montagner Melatti Meináku Thomas Gregor Munduruku Robert Murphy; Steve Brian Burkalter Múra Pirahân Adélia Engrácia de Oliveira Pakaá Nóva Alan Wilfrid Mason Parintintín Waud Kracke Suruí Carmen Junqueira; Roque Laraia Suyá Anthony Seeger Tenetehara Laís Cardia Txikâo Patrick Menget Waiwái Niels Fock Wayâna Jean Lapointe Xavante David Maybury-Lewis; Maria Aracy Lopes da Silva Ribeiro; Bartolomeu Giaccaria; Adalberto Heide; Helena Fanny Ricardo Xikrin Luz Boelitz Vidal Xokleng Gregory Urban Yanomami Hans Becher; Alcida Ramos; Judit Shapiro; Bruce Albert; Ettore Biocca Yawalapití Eduardo Viveiros de Castro 22 Os principais pesquisadores na temática de mitologia e ritual, por sua vez, partiam dos estudos gerais sobre organização política e ritual, com a ressalva de que faziam a pesquisa de campo buscando, sobretudo, colecionar os mitos e histórias daqueles povos. De acordo com Melatti (2018, p. 259): Esta linha temática está intimamente relacionada com a anterior, uma vez que, dificilmente, um etnólogo se dirige ao campo com o fim exclusivo de observar ritos ou colecionar mitos. Geralmente o pesquisador utiliza os mitos e os ritos como janelas por onde pode obter novos ângulos de observação do sistema social. O início dos estudos sobre os mitos no contexto brasileiro foi marcado pelo trabalho do antropólogo brasileiro Egon Schaden, que realizou um trabalho sobre a mitologia entre algumas indígenas no Brasil em 1945. Em seguida, trabalhos marcantes foram os do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro entre os Kadiweu, em 1950, e do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss entre diversas etnias, a partir de 1964. Em seguida, inúmeras outras pesquisas entre as etnias indígenas brasileiras foram desenvolvidas, como podemos conferir no quadro a seguir. QUADRO 2 – CLÁSSICOS DOS ESTUDOS EM MITOLOGIA E RITUAL Etnias indígenas pesquisadas Pesquisadores Asuriní Anton Lukesck; Carlos Kukesch Borôro César Albisetti; Angelo Jaime Venturelli; Renate Vietler; Neusa Maria Bloemer Desâna Umusin Panlon Kumu; Tolaman Kenhiri Diversas etnias Claude Lévi-Strauss Erikpátsa Adalberto Holanda Pereira Irântxe Adalberto Holanda Pereira Kadiwéu Darcy Ribeiro Kamayurá Pedro Agostinho da Silva; Roque de Barros Laraia; Orlando Villas Boas; Cláudi Villas Boas; Etienne Samain Karajá Odilon de Sousa Filho Kayabí Miguel Pedro Alves Cardoso Kayapó Turner; Lukesch Kayapó Lux Boelitz Vidal; Gustaaf Verswijver Krahô Manuela Carneiro da Cunha; Julio Cezar Melatti Makú Peter Silverwood-Cope Marúbio Delvair Montagner Melatti Mundurukú Yolanda Murphy; Robert Murphy Nambiquaras Adalberto Holanda Pereira 23 FONTE: Adaptado de Melatti (2018) Já os principais pesquisadores na temática ambiental podem ser divididos em dois. Os primeiros foram aqueles que pesquisaram as sociedades indígenas a partir das modificações culturais depois do contato com os brancos e suas implicações ambientais. Os segundos, aqueles que fizeram uma classificação dos elementos ambientais na cultura desses povos, como no caso de plantas medicinais. Nesse tema, Melatti (2018, p. 260) destaca dois trabalhos principais: Sem dúvida, o trabalho mais popular sobre este tema é o da arqueóloga Betty MEGGERS (1977) sobre a Amazônia, devido à sua tradução para o português e ao interesse político-econômico que essa região inspira no momento. Mas se trata de um trabalho, em parte, apoiado numa bibliografia muito antiquada. Uma pesquisa mais cuidadosa, com dados colhidos especialmente para o projeto, segundo técnicas previamente selecionadas para serem aplicadas por todos os seus participantes, é aquele dirigido por Daniel GROSS (and.) e desenvolvido por orientandos seus na City University of New York, e uma brasileira, além de um biólogo da Universidade de Brasília, em grupos Jê e nos Borôro. Além de Betty Meggers e Daniel Gross, outros pesquisadores também passaram a pensar nas relações com o meio ambiente a partir da antropologia, como vamos conhecer a seguir: QUADRO 3 – CLÁSSICOS DOS ESTUDOS EM RELAÇÕES COM O MEIO AMBIENTE Timbíra Roberto da Matta; Julio Cezar Melatti Trumaí Aurore Monod-Becquelin Xavante Bartolomeu Giaccaria; Maria Aracy da Silva Ribeiro Yanomami Bruce Albert Etnias indígenas pesquisadas Pesquisadores Apalaí Fernando da Costa Novaes Bakairí Debra Picchi Borôro Daniel Gross; Theka Hartmann Diversas etnias Claude Dumenil Diversas etnias amazônicas Betty Meggers Etnias do Cerrado e de Roraima Edileusa Sette Silva Etnias do Xingu Margareth Emmerich Guajajara Anthony Hennman Kaingang Anthony Hennman Kaiwá Wilson Garcia; Maria Fátima Roberto; Joana Silva 24 Kayapó Parrel Addison Posey; Eric Cravero; Joan Bamarger Turner Mawé Anthony Hennman Nambiquaras Eloene Setz Paresí Eloene Setz Suruí Carlos Coimbra; Everaldo Alvarez Uaupés Janet Chernela Yanomami Kenneth Taylor FONTE: Adaptado de Melatti (2018) Os estudos voltados para arte, artesanato e tecnologia, são um desdobramento das relações com o meio ambiente, bem como da organização social e política das sociedades indígenas. No geral, as regiões pesquisadas foram o Centro-Oeste, o alto Rio Xingu e Rondônia. Alguns projetos são bastante extensos, como o realizado sob os auspícios do CNRC (George ZARUR, and.), tendo como objeto o artesanato dos indígenas da região Centro-Oeste e desenvolvido com o auxílio de vários colaboradores. Outro projeto que abrange uma ampla área é o referente ao artesanato do rio Negro, do Xingu, dos Karajá e dos Canelas, por pesquisadores da Universidade de Morón, na Argentina (Ana Biró STERN & Martha Teresita MANARINI, and.). Extenso, também, é o projeto sobre o emprego social da tecnologia, que sc realiza no Xingu e entre os Tukúna e os Karajá (Maria Heloisa FÉNELON COSTA, João Pacheco de OLIVEIRA FILHO, and.), também com a ajuda de vários colaboradores. Outros, aindaque se refiram ao artesanato em geral, têm por objeto apenasum grupo tribal ou uma área mais restrita. É o caso das pesquisas sobre os Tiriyó (FRIKEL, 1973), Wayâna e Apalai (Lucia Hussak van VELTHEM, and.), grupos da região do Tumucumaque e estudados por sucessivos pesquisadores do Museu Goeldi; dos Timbira e Guajajára, grupos vizinhos estudados por uma mesma pesquisadora (NEWTON, 1971 e and.), que participou do projeto Harvard-Museu Nacional; dos Xikrín (Irmeli Mar jata SUVÍOLA, and.), dos Borôro (Teófilo TORRONTEGUI & Arieta TORRONTEGUI, andã) e Maxakalí (Neli Ferreira NASCIMENTO, and.), sendo que, pelo menos as duas últimas, estão sendo realizadas por alunos de pós-graduação da USP (MELATTI, 2018, p. 262). Vamos conferir o quadro, a seguir, tendo em vista esses trabalhos mencionados. TABELA 4 – CLÁSSICOS DOS ESTUDOS EM ARTE, ARTESANATO E TECNOLOGIA Etnias indígenas pesquisadas Pesquisadores Apalaí Lucia Hussak van Velthem Arara Paulo Barbosa Magalhães Borôro Teófilo Torrontegui; Arieta Torrontegui; Ferraro Dorta Canelas Ana Biró Stern; Martha Teresita Manarini 25 FONTE: Adaptado de Melatti (2018) No caso dos clássicos dos estudos voltados para o contato interétnico entre os povos indígenas e o restante da sociedade brasileira, é interessante notar que a maioria dos pesquisadores foram os próprios brasileiros e não tanto os estrangeiros como nas outras áreas de estudo. Esses pesquisadores se voltaram tanto para as políticas indigenistas como para a atuação dos missionários no país. O período em questão se inicia com uma reorientação das pesquisas sobre aculturação, marcada pela publicação de importantes trabalhos de Darcy Ribeiro (1957, 1962), posteriormente refundidos no volume Os índios e a civilização (RIBEIRO, 1970). Mas foi nos cursos de especialização oferecidos no Museu Nacional, nos inícios da década Cinta Larga Paulo Barbosa Magalhães Etnias do Centro-Oeste George Zarur Guajajara Dolores Newton Kadiwéu Sandra Wellington Kamayurá Rafael Batos Karajá Ana Biró Stern; Martha Teresita Manarini; Maria Heloisa Fenelon Costa; João Pacheco de Oliveira Filho; Edna de Melo; Günther Hartmann; Karitiana Paulo Barbosa Magalhães Kayabí Elisabeth Lins Maxakalí Neli Ferreira Nascimento Nambiquaras Thomas Avery; Kristen Avery; Desidério Aytai Pakaá Nóva Paulo Barbosa Magalhães; Omar Landi Santos Rio Negro Ana Biró Stern; Martha Teresita Manarini Suruí Paulo Barbosa Magalhães Suyá Anthony Seeger Timbira Dolores Newton Tiriyó Protásio Frikel Tukuna Maria Heloisa Fenelon Costa; João Pacheco de Oliveira Filho Wayâna Lucia Hussak van Velthem; Daniel Schoepf Xavante Regina Müller; Virgínia Valadão; Desidério Aytai Xikrín Irmeli Marjata Suvíola Xingu Ana Biró Stern; Martha Teresita Manarini; Maria Helena Heloisa Fenelon Costa; João Pacheco de Oliveira Filho; Cristina Sá; Berta Ribeiro Yawalapití Sandra Wellington 26 dos Sessenta, que se forma um grupo em torno do proieto “Estudo de Áreas de Fricção Interétnica no Brasil”, de Roberto Cardoso de Oliveira, gerando trabalhos sobre os Tukúna (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1972), os Suruí, Akuáwa e Gaviões (LARAIA & MATTA, 1978), os Krahó (MELATTI, 1967 e 1972). Posteriormente, novos alunos do Museu Nacional se engajaram em pesquisas, de certo modo, ligadas a este projeto, produzindo trabalhos sobre os Xokleng e demais indígenas de Santa Catarina (Sílvio Coelho dos SANTOS, 1960 e 1973), sobre os Kaingâng e Guarani do Paraná (HELM, 1974 e 1977) (MELATTI, 2018, p. 264). Tendo em vista o amplo trabalho dos antropólogos brasileiros e alguns antropólogos estrangeiros, vamos conferir o quadro a seguir. TABELA 5 – CLÁSSICOS DOS ESTUDOS EM CONTATO INTERÉTNICO Etnias indígenas pesquisadas Pesquisadores Akuáwa Roque de Barros Laraia; Roberto da Matta Aparaí Dominique Gallois Apinayê José Reginaldo Santos Gonçalves Apurinan Marcos Lazarin Diversas etnias Darcy Ribeiro Erikpátsa Sonia Coqueiro Garcez Etnias de Minas Gerais Sonia Marcato Etnias de Rondônia Bernand von Graeve Etnias de Santa Catarina Sílvio Coelho dos Santos Etnias do Acre Anthony Gross Etnias do Nordeste Paulo Marcos Pires de Amorim Etnias do Rio Negro Ana Gita de Oliveira; Eduardo Galvão Etnias do Xingu Ellen Fischer; Eduardo Galvão; Nobue Myazaki Galibí Eneida de Assis Gaviões Roque de Barros Laraia; Roberto da Matta Guajajara Mércio Pereira Gomes Guarani Cecília Maria Vieira Helm; Maria Ligia Moura Pires; Peter Silverwood-Cope; Ana Gita de Oliveira Irântxé Sonia Coqueiro Garcez Kaapór Virginia Valadão Kaingang Cecília Maria Vieira Helm; Maria Ligia Moura Pires; Ligia Simonian; Peter Silverwood-Cope; Ana Gita de Oliveira Karajá Nancy Antunes Tsupal Karipuna Eneida de Assis Kawahib Miguel Menezes 27 FONTE: Adaptado de Melatti (2018) Kaxinawá Terri Valle de Aquino Kayabí Miguel Cardoso Krahô Julio Cezar Melatti Makú Alcida Ramos Mawé Jorge Romano Mayongong Alcida Ramos; João Koch Mundurukú José Sálvio Leopoldi Nambiquara Paul Leslie Aspelin Oyampí Dominique Gallois Paresí Sonia Coqueiro Garcez Pataxó Maria Rosário de Carvalho Pukobyê Maria Helena Barata Suruí Roque de Barros Laraia; Roberto da Matta Terena Beatriz Buschinelli Terênia Edgard de Assis Carvalho Tukano Leonardo Figoli Tukano Alcida Ramos Tukuna Roberto Cardoso de Oliveira; João Pacheco de Oliveira Filho Tumucumaque Roberto Maria Cortez de Souza Tuxuá Nássara Antônio de Souza Nasser Txukahamâi Vanessa Lea Waurá Marco Antonio Melo Wayâna Dominique Gallois Xavante Tsupal; Clarice da Mota; Guariglia Xokleng Sílvio Coelho dos Santos Xokó Karirí Vera Cavalheiros Yanomami Luizi Ponzo; Alcida Ramos 28 3 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE NEGROS FIGURA 5 – MULHERES AFRODESCENDENTES FONTE: <https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/6/62/3%C2%AA_Marcha_das_Mulheres_Ne- gras_no_Centro_do_Mundo%2C_no_RJ.jpg>. Acesso em: 16 jun. 2022. Depois de aprendermos os principais temas e autores relacionados ao campo da Etnologia Indígena, agora vamos conhecer alguns dos estudos clássicos sobre os negros no nosso país. Podemos considerar que as pesquisas sobre os africanos e afrodescendentes começaram no início do século XX, contando com três autores de suma importância: Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre. Nina Rodrigues foi um médico legista e antropólogo nascido no Maranhão em 1862, podendo ser considerado o precursor dos estudos sobre os negros no Brasil. Os seus livros mais famosos foram: As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil (1894), O animismo fetichista dos negros na Bahia (1900) e Os africanos no Brasil (1932). No início desse último livro, Nina Rodrigues chamou atenção para o fato de que não havia estudos voltados para os negros, bem como para as línguas e religiões africanas, e que os pesquisadores deveriam começar a se movimentar para isso! Ao contrário do que vimos no tópico anterior sobre os estudos dos indígenas, os estudos sobre os negros no nosso país não foram tão carregados de autores brasileiros. IMPORTANTE 29 Já a partir da década de 1930, considerando a fundação das universidades no Brasil, esses estudos começaram a tomar mais corpo. Os anos de 1934 e 1937 foram um marco nesse sentido, quando aconteceram dois Congressos de Estudos Afro- Brasileiros, sendo o primeiro organizado por Gilberto Freyre, em Recife, e o segundo, por Arthur Ramos, em Salvador. Isso nos faz perceber a importância dessas outras duas fi guras que, de certa forma, seguiram os passos de Nina Rodrigues (SOUZA, 2013). Arthur Ramos foi um médico psiquiatra e antropólogo brasileiro, nascido em Alagoas no ano de 1903. Dentre seus principais escritos, podemos destacar O negro brasileiro (1934); O folclore negro no Brasil (1936); As culturas negras no Novo Mundo (1938) e Aculturação negra no Brasil (1942). Gilberto Freyre foi um grande sociólogo e antropólogo brasileiro, nascido em Recife, no ano de 1900. Sua obra mais conhecida é o livro Casa-Grande e Senzala (1933), no qual retratou a relação entreas casas-grandes (lugares em que viviam os senhores brancos) e as senzalas (lugares em que viviam os negros escravizados). Esse livro é um marco da antropologia brasileira e foi traduzido para diversas línguas, possuindo grande repercussão internacional. As pesquisas que percorreram a trajetória de Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Arthur Ramos marcaram o início das discussões raciais no brasil, ainda que cada um desses autores tenha seguido um enfoque diferente em seus escritos. Vamos conhecer mais de cada um deles! Caso você tenha interesse na trajetória de vida de Arthur Ramos, sugerimos o curto documentário intitulado Arthur Ramos – vida e obra (2016), dirigido por Almir Guilhermino. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=Espuvbj4zPQ. Sugerimos que assista ao pequeno documentário chamado Casa-Grande e Senzala (1974), dirigido por Geraldo Sarno, cuja sinopse foi inspirada no livro de Gilberto Freyre. Recomendamos também uma série de dois episódios chamada Casa-Grande e Senzala (2000), dirigida por Nelson Pereira dos Santos e igualmente inspirada no livro de Gilberto Freyre. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZGG32QVye-4. DICA DICA 30 O pensamento de Nina Rodrigues, considerando que era um médico legista, estava voltado para o direito penal e sua implicação nas questões raciais e na formação da nação brasileira. Naquela época, uma das preocupações da medicina legal era a relação entre raça e criminalidade. Em outras palavras, os estudiosos dessa área se perguntavam se existia alguma característica biológica em certas pessoas que poderia fazer com que elas fossem mais propensas a cometer crimes que outras (SILVA, 2013). Nina Rodrigues entendia que os problemas sociais do Brasil, enquadrados em questões criminais, eram fruto de patologias presentes em pessoas negras e mestiças, ou seja, consideradas essas pessoas como de raças inferiores. De acordo com esse autor, a evolução de um povo seria medida por sua homogeneidade e por isso considerava a mestiçagem um problema. Em suma, Nina Rodrigues buscava compreender as raças presentes no Brasil a partir de uma perspectiva biológica ou física. Arthur Ramos, por sua vez, deu continuidade aos estudos de Nina Rodrigues, mas tomou outro rumo em seus pensamentos sobre os negros brasileiros. Em seus primeiros escritos sobre o negro brasileiro, Arthur Ramos já passa a criticar a visão de Nina Rodrigues, dizendo que teria um falso ângulo científico. Portanto, esse autor foi contra a ideia de inferioridade de algumas raças e dos supostos problemas que seriam fruto da mestiçagem (LIMA, 2013). O pensamento de Arthur Ramos era diferente de Nina Rodrigues, sobretudo por não concordar com a inferioridade biológica dos negros, ainda que o autor pudesse apontar para uma suposta inferioridade cultural nas entrelinhas de seus escritos. Os estudos de Arthur Ramos estavam voltados principalmente para as religiões africanas existentes no Brasil na época, por consideram que a pesquisa das religiões eram o melhor caminho para se conhecer um povo (LIMA, 2013). Ainda que o pensamento de Nina Rodrigues fosse avançado para sua época, o seu pensamento pode ser considerado racista e por isso precisamos tomar cuidado ao citar esse autor que, ainda assim, não pode passar desapercebido no que diz respeito às questões raciais no Brasil. As questões raciais e alguns termos muito usados em antropologia, como raça, racismo, serão abordados na Unidade 2 do nosso curso. IMPORTANTE ESTUDOS FUTUROS 31 Embora para alguns críticos da antropologia o pensamento de Arthur Ramos seja considerado tão perigoso quanto o de Nina Rodrigues, por questões relativas ao racismo, em 1949 o autor recebeu o convite para liderar o Departamento de Ciências Sociais da UNESCO devido ao seu importante trabalho sobre questões raciais. Conforme os estudos feministas, a teoria do patriarcado diz respeito a uma organização sociopolítica que coloca os homens em uma situação de privilégio, ou seja, em uma situação que eles detêm poder sobre as mulheres e subjugam as mesmas. NOTA NOTA Arthur Ramos analisava a cultura dos negros como se fosse primitiva na medida em que os fenômenos eram explicados não por causas naturais de cunho científi co, mas sim por causas míticas. Os mitos e narrativas da cultura africana traziam explicações para acontecimentos como nascimento, doença e morte, o que era visto pelo autor como uma característica de primitividade (LIMA, 2013). 4 CLÁSSICOS DOS ESTUDOS SOBRE MULHERES Depois de conhecermos os estudos clássicos envolvendo os povos indígenas e afrodescendentes, vamos abordar os estudos sobre as mulheres no Brasil. Esse estudo perpassa necessariamente as relações de gênero e, por isso, faremos um breve apanhado dos precursores dessa análise no nosso país. De acordo com a pesquisadora Maria Izilda Santos de Matos (2013), o livro intitulado A mulher na sociedade de classes: mito e realidade, escrito por Heleieth Saffi oti, em 1969, foi um marco para os estudos de gênero no Brasil. O livro tinha por objetivo analisar a sociedade brasileira a partir da teoria do patriarcado se voltando para a opressão masculina e capitalista em relação às mulheres. É importante associarmos o momento em que surgem os estudos feministas no Brasil ao contexto histórico da época. O período de vinte anos de governo militar, entre os anos de 1964 e 1984, coincidiu com o início das análises de gênero no Brasil, ainda que isso difi cultasse a vida das mulheres. Elas começaram a se envolver mais com questões sociais e políticas no movimento contra a anistia (MATOS, 2013). 32 Podemos dizer que os movimentos feministas no Brasil surgiram de fato a partir da década de 1970, assim como em outros lugares do mundo. Contudo, esses movimentos fi caram mais fortalecidos somente a partir das décadas de 1980 e 1990. A ditadura foi um período de turbulência política no Brasil, trazendo à tona diversos debates sobre o governo e a forma de organização da sociedade, o que contribuiu para a emergência dos debates de gênero (SILVA, 2000). Esse período marcou um novo movimento das mulheres brasileiras, que passaram a reivindicar mais pelos seus direitos declarando as suas desigualdades. Nas palavras da pesquisadora Susana Veleda da Silva: Principalmente em São Paulo, mulheres de periferia, através das comunidades da Igreja Católica reivindicam ao Estado o atendimento das necessidades básicas como creches, melhores salários, reclamam do custo de vida e unem-se contra a carestia. A reivindicação pelas creches era apontada como um dos principais problemas, pois as mulheres precisavam trabalhar fora, para manter a família (Teles,1993). É claro que estas reivindicações propiciaram não só mudanças de mentalidades como também mudanças no espaço urbano. No fi nal da década de setenta as pesquisas voltam- se para as relações de produção. Mulher e trabalho, no espaço urbano ou rural, marcam o início da pesquisa acadêmica, com destaque para os trabalhos das sociólogas Heleieth Saffi oti (1978/ 1979/ 1981) e Eva Altermann Blay (1978). Nesse período, algumas mulheres militavam clandestinamente em grupos de esquerda contra a ditadura, propiciando, segundo Soares (1994) a emergência do feminismo dentro dos partidos de esquerda. Mas são as mulheres dos bairros populares que aparecem no espaço público construindo uma “dinâmica política própria” (Soares,1994:16) e transformando o seu espaço cotidiano (SILVA, 2000, s.p.). É interessante notarmos que a época das primeiras manifestações das mulheres no Brasil na década de 1970 coincide com a época de ingresso delas no mercado de trabalho brasileiro. Ao lado das reivindicações trabalhistas e da crise do desemprego, as mulheres também passaram a exigir seus direitos voltados para saúde, reprodução, proteção contra violência, cultura, entre outros. Já a partir da década de 1990, essas reivindicações passaram a ser institucionalizadas e houve um crescimento das ONGs(Organizações Não Governamentais) feministas no Brasil (SILVA, 2000). Desde aquela época até os dias atuais, as reivindicações trabalhistas costumam explicitar as desigualdades de gênero, sobretudo no caso de salários inferiores para as mulheres com relação aos homens. IMPORTANTE 33 Ao contrário do que vimos a respeito dos estudos sobre os indígenas e sobre os negros, os estudos sobre as mulheres no Brasil não possuem tanta linearidade e são mais dispersos. Logo, é mais difícil sistematizar as obras, as pesquisadoras e os pesquisadores dessa área, conforme foram feitos nos itens anteriores. Portanto, o que é mais importante entendermos aqui é o contexto histórico em que esses debates sobre gênero, mulheres e feminismo surgiram no nosso país. Nas palavras da pesquisadora Mariza Corrêa (2001, p. 15): É difícil traçar um perfil mais específico das feministas daquela época, já que elas eram atrizes de teatro – lembrar a atriz portuguesa radicada no Brasil, Ruth Escobar, por exemplo, que transformou seu teatro num importante local de discussão sobre a situação da mulher –, professoras universitárias, estudantes, sindicalistas, ativistas vindas de movimentos populares, jornalistas etc. Creio que havia um traço comum à todas, pelo menos em São Paulo e no Rio, que foi onde circulei mais durante aqueles anos: eram mulheres de esquerda e eram mulheres profissionais ou em vias de se tornarem profissionais. FIGURA 6 – MANIFESTAÇÃO DE MULHERES FONTE: <https://bit.ly/3Si9juy>. Acesso em: 16 jun. 2022. Também é importante entendermos que os movimentos feministas de hoje possuem uma participação e reivindicações mais abrangentes. A prática feminista não é mais exercida exclusivamente por mulheres e abarcam questões sociais mais amplas como as próprias questões ambientais (SILVA, 2000). Para finalizar nossa abordagem sobre os estudos sobre gênero no país, há uma pesquisadora estrangeira que não pode passar desapercebida, chamada Margareth Mead. Sua obra intitulada Sexo e temperamento em três sociedades primitivas, escrita em 1935, é um grande clássico no que diz respeito às pesquisas de gênero em antropologia no Brasil e no mundo. A autora foi uma pioneira nos estudos de relações de gênero e muitas das pesquisas atuais recorrem a esse clássico para análises mais aprofundadas (FELIPPE; OLIVEIRA-MACEDO, 2018). 34 Ao lado de seu marido, que também era antropólogo, Mead realizou uma pesquisa de campo na Nova Guiné, focalizada em três povos: os Arapesh, os Mundugumor e os Tchambuli. A pesquisadora teve como principal objetivo analisar as personalidades dos homens e mulheres desses povos e uma de suas conclusões foi que as inclinações psicológicas femininas e masculinas são padrões culturais. Em suma, o comportamento de homens e mulheres não seria natural a cada um, mas sim transmitido de uma geração a outra. A grande importância desse escrito se dá pela ideia de que a cultura é quem adapta a forma de ser de cada gênero e, por isso, grande parte dos pesquisadores em gênero recorrem a esse clássico (FELIPPE; OLIVEIRA-MACEDO, 2018). Atualmente, as pesquisas sobre gênero em antropologia brasileira perpassam diversos âmbitos da vida da mulher brasileira. Um trabalho importante nesse sentido é o da antropóloga brasileira Mirian Goldenberg. A autora realizou uma pesquisa de campo na classe média urbana carioca tendo em vista os papeis de gênero, ou seja, os papeis das mulheres e dos homens nesse contexto (VAVASSORI, 2006). O ponto alto do trabalho foi pensar na representação dos corpos das pessoas e como isso é construído socialmente. Identifi cando a tão exaltada valorização do corpo magro da mulher e a importância da altura, virilidade e potência para os homens, Goldenberg cita Pierre Bourdieu para afi rmar que não só as mulheres estão presas ao seu corpo real que é diferente do ideal, mas também os homens vistos como dominantes sofrem, pois as exigências a respeito de um determinado modelo de corpo recaem também sobre eles, que se preocupam com a força física, virilidade, potência, altura e com o tamanho do pênis (VAVASSORI, 2006, s.p.). Se quiser saber mais sobre o trabalho da autora, sugerimos que leia na íntegra o texto De perto ninguém é normal: estudos sobre corpo, sexualidade, gênero e desvio na cultura brasileira. Disponível em: https://bit.ly/3JEVUZP. DICA 35 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu: • Os estudos sobre os povos indígenas no Brasil começaram com antropólogos estrangeiros e depois surgiram também os antropólogos brasileiros. • Ao contrário dos antropólogos estrangeiros, que iam em busca da alteridade em outros países, os antropólogos brasileiros encontravam essa alteridade no próprio Brasil. • Existem mais de 300 etnias indígenas no Brasil. • Existem muitos antropólogos que pesquisam as diversas etnias existentes no Brasil, já que a Etnologia Indígena é uma das áreas mais difundidas da antropologia brasileira. • Dentre os autores mais conhecidos nos estudos sobre os negros no Brasil, estão: Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre. • Antes dos principais autores citados, os estudos sobre os negros não eram difundidos no Brasil. • O debate sobre os negros no Brasil envolveu questões como religiões, a relação entre senhores e escravizados e os debates raciais. • Os estudos sobre as mulheres no Brasil, bem como os debates sobre gênero e feminismo, começaram junto com o ingresso das mulheres no mercado de trabalho. • Na época da ditadura, as mulheres passaram a se envolver mais com questões sociais e políticas. • Os primeiros estudos e práticas sobre mulheres, gênero e feminismo no Brasil contaram principalmente om a participação de mulheres trabalhadoras e de esquerda. • Margareth Mead é uma antropóloga clássica que serve de base para pesquisas de gênero no Brasil e no mundo. 36 AUTOATIVIDADE 1 Os estudos sobre as mulheres no Brasil começaram a partir da década de 1970. Esse período foi marcado por diversos acontecimentos políticos, como o governo da ditadura militar e diversas manifestações por direitos trabalhistas. Considerando o surgimento do ativismo político feminista na época, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A luta pelos direitos das mulheres era uma reivindicação tanto de homens como de mulheres. b) ( ) O estudo sobre as mulheres estava voltado para debates como patriarcado e opressão masculina em relação às mulheres. c) ( ) Desde o início do movimento feminista no país, estava presente a atuação de ONGs. d) ( ) Naquela época, tanto homens como mulheres recebiam salários iguais e, por isso, essa não era uma das reivindicações feministas. 2 Apesar dos primeiros estudos voltados para os povos indígenas terem sido feito por pesquisadores estrangeiros, os pesquisadores brasileiros também tomaram as rédeas do assunto. Considerando os pesquisadores da área da etnologia indígena, analise as sentenças a seguir: I- Nas décadas de 1970 e 1980, foram feitos mais projetos de pesquisa em Etnologia Indígena que atualmente. II- Existem mais de 300 etnias indígenas no Brasil, o que gera interesse de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. III- Roberto da Matta foi um pesquisador sobre estudos em organização social e política da etnia Apinayé no Brasil. IV- A maioria dos pesquisadores sobre contato interétnico foram estrangeiros. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças II e III estão corretas. d) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas. 3 Os estudos sobre os negros no Brasil contam com três autores clássicos: Raimundo Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre. Sobre a trajetória de vida e o pensamento desses três autores, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: 37 ( ) Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Gilberto Freyre foram antropólogos e médicos. ( ) Nina Rodrigues pode ser considerado o pioneiro dosestudos sobre os negros no Brasil. ( ) A década de 1930 foi um marco para os estudos sobre os negros no país, considerando os congressos organizados por Gilberto Freyre e Arthur Ramos sobre o assunto. ( ) O livro Casa-Grande e Senzala escrito por Gilberto Freyre teve repercussão internacional. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F – F. b) ( ) V – F – F – V. c) ( ) F – V – V – V. d) ( ) F – F – V – F. 4 Uma das áreas mais famosas da antropologia brasileira é a Etnologia Indígena, que é voltada para o estudo dos povos indígenas. Considerando a grande diversidade étnica que nosso país abriga, os estudos sobre as populações indígenas podem ser divididos em algumas temáticas principais. Disserte sobre essas temáticas e traga pelo menos um autor que estudou esse campo. 5 Diferentemente dos estudos voltados para os povos indígenas e afrodescendentes, os estudos sobre mulheres, gênero e feminismo no Brasil não possuiu tanta linearidade e foi construído de maneira mais dispersa no país. Disserte sobre a trajetória e o contexto histórico desses estudos, destacando quem foram as protagonistas desse movimento. 38 39 TÓPICO 3 - ENTENDENDO A CULTURA BRASILEIRA 1 INTRODUÇÃO No Tópico 3, abordaremos o conceito de cultura brasileira. Esse é um tema que gera um amplo debate, tendo em vista que, antes da colonização, nosso país era habitado pelas etnias indígenas. Assim, entenderemos as infl uências que as outras nações do mundo tiveram sobre a formação da cultura do nosso país e quais foram essas nações. Além disso, também pensaremos a respeito da infl uência dos africanos e afrodescendentes que foram trazidos ao Brasil na época da escravatura. Em seguida, voltaremos nossa atenção para os estudos da cultura popular e do folclore, que são um desdobramento da noção de cultura brasileira. Vamos conhecer mais sobre as manifestações culturais do povo brasileiro e sobre as lendas que fazem parte do folclore do nosso país. Por fi m, refl etiremos sobre o pensamento pós-colonial. Para isso, retomaremos brevemente a história do período da colonização do Brasil e como os estudos pós- coloniais estão relacionados a isso. 2 CONCEITO DE CULTURA BRASILEIRA Para entendermos mais a respeito do conceito de cultura brasileira, podemos voltar a um dos autores que vimos no tópico anterior, o antropólogo e médico Arthur Ramos. Esse autor tratou a respeito das culturas europeias e não europeias no Brasil, tendo em vista as perspectivas raciais e culturais. Dentre as culturas europeias estavam a portuguesa, a italiana, a alemã, entre outras, e dentre as culturas não europeias estavam, sobretudo, as indígenas e as negras. Isso já nos mostra um pouco do que é a cultura brasileira: uma grande combinação de diversas culturas! (BOSI, 1992). UNIDADE 1 O conceito de cultura em particular será abordado na próxima unidade dos nossos estudos, mas podemos adiantar que cultura diz respeito basicamente a um conjunto de pensamentos, práticas e objetos compartilhados por uma sociedade. ESTUDOS FUTUROS 40 Logo, não existe uma uniformidade ou uma homogeneidade do que chamamos de cultura brasileira e por isso podemos pensar mais em culturas brasileiras no plural. De acordo com o pesquisador Fernando de Azevedo (1964), isso se deve a várias características do nosso país, como sua grande extensão territorial, a diversidade geográfica, diferença do tempo de incorporação à civilização, aos meios de transporte e comunicação, entre outros fatores. Nas palavras do autor: Este, um ponto capital que se deve ter em vista quando falamos em cultura brasileira – nessa cultura, que, embora se tenha desenvolvido sobre uma base comum e sob os mesmos impulsos iniciais, se desdobra numa série de paisagens humanas e sociais, tão diferenciadas, como as geográficas, pelas diversidades regionais decorrentes do meio físico e das influências, em graus variáveis, dos contatos de raças e culturas. O que é verdadeiro em relação a umas, pode não sê-lo e não é, de fato, para outras (AZEVEDO, 1964, p. 369- 370). Ainda de acordo com Fernando de Azevedo (1964), a cultura portuguesa foi a de maior influência no Brasil, considerando a herança colonial de elementos como a língua, a religião e outros costumes. Durante o período colonial, era proibido que outras nações mantivessem relações comerciais com o Brasil ou adentrar nos portos do país, o que tornou lento o contato com outras civilizações. Somente quando Dom João VI chegou ao Brasil em 1808, os portos foram abertos a todas as nações do mundo, o que refletiu na influência cultural sobre o país (AZEVEDO, 1964). A partir de então, o Brasil passou a ter influência de países europeus como a França e a Inglaterra em termos intelectuais e políticos, embora a cultura portuguesa ainda fosse predominante. Depois, durante o século XX, seguindo as guerras mundiais, o Brasil passou a intensificar seu processo de industrialização recebendo forte influência dos Estados Unidos da América (EUA). Além disso, o Brasil passou a receber imigrantes das mais diferentes nações do mundo (AZEVEDO, 1964). Fora a estrutura cultural de origem portuguesa seguida da influência de outras culturas estrangeiras, precisamos ter em mente quem habitava o Brasil antes da chegada dos colonizadores portugueses: os indígenas. 41 Durante o período da conquista e da colonização do Brasil por parte dos portugueses, as etnias indígenas sofreram grandes violências culturais. Um exemplo foi a escravização dos indígenas e mesmo o processo de catequização, que transparecia a subjugação das religiões indígenas pela religião dos brancos. Isso foi refletido em uma visão discriminatória e preconceituosa em relação aos povos indígenas do país e é uma das grandes preocupações dos antropólogos de hoje em dia desconstruir essa visão em torno da pluralidade das culturas brasileiras (ALMEIDA, 2017). Além dos indígenas, a formação da cultura brasileira contou com a influência dos negros escravizados. FONTE: <https://bit.ly/3BGba6F>. Acesso em: 16 jun. 2022. FIGURA 7 – INDÍGENAS A história do Brasil e a relação entre indígenas e colonizadores vem sendo reconstruída nos últimos tempos. Para termos uma visão mais coerente da história do nosso país e da formação da cultura brasileira, devemos manter em mente o protagonismo dos povos indígenas, os quais foram erroneamente todos entendidos “índios”. Ao generalizarmos e chamarmos todos de “índios”, estamos desconsiderando suas pluralidades étnicas e o termo mais correto seria “indígena”. Quando os colonizadores chegaram ao Brasil, pensaram que estavam chegando nas famosas Índias e por isso chamaram os habitantes do território de “índios”. Contudo, “indígena” se refere a quem é o nativo da terra, sendo o termo mais correto a ser utilizado. IMPORTANTE 42 FIGURA 8 – NEGRO ESCRAVIZADO NO BRASIL COLONIAL FONTE: <https://bit.ly/3BDUoVI>. Acesso em: 16 jun. 2022. Assim como a história do Brasil e a relação entre indígenas e colonizadores vêm sendo reconstruída nos últimos tempos, o mesmo acontece com a relação entre os negros e os brancos. Também é importante mantermos em mente o protagonismo dos povos afrodescendentes para a formação da cultura brasileira em vários aspectos, como arte, língua, religião, entre outros. IMPORTANTE Como sabemos pela história do nosso país, africanos foram trazidos à força ao Brasil para servirem de escravos nas colônias. Contudo, resistiram à tentativa de colonização sobre suas culturas e mantiveram seus hábitos na medida do possível. Nas palavras da pesquisadora Maria Arlete Santos (2016, p. 219): Os africanos no Brasil não abandonaram seus costumes e religiões, apesar do trabalho estafante e do pequeno ciclo de vida. Organizavam festas, adornavam os corpos, relembravam suas origens tais como o Rei Congo, congada, música carregada de sofrimento em contraste com os raros momentos de alegria, em que a língua de origem sobressaia no canto.Essa cultura não podia expressar-se livremente, pela sua condição de escravo, mas sobreviveu nas crenças religiosas e práticas mágicas a que se apegavam em seu desamparo no mundo hostil em que viviam, o qual transformavam em danças e músicas, arrefecendo assim o sofrimento do dia a dia. Juntamente com esses valores espirituais acrescentam-se reminiscências rítmicas, musicais, saberes e gostos culinários. Essa herança africana, associada às crenças indígenas, resultou nessa singular fisionomia cultural brasileira. 43 Muitos dos elementos que representam a cultura brasileira foram herança dos povos africanos, como o samba, que nasceu de casas de baianas no Rio de Janeiro, no início do século XX e a capoeira que foi originada a partir de uma luta típica de Angola. Palavras como macumba, farofa, quindim, canjica, miçanga, marimbondo, dendê, quiabo, capenga e banguela também são um exemplo da herança desses povos sobre a nossa língua. Algumas dessas próprias palavras já nos revelam a infl uência africana sobre a culinária, que é um dos aspectos da cultura brasileira. Em resumo, a cultura brasileira é composta por diversas culturas que conversam entre si, sobretudo a cultura dos brancos, as culturas dos indígenas e as culturas dos negros. É interessante notar que as culturas dos indígenas e dos negros são os principais focos de estudos da antropologia brasileira, conforme vimos na unidade anterior, sempre pensando na relação com a cultura dos brancos. 3 CULTURA POPULAR E FOLCLORE Depois de entendermos mais a respeito da formação da cultura brasileira, ou melhor, das culturas brasileiras, vamos pensar na cultura popular em particular e do folclore. Em linhas gerais, a cultura popular seria aquilo que está relacionado a manifestações culturais tradicionais do povo brasileiro. Essas manifestações podem incluir: “técnicas domésticas de trabalho, práticas de cura, habilidades artesanais, literatura oral, folguedos tradicionais, crenças, músicas e muitas outras vivências” (VANUCCHI, 2006, p. 97). Não podemos deixar de mencionar também a infl uência dos africanos e afrodescendentes na cultura brasileira em termos religiosos. Esse tema será aprofundado na próxima unidade dos nossos estudos quando abordarmos o sincretismo religioso. ESTUDOS FUTUROS 44 FIGURA 9 – ARTESANATO POPULAR FONTE: <https://bit.ly/3P0pR7C>. Acesso em: 16 jan. 2022. No entanto, a cultura popular envolve uma noção de classe que distingue o que é da elite e o que é do povo. De acordo com o professor Aldo Vanucchi (1999), um curso sobre cultura popular seria por si só algo de elite, enquanto o povo estaria preocupado com outras coisas como “a vida, o trabalho, a família, a luta cotidiana de sobrevivência, o descanso, a festa, a felicidade de viver” (VANUCCHI, 2006, p. 97). Podemos dizer que a definição de cultura popular não é um consenso entre os que escrevem sobre o assunto. Nas palavras de Vanucchi (1999, p. 98): Alguns se satisfazem com uma conceituação negativa, bastante cômoda: cultura popular será tudo o que não se enquadra na cultura erudita, acadêmica, científica. Outros veem cultura popular como o conjunto de conhecimentos e práticas vivenciados pelo povo, embora possam também ser vividos e instrumentalizados pelas elites. Pense-se no candomblé, no carnaval, na feijoada, nos usos folclóricos, no jogo do bicho, na capoeira. Há também quem considere cultura popular simplesmente o que é espontâneo, livre de cânones e de leis, tais como danças, crenças, ditos tradicionais. Outros ainda entendem como cultura popular tudo o que acontece no país por tradição e que merece ser mantido e preservado imutável. Enfim, há os que chamam de cultura popular tudo o que é do saber do povo, de produção anônima ou coletiva. Portanto, é difícil delimitar o que seria de fato essa cultura popular brasileira, mas de todo modo é uma cultura muito mais voltada para o “fazer” do que para o “saber”. Ela está manifestada no cotidiano do povo e nos meios que essas pessoas encontram para sobreviver. Ela tem a ver com as práticas que são ensinadas oralmente pelo povo. Aqui, por povo podemos compreender aquelas pessoas que foram colocadas à margem da sociedade capitalista e que não tiveram oportunidade de ascensão econômica. 45 Agora, vamos refl etir sobre o folclore, que está diretamente vinculado à cultura popular. Para o questionamento se folclore é um sinônimo de cultura popular ou há diferença entre eles, Vanucchi (1999, p. 99-100) nos responde o seguinte: Não há consenso na resposta. Autores abalizados, como Gramsci, optam pela identifi cação de ambos, apreciando-os como uma única realidade e da maior importância. Outros estudiosos buscam diferenciar bem os dois saberes. Assim, por exemplo, Carlos Rodrigues Brandão vê o folclore como “uma fração tradicional da cultura popular”, ou melhor explicado, “uma situação da cultura... um momento que confi gura formas provisoriamente anônimas de criação popular, coletivizada, persistente, tradicional e reproduzida através dos sistemas comunitários não eruditos da comunicação do saber”. Enfi m, existe uma terceira atitude: a dos que identifi cam cultura popular como folclore, mas divisando neste apenas um campo de curiosidade, em via de desaparecimento, algo antigo, de mera referência histórica ou fantasiosa, fadado a dissolver-se numa sociedade irreversivelmente técnica (VANUCCHI, 1999, p. 99-100). FIGURA 10 – FOLCLORE FONTE: <https://bit.ly/3cXO2pK>. Acesso em: 16 jun. 2022. A palavra folclore, por sua vez, deriva do termo folklore, da língua inglesa, no qual folk está relacionado ao povo e lore, ao saber. Ela foi criada pelo arqueólogo inglês Willian John Thoms no ano de 1846, ou seja, há muito tempo. De acordo com a cientista Ainda que as práticas da cultura popular não estejam necessariamente submetidas a um rigor acadêmico ou científi co, elas não devem ser menosprezadas! Por isso a importância de reconhecermos essas práticas como fazendo parte da cultura popular para que assim sejam legitimadas. IMPORTANTE 46 social Vivian Catenacci (2001), quando essa palavra foi incorporada à língua portuguesa, passou a significar os saberes tradicionais dos camponeses que eram transmitidos oralmente. Após esse breve apanhado a respeito dos conceitos de cultura popular e folclore, não restam dúvidas de que ambos os conceitos possuem significados diversos. No entanto, voltemos à ideia de que cultura popular se refere a diversas formas de manifestação dos saberes tradicionais do povo brasileiro e que folclore se refere aos contos passados de geração em geração de maneira oral. Vamos ver algumas das lendas mais famosas do folclore brasileiro na tabela a seguir: QUADRO 6 – FOLCLORE BRASILEIRO Se tiver interesse em conhecer em detalhes algumas das lendas e mitos do folclore brasileiro, sugerimos o livro Lendas e mitos do Brasil, escrito por Theobaldo de Miranda. DICA Anhangá Espírito que protege as matas, os rios e os animais selvagens. Aparece principalmente como um veado. Anhangá é conhecido por punir os caçadores que maltratam os animais das matas. Boitatá É uma cobra ou um facho de fogo que percorre os campos e cerrados. Costuma punir as pessoas que causam queimadas e destruições nas matas. Boiuna Uma cobra gigantesca que mora nos grandes rios da Amazônia. Sai do fundo dos rios para atacar e comer pescadores. Caboclo d’água Um forte caboclo que habita próximo ao Rio São Francisco. Os pescadores da região contam que esse caboclo vira os barcos, espanta peixes e afoga pessoas. Corpo-seco Similar a um vampiro ou fantasma. Ele se vinga das pessoas que maltratam os familiares próximos. Curupira É um menino de cabelos vermelhos com os pés virados para trás. Cuida das matas e dos animais selvagens. Seus pés virados são conhecidos por confundir os caçadores que encontravam suas pegadas e seguiam seus rastros, indo na direção errada. 47 FONTE: <http://www.multirio.rj.gov.br/media/PDF/pdf_4251.pdf>.Acesso em: 16 jan. 2022. 4 ESTUDOS PÓS-COLONIAIS Para encerrar a primeira unidade dos nossos estudos, vamos entender o pensamento pós-colonial no Brasil. A noção de pós-colonial surgiu na década de 1970 e foi mais difundida na década de 1980 no contexto britânico. O maior desafio do pensamento pós-colonial é compreender as estratégias de resistência ao eurocentrismo a partir do ponto de vista dos povos que foram dominados na fase da colonização ao redor do mundo (MATA, 2014). Iara É uma linda mulher conhecida por ser a sereia dos rios. Seu canto comovente é usado para enfeitiçar os homens e levá- los para o fundo do rio. Lobisomem A transformação do lobisomem acontece em noites de lua cheia, quando alguém vira meio lobo meio homem. Boto A lenda do boto é contada nos arredores da Amazônia. Esse boto seria um rapaz que aparece à noite para conquistar mulheres bonitas e depois some as deixando grávidas. Cuca É uma criatura com corpo de humano e cabeça de jacaré que costuma amedrontar quem não obedece às mães e pais. Mapinguari Um monstro peludo que vive na Floresta Amazônica procurando pessoas para comer. Matinta perara Uma bruxa velha que pode se transformar em um pássaro de mau agouro que habita a região Norte do Brasil. Mula sem cabeça Uma mula com fogo no lugar da cabeça que pode ser encontrada em estradas do interior. Negrinho do pastoreio Um menino que montou em um cavalo nos pampas do Sul do Brasil para fugir de um fazendeiro cruel. As pessoas costumam rezar para ele para encontrar objetos perdidos. Saci-pererê É um menino negro de uma perna só com um gorro vermelho e um cachimbo na boca. Em torno de sua perna, há um redemoinho de vento. Ele costuma fazer travessuras entre as pessoas e dizem que quem conseguir roubar seu gorro terá qualquer pedido atendido. Vitória-régia É uma planta que somente se abre à noite. De acordo com mitos indígenas, uma mulher se apaixonou pela lua e foi morar com ela no céu e virar uma estrela. Essa mulher ficou na beira do igarapé admirando a lua e acabou morrendo, virando uma estrela das águas que é a vitória-régia. 48 O termo “eurocentrismo” diz respeito ao pensamento que tende a analisar os acontecimentos a partir de valores europeus. Esse termo é perigoso na medida em que pode dar a entender que os valores europeus são os corretos e os demais, errados ou mesmo inferiores. DICA De acordo com a pesquisadora Heloisa Toller Gomes (2006, p. 1), a vertente de estudos denominada pós-colonialismo possui como foco central o exame dos discursos do poder e do saber impostos pelos colonizadores europeus em suas colônias e nas metrópoles de onde partiu o aparato ideológico da dominação colonial, e examina o fluxo discursivo produzido pelos povos subjugados. Expõe, também e principalmente, as cicatrizes, sequelas e recorrências contemporâneas dessa dominação colonial (GOMES, 2006, p. 1). Logo, podemos resumir o pós-colonialismo como a análise da relação opressora dos colonizadores europeus sobre os povos colonizados, tendo em vista a posição desses próprios povos e as consequências dessas colonizações. Como comentamos no item anterior, a cultura brasileira sofreu influência de diversas nações que colonizaram o país. Portanto, no caso do Brasil, os estudos pós-coloniais têm a ver, sobretudo, com a relação de dominação dessas nações sobre o povo brasileiro, tendo em vista principalmente as populações negras e indígenas. Antes de pensarmos diretamente sobre o pós-colonialismo, precisamos nos voltar para o próprio colonialismo no Brasil. Nosso país passou muito tempo submetido ao poder de Portugal, o qual, por sua vez, estava submetido ao poder da Inglaterra. Por isso, “dizemos que o Brasil teve na verdade um colonizador direto, o português, e um indireto, o inglês. Fomos, portanto, duplamente colonizados: por Portugal e pelo poderio britânico, sempre atento às periferias de seus domínios” (GOMES, 2006, p. 3). Os recursos naturais do Brasil foram explorados por Portugal e pela Inglaterra, sendo que a exploração é um ponto-chave para se pensar a respeito do colonialismo na medida em que é uma prática de dominação. Assim, os estudos pós-coloniais no Brasil foram elaborados em torno da própria formação da cultura brasileira, levando em consideração elementos históricos, sociais, culturais e mesmo raciais (GOMES, 2006). As questões raciais no contexto do pensamento pós-colonial podem ser consideradas as mais importantes. Nesse sentido, e sem receio da redundância, chamo a atenção para a atenção que deve ser dada à vigorosa presença afro-brasileira, tanto do ponto de vista autoral quanto temático, nos estudos da sociedade 49 brasileira. Felizmente, já se afastam os dias em que a presença literária negra, salvo as marcantes exceções que todos conhecemos, fazia-se sentir, paradoxalmente, pela eloquência de um silêncio carregado de vozes abafadas (GOMES, 2006, p. 8). Isso acontece porque a escravidão foi um dos maiores, e mais nefastos, acontecimentos da colonização do Brasil e estava direcionada principalmente aos povos afrodescendentes. Conforme aponta Gomes (2006), essa escravidão ainda sobrevive de certa forma no cenário atual das favelas no país. Assim, o período pós-colonial ainda perpetua uma situação do período colonial por meio da exploração de fundamento escravocrata. FIGURA 11 – FAVELA FONTE: <https://bit.ly/3zxLqXn>. Acesso em: 16 jun. 2022. Nesse contexto, vale pensar a respeito das expressões culturais afro-brasileiras que são a marca desse período pós-colonial em resposta ao período do colonialismo e das explorações que são resquício dele. Os estudos pós-coloniais tratam fundamentalmente, no âmbito discursivo, das tensões entre dominantes e dominados, no exercício de seus respectivos recursos de expressão. Essa nova área de saber pode e deve ser acolhida no espaço da literatura comparada, para mútuo benefício de seus pesquisadores e, sobretudo, para a ampliação e renovação dos estudos socioculturais em nosso país, em torno das questões candentes de nacionalismo e cidadania, etnicidade e hierarquias raciais, ideologias, sexualidade, cultura (GOMES, 2006, p. 13-14). 50 Para pensar mais a respeito das formas de expressão que surgiram no período pós-colonial, bem como do ponto de vista dos povos dominados, sugerimos a leitura do romance Cidade de Deus, escrito por Paulo Lins. DICA No caso do pós-colonialismo relativo às populações indígenas, devemos ter em mente o ponto de vista deles sobre o suposto “descobrimento” do Brasil e as transformações que suas culturas sofreram desde a época da colonização. De acordo com a pesquisadora Emilene Corrêa Souza (2012, p. 97): Os indígenas foram colonizados e tiveram de se adaptar à nova cultura e aos novos costumes apresentados pelo colonizador. Essa colonização, que se deu por meios violentos, condicionou os indígenas a serem vistos como um povo que não lutou por sua independência, o que não é verdade. O povo indígena lutou contra o colonizador num primeiro momento, mas por ser desprovido de recursos bélicos, teve de se sujeitar ao colonizador. Como já dito anteriormente, esta sujeição colonial se encontra presente em muitos aspectos na cultura indígena. Embora isso possa ser visto com olhar negativo na pós-colonialidade, contribuiu para que o povo indígena provasse que, mesmo com a colonização, continuou a cultivar sua tradição. Assim como no caso da literatura afro-brasileira, que é uma retomada do pensamento perante a dominação que sofreram, o mesmo acontece com a literatura indígena. Essa literatura tem trazido ao conhecimento da sociedade que os povos indígenas não podem mais ser vistos como aqueles povos inferiores tal como foi feito pelos colonizadores, mas sim que possui suas próprias particularidades culturais que são nada menos que válidas. Nas palavras da pesquisadora Sandy Almeida (2008, p. 39): “Este movimento literário, chamado de literatura pós-colonialista, surge nas ex- colônias emtodo o mundo e busca o reconhecimento da riqueza da cultura nativa, e consequentemente, da identidade própria do nativo, pelo colonizador”. Atualmente, a ideia de “descobrimento” do Brasil vem caindo por terra. Esse termo não é mais considerado correto porque não refl etem os fatos: se alguém descobriu o Brasil foram os povos indígenas que habitavam o território antes da chegada dos colonizadores portugueses. O termo correto para o que os colonizadores fi zeram pode ser “tomada de posse”, “invasão” ou “conquista”, o que tem sido alterado nas próprias escolas do nosso país. IMPORTANTE 51 FIGURA 12 – INDÍGENAS NO SENADO FONTE: <https://bit.ly/3d3mUFT>. Acesso em: 16 jun. 2022. O uso de tecnologias da cidade, como televisão, celular e computador, por parte de indígenas, é um tema que gera muitas divergências. Ainda que uma parcela do senso comum entenda que os indígenas deixam de ser indígenas por usarem tecnologias da cidade, os antropólogos lutam por contestar esse tipo de discurso. Em resumo, nenhum indígena deixa de ser indígena por usar uma tecnologia da cidade ou mesmo viver na cidade. As tradições culturais indígenas, assim como todas as outras, são dinâmicas e assim transformadas ao longo da história. Contudo, é preciso manter em mente que os seus modos de viver e de pensar sempre estarão arraigados na cultura da etnia indígena que fazem parte. Assim como uma pessoa branca da cidade não vira indígena por viver na aldeia e usar um cocar, o indígena não vira branco por se adaptar aos moldes da cidade. IMPORTANTE 52 O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO Roberto Cardoso de Oliveira O olhar Talvez a primeira experiência do pesquisador de campo (ou no campo) esteja na domesticação teórica de seu olhar. Isso porque, a partir do momento em que nos sentimos preparados para a investigação empírica, o objeto sobre o qual dirigimos o nosso olhar já foi previamente alterado pelo próprio modo de visualizá-lo. Seja qual for esse objeto, ele não escapa de ser apreendido pelo esquema conceituai da disciplina formadora de nossa maneira de ver a realidade. Esse esquema conceituai, disciplinadamente apreendido durante o nosso itinerário académico (daí o termo disciplina para as matérias que estudamos), funciona como uma espécie de prisma por meio do qual a realidade observada sofre um processo de refração - se me é permitida a imagem. É certo que exclusivo do Olhar, uma vez que está presente em todo processo de conhecimento, envolvendo, portanto, todos aqueles atos cognitivos, que mencionei, em seu conjunto. É certamente no Olhar que essa refração pode ser mais bem compreendida. A própria imagem óptica – refração – chama a atenção para isso. Imaginemos um antropólogo iniciando uma pesquisa junto a um determinado grupo indígena e entrando numa maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa moradia de tão amplas proporções e de estilo tão peculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do Alto Solimões, no Amazonas, teria o seu interior imediatamente vasculhado pelo "Olhar etnográfico", por meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida. Nesse sentido, o interior da maloca não seria visto com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibiliza- do pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observador bem preparado, enquanto etnólogo, iria olhá-la como um objeto de investigação previamente já construído por ele, pelo menos numa primeira prefiguração: passaria, então, a contar os fogos (pequenas cozinhas primitivas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada um deles estiveram reunidos não apenas indivíduos, porém "pessoas", portanto, "seres sociais", membros de um único "grupo doméstico"; o que lhe daria a informação subsidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupos domésticos, formados por uma ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indivíduos "agregados" (originários de um outro grupo tribal). Saberia, igualmente, a LEITURA COMPLEMENTAR 53 totalidade dos moradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observaria, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente. Tomando-se, ainda, os mesmos Tiikúna, mas em sua feição moderna, o etnólogo que visitasse suas malocas observaria de pronto que elas se diferenciavam radicalmente daquelas descritas por cronistas ou viajantes que, no passado, navegaram pelos igarapés por eles habitados. Verifica- ria que as amplas malocas, então dotadas de uma cobertura em forma de semiarco descendo suas laterais até o solo e fechando a casa a toda e qualquer entrada de ar (e do olhar externo), salvo por portas removíveis, acham-se agora totalmente remodeladas. A maloca já se apresenta amplamente aberta, constituída por uma cobertura de duas águas, sem paredes (ou com elas precárias); e, internamente, impondo-se ao olhar externo veem-se redes penduradas nos mourões, com seus respectivos mosquiteiros – um elemento da cultura material indígena desconhecido antes do contato interétnico e desnecessário para as casas antigas, uma vez que seu fechamento impedia a entrada de qualquer tipo de inseto. Nesse sentido, para esse etnólogo moderno, já tendo ao seu alcance uma documentação histórica, a primeira conclusão será sobre a existência de uma mudança cultural de tal monta que, se de um lado veio a facilitar a construção das casas indígenas, uma vez que a antiga residência exigia um esforço muito grande de trabalho, dada a sua complexidade arquitetônica, por outro lado veio afetar as relações de trabalho (por não ser mais necessária a mobilização de todo o clã para a edificação da maloca), ao mesmo tempo em que tornava o grupo residencial mais vulnerável aos insetos, posto que os mosquiteiros somente poderiam ser úteis nas redes, ficando a família à mercê deles durante todo o dia. Observava-se, assim, literalmente, o que o saudoso Herbert Baldus chamava de uma espécie de "natureza-morta" da aculturação. Como torná-la viva, senão pela pene- tração na natureza das relações sociais? Retomando o nosso exemplo, veríamos que para se dar conta da natureza das relações sociais mantidas entre as pessoas da unidade residencial (e delas entre si, em se tratando de uma pluralidade de malocas de uma mesma aldeia ou "grupo local"), somente o Olhar não seria suficiente. Como alcançar apenas pelo Olhar o significado dessas relações sociais sem conhecermos a nomenclatura do parentesco, por meio da qual pode- remos ter acesso a um dos sistemas simbólicos mais importantes das sociedades ágrafas e sem a qual não nos será possível prosseguir em nossa caminhada? O domínio das teorias de parentesco pelo pesquisador torna-se, então, indispensável. Para chegar, entretanto, à estrutura dessas relações sociais, o etnólogo deverá se valer, preliminarmente, de um outro recurso de obtenção dos dados. Vamos nos deter um pouco no Ouvir. 54 O ouvir Creio não ser ocioso mencionar que o exemplo indígena, tomado como ilustração do Olhar etnográfico, não pode ser considerado como sendo incapaz de gerar analogias com outras situações de pesquisa, com outros objetos concretos de investigação. O sociólogo ou o politólogo por certo terão exemplos tanto ou mais ilustrativos para mostrar o quanto a teoria social pré-estrutura o nosso olhar e sofìstica a nossa capacidade de observação. Julguei, entretanto, que exemplos bem simples são geralmente os mais inteligíveis. Como a Antropologia é a minha disciplina, continuarei a me valer dos seus ensinamentose de minha própria experiência profissional com a esperança de, assim fazendo, poder proporcionar uma boa noção dessas etapas, aparentemente corriqueiras da investigação científica. Portanto, se o Olhar possui uma significação específica para um cientista social, o Ouvir também o tem. Evidentemente tanto o Ouvir quanto o Olhar não podem ser tomados como faculdades totalmente independentes no exercício da investigação. Ambos se complementam e servem para o pesquisador como duas muletas (que não nos percamos com essa metáfora tão negativa...) que lhe permitem caminhar, ainda que tropegamente, na estrada do conhecimento. A metáfora, propositadamente utilizada, permite lembrar que a caminhada da pesquisa é sempre difícil, sujeita a muitas quedas... É nesse ímpeto de conhecer que o Ouvir, complementando o Olhar, participa das mesmas precondições deste último, na medida em que está preparado para eliminar todos os ruídos que lhe pareçam insignificantes, i.e., que não façam nenhum sentido no corpus teórico de sua disciplina ou para o paradigma no interior do qual o pesquisador foi treinado. Não queremos discutir aqui a questão dos paradigmas; foi possível fazê-lo no livro Sobre o pensamento antropológico (1988b), e não temos tempo aqui de abordá-la. Bastaria entendermos que as disciplinas e seus paradigmas são condicionantes tanto de nosso Olhar quanto de nosso Ouvir. Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador sempre pode obter informações não alcançáveis pela estrita observação. Sabemos que autores como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observação de rituais para estudarmos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender uma religião devemos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas crenças" (RADCLIFFE-BROWN, 1973). O que significa dizer que a religião podia ser mais rigorosamente observável na conduta ritual por ser ela "o elemento mais estável e duradouro" se a compararmos com as crenças. Porém isso não quer dizer que mesmo essa conduta, sem as ideias que a sustentam, jamais poderia ser inteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do Olhar e do Ouvir (suas músicas e seus cantos), falta - vale a plena compreensão de seu "sentido" para o povo que o realizava e a sua "significação" para o antropólogo que o observava em toda sua exterioridade. Por isso, a obtenção de explicações, dada pelos próprios membros da comunidade investigada, permitiria se chegar àquilo que os antropólogos chamam de "modelo nativo", matéria-prima para o entendi- mento antropológico. Tais explicações nativas só poderiam ser obtidas por meio da "entrevista", portanto, de um Ouvir todo especial. Todavia, para isso, há de se saber ouvir. 55 Se aparentemente a entrevista tende a ser encarada como algo sem maiores dificuldades, salvo, naturalmente, a limitação linguística – i.e., o fraco domínio do idioma nativo pelo etnólogo –, ela torna-se muito mais complexa quando consideramos que a maior dificuldade está na diferença entre "idiomas culturais", a saber, entre o mundo do pesquisador e o do nativo, esse mundo estranho no qual desejamos penetrar. De resto, há de se entender o nosso mundo, o do pesquisador, como sendo ocidental, constituído minimamente pela sobreposição de duas subculturas: a brasileira, no caso de todos nós em particular; e a antropológica, aquela na qual fomos treinados como antropólogos e/ ou cientistas sociais. É o confronto entre esses dois mundos que constitui o contexto no qual ocorre a entrevista. É, portanto, num contexto essencialmente problemático que tem lugar o nosso Ouvir. Como poderemos, então, questionar as possibilidades da entrevista nessas condições tão delicada? Penso que esse questionamento começa com a pergunta sobre qual a natureza da relação entre entrevistador e entrevistado. Sabemos que há uma longa e arraigada tradição na literatura etnológica sobre a relação. Se tomarmos a clássica obra de Malinowski como referência, vemos como essa tradição se consolida e, praticamente, trivializa-se na realização da entrevista. No ato de ouvir o "informante", o etnólogo exerce um "poder" extraordinário sobre o mesmo, ainda que ele pretenda se posicionar como sendo o observador mais neutro possível, como quer o objetivismo mais radical. Esse poder, subjacente às relações humanas – que autores como Foucault jamais se cansaram de denunciar, já na relação pesquisador/informante vai desempenhar uma função profundamente empobrecedora do ato cognitivo: as perguntas, feitas em busca de respostas pontuais lado a lado da autoridade de quem as faz (com ou sem autoritarismo), criam um campo ilusório de interação. A rigor, não há verdadeira interação entre nativo e pesquisador, porquanto na utilização daquele como informante o etnólogo não cria condições de efetivo "diálogo". A relação não é dialógica. Ao passo que, transformando esse informante em "interlocutor", uma nova modalidade de relacionamento pode (e deve) ter lugar. Essa relação dialógica, cujas consequências epistemológicas, todavia, não cabem aqui desenvolver, guarda pelo menos uma grande superioridade sobre os procedimentos tradicionais de entrevista. Faz com que os horizontes semânticos em confronto – o do pesquisador e o do nativo – se abram um ao outro, de maneira a transformar um tal "confronto" num verdadeiro "encontro etnográfico". Cria um espaço semântico partilhado por ambos os interlocutores, graças ao qual pode ocorrer aquela "fusão de horizontes" (como os hermeneutas chamariam esse espaço), desde que o pesquisador tenha a habilidade de ouvir o nativo e por ele ser igualmente ouvido, encetando um diálogo teoricamente de "iguais", sem receio de estar, assim, contaminando o discurso do nativo com elementos de seu próprio discurso. Mesmo porque acreditar ser possível a neutralidade idealizada pelos defensores da objetividade absoluta é apenas viver numa doce ilusão... Trocando ideias e informações entre si, etnólogo e nativo, ambos igualmente guindados a interlocutores, abrem-se a um diálogo em tudo e por tudo superior, metodologicamente falando, à antiga relação pesquisa- dor/informante. O Ouvir ganha em qualidade e altera uma relação, qual estrada de mão única, numa outra, de mão dupla, portanto, uma verdadeira interação. 56 Tal interação na realização de uma etnografia, envolve, em regra, aquilo que os antropólogos chamam de "observação participante, o que significa dizer que o pesquisador assume um papel perfeitamente digerível pela sociedade observada, a ponto de viabilizar uma aceitação senão ótima pelos membros daquela sociedade, pelo menos afável, de modo a não impedir a necessária interação. Mas essa observação participante nem sempre tem sido considerada como geradora de um conhecimento efetivo, sendo-lhe frequentemente atribuída a função de "geradora de hipóteses", a ser testadas por procedimentos nomológicos – estes sim, explicativos por excelência, capazes de assegurar um conhecimento proposicional e positivo da realidade estudada. No meu entender, há um certo equívoco nessa redução da observação participante e a empatia que nela tem lugar, a um mero processo de construção de hipóteses. Entendo que tal modalidade de observação realiza é subjacente capta aquilo que um hermeneuta chamaria de "excedente de sentido", i.e., aquelas significações (por conseguinte, dados) que escapam a quaisquer metodologias de pretensão nomológica. Voltarei ao tema da observação participante na conclusão desta exposição. O escrever Mas se o Olhar e o Ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo (trabalho que os antropólogos se acostumaram a se valer da expressão inglesa fieldwork para denominá-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto, é na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se torna tanto ou mais crítica. Um livro relativamente recente de Clifford Geertz, Trabalhos e vidas: o antropólogo como autor, infelizmente,ao que eu saiba, ainda não traduzido para o português, oferece importantes pistas para desenvolvermos esse tema. Geertz parte da ideia de separar e, naturalmente, avaliar, duas etapas bem distintas na investigação empírica: a primeira, que ele procura qualificar como a do antropólogo "estando lá" (being there), isto é, vivendo a situação de estar no campo; e a segunda, que se seguiria àquela, corresponderia à experiência de viver, melhor dizendo, trabalhar "estando aqui" (being here), a saber, bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus colegas e usufruindo tudo o que as instituições universitárias e de pesquisa podem oferecer. Nesses termos, o Olhar e o Ouvir seriam parte da primeira etapa, enquanto o Escrever seria parte inerente da segunda. Devemos entender, assim, por escrever o ato exercitado por excelência no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante, sobretudo quando o compararmos com o que se escreve no campo, seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscamos em nossas cadernetas. E se tomarmos ainda Geertz por referência vemos que, na maneira pela qual ele encaminha suas reflexões, é o Escrever “estando aqui", portanto, fora da situação de campo, que cumpre sua mais alta função cognitiva. Por quê? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no gabinete o processo de textualização dos fenómenos socioculturais observados "estando lá". Já as condições de textualização, i.e., de trazer os fatos observados (vistos e ouvidos) para o plano do discurso, não deixam de ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel 57 definitivo tanto no processo de comunicação interpares (i.e., no seio da comunidade profissional), quanto no de conhecimento propriamente dito. Mesmo porque há uma relação dialética entre o comunicar e o conhecer, uma vez que ambos partilham de uma mesma condição: a que é dada pela linguagem. Embora essa linguagem seja importante em si mesma, como tema de reflexão, haja vista aquilo que poderíamos chamar de "guinada linguística" (ou linguistics turn), que perpassa atualmente tanto a filosofia como as ciências sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, se bem que de modo muito sucinto, é unicamente o da disciplina e de seu próprio idioma, por meio do qual os que exercitam a antropologia (ou, mesmo, qualquer outra ciência social) pensam e se comunicam. Alguém já escreveu que o homem não pensa sozinho, num monólogo solitário, mas o faz socialmente, no interior de uma "comunidade de comunicação" e "de argumentação" (APEL, 1985). Ele está, portanto, contido no espaço interno de um horizonte socialmente construído (no caso o da sua própria sociedade e/ou de sua comunidade profissional). Desculpando-me pela imprecisão da analogia, diria que ele se pensa no interior de uma "representação coletiva": expressão essa, afinal, bem familiar ao cientista social e que, de certo modo, dá uma ideia aproximada daquilo que entendo por "idioma" de uma disciplina. Como podemos interpretar isso em conexão com os exemplos etnográficos? Diria inicialmente que a textualização da cultura, ou de nossas observações sobre ela, é um empreendimento bastante complexo. Exige que nos despojemos de alguns hábitos de escrever, válidos para diversos géneros de escrita, mas que para a construção de um discurso que esteja disciplinado por aquilo que se poderia chamar de "(meta)teoria social" nem sempre parecem adequados. É, portanto, um discurso que se funda numa atitude toda particular que poderíamos definir como antropológica ou sociológica. Para Geertz, por exemplo, poder-se-ia entender toda etnografía (ou sociografia, se quiserem) não apenas como tecnicamente difícil, uma vez que colocamos vidas alheias em "nossos" textos, mas, sobretudo, por esse trabalho ser "moral, política e epistemologicamente delicado" (GEERTZ, 1988b). Embora Geertz não desenvolva essa afirmação, como seria de se desejar, sempre podemos fazê-lo a partir de um conjunto de questões. FONTE: Adaptado de <https://bit.ly/3SrEnYX>. Acesso em: 16 jan. 2022. 58 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu: • A cultura brasileira é uma combinação de diversas culturas, considerando que o Brasil foi colonizado por várias nações. • A cultura portuguesa foi uma das maiores influências sobre a cultura brasileira por causa da colonização. • A cultura dos indígenas que habitavam nosso país antes da colonização e a cultura dos negros escravizados também influenciaram muito a formação da cultura brasileira. • A vasta extensão territorial do Brasil influenciou na diversidade cultural do país. • A cultura popular tem a ver com as manifestações cotidianas do povo brasileiro, que incluem desde crenças até músicas. • A cultura popular envolve as práticas que são ensinadas oralmente de geração a geração. • O folclore está voltado principalmente para as lendas transmitidas oralmente. • Existem diversas lendas brasileiras que variam de acordo com a região do país. • O pensamento pós-colonial é uma das formas de resistir ao eurocentrismo. • O pós-colonialismo se volta para a relação entre os colonizadores europeus e os povos colonizados. • O pós-colonialismo no Brasil está diretamente relacionado às manifestações da cultura afro-brasileira. 59 AUTOATIVIDADE 1 O pensamento pós-colonial surgiu a partir da década de 1970 entre os ingleses. Esse movimento se voltava para os meios de resistência dos povos colonizados em relação aos colonizadores. Sobre o pós-colonialismo no Brasil, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) O pensamento pós-colonial no Brasil tem a ver somente com a resistência do povo colonizado em relação aos colonizadores portugueses. b) ( ) A expressão literária afro-brasileira é uma forma de resistência válida ainda que não tenha a ver com o pós-colonialismo. c) ( ) A exploração dos recursos naturais no Brasil foram um tema para pensar no colonialismo mas não no pós-colonialismo. d) ( ) Há uma série de explorações do período colonial que ainda acontecem sobre a população negra no país e as manifestações afro-brasileiras são uma resposta a isso. 2 A cultura popular brasileira e o folclore estão diretamente relacionados. Enquanto a cultura popular abrande diversos tipos de manifestações culturais, alguns autores entendem que o folclore está voltado principalmente para as lendas que são transmitidas oralmente de geração a geração. Tendo em vista o folclore brasileiro, analise as sentenças a seguir: I- Vários dos personagens principais do folclore brasileiro punem pessoas que não respeitam a natureza. II- O curupira é um menino cujos pés são virados para trás, o que confunde os caçadores que seguem seus rastros. III- Iara é uma linda mulher que engana homens e os esconde nas matas. IV- A lenda do boto é contada nos interiores do país e tem a ver com um homem que engravida misteriosamente as mulheres. V- O Saci-pererê é um menino indígena de uma perna só que anda com um gorro vermelho nas matas. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença III está correta. c) ( ) As sentenças III, IV e V e estão corretas. d) ( ) Somente a sentença IV está correta. 60 3 O período de formação da cultura brasileira contou com a participação de nações europeias e não europeias, fora a influência das etnias indígenas que já habitavam o território antes da chegada dos dominadores. Sobre o contexto da colonização, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Dentre as culturas europeias que tiveram influência sobre o Brasil na época da colonização estavam a portuguesa, a italiana, a alemã, a francesa e a inglesa. ( ) A cultura portuguesa teve influência sobre alguns dos principais aspectos da cultura brasileira, tal como a língua. ( ) Os negros trazidos ao Brasil para serem escravizados sofreram uma subjugação dos colonizadores a tal ponto que perderam por completo suas heranças culturais. Assinalea alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – V – F. c) ( ) F – V – V. d) ( ) F – F – V. 4 Para discutirmos sobre formação da cultura brasileira, é inevitável pensarmos na história do nosso país desde a época da colonização até os dias atuais. Levando em consideração o contexto histórico, comente porque podemos defender mais a ideia de “culturas brasileiras” no plural em vez de “cultura brasileira” no singular. 5 A cultura popular brasileira está diretamente vinculada ao folclore brasileiro. Ambos são considerados como fazendo parte das manifestações culturais tradicionais do povo brasileiro. Diante disso, disserte sobre esses dois conceitos e aponte se há diferença entre eles ou se possuem o mesmo significado. 61 REFERÊNCIAS ALMEIDA, M. R. A atuação dos indígenas na história do Brasil: revisões historiográficas. Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 37, n. 75, 2017, p. 17-38. Disponível em: https://bit.ly/3QlqLfL. 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Acesso em: 27 maio 2022. 64 65 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA UNIDADE 2 — OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • entender o conceito de cultura brasileira e as diferenças entre os conceitos de raça e etnia; • conhecer o debate de gênero no contexto brasileiro e a discussão sobre racismo no Brasil; • analisar a noção de sincretismo e o debate religioso no Brasil; • identifi car temas de antropologia rural e urbana; • assimilar temas de antropologia da mídia. A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E A QUESTÃO DA CULTURA NACIONAL TÓPICO 2 – ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E AS DISCUSSÕES ETNICORRACIAIS TÓPICO 3 – ANTROPOLOGIA BRASILEIRA: ESTUDOS RURAIS E URBANOS Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 66 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 2! Acesse o QR Code abaixo: 67 TÓPICO 1 — ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E A QUESTÃO DA CULTURA NACIONAL UNIDADE 2 1 INTRODUÇÃO No Tópico 1, abordaremos a antropologia brasileira e sua relação com a identidade e a cultura nacional. Para que você entenda mais sobre o conceito de cultura em termos gerais, vamos fazer a distinção entre natureza e cultura, que é um ponto-chave para pensarmos nesse conceito. Do mesmo modo, é importante quevocê entenda algumas questões, como o determinismo biológico e o determinismo geográfico, que são amplamente debatidas entre os antropólogos do Brasil e do mundo. Em seguida, vamos refletir sobre os avanços da antropologia no nosso país. Depois de aprender o objeto de estudo geral da antropologia mundial, vamos compreender quais são os principais objetos de estudo dos antropólogos brasileiros, pensando na diversidade étnica do nosso país. Por fim, conheceremos datas e períodos importantes da história da antropologia brasileira desde o século XIX até os dias atuais. Ainda que a formalização da disciplina no país tenha acontecido na década de 1960, repassaremos alguns fatores importantes que permitiram a consolidação dessa disciplina no Brasil. 2 CULTURA Para entendermos mais sobre o conceito de cultura, precisamos passar pelo dilema que existe entre a natureza e a própria cultura. Conforme aponta o antropólogo Roque de Barros Laraia (2001), esse dilema tem a ver com a unidade biológica e a diversidade cultural dos seres humanos. Em outras palavras, constituímos uma única espécie, mas também as inúmeras sociedades espalhadas pelo mundo possuem modos de viver diferentes, o que é marca dessa grande diversidade cultural. Nas palavras do autor: Um dilema que permanece como o tema central de numerosas polêmicas, apesar de Confúcio ter, quatro séculos antes de Cristo, enunciado que "A natureza dos homens é a mesma, são os seus hábitos que os mantêm separados". Mesmo antes da aceitação do monogenismo, os homens se preocupavam com a diversidade de modos de comportamento existentes entre os diferentes povos (LARAIA, 2001, p. 6). 68 O conceito de monogenismo mencionado pelo autor diz respeito a uma teoria segundo a qual todos os seres humanos teriam uma descendência em comum. É um dos deveres de os estudantes de antropologia combater esse suposto determinismo porque, como os exemplos trazidos pelo autor nos mostram, isso pode desencadear uma série de preconceitos. Por preconceitos, aqui entendemos ideias errôneas e pré-concebidas sobre aquelas “raças” ou grupos humanos. NOTA IMPORTANTE Ainda segundo Laraia (2001), o dilema da unidade biológica e diversidade cultural não pode ser explicado a partir de um determinismo biológico ou mesmo de um determinismo geográfi co. Isso quer dizer que as condições biológicas particulares das pessoas de cada raça ou etnia ou a região geográfi ca em que essas pessoas vivem não são o sufi ciente para determinar suas culturas. Nesse sentido, o autor nos traz alguns exemplos para combater esse determinismo: São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específi cas inatas a "raças" ou a outros grupos humanos. Muita gente ainda acredita que os nórdicos são mais inteligentes do que os negros; que os alemães têm mais habilidade para a mecânica; que os judeus são avarentos e negociantes; que os norte-americanos são empreendedores e interesseiros; que os portugueses são muito trabalhadores e pouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis; que os ciganos são nômades por instinto, e, fi nalmente, que os brasileiros herdaram a preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses (LARAIA, 2001, p. 9). Para entendermos melhor, vamos imaginar a situação de uma criança que poderia crescer em qualquer cultura. De certo modo, esse pensamento prevê que sua educação determinaria seu modo de pensar e seu modo de agir enquanto elementos constituintes da cultura e isso não dependeria de suas condições biológicas ou heranças genéticas. Laraia (2001) comenta que se uma criança sueca crescesse e fosse educada com uma família brasileira desde seu nascimento, ela teria a mentalidade similar aos seus irmãos de criação e, portanto, teria a cultura inerente a essa família. 69 A ideia de uma pessoa ser de um sexo ou de outro no senso comum será aprofundada adiante nos estudos sobre gênero. No entanto, podemos adiantar que a divisão entre o sexo masculino correspondente a homens e o sexo feminino correspondente a mulheres também é uma elaboração cultural. ESTUDOS FUTUROS Outro ponto importante com relação a esse determinismo perpassa a questão da sexualidade. Podemos pensar que as divergências entre os comportamentos das pessoas de sexos diferentes são determinadas a partir de um padrão biológico. Contudo, o fato de uma pessoa nascer com o que entendemos por um sexo ou por outro no senso comum não é o que dita o padrão de comportamento desse indivíduo. A espécie humana se diferencia anatômica e fisiologicamente através do dimorfismo sexual, mas é falso que as diferenças de comportamento existentes entre pessoas de sexos diferentes sejam determinadas biologicamente. A antropologia tem demonstrado que muitas atividades atribuídas às mulheres em uma cultura podem ser atribuídas aos homens em outra. A verificação de qualquer sistema de divisão sexual do trabalho mostra que ele é determinado culturalmente e não em função de uma racionalidade biológica (LARAIA, 2001, p. 10). Assim como vimos, com relação à ideia do determinismo biológico, a ideia do determinismo geográfico também não é sustentada. Enquanto o determinismo biológico tenta indicar que a herança genética de uma pessoa é o determinante da diversidade cultural, o determinismo geográfico indicaria que o meio ambiente físico é o determinante da diversidade cultural. Contudo, importantes antropólogos defendem que apenas as condições geográficas em que uma certa sociedade se desenvolve não bastam para explicar essa diversidade. Para confirmar esse pensamento, Laraia (2001) nos traz um exemplo do próprio Brasil na região do Parque Nacional do Xingu. O autor comenta que etnias indígenas como Kamayurá, Kalapalo, Trumai e Waurá não usam grandes mamíferos como fonte de alimentação porque possuem proibições de ordem cultural e preferem peixes ou pequenas aves. Por outro lado, os Kayabi, que também habitam o Parque Nacional do Xingu, usam dos grandes mamíferos como o veado ou o porco caititu como a base de sua alimentação. Logo, a diversidade cultural não pode ser explicada a partir das supostas limitações de ordem biológica ou geográfica sobre os seres humanos. Assim entendemos melhor o dilema entre natureza e cultura, sendo que a natureza – que tem a ver com elementos biológicos e geográficos – não é determinante da cultura, apesar de exercer 70 influência sobre ela. Em poucas palavras, o pensamento antropológico moderno entende que os fatores naturais somente colocam possibilidades para o desenvolvimento da cultura, mas não a determina por si só (LARAIA, 2001). Apesar do nosso curso estar voltado principalmente para a antropologia e cultura brasileira, a noção de cultura desenvolvida no nosso país possui uma herança de estudos antropológicos internacionais. O termo “cultura” derivou da raiz semântica da palavra colore em latim, que significa algo próximo de cuidar ou cultivar. Até o século XVI, esse termo era usado, sobretudo, para tratar de algo voltado para o cultivo de plantas ou mesmo atividades agrícolas. A partir do fim desse século, o significado do termo se expandiu, sendo que deixou de identificar somente o desenvolvimento da agricultura e passou a também identificar o desenvolvimento dos hábitos humanos em todos os sentidos (CANEDO, 2009). FIGURA 1 – AGRICULTURA FONTE: <https://bit.ly/3d2POpz>. Acesso em: 16 jun. 2022. A palavra cultura é utilizada em diversas áreas do conhecimento, mas é realmente fundamental para a antropologia! Como comentamos, a definição do termo cultura é internacional, sendo que a primeira formulação antropológica foi dada pelo inglês Edward Tylor em 1871. Para esse antropólogo, a cultura tinha a ver com “todo o complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR, 1871, p. 1 apud LARAIA, 2001, p. 14). De acordocom Laraia (2001), a definição dada por Tylor é interessante na medida em que ressalta que a cultura é algo aprendido, confirmando a ideia que vimos anteriormente, de que o modo de ser e de viver dos humanos não é algo transmitido biologicamente ou, ainda, geograficamente. Além da definição de Tylor, a formulação feita pelo estadunidense Alfred Kroeber também é um marco no pensamento antropológico. 71 FONTE: <https://bit.ly/3vIJAlv>. Acesso em: 16 jun. 2022. Além da noção de cultura, as noções de raça e etnia são de suma importância para os estudos antropológicos e em especial para a antropologia brasileira. Como entendemos na unidade anterior dos nossos estudos, a formação da cultura brasileira O pensamento desse antropólogo foi um divisor de águas para romper de vez com os “laços entre o cultural e o biológico, postulando a supremacia do primeiro em detrimento do segundo” (LARAIA, 2001, p. 16). Conforme aponta Laraia: A preocupação de Kroeber é evitar a confusão, ainda tão comum, entre o orgânico e o cultural. Não se pode ignorar que o homem, membro proeminente ela ordem dos primatas, depende muito de se u equipamento biológico. Para se manter vivo, independente do sistema cultural ao qual pertença, ele tem que satisfazer um número determinado de funções vitais, como a alimentação, o sono, a respiração, a atividade sexual etc. Mas, embora estas funções seja m comuns a toda humanidade, a maneira de satisfazê-las varia de uma cultura para outra. E esta grande variedade na operação ele um número tão pequeno ele funções que faz com que o homem seja considera do um ser predominantemente cultural. Os seus comportamentos não são biológica mente determinados. A sua herança genética nada tem a ver com as suas ações e pensamentos, pois todos os seus atos dependem inteiramente de um processo de aprendizado (LARAIA, 2001, p. 21). Em outras palavras, ainda que o ser humano dependa de atividades biológicas básicas – como comer e dormir – para a sua sobrevivência, ele é considerado um ser cultural! Essas atividades são regidas de tal modo pela cultura que a herança genética fica em segundo plano. 3 RAÇA E ETNIA FIGURA 2 – DIVERSIDADE RACIAL 72 teve influência de diversas culturas do mundo desde o período da colonização. Assim, é fundamental sabermos diferenciar os conceitos de raça e etnia para nos aprofundarmos na antropologia brasileira. Os conceitos de raça e etnia muitas vezes são confundidos por seres muito próximos, mas vamos conhecer mais suas diferenças a seguir. O termo raça deriva da palavra italiana razza, a qual também derivou do latim ratio, que significa categoria ou mesmo espécie. Esses termos começaram a ser difundidos para designar espécies animais e vegetais e somente depois passaram a englobar os grupos humanos (MUNANGA, 2003, p. 1). Podemos dizer que o primeiro conceito de raça foi desenvolvido pelo antropólogo francês François Bernier no ano de 1684 em um escrito que tentou diferenciar as raças que habitavam o nosso planeta. Já no ano de 1790, foi feito o primeiro censo populacional estadunidense que distinguiu mulheres e homens brancos das demais pessoas, como os nativos da região e os negros escravizados. Já em 1890, esse censo foi atualizado e passou a distinguir as pessoas a partir de termos como “branco, preto, chinês, japonês e índios” (SANTOS et al., 2010, s.p.). O criador do termo da nossa espécie Homo sapiens foi o sueco Carolus Linnaeus, que também classificou quatro categorias principais de seres humanos em 1758: americanos, europeus, asiáticos e africanos. O sueco também acatou uma quinta categoria: os monstruosos. Esses supostos monstruosos seriam aqueles que não poderiam ser enquadrados nas quatro categorias principais, marcando um caráter discriminatório em seu pensamento (SANTOS et al., 2010). O antropólogo alemão Johann Friedrich Blumenbach seguiu os estudos de Carolus Linnaeus e classificou quatro variedades de seres humanos em 1775. A primeira seria composta pelos europeus, leste-asiáticos e norte-americanos; a segunda, pelos australianos; a terceira, pelos africanos; e a quarta, pelo restante das pessoas do mundo. Essa classificação continuou a ser desenvolvida e, no ano de 1795, Blumenbach compreendeu novas cinco variedades: caucasianos, mongóis, etíopes, americanos e malaios (SANTOS et al., 2010). Já em 1916, o antropólogo norte-americano Marvin Harris desenvolveu a chamada “teoria da hipodescendência”, que foi importante na época para se pensar no cruzamento de raças diferentes. Nessa teoria, a criança fruto deste cruzamento pertenceria à raça biológica ou socialmente inferior: “o cruzamento entre um branco e um índio é um índio; o cruzamento entre um branco e um negro é um negro; o cruzamento entre um branco e um hindu é um hindu; e o cruzamento entre alguém de raça europeia e um judeu é um judeu” (SANTOS et al., 2010, s.p.). 73 No Brasil, um importante pesquisador sobre o conceito de raça é Antônio Sérgio Guimarães. De acordo com o autor, raça é um conceito nativo no Brasil e marcou por muito tempo a posição social das pessoas. Retomando principalmente o que aprendemos sobre os estudos sobre o negro no nosso país, o pensamento do autor enfatiza a relação entre a noção de raça e a relação com os povos escravizados: Pelo menos até o começo do século XX, essa era uma categoria totalmente antinatural; somos uma nação que se formou com a escravidão, e essa escravidão não era uma escravidão generalizada de todos os povos, mas somente daqueles localizados numa determinada parte do continente africano. Os povos que escravizamos vieram da África ocidental e da África meridional, hoje Congo, Angola, Moçambique, Zaire e, subindo a costa ocidental, a Nigéria, o Níger e Golfo do Benin. Foram dessas regiões que vieram os povos escravizados em toda a América. Um sistema muito próprio de comercialização que envolvia negreiros da Holanda, de Portugal, do Brasil, da Inglaterra, da França etc., alguns reinos africanos e as colônias americanas. Essas pessoas escravizadas foram chamadas de “africanas” e “negros”; essas foram, digamos, as duas identidades criadas originalmente na sociedade escravocrata brasileira, em que o negro tinha um lugar e esse lugar era a escravidão (GUIMARÃES, 2003, s. p.). Nesse sentido, Guimarães comenta que, como a história do Brasil o fez um país extremamente racialista, o conceito de raça se tornou fundamental na medida em que organizava as posições sociais das pessoas. Essas posições sociais eram entendidas como classes sociais. Apesar do pensamento de Marvin Harris ter sido importante na época, a ideia de que a criança nascida pertenceria ao grupo “inferior” é também discriminatória na medida em que cria uma hierarquia entre as raças. O médico Nina Rodrigues teve muita influência na disseminação do conceito de raça no Brasil, tendo em vista que seu estudo sobre as pessoas se dava a partir de uma perspectiva supostamente biológica de raças superiores e raças inferiores. IMPORTANTE NOTA 74 Isso porque, no nosso caso, a relação social era fechada pela cor – negro –, que sinalizava seja a ideia de raça, seja a ideia de cultura e civilização, seja a ideia religiosa de uma descendência divina. As pessoas comuns, entretanto, sempre se referiram a essa divisão entre “senhores” e “escravos” como uma divisão de classes (GUIMARÃES, 2003, s. p.). Depois de entendermos mais sobre o conceito de raça no mundo e no Brasil, agora vamos pensar sobre o conceito de etnia. Em resumo, podemos dizer que o conceito de raça envolve mais as características fenotípicas das pessoas, como a cor da pele. Por outro lado, o conceito de etnia tem a ver com os fatores culturais das pessoas, como as tradições e a língua. Nas palavras do professor Kabengele Munanga, da Universidade de São Paulo: O conteúdo da raça é morfobiológico e o da etnia é sociocultural, histórico e psicológico. Um conjunto populacional dito raça “branca”, “negra” e “amarela”, podeconter em seu seio diversas etnias. Uma etnia é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum; têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão; uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território. Algumas etnias constituíram sozinhas nações. Assim o caso de várias sociedades indígenas brasileiras, africanas, asiáticas, australianas etc. que são ou foram etnias nações (MUNANGA, 2003, p. 12). FIGURA 3 – INDÍGENAS FONTE: <https://bit.ly/3QqmBn9>. Acesso em: 16 jun. 2022. O termo etnia derivou da palavra grega ethnos, que tem a ver com um grupo que possui o mesmo ethos, ou seja, que compartilha dos mesmos elementos culturais. Dentre esses elementos culturais, podemos considerar o parentesco, a língua, a religião, o território compartilhado e outros. O sentimento de pertencimento a determinada etnia é entendido como etnicidade, ou seja, etnicidade diz respeito a uma identidade 75 étnica. Como vimos na unidade anterior, o Brasil é um país que sofreu a colonização de diversas nações do mundo e por isso o reconhecimento das várias identidades étnicas é fundamental para que direitos previstos na nossa Constituição sejam efi cazes. 4 GÊNERO FIGURA 4 – IGUALDADE DE GÊNERO FONTE: <https://bit.ly/3BKW4gf>. Acesso em: 16 jun. 2022. Se tiver interesse em pesquisar mais sobre as questões raciais e étnicas no âmbito da legislação brasileira, o que é fundamental para a área da antropologia, sugerimos que leiam o Estatuto da Igualdade Racial (Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010). O Art. 2o desse Estatuto prevê que é dever do Estado garantir oportunidades iguais aos cidadãos brasileiros, independentemente da etnia ou da cor da pele. DICA A imagem anterior que escolhemos para iniciar nossos estudos sobre gênero apresenta uma balança simbolizando a igualdade de gêneros, na qual o símbolo à direita pertence ao masculino e o símbolo à esquerda, ao feminino. NOTA 76 Na unidade anterior deste livro didático, conhecemos o percurso dos estudos feministas no Brasil, o que está diretamente relacionado aos estudos sobre as relações de gênero. Agora, vamos nos voltar principalmente para o conceito de gênero no sentido amplo e alguns de seus desdobramentos no Brasil. Afinal, por que é importante entendermos as discussões de gênero? Como comentamos no primeiro tópico desta unidade sobre o conceito de cultura, a visão do senso comum pode dar a entender que as diferenças de comportamento entre os sexos masculino e feminino são inatas, ou seja, que são naturais ao ser humano desde o seu nascimento. Contudo, vimos também que esses comportamentos são sempre moldados culturalmente. Logo, é importante sabermos mais sobre o que significam as relações de gênero para que possamos desconstruir as desigualdades que nascem da hierarquia entre homens e mulheres. Nas palavras da antropóloga Adriana Piscitelli (2009, p. 119): Quando as distribuições desiguais de poder entre homens e mulheres são vistas como resultado das diferenças, tidas como naturais, que se atribuem a uns e outras, essas desigualdades também são “naturalizadas”. O termo gênero, em suas versões mais difundidas, remete a um conceito elaborado por pesquisadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalização mediante o qual as diferenças que se atribuem a homens e mulheres são consideradas inatas, derivadas de distinções naturais, e as desigualdades entre uns e outras são percebidas como resultado dessas diferenças. Na linguagem do dia a dia e também das ciências a palavra sexo remete a essas distinções inatas, biológicas. Por esse motivo, as autoras feministas utilizaram o termo gênero para referir-se ao caráter cultural das distinções entre homens e mulheres, entre ideias sobre feminilidade e masculinidade. No que diz respeito ao debate sobre gênero no Brasil, Piscitelli (2009) comenta que a igualdade ainda está longe de ser alcançada. Apesar de estatisticamente, as mulheres possuírem mais anos de estudo que os homens, os homens continuam a receber maiores salários e essa desigualdade é mais explícita quando se trata de mulheres negras. Além disso, as mulheres que trabalham fora de casa também costumam gastar mais horas realizando os trabalhos domésticos que os homens. Ou seja, além de receberem salários menores, também trabalham durante mais tempo! Adriana Piscitelli (2009) comenta que as mulheres brancas recebem 40% menos e mulheres negras recebem 60% menos que homens para um mesmo trabalho, o que são dados alarmantes no indicativo entre as desigualdades de gênero no Brasil. NOTA 77 Fora as diferenças no que diz respeito aos salários e ao tempo de trabalho, as violências sofridas pelas mulheres brasileiras tornam mais explícita essa desigualdade entre os gêneros. Dentre essas violências, estão principalmente as situações de agressão (física ou psicológica) por parte dos companheiros e violência sexual por diversas pessoas, sejam próximas, distantes ou mesmo em situações de custódia do Estado como nas prisões femininas (PISCITELLI, 2009). Essa desigualdade não vem de agora! Em 1949, a fi lósofa francesa Simone de Beauvoir escreveu um livro considerado revolucionário nos assuntos feministas e que ainda é muito usado pelas antropólogas brasileiras que pesquisam esse tema. O livro intitulado O Segundo sexo tratou de questões como a dominação masculina e a construção social do papel da mulher. Segundo Beauvoir, ninguém nasce mulher, mas sim se torna mulher! Isso resume bem a ideia de que os gêneros são construídos socialmente, e não são inatos aos seres humanos (PISCITELLI, 2009). A inferiorização das mulheres com relação aos homens pode variar de acordo com o lugar e com o contexto histórico. Entretanto, podemos afi rmar que ela é universal porque acontece em todos os lugares e contextos, inclusive no Brasil de hoje em dia. Por isso, Piscitelli (2009, p. 122) nos chama a atenção: Esse conjunto de indicadores e observações torna incontestável a necessidade, também no Brasil atual, de fazer esforços para compreender os lugares diferenciados e desiguais que as mulheres ocupam em diversas áreas da vida social, prestando atenção aos aspectos culturais que participam na delimitação desses lugares. Sugerimos que assista ao fi lme brasileiro Um céu de estrelas (1996), dirigido por Tata Amaral. Esse fi lme trata da história da relação violenta de uma cabeleireira chamada Dalva com Vitor, seu namorado. Para saber mais sobre o trabalho de Simone de Beauvoir, sugerimos que leia o artigo Auê sobre o Segundo sexo, escrito pela historiadora Sylvie Chaperon baseado no livro de Beauvoir. Disponível em: https://bit.ly/3So7vjP. DICA DICA 78 Dentre os trabalhos escritos por pesquisadoras brasileiras, destacamos o livro Uma questão de gênero, das sociólogas Albertina de Oliveira Costa e Cristina Bruschini. O conceito de gênero ganhou força com a antropóloga estadunidense Gayle Rubin a partir de seu ensaio O tráfi co de mulheres: notas sobre a economia política do sexo (1975), que também é uma referência importante para as pesquisadoras em antropologia brasileira. Se tiver curiosidade em pensar nas relações de gênero a partir da literatura brasileira, sugerimos o clássico Grande sertão: veredas, escrito por Guimarães Rosa. Esse livro perpassa a situação de Riobaldo, o protagonista do livro, que sente um afeto homossexual por seu colega cangaceiro Diadorim. DICA NOTA DICA Diante desses embates decorrentes da dominação masculina, pesquisadoras feministas desenvolveram o conceito de gênero. O objetivo do conceito foi repensar o papel social das mulheres, tendo em vista elementos culturais da sociedade. Assim, foi fortalecida a distinção entre o termo sexo – que seria algo voltado para a natureza do ser humano enquanto algo fi xo – e o termo gênero – que seria algo voltado para a cultura do ser humano enquanto algo mutável (PISCITELLI, 2009). A distinção entre sexo e gênero tambémabre debate para questões da sexualidade. Vamos recapitular para entender melhor: (1) sexo teria a ver com uma classifi cação linear que enquadra os seres humanos em categorias de “homem” ou “mulher” de acordo com seus genitais; (2) gênero teria a ver com a identifi cação com um sexo, masculino ou feminino, independentemente do órgão genital; (3) já a sexualidade teria a ver com a própria orientação sexual de cada ser humano, ou seja, se ele se sente atraído por pessoas do mesmo sexo (homossexuais) ou do sexo oposto (heterossexuais) em linhas gerais. 79 Se quiser se aprofundar na discussão sobre os intersexos e transexuais, sugerimos o ensaio Fantasias corporais, da antropóloga Mariza Corrêa, o texto O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural, da psicóloga Paula Sandrine Machado e a tese de doutorado Vidas que desafiam corpos e sonhos: uma etnografia do construir-se outro no gênero e na sexualidade, da cientista social Flavia do Bonsucesso Teixeira. DICA A classificação de pessoas como “homens” e “mulheres” a partir do sexo se torna simplista diante desse amplo debate, sendo que os antropólogos brasileiros que pesquisam gênero costumam resistir a esse tipo de linearidade. Nesse contexto, também abrimos margem para falar sobre intersexos, travestis e transexuais. Esse conjunto de pessoas resiste a classificações lineares como “homens” ou como “mulheres”. Os intersexos, pela ambiguidade de seus genitais. As travestis porque, com genitais masculinos, mas com corpos feminilizados mediante o uso de hormônios, silicones, roupas e perucas femininas, transitam entre lugares femininos e masculinos. E os transexuais porque incorporam um gênero diferente ao que corresponderia a seus genitais, buscando uma mudança de sexo que envolve, às vezes, cirurgias de transgenitalização, procedimento no qual os genitais são alterados (PISCITELLI, 2009, p. 145). 80 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu: • Apesar dos seres humanos fazerem parte de uma única espécie, as inúmeras sociedades espalhadas ao redor do mundo marcam uma grande diversidade cultural. • A diversidade cultural dos seres humanos não pode ser explicada a partir do determinismo biológico ou do determinismo geográfico. • Um dos principais dilemas que envolvem o conceito de cultura é a própria distinção entre natureza – que envolve elementos biológicos e geográficos – e a cultura em si. • A cultura tem a ver com os elementos que constituem o ser humano enquanto membro de uma sociedade, como os conhecimentos, crenças, artes, morais, leis, costumes etc. • Raça é um conceito que tem a ver principalmente com características biológicas dos seres humanos. • Etnia é um conceito que tem a ver principalmente com características culturais dos seres humanos. • As diferenças comportamentais entre os sexos masculino e feminino não são inatas, ou seja, não são naturais aos seres humanos desde o nascimento. • As diferenças comportamentais entre os sexos masculino e feminino são moldadas culturalmente. • É importante estudarmos gênero para irmos contra à hierarquia entre os sexos, ou seja, contra a dominação masculina sobre o feminino. 81 RESUMO DO TÓPICO 1 AUTOATIVIDADE 1 Os estudos sobre as relações de gênero perpassam inúmeras discussões, como a dominação masculina, o feminismo, sexualidade, trabalho, entre outras. Sobre esses temas, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As características femininas e masculinas são inatas, ou seja, pertencem aos seres humanos desde o nascimento. b) ( ) A igualdade entre homens e mulheres no Brasil foi alcançada, tendo em vista sobretudo a igualdade salarial e as condições de trabalho. c) ( ) As violências como agressão física, psicológica e sexual com relação às mulheres são uma marca da desigualdade de gênero. d) ( ) A inferiorização das mulheres em relação aos homens não pode ser considerada universal já que acontece apenas em contextos específicos. 2 O conceito de cultura sofreu algumas transformações ao longo da história. Ele começou a ser utilizado para designar o desenvolvimento agrícola de espécies vegetais e somente depois passou a ser usado para identificar grupos sociais humanos. Tendo em vista esse conceito, analise as sentenças a seguir: I- Até o século XX, o termo cultura era utilizado somente para designar o cultivo de espécies vegetais. II- O primeiro conceito de cultura em termos antropológicos foi formulado pelo inglês Edward Tylor em 1971. III- A cultura tem a ver com algo aprendido que não é transmitido somente biologicamente ou por questões geográficas. IV- A cultura humana tem a ver com conhecimentos, crenças e costumas de um grupo social. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas. d) ( ) Somente a sentença IV está correta. 3 O conceito de raça teve diversas funções ao longo da história, começando com a designação de espécies animais e vegetais e somente depois passou a designar raças humanas. Sobre o uso do conceito de raça para designar raças humanas, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: 82 ( ) O primeiro conceito de raça foi desenvolvido pelo antropólogo francês François Bernier em 1684. ( ) No ano de 1790, o conceito de raça foi usado para distinguir os homens das mulheres nos EUA. ( ) Carolus Linnaeus, criador do termo Homo sapiens, classificou cinco categorias de seres humanos em 1758: americanos, europeus, asiáticos, africanos e monstruosos. ( ) O antropólogo alemão Johann Blumenbach classificou quatro variedades de seres humanos em 1775, sendo que a primeira deles era composta somente pelos europeus e norte-americanos. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F – V. b) ( ) V – F – V – F. c) ( ) F – V – F – V. d) ( ) F – F – V – F. 4 A discussão acerca do conceito de cultura perpassa alguns dilemas, dentre eles a oposição entre natureza e cultura. A questão da natureza no contexto dos estudos antropológicos, por sua vez, perpassa o determinismo biológico e o determinismo geográfico. Tendo em vista todos esses fatores, disserte sobre o conceito de cultura. 5 Os conceitos de raça e etnia são um dos principais temas no que diz respeito à antropologia brasileira. Apesar de muito próximos, esses conceitos podem e devem ser diferenciados para realizarmos análises assertivas. Assim, conceitue cada um desses conceitos indicando suas diferenças. 83 ANTROPOLOGIA BRASILEIRA E AS DISCUSSÕES ÉTNICO-RACIAIS 1 INTRODUÇÃO No Tópico 2, abordaremos os principais desdobramentos acerca dos conceitos de raça e etnia aprendidos no tópico anterior. Partiremos da noção de racismo no seu sentido amplo para depois pensarmos nas questões de racismo próprias do nosso país, o que é um dos principais temas da antropologia brasileira atual. Depois, voltaremos nossa atenção para os estudos relacionados ao racismo religioso. Esse campo do conhecimento tem a ver principalmente com as religiões de matriz afro-brasileira, como o Candomblé e a Umbanda. Portanto, conheceremos algumas das práticas e tradições dessas religiões. Em seguida, vamos entender um pouco sobre o racismo religioso, tendo em vista as religiões afro-brasileiras apresentadas. Entenderemos algumas das violências sofridas por elas no Brasil e porque isso é caracterizado como racismo religioso. 2 RACISMO FIGURA 5 – MANIFESTAÇÃO ANTIRRACISTA FONTE: <https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/49989098862>. Acesso em: 16 jun. 2022. UNIDADE 2 TÓPICO 2 - 84 Para iniciar nosso estudo sobre as questões etnicorraciais no contexto da antropologia brasileira, é inevitável comentarmos sobre o racismo. Antes de nos voltarmos especificamente para o racismo no Brasil, vamos entender o que esse conceito significa em termos gerais. De acordo com o sociólogo francês Michel Wieviorka (2007),que é uma importante referência para as antropólogas e antropólogos brasileiros que pesquisam o tema, o racismo diz respeito à caracterização de determinado grupo humano a partir de características naturais. Contudo, essas supostas características naturais estariam associadas a características intelectuais e morais, que valem para cada indivíduo do grupo em questão e que provocam atos de interiorização e exclusão. A discussão do racismo surgiu de maneira sistemática nas ciências sociais na década de 20, sobretudo, devido à questão do negro nos EUA vinculada ao antissemitismo da Alemanha nazista (WIEVIORKA, 2007). Wieviorka (2007) possui duas preocupações principais quanto ao racismo, que são importantes para se pensar no racismo no Brasil. A primeira é a transformação do racismo ao longo do tempo, considerando as diferenças em suas manifestações: de um lado, a expressão clássica do racismo é baseada na ciência e, de outro lado, sua expressão contemporânea é fundamentada na questão da diferença e da incompatibilidade das culturas. A década de 1960 inaugurou: conceitos novos de racismo institucional, de racismo cultural, de diferencialismo, de racismo-simbólico etc.; distinção entre formas elementares (violência, discriminação, segregação etc.) e entre níveis (políticos ou não); debates às lógicas contraditórias do racismo, tensão subjacente entre um princípio de inferiorização, que concilia um lugar ao grupo racizado na sociedade considerada, e um princípio de diferenciação, que pretende mantê-lo à distância, até mesmo destruí-lo (WIEVIORKA, 2007, p. 10-11). A segunda é o retorno do racismo em sociedades que pareciam ter se livrado dele para sempre, sendo que o racismo pertence ao presente da humanidade, e não apenas ao seu passado. Wieviorka (2007) ainda comenta que os cientistas sociais nunca são neutros com relação aos seus objetos de estudo e que os que se interessam pelo racismo costumam combatê-lo, o que de fato acontece entre os estudiosos da antropologia brasileira. A discussão sobre o novo racismo marcou a passagem do racismo científico baseado na suposta inferioridade biológica a este racismo cultural baseado na diferença cultural como legitimação do discurso racista. O racismo cultural tem a ver com o racismo simbólico e, portanto, com o racismo religioso e à intolerância religiosa devido às diferenças, o que afeta diretamente a relação entre o racismo e as religiões afro- brasileiras. Doravante, a argumentação racista não se fundamenta mais na hierarquia, mas na “diferença”, não mais nos atributos naturais imputados ao grupo “racizado”, mas na sua cultura, sua língua, sua 85 Agora que entendemos mais sobre o que signifi ca o racismo em termos gerais, vamos conhecer o pensamento do sociólogo brasileiro Antônio Sérgio Guimarães, que trata das questões de raça e racismo especifi camente no nosso país. Segundo esse autor, o conceito de raça pode ser diferenciado de outros conceitos essencialistas, sobretudo, por dois motivos: o conceito de raça não se refere a diferenças unicamente físicas como a de sexo, mas o conceito classifi ca os indivíduos a partir de critérios ambíguos, embora sejam justifi cados por uma teoria centrada na ideia de raça (GUIMARÃES, 1999). De acordo com Guimarães (1999), todo racismo deve ser entendido de acordo com sua própria história. Assim, existe uma lógica específi ca por trás do racismo brasileiro a partir da constituição das identidades nacional e regional. No Brasil, a discriminação do “Outro racial”, conforme denomina o autor, se dá mediante diferenças físicas e culturais que não são assimiladas por algumas pessoas. “Daí esta noção, tão central ao pensamento brasileiro, de embranquecimento, e a consequente rejeição simbólica do ‘negro’ e do ‘africano’” (GUIMARÃES, 1999, p. 10-11). O advogado negro Silvio Luiz de Almeida (2018) também escreveu sobre o racismo no Brasil, levantando a importância de diferenciar os conceitos de racismo, preconceito e discriminação. Nas palavras do autor: “Podemos dizer que racismo é uma religião, suas tradições, seus costumes. O novo racismo, nessa perspectiva, insiste na ameaça que a diferença dos grupos visados faria pesar sobre a identidade do grupo dominante. [...] Segundo esse ponto de vista, que parece renovar o discurso e a prática racistas, cada comunidade, étnica ou racional, constitui uma expressão particular da natureza humana, nem superior, nem inferior: diferente (WIEVIORKA, 2007, p. 34-35). A relação entre o racismo e as religiões afro-brasileiras, que é um assunto próprio do racismo religioso, será abordada adiante no item sobre racismo religioso em que explicaremos um pouco mais sobre a disseminação da Umbanda e do Candomblé no Brasil. Esse ponto tratado pelo autor nos leva ao debate da presença dos brancos em religiões de matriz africana como o Candomblé, sejam eles mesmos racistas ou antirracistas. ESTUDOS FUTUROS NOTA 86 forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam” (DE ALMEIDA, 2018, p. 25). Já o preconceito racial seria “o juízo baseado em estereótipos acerca de indivíduos que pertençam a um determinado grupo racializado, e que pode ou não resultar em práticas discriminatórias” (DE ALMEIDA, 2018). Por fim, a discriminação racial tem a ver com “a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados” (DE ALMEIDA, 2018). De acordo com o autor, ainda existem três concepções de racismo importantes para pensar no caso brasileiro: racismo individualista, racismo institucional e racismo estrutural. O racismo individualista seria aquele entendido como uma patologia individual ou coletiva que é direcionada a grupos sociais particulares. O racismo institucional seria voltado não para atitudes individuais, mas para a atuação de instituições como um todo, de modo que direcionem privilégios e desvantagens para as pessoas, tendo em vista suas raças (DE ALMEIDA, 2018). O racismo estrutural, por sua vez, pode ser considerado o mais importante para pensarmos no caso do Brasil e do desenvolvimento da antropologia brasileira. A partir do conceito de racismo estrutural, passamos a questionar o racismo institucional enquanto uma mera consequência. Em outras palavras, o racismo estrutural nos faz pensar que as instituições são racistas porque toda a estrutura da sociedade em que vivemos é racista. Nas palavras do autor: Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural. Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte de um processo social que “ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes parece legado pela tradição. Nesse caso, além de medidas que coíbam o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e econômicas (DE ALMEIDA, 2018, p. 38-39). 87 3 SINCRETISMO RELIGIOSO FIGURA 6 – CANDOMBLÉ FONTE: <https://bit.ly/3d9HBjJ>. Acesso em: 16 jun. 2022. Para entendermos como acontece o sincretismo religioso no Brasil, vamos primeiro conhecer o que significa esse conceito a partir das palavras do antropólogo brasileiro Waldemar Valente: O sincretismo se caracteriza fundamentalmente por uma intermistura de elementos culturais. Uma íntima interfusão, uma verdadeira simbiose, em alguns casos, entre os componentes das culturas que se põem em contacto. Simbiose que dá em resultado uma fisionomia cultural nova, na qual se associam e se combinam, em maior ou menor proporção, as mesmas características das culturas originárias(VALENTE, 1955, p. 42). O racismo é considerado um crime no Brasil! De acordo com o art. 1o da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, “Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”. O art. 20 da mesma Lei também prevê pena de reclusão de um a três anos e multa para quem “Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional”. Além disso, o crime de injúria racial está disposto no art. 140 do Código Penal brasileiro, que consiste em “Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro”, sendo que a pena é aumentada para reclusão de um a três ano e multa no caso de racismo conforme o parágrafo 3o do referido artigo: “Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”. FONTE: <https://bit.ly/3vJ8Ess>. Acesso em: 27 maio 2022. IMPORTANTE 88 Em poucas palavras, o sincretismo é uma mistura de elementos culturais. O sincretismo religioso, por sua vez, está voltado principalmente para a mistura de elementos da religião das culturas que doravante entraram em contato. Assim, podemos dizer que o sincretismo religioso no Brasil tem a ver com a fusão que aconteceu entre as práticas religiosas que os negros escravizados trouxeram ao país e o Catolicismo, religião dos colonizadores portugueses (VALENTE, 1955). Nesse contexto, destacamos duas religiões de matriz afro-brasileira: o Candomblé e a Umbanda. O Candomblé fi cou conhecido sobretudo por causa das pesquisas de dois autores que conhecemos anteriormente, Arthur Ramos e Nina Rodrigues. Nos fl ancos sonoros dos navios negreiros vieram não só os fi lhos da Noite, mas também os seus deuses, os orixás dos bosques, dos rios e do céu africano. É verdade que, no cais dos portos brasileiros, o capelão esperava os nagôs, os jejes, os angolas – capelães das cidades, capelães dos engenhos, para lhes ensinar as preces latinas e os batizar com o Espírito Santo. Os negros confundiriam suas divindades sombrias com os santos católicos, mas continuariam, por meio dos cantos e das danças tradicionais, a adorar os deuses de além-mar. E assim nasceu o candomblé, perdurando até os nossos dias, apesar das muitas transformações por que passou (BASTIDE, 2001, p. 327). Em suma, o Candomblé é uma religião afro-brasileira criada no Brasil por meio da herança cultural trazida pelos africanos escravizados. Ele tem como função central o culto às divindades que representam as forças da natureza: os Orixás da nação Yorubá, os Voduns da nação Jeje ou os Inquices da nação Bantu. Na África, não existe a religião denominada Candomblé, mas sim apenas o culto às divindades de acordo com regiões ou famílias. Os Orixás – senhores de nossa cabeça (ori) – são descendentes de Olorum – senhor da vida – que designou a cada um deles uma característica do mundo para que cuidassem. Exu é Orixá mensageiro, sem ele humanos e outros Orixás não podem se comunicar; é responsável pelo movimento, pela reprodução e pelas trocas mercantis. Ogum é Orixá do ferro, guerra, agricultura, caça e pesca. Nanã é guardiã do saber ancestral, dona da lama em que foi modelado o ser humano. Oxumarê é Orixá da chuva, Na linha de pensamento controversa de Nina Rodrigues, os rituais de Candomblé eram considerados bárbaros e demonstravam o suposto subdesenvolvimento do homem negro. Os estudantes de antropologia brasileira lutam para que essa ideia seja rebatida em nome da liberdade religiosa. NOTA 89 FONTE: <https://bit.ly/3daNrB6>. Acesso em: 16 jun. 2022. A cabeça é uma parte do corpo fundamental nos ritos do Candomblé, como nas oferendas. Ela é o centro em que o filho carrega o seu Orixá porque é entendido que ele mora na cabeça. A cabeça é o orixá, e o orixá é a cabeça – todas as práticas renovadoras do axé são centralizadas na cabeça [...] A cabeça é mimese do mundo, do mundo simbolizado. Estão na cabeça os elementos da natureza e aí, após fixados, os princípios geradores do axé do corpo – individual –, conjugados como o eu coletivo do terreiro, funcionarão e ampliarão cada vez mais os vínculos sagrados, éticos, morais, sociais e culturais do indivíduo com o grupo. O indivíduo é essencialmente a cabeça – a partir deste espaço se expandem os outros espaços do arco-íris e da fertilidade. Omolu é Orixá das doenças infecciosas e das suas curas. Euá cuida do solo sagrado em que moram os mortos. Xangô é Orixá do trovão e da justiça. Iansã é Orixá do vento, da tempestade, do raio e da sensualidade. Obá é Orixá das correntezas dos rios e da vida doméstica das mulheres. Oxum é Orixá do amor, da fertilidade e das águas doces. Iemanjá é dona das grandes águas, mãe de todos os deuses que cuida do equilíbrio emocional e da loucura. Ossaim é Orixá das folhas, que conhece seus segredos e poderes de cura. Oxalá é o criador do humano, senhor do princípio da vida, do ar e da respiração. Os Orixás não podem ser escolhidos, as pessoas é que são escolhidas por eles. Para identificar a constelação de Orixás que acompanha alguém, é preciso consultar os búzios, o oráculo tradicional africano. Assim, quando uma pessoa é dita filha de algum Orixá, passa a ter algumas responsabilidades, tais como realizar oferendas com os elementos preferidos pelo seu santo. “Os reinos animal, vegetal e mineral estão à disposição do ser humano. [...] Cada Òrìsà possui um determinado animal, vegetal, mineral e comidas, e tudo libera energia. É uma alquimia que depende de muita habilidade...” (BENISTE, 2002, p. 68). FIGURA 7 – ORIXÁS NO CANDOMBLÉ 90 do corpo. A cabeça é alimentada – abori ou bori – com diferentes comidas: obi, orobô e outros frutos africanos com sangue de animais sacrificados, e o corpo passado pelo sundidé – banho ritual do sangue dos animais da matança. Folhas, pembas, águas lustrais são substâncias incorporadas ao corpo e essencialmente à cabeça do iaô, reforçando o axé e confirmando cada vez mais o orixá – o santo feito (LODY, 1995, p. 59). Um dos principais ritos do Candomblé é a possessão pelo Orixá, no qual o filho que recebe o Orixá entra em transe religioso, como podemos ver na imagem a seguir. FIGURA 8 – POSSESSÃO PELO ORIXÁ FONTE: <https://bit.ly/3SyrXhN>. Acesso em: 16 jun. 2022. A Umbanda, por sua vez, pode ser considerada um dos principais exemplos para pensarmos no sincretismo religioso no contexto do nosso país, sendo que é uma verdadeira fusão entre elementos africanos e católicos. Apesar dos negros escravizados terem reconstituídos algumas de suas práticas religiosas no formato do Candomblé, esses ritos sofreram fortes perseguições e repreensões desde a época da colonização até o período da ditadura militar (NASCIMENTO, 2010). Nesse contexto, os praticantes dos ritos baseados nas culturas africanas tiveram de criar estratégias para manter suas práticas religiosas de alguma forma que não houvesse tanta repreensão. O meio que esses praticantes encontraram foi mesclar os elementos rituais do Candomblé com elementos religiosos próprios da religião dos colonizadores, o Catolicismo, e assim surgiu a Umbanda (NASCIMENTO, 2010). Além disso, a Umbanda foi uma tentativa de legitimar o significado do que é ser brasileiro, incorporando entidades como o preto-velho e o caboclo em seus cultos. Assim, foram enaltecidas figuras normalmente inferiorizadas na sociedade brasileira: os negros e os indígenas, respectivamente. Enquanto no Candomblé a possessão acontece 91 FONTE: <https://bit.ly/3OWuwHC>. Acesso em: 16 jun. 2022. Na Umbanda, os Orixás africanos encontraram correspondências com os santos católicos, o que é uma das marcas mais explícitas do sincretismo religioso. É comum que esses Orixás sejam homenageados nos mesmos dias atribuídos aos santos católicos em várias regiões do país. Vamos conhecer mais sobre essa correspondência no quadro a seguir: QUADRO1 – SINCRETISMO RELIGIOSO quando o filho de determinado Orixá é possuído por esse próprio Orixá, a possessão na Umbanda acontece quando um adepto é possuído por entidades espirituais que incluem os pretos-velhos e os caboclos (NASCIMENTO, 2010). FIGURA 9 – UMBANDA Orixá africano Santo católico Exu São Bartolomeu Ogum São Jorge Oxóssi São Sebastião Ossain São Benedito Obaluaiê São Lázaro Omolu São Roque Oxumarê São Bartolomeu Ewá Santa Clara Xangô São Jerônimo Oxum Nossa Senhora da Conceição Iansã/Oyá Santa Bárbara Logun Edé São Expedito Obá Santa Joana D’arc Iemanjá Nossa Senhora dos Navegantes Nanã Santa Ana Ibeji São Cosme e Damião Oxalá/Oxaguiã/Oxalufã Jesus Cristo FONTE: Adaptado de <https://www.marica.rj.gov.br/conheca-os-orixas/>. Acesso em: 10 fev. 2022. 92 É comum também que o Orixá Exu, de extrema importância para as práticas religiosas afro-brasileiras, seja correspondido ao diabo católico. Precisamos entender que, para as religiões afro-brasileiras, não existe uma distinção entre bem e mal tal como acontece no Catolicismo, sendo que Exu não é um Orixá “do mal” nem ruim. Portanto, essa associação é considerada errônea e pode passar por preconceituosa! IMPORTANTE 4 RACISMO RELIGIOSO FIGURA 10 – RACISMO RELIGIOSO FONTE: <https://www.flickr.com/photos/agenciabrasilia/23266239232>. Acesso em: 16 jun. 2022. O tema do racismo religioso está diretamente relacionado ao que estudamos agora: o racismo no Brasil em seu sentido amplo e o sincretismo religioso. Como comentamos, o racismo possui diversas facetas e entre elas está o racismo cultural que, por sua vez, engloba o racismo religioso. Em poucas palavras, o racismo religioso é aquele tipo de racismo voltado para as práticas religiosas de determinado grupo que já é estruturalmente inferiorizado perante a sociedade dominante. No caso do Brasil, o racismo religioso está voltado, sobretudo, para os praticantes de religiões com matriz afro-brasileira, como o Candomblé e a Umbanda que conhecemos no item anterior. As violações às práticas religiosas afro-brasileiras também costumam ser chamadas de intolerância religiosa ou mesmo discriminação religiosa. Contudo, os pesquisadores mais atuais nas temáticas sobre racismo no Brasil vêm mudando esse conceito na medida em que essas violências são fruto de um racismo estrutural. 93 Se quiser assistir a um fi lme que trata de algumas questões de intolerância e racismo religioso, contemplando temas de capoeira e religiosidade afro- brasileira, sugerimos o fi lme nacional Besouro (2009), dirigido por João Daniel Tikhomiroff . O termo “terreiro” é usado para se referir ao local sagrado em que ocorrem os rituais religiosos da Umbanda e do Candomblé. DICA NOTA Embora a liberdade religiosa no Brasil seja legalizada, parece que isso não se aplica às religiões de matriz afro-brasileira na prática, como podemos argumentar a partir desse racismo religioso estrutural e das incontáveis violações aos praticantes e Dentre as violações próprias do racismo religioso, encontramos perseguições e agressões aos praticantes, bem como invasões aos templos sagrados que incluem desde quebrar as imagens dos orixás até mesmo atear fogo nos terreiros de Umbanda e Candomblé. Vamos ver o triste exemplo a seguir, que retrata uma situação comum a diversas regiões do Brasil: A Iyalorixá Cris ty Oxum, por exemplo, que tem sua casa de candomblé na cidade de Aparecida de Goiânia, enfrentou perseguição de um vizinho durante alguns anos desde a fundação da casa em meados de 2011. O agressor realizava protestos e cultos com uma caixa de som na porta do terreiro, jogava pedras e bombinhas no telhado. Iya Cris conta que todas as vezes que havia festa na casa ele chamava a polícia. Durante as primeiras atividades realizadas, quando o terreno ainda não tinha muro e os vizinhos conseguiam ver algo que fazia ali, o mesmo vizinho acusou de estarem realizando rituais de magia negra. Culminou com uma agressão física na qual ele tentava invadir a casa durante uma festa. Derrubou o portão da casa da sacerdotisa e provocou a fratura em um de seus pés. Foram registrados boletins de ocorrência na delegacia e o processo se arrastou sem que ele fosse punido. Outro caso foi o de uma fi lha do Babalorixá Raimundo ty Oya que tentava se consultar no posto de saúde do setor onde fi ca o terreiro, também em Aparecida de Goiânia. A jovem teve que lidar com uma funcionária que queria “expulsar o demônio” de seu corpo porque portava as vestimentas características de um recém-iniciado no candomblé (contas no pescoço, torso/turbante, roupa branca) (MOTA, 2018, p. 25). 94 templos. Em outras palavras, as religiões cristãs como o Catolicismo continuam como religiões dominantes e as demais, como a Umbanda e o Candomblé, precisam ser toleradas, mas não são igualmente reconhecidas em suas legitimidades (MOTA, 2018). O fato das religiões de matriz afro-brasileira precisarem ser toleradas já é também um indicativo do racismo religioso! A necessidade de tolerância nos leva a pensar que essas práticas não são reconhecidas como uma verdadeira religião, mas somente como uma simples crença dos povos africanos. Em outras palavras, os mitos e tradições em que estão baseadas essas religiões não são vistos como racionais e, portanto, são diminuídos. Por isso, os antropólogos brasileiros lutam contra o racismo religioso para que essas religiões sejam reconhecidas e tenham os mesmos direitos de disseminação em segurança como as demais religiões cristãs. A Constituição Federal de 1988, em diálogo com esses temas abordados pela antropologia brasileira, instituiu em seu art. 5o, inciso VI, o dispositivo da liberdade religiosa: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”. FONTE: <https://bit.ly/38hv88w>. Acesso em: 27 maio 2022. IMPORTANTE 95 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu: • Os conceitos de raça e etnia são fundamentais na área de estudos da antropologia brasileira. • O conceito de raça está voltado sobretudo para o fenótipo do ser humano, ou seja, suas características biológicas. • O conceito de etnia está voltado principalmente para os elementos culturais dos grupos humanos, como a língua, os costumes e as crenças. • O Candomblé e a Umbanda são religiões criadas no Brasil a partir da herança cultural trazida pelos negros escravizados na época da colonização. • Enquanto o Candomblé mantém mais sua raiz africana, a Umbanda incorporou elementos culturais dos colonizadores portugueses próprios do Catolicismo. • O racismo religioso é um dos principais problemas enfrentados pelos praticantes das religiões de matriz afro-brasileira. • O racismo religioso vai além de uma simples discriminação e intolerância religiosa, sendo caracterizado como racismo por ser uma questão estrutural na sociedade. 96 AUTOATIVIDADE 1 O racismo religioso pode ser considerado um grande problema do nosso país e por isso é amplamente estudado no campo da antropologia brasileira. Tendo em vista essa temática, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) O racismo religioso é aquele tipo de racismo direcionado às práticas religiosas de algum grupo que sofre inferiorização na sociedade. b) ( ) O racismo religioso é aquele tipo de racismo direcionado às práticas religiosas de qualquer grupo da sociedade, seja ela católica ou de matriz afro. c) ( ) O racismo religioso envolve um preconceito com relação aos praticantes de determinada religião, mas nunca chega a agressões físicas. d) ( ) O racismo religioso não existe mais no Brasil, já que a liberdade religiosa é legalizada no nosso país. 2 O Brasil é considerado um país estruturalmente racista, já que essas práticas acontecem no âmbito de toda a sociedade, inclusive em suas instituições. Sobre o racismo no contexto brasileiro, analise as sentenças a seguir: I- O racismo pode serentendido como uma prática sistemática de discriminação que possui a raça como seu principal fundamento. II- Apesar do racismo ser estrutural no Brasil, ele não culmina em desvantagens ou privilégios para indivíduos de acordo com a raça que pertencem. III- O racismo é considerado um crime no Brasil, tendo em vista a Lei n. 7.716 de 1989 e o Código Penal brasileiro. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 A Umbanda é uma religião importante para pensarmos sobre o sincretismo religioso no nosso país, tendo em vista a correspondência entre orixás africanos e santos católicos. Nesse sentido, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) O orixá africano Ogum corresponde ao santo católico São Jorge. ( ) O orixá africano Xangô corresponde ao santo católico São Sebastião. ( ) O orixá africano Oxalá corresponde a Jesus Cristo. 97 ( ) O orixá africano Iansã corresponde à santa católica Santa Bárbara. ( ) O orixá africano Iemanjá corresponde à santa católica Santa Ana. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F – V – V. b) ( ) V – F – V – V – F. c) ( ) F – V – F – V – F. d) ( ) F – F – V – F – V. 4 O racismo tem a ver com a caracterização e consequente inferiorização de determinado grupo em virtude de suas características físicas. Esse tema não é novo nos debates antropológicos, apesar de ter particularidades de acordo com a região abordada. Portanto, disserte sobre o tema do racismo no contexto do nosso país. 5 O conceito de sincretismo tem a ver com uma mistura de elementos culturais. Já o conceito de sincretismo religioso passa pela mistura de elementos da religião de determinadas culturas que entram em contato. Nesse sentido, disserte sobre o sincretismo religioso no contexto 98 99 TÓPICO 3 - ANTROPOLOGIA BRASILEIRA: ESTUDOS RURAIS E URBANOS 1 INTRODUÇÃO No Tópico 3, abordaremos o conceito de antropologia rural. Esse é um tema que gera um amplo debate, tendo em vista que retoma os conflitos da distinção entre natureza e cultura, bem como a distinção entre campo e cidade. Assim, levando em consideração a dinâmica de dependência entre campo e cidade, pensaremos a respeito das condições de vida das populações rurais enquanto foco da antropologia rural. Em seguida, voltaremos nossa atenção para os estudos da antropologia urbana, que de certa forma é um desdobramento da antropologia rural. Vamos conhecer um pouco mais sobre o objeto de estudo dos pesquisadores da antropologia urbana e por qual motivo o estudo das grandes cidades pode também ser considerado um estudo antropológico. Por fim, refletiremos sobre a antropologia da mídia. Para isso, vamos entender como essa área do conhecimento foi iniciada no mundo e qual sua abrangência no Brasil. 2 ANTROPOLOGIA RURAL FIGURA 11 – ARTESANATO RURAL FONTE: <https://bit.ly/3JAXfRg>. Acesso em: 16 jun. 2022. UNIDADE 2 100 Depois de aprendermos o que significa a distinção entre natureza e cultura em termos antropológicos, agora vamos conhecer mais sobre a antropologia rural. Em poucas palavras, a antropologia rural é uma área de estudo voltada para a compreensão das condições de vida da população que vive nos campos, ou seja, mais próxima do que entendemos por natureza e mais afastada dos grandes centros urbanos. Como também já aprendemos, o Brasil é constituído por uma grande diversidade cultural que acompanha uma grande diversidade regional, geográfica e climática. Ao lado do desenvolvimento das grandes cidades, existe uma população rural trabalhadora que contribui para isso! Podemos até dizer que para que os centros urbanos existam, é preciso que haja uma organização rural que supra as necessidades desses centros. Ora, vamos entender isso melhor. Nas grandes cidades, as pessoas costumam comprar seus alimentos, que são fundamentais para a sobrevivência, em mercados ou feiras. Um grande costume do brasileiro é tomar seu café preto logo de manhã. Mas quem de fato produz esse café que chega em nossa mesa? São os trabalhadores que vivem em áreas rurais! Por isso, é importante que os estudos em antropologia brasileira passem pela antropologia rural que, por sua vez, está diretamente relacionada à antropologia urbana. Nas palavras do antropólogo alemão Emilio Willems, radicado no Brasil: Acompanhando a reta, depara-se com um tipo de cultura rural estreitamente ligado à cidade: estradas atravessam-na, seus homens trabalham e produzem para mercados e toda a sua vida está organizada de maneira a satisfazer as necessidades desses mercados. Se, por qualquer motivo que, às vezes, escapa à compreensão desses produtores rústicos, os mercados deixam de absorver sua produção ou lhes diminuem a compensação monetária, a sua vida se torna extremamente difícil, pois a sua subsistência material depende de troca monetária e lucro (WILLEMS, 2009, p. 187). FIGURA 12 – AGRICULTOR TRABALHANDO FONTE: <https://bit.ly/3dfaf2E>. Acesso em: 16 jun. 2022. 101 Como podemos derivar das palavras de Willems (2009), a produção dos trabalhadores rurais também está diretamente relacionada ao mundo capitalista em que vivemos. Assim, quando compramos esses produtos produzidos pelos trabalhadores rurais, estamos todos fazendo parte de uma engrenagem de mercado capitalista baseada na demanda e no consumo. Essas relações são uma das principais preocupações da antropologia urbana assim como as condições de vida das populações rurais. Por outro lado, além dos trabalhadores rurais, também existe uma população que vive afastada dos centros urbanos e que não está tão condenada às regras do mercado: Prosseguindo pela reta encontram-se, já bem mais distantes do ponto de partida, populações caboclas cuja vida parece decorrer em um mundo diferente do nosso. Pouco ou nada as liga ao mercado urbano. Não dependem dele e o uso que fazem do dinheiro é muito restrito. Altas ou baixas do café ou do algodão não as atingem, porque não plantam esses produtos ou, se os plantam, a produção destina-se apenas ao consumo pessoal. Geralmente se é impiedoso com essas populações; aplicam-se-lhes epítetos como “atrasadas”, “indolentes” e outros, menos lisonjeiros ainda. Vivem de uma maneira julgada indigna e desprezível. Acha-se que deviam trabalhar e produzir mais e melhor, que deviam adubar suas roças, usar sabão, escola, parteira, farmácia e médico. Se se perguntar a um de seus indivíduos se conhece o nome do presidente da República, ele não entenderá bem o sentido da nossa pergunta. Pouco se incomodarão com o nosso conselho de curar ou evitar a anquilostomíase. Embora falem português, não parece fácil entender-se com eles (WILLEMS, 2009, p. 188). Nesse sentido, a antropologia rural se aproxima da etnologia indígena na medida em que as populações indígenas podem fazer parte dessas pessoas que não estão condenadas às regras do mercado, ainda que comprem alguns dos bens de consumo próprios da cidade. Assim, indígenas, caboclos, sertanejos, agricultores e pessoas que vivem em comunidades isoladas fazem parte dos estudos da antropologia rural. No que diz respeito aos agricultores, é importante ressaltarmos o trabalho dos agricultores orgânicos e agricultores familiares no Brasil, bem como o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Ou melhor, para os estudos antropológicos que possuem como objeto de estudo essa espécie de movimentos! A agricultura familiar envolve agricultores que usam da mão de obra de membros da família no cultivo de plantas e animais em uma terra inferior a quatro módulos fiscais. Já a agricultura orgânica diz respeito ao modelo de produção agrícola que rejeita fertilizantes sintéticos, sementes transgênicas, agrotóxicos e usos de máquinas em grande escala. O MST, por sua vez, é um dos maiores movimentos sociais do Brasil, tendo como objetivoa luta por melhores condições de trabalho aos produtores rurais e a reforma agrária. 102 O indicativo de módulos fiscais na legislação brasileira é usado para determinar a extensão de uma propriedade rural, sendo que o imóvel rural com área inferior a um módulo fiscal é caracterizado como minifúndio e o imóvel rural com área entre um e quatro módulos fiscais é caracterizado como pequena propriedade. A reforma agrária é um termo utilizado para se referir a redistribuição de terras em um Estado. Essa ideia é fundamental para pensarmos na antropologia urbana brasileira, sendo que um dos principais problemas apontados por movimentos como MTST é o fato de que as terras produtivas pertencem principalmente a grandes empresários ricos e quem de fato produz os alimentos, os trabalhadores rurais, na maioria das vezes não possuem terras próprias. NOTA FIGURA 13 – MANIFESTAÇÃO MTST FONTE: <https://bit.ly/3JKeCPx>. Acesso em: 16 jun. 2022. 103 3 ANTROPOLOGIA URBANA FIGURA 14 – AVENIDA PAULISTA FONTE: <https://bit.ly/3A37gTY>. Acesso em: 16 jun. 2022. A antropologia urbana, como o próprio nome diz, tem a ver com os estudos antropológicos voltados para os centros urbanos. Como vimos no começo da nossa disciplina, a antropologia em termos gerais tem como objeto de estudo aquele “outro” distante. Aqui entra um ponto particular da antropologia urbana: o que acontece quando os antropólogos nascidos e criados nas grandes metrópoles se voltam para a análise antropológica desses mesmos espaços? Ora, como comenta o antropólogo brasileiro José Guilherme Magnani, esse campo da antropologia provoca uma série de desafios e até mesmo formas de preconceito: E quando se considera mais especialmente o trabalho do antropólogo às voltas com questões urbanas, pesa sobre ele um preconceito adicional, dessa feita partindo do interior da própria antropologia, ou seja, há uma espécie de discriminação doméstica. E o ponto de partida dessa visão é que a antropologia, em sua forma clássica, praticada no contexto das sociedades não ocidentais, desenvolveu uma reflexão própria a respeito de temas específicos como parentesco, mitologia xamanismo, rituais que – esses sim – conformam um campo de reflexão reconhecido e legítimo no interior das ciências sociais (MAGNANI, 2003, p. 81-82). Em suma, a antropologia urbana rompe com o objeto de estudo da antropologia mais clássica, que é o “outro” distante, e passa a se importar com o estudo das sociedades complexas. Ora, mas ainda assim podemos chamar isso de antropologia? A resposta é sim! Ainda que o tema central da antropologia urbana não seja aquele considerado 104 clássico, essa disciplina se mantém fi el às teorias e metodologias da antropologia e, portanto, é considerada como uma das áreas da antropologia. É exatamente aqui também que se encontra o maior desafi o da antropologia urbana. Nas palavras de Magnani (2003, p. 83): E aqui está o problema, que é o de tentar reproduzir, principalmente no cenário das grandes metrópoles, aquelas condições tidas como clássicas na pesquisa antropológica: a dimensão da aldeia, da comunidade, do pequeno grupo. Cabe notar que, se tais condições já não se aplicam nem mesmo nas próprias pesquisas da etnologia indígena, continuam presentes, no imaginário, como as características ideais da abordagem etnográfi ca (MAGNANI, 2003, p. 83). Além disso, Magnani (2003) destaca um ponto-chave acerca da antropologia urbana: mais que pensar em elementos como o objeto da cultura popular e do lazer nas metrópoles, a antropologia urbana se importa em pensar em quais lugares essas práticas acontecem. Em poucas palavras, a antropologia urbana pode ser considerada uma antropologia do espaço urbano. FIGURA 15 – CULTURA POPULAR FONTE: <https://bit.ly/3p3e7Xk>. Acesso em: 10 fev. 2022. Caso se interesse mais pela temática da antropologia urbana, sugerimos o livro Na metrópole: textos de antropologia urbana, escrito pelos antropólogos Lilian de Lucca Torres e José Guilherme Magnani. Uma questão interessante abordada nesse livro diz respeito ao conceito de “tentação da aldeia”, que signifi ca a tentativa de se aplicar a abordagem etnográfi ca no contexto das grandes metrópoles. DICA 105 No que diz respeito ao espaço, Magnani (2003) traça um paralelo com Roberto Da Matta, outro antropólogo muito importante em antropologia brasileira, tendo em vista as noções de “rua”, “casa” e “pedaço”: enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua, o dos estranhos, o pedaço evidencia outro plano, o dos “chegados” que, entre a casa e a rua, instaura um espaço de sociabilidade de outra ordem. Assim se desvelou um campo de interação em que as pessoas se encontram, criam novos laços, tratam das diferenças, alimentam, em suma, redes de sociabilidade numa paisagem aparentemente desprovida de sentido ou lida apenas na chave da pobreza ou exclusão (MAGNANI, 2003, p. 86). FIGURA 16 – FESTA DE CULTURA POPULAR FONTE: <https://www.fl ickr.com/photos/ministeriodacultura/25963586828>. Acesso em: 16 jun. 2022. Assim como os lugares em que a cultura popular e o lazer acontecem nas metrópoles, a antropologia urbana também se importa com as relações que derivam disso. No caso do lazer em especial, podemos classifi car algumas variantes, como o estado civil, a faixa etária, o local em que acontecem, entre outros. Conforme ressalta Magnani (2003), o lazer na cidade de São Paulo, que é a cidade mais populosa do nosso país, pode ser dividido naquele “lazer de homens solteiros e casados, de mulheres e moças, de crianças e adultos; e modalidades desfrutadas em casa e fora de casa, e neste último caso ainda era possível distinguir “fora de casa, mas no pedaço”. Se quiser conhecer mais sobre o trabalho de Roberto Da Matta, sugerimos a leitura do livro do autor, intitulado “A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil”, que também trata de temas voltados para a antropologia urbana brasileira. DICA 106 Podemos dizer também que esses estudos da antropologia urbana têm a ver com o tempo livre das pessoas. Ora, e se têm a ver com o tempo livre, também têm a ver com o tempo de trabalho dessas pessoas que, quando não estão trabalhando, estão livres e podem fazer outras atividades. Essas simples atividades, como ir ao bar depois do expediente com os colegas de trabalho antes de voltar para casa, é considerada um dos objetos de estudo da antropologia urbana! Isso pode nos dizer muito, como a relação entre o mundo doméstico e o mundo do trabalho, os lugares, as relações que derivam disso etc. (MAGNANI, 2003). 4 ANTROPOLOGIA DA MÍDIA A antropologia da mídia é uma área de estudo antropológico que flerta com os estudos de comunicação social. Como vimos no início da nossa disciplina, a antropologia é uma pesquisa baseada na etnografia, ou seja, na pesquisa de campo. Contudo, assim como toda a dinâmica da vida terrestre mudou com o curso da história, isso não foi diferente com a antropologia! Ora, o que isso quer dizer? Como também já vimos, a antropologia clássica dependia de pesquisas de campo em regiões mais afastadas. Agora, o desenvolvimento das mídias sociais abriu espaço para um novo campo das pesquisas etnográficas, por exemplo, as pesquisas nas redes sociais que são usadas como metodologia na antropologia brasileira. Além disso, o uso da internet e das redes sociais têm sido uma grande saída para a pesquisa antropológica em tempos de pandemia. FIGURA 17 – REDES SOCIAIS FONTE: <https://bit.ly/3A22SVp>. Acesso em: 16 jun. 2022. Um marco para a antropologia da mídia em termos globais é o texto Anthropology and Mass Media, publicado pela antropóloga norte-americana Debra Spitulnik em 1993. Podemos dizer que é um texto pioneiro nesse sentido na medida em que a autora 107 defendeu que de fato a antropologia da mídia pudesse constituir uma nova área do conhecimento. Considerando a comunicação em massa e o avanço das tecnologias da informação, Spitulnik levanta a possibilidade deque isso seja estudado a partir das teorias e métodos antropológicos (CAMPANELLA; MARTINELI, 2010). Portanto, assim como acontece no caso da antropologia urbana, em que os conceitos próprios da antropologia são utilizados para realizar a análise sobre as grandes metrópoles, a antropologia da mídia utiliza dos conceitos antropológicos para analisar as formas de comunicação entre as pessoas com relação à tecnologia! Nas palavras dos pesquisadores Bruno Campanella e Fernanda Martineli: Nesse contexto, a antropologia da mídia emerge como um campo de estudos interdisciplinar que permite abordar a comunicação e os meios de comunicação de massa a partir de sistemas culturais mais amplos de produção e consumo de sentidos, levando em conta sociabilidades e processos de interação mobilizados pelos meios massivos que reverberam no contexto social (CAMPANELLA; MARTINELI, 2010, p. 3). Entretanto, conforme apontam Campanella e Martineli (2010), a antropologia da mídia ainda é um campo de formação na antropologia brasileira, ou seja, não é tão difundida como as outras áreas que vimos até agora. Como comentamos, a pandemia contribuiu para que esse cenário mudasse aos poucos, já que os pesquisadores em antropologia brasileira precisam encontrar novas formas para realizar suas pesquisas de campo. Assim, redes como Twitter, Facebook, Instagram e Youtube passam a ganhar espaço na antropologia como meios de pesquisa. 108 PRECONCEITO DE COR E RACISMO NO BRASIL Antônio Sérgio Alfredo Guimarães Antes de entrar no assunto deste texto, convém alertar para um ponto metodológico de todo pertinente para o que vou expor: refiro-me ao emprego de categorias abstratas, puramente analíticas, para compreender a vida ou o pensamento social, tais como eles foram concretamente vivenciados por seus atores. Tais noções, inteiramente conceituais, no mais das vezes foram tecidas a partir de significados historicamente precisos, que sociólogos ou historiadores pretendem, para fins teóricos ou políticos, generalizar para além do tempo e da circunstância em que foram efetivamente usados na vida real. Ao fazer isso, expomo-nos seja ao anacronismo histórico (ao risco de imputar indevidamente sentidos e significados aos sujeitos passados) seja ao estruturalismo mais árido (isto é, ao risco de privar a análise social da compreensão do significado cultural de seus objetos); mas, não fazê-lo, nos expõe igualmente, pois podemos pretender ser meros reconstrutores mentais de épocas mortas, como se isto fosse possível, como se não estivéssemos todos muito bem fincados em nossos atualíssimos interesses. Pois bem, é caminhando sobre esta lâmina fina, que separa anacronismo de relativismo, que me moverei. Vou tratar do preconceito de cor e racismo no Brasil restringindo-me à época moderna, que começa com a geração de 1870, nas escolas de direito, do Recife e de São Paulo, e nas escolas de medicina, da Bahia e do Rio de Janeiro. Tal recorte não é arbitrário: tem a ver com a minha compreensão do que seja o racismo moderno. Sigo o que apreendi com Louis Dumont (1966) e Collete Guillaumin (1992), entre outros, para quem o discurso sobre a diferença inata e hereditária, de natureza biológica, psíquica, intelectual e moral, entre grupos da espécie humana, distinguíveis a partir de características somáticas, é resultado das doutrinas individualistas e igualitárias que distinguem a modernidade da Antiguidade ou do Medievo e, no nosso caso, do Brasil colonial e imperial. Sem minimizar a importância política da hierarquia e da desigualdade sociais entre os povos conquistadores e conquistados, entre senhores e escravos, na história do Ocidente, mas antes para maximizá-la, acredito que o distintivo no racismo moderno seja justamente a ideia de que as desigualdades entre os seres humanos estão fundadas na diferença biológica, na natureza e na constituição mesmas do ser humano. A igualdade política e legal seria, portanto, a negação artificial e superficial da natureza das coisas e dos seres. Ora, essa compreensão do racismo significa circunscrevê-lo à modernidade, pois nos remete logicamente ao aparecimento da ciência da biologia e da filosofia política liberal. LEITURA COMPLEMENTAR 109 O racismo surge, portanto, na cena política brasileira, como doutrina científica, quando se avizinha à abolição da escravatura e, consequentemente, à igualdade política e formal entre todos os brasileiros, e mesmo entre estes e os africanos escravizados. Como não posso me alongar sobre esse ponto, remeto-os a alguns trabalhos já clássicos sobre o período, entre os quais cabe destacar: A escola Nina Rodrigues, de Mariza Corrêa (1998); e O espetáculo das raças, de Lilia Schwarcz (1993). O racismo brasileiro, entretanto, não deve ser lido apenas como reação à igualdade legal entre cidadãos formais, que se instalava com o fim da escravidão; foi também o modo como as elites intelectuais, principalmente aquelas localizadas em Salvador e Recife, reagiam às desigualdades regionais crescentes que se avolumavam entre o Norte e o Sul do país, em decorrência da decadência do açúcar e da prosperidade trazida pelo café. Quem não se lembra do temor de Nina Rodrigues ao ver se desenvolver no Sul uma nação branca, enquanto a mestiçagem campeava no Norte? O racismo duro da Escola de Medicina da Bahia e da Escola de Direito do Recife, entrincheirado nos estudos de medicina legal, da criminalidade e das deficiências físicas e mentais, evoluiu, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, em direção a doutrinas menos pessimistas que desaguaram em diferentes versões do “embranquecimento”, subsidiando desde as políticas de imigração, que pretendiam a substituição pura e simples da mão-de-obra negra por imigrantes europeus, até as teorias de miscigenação que pregavam a lenta mais contínua fixação pela população brasileira de caracteres mentais, somáticos, psicológicos e culturais da raça branca, tais como podem ser encontrados em escritos de Batista Lacerda (1911) e Roquette Pinto (1933). Foi também no Sul, centro da vida econômica e política, que as campanhas de sanitarização e higienização públicas ganharam vigência, forçando a amenização das teorias eugenistas em versões que privilegiavam as ações de saúde pública e de educação, em detrimento de políticas médicas de controle da reprodução humana e dos casamentos. Mas se do Norte veio o racismo primeiro, também veio de lá a sua superação doutrinária, com os escritos sociológicos de Gilberto Freyre (1933; 1936) de 1930. Algo que começou a ser ainda gerado nos anos 1920, quando vigiam as teorias racistas. Para entender esse movimento, que só ganhará o proscênio da vida intelectual e política brasileira nos anos 1930 e 1940, seria preciso, entretanto, recuar mais um pouco em direção ao romantismo literário. Pois, como demonstrou José Maurício Gomes de Almeida (2003), já vem de José de Alencar ou de Franklin Távora, que viam conservados no Norte “os elementos para uma literatura propriamente brasileira, filha da terra”, a inspiração gilbertiana para buscar ali a “alma brasileira”. Esse traço do pensamento de Freyre, entretanto, ganha cientificidade apenas a partir do seu encontro com a antropologia cultural de Franz Boas, que substituiu a noção biológica de raça pela noção de cultura, enquanto expressão material e simbólica do ethos de um povo. 110 Pois bem, Gilberto Freyre promove uma verdadeira revolução ideológica no Brasil moderno ao encontrar na velha, colonial e mestiça cultura luso-brasileira nordestina a alma nacional. Ethos esse que logo ganhará, em seus escritos políticos, a partir de 1937, o nome de “democracia social e étnica”, por oposição à democracia política da América do Norte e dos ingleses. Se há razão para dizer que as escolas de direito e de medicina importaram as teorias raciais europeias de meados do século XIX para atualizar e naturalizar, pela ciência, as desigualdades sociais e raciais brasileiras do final doséculo (SCHWARCZ, 1993), com igual razão, pode-se afirmar que a “democracia racial”, rótulo político dado às ideias de Gilberto, reatualizou, na linguagem das ciências sociais emergentes, o precário equilíbrio político entre desigualdade social, autoritarismo político e liberdade formal, que marcou o Brasil do pós-guerra. Tal como seus antecessores, Gilberto respondia também ao desafio regional brasileiro. É que, no começo dos anos 1920, a revolução estética modernista já inventara o primitivo brasileiro, o popular, sob a influência das emoções trazidas pelos novíssimos espetáculos de massa europeus e de seu gosto pelo exótico – o modernismo artístico já desembarcara no Brasil pelo porto de Santos e fora gulosa e rapidamente consumido pelas vanguardas intelectuais paulistas, em busca, a um só tempo, de autenticidade e de sintonia com a Europa. O pensamento político que subjazia a essa elite, o seu declarado culto pelo imigrante, pela industrialização e pela urbes moderna, era de todo antagônico à lembrança do passado colonial luso-brasileiro do decadente Nordeste. Mesmo quando cultuaram o passado, foram o barroco mineiro, e não o nordestino, a urbanidade de Minas, e não a dos portos do Norte, os preferidos e apropriados pelos paulistas. Tem razão Antônio Cândido quando lembra que a grande figura humana a dar sentido ao clássico de Sérgio Buarque de Hollanda (1936), Raízes do Brasil, seja o imigrante, do mesmo modo que foi no planalto, e não no litoral, que Sérgio plantou a esperança da revolução brasileira. Essa tensão regionalista entre Norte e Sul acompanha também a institucionalização das ciências sociais no Brasil. Para a Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, Gilberto Freyre e Arthur Ramos trazem, nos anos 1930, a influência dos discípulos americanos de Franz Boas, principalmente Melville Herskovits. Será o mesmo Arthur Ramos quem, na década de 1940, usará a sua liderança acadêmica para divulgar o Brasil, no exterior, como um “laboratório de civilização” e uma “democracia racial”. Tal iniciativa desembocará, como se sabe, no projeto UNESCO de relações raciais, do começo dos anos 1950. Por outro lado, será Donald Pierson quem implantará no país, a partir de 1939, a sociologia das relações raciais, aqui em São Paulo, na Escola Livre de Sociologia e Política. Foi Pierson o principal divulgador, entre nós, da sociologia moderna, principalmente a sociologia de seus mestres e colegas de Chicago – Robert Park, Ernest Burgess, Herbert Blumer, Louis Wirth, John Dollard, Franklin Frazier e muitos outros. 111 Contudo, apenas em 1942, Pierson publica, em Nova Iorque, Negroes in Brazil, fruto de sua pesquisa de doutorado na Bahia, entre 1935 e 1937. No prefácio à edição brasileira de 1945, Arthur Ramos registra a novidade de um trabalho sociológico, sistemático e em profundidade, para estudar as “relações raciais” que se desenvolvem numa comunidade. Essa mudança fora gestada nos Estados Unidos desde os anos 1910, quando os primeiros cientistas sociais negros americanos, seguindo Franz Boas, desfizeram-se da armadilha da definição biológica de “raça”, que explicava a condição social dos negros a partir da hipótese de sua inferioridade inata, para realçarem, analisarem e discutirem a heterogeneidade social, política e cultural do meio negro, concentrando-se na hipótese de que a discriminação racial era o principal obstáculo para o progresso social, político e cultural dos negros naquele país (Williams Jr., 1996). A outra vertente boasiana, aquela desenvolvida por Herskovits em seus estudos de aculturação, fora paulatinamente marginalizada pela sociologia que faziam os intelectuais negros, mais interessados em realçar as oportunidades e as condições de vida como determinantes da situação social e das atitudes pessoais e coletivas, em detrimento de fenômenos culturais. De fato, para esses intelectuais, entre os quais podemos citar Du Bois, Monroe Work, Brooker Washington, Alain Locke, entre outros, o transpasse do paradigma de raça em Boas significava afirmar que as diferenças raciais (biológicas), ainda que não inteiramente negadas, não poderiam ser responsabilizadas nem pela falta de integração do negro nas sociedades americanas nem pelo seu desempenho inferior em relação ao branco. Os fatores explicativos mais importantes para ambos os fenômenos seriam, ao contrário, o preconceito, a discriminação e a segregação raciais. A explicação pela “cultura”, que segundo Herskovits poderia ser um fator condicionante das dificuldades da integração, adquirira, nos anos 1940, um caráter “conservador”, que só foi ultrapassado depois dos anos 1960, quando a política de identidade passou a ser o principal foco do ativismo negro. A agenda de pesquisa que Pierson levou para a Bahia em 1935, como aluno de doutorado em Chicago, sob a orientação de Robert Park, incorporava já a preocupação principal com a integração e a mobilidade social dos negros, a hipótese de que o preconceito racial seria o principal obstáculo a esta integração, em detrimento dos aspectos de aculturação, conforme os ensinamentos de Park, que teorizou o ciclo da assimilação social. Quando Park introduz o livro de Pierson ao público americano é muito claro em apontar o significado do Brasil como laboratório de relações raciais: Fato que torna interessante a “situação racial” brasileira é que, tendo uma população de cor proporcionalmente maior que a dos Estados Unidos, o Brasil não tem “problema racial”. Pelo menos é o que se pode inferir das informações casuais e aparentemente desinteressadas de visitantes desse país que indagaram sobre o assunto [referindo-se a James Bryce e Theodore Roosevelt] (PARK, 1971, p. 83). 112 Entretanto, Pierson já encontrou aqui, entre os acadêmicos brasileiros, uma história social do negro, desenvolvida por Gilberto Freyre, que fizera da miscigenação e da ascensão social dos mulatos as pedras fundamentais de sua compreensão da sociedade brasileira. Ou seja, para ser mais claro, eram fatos estabelecidos, já em 1935, pelo menos entre os intelectuais modernistas e regionalistas, que: (a) o Brasil nunca conhecera o ódio entre raças, ou seja, o “preconceito racial”; (b) as linhas de classe não eram rigidamente definidas a partir da cor; (c) os mestiços se incorporavam lenta mas progressivamente à sociedade e à cultura nacionais; (d) os negros e os africanismos tendiam paulatinamente a desaparecer, dando lugar a um tipo físico e a uma cultura propriamente brasileiros. O quanto essas crenças provinham mais de desejos do que de realidades, refletindo mais ideais do que práticas, notou-o também Park, na mesma introdução, ainda que reconhecesse se tratar de uma ideologia nacional. O fato é que Arthur Ramos tinha razão: as ideias de Chicago chegaram à Bahia depois das de Herskovits, e se este pode ser incorporado facilmente à tradição inaugurada por Nina Rodrigues, Pierson, no que pese ter sido antecedido pela história social de Freyre, iniciava uma nova sociologia que apenas nos anos 1950 seria retomada. Seria, todavia, enganoso se eu não apontasse o quanto da antiga problemática permanecia no novo método e nas novas teorias de Pierson, presente principalmente na ideia de raça (que permitia que os mestiços fossem às vezes sub-repticiamente tratados como negros) e na manutenção de explicações historicistas. Ora, o método historicista de explicação se confunde com o de estabelecimento de verdades fundacionais, e Pierson, ao utilizá-lo, acaba por bater três pilares: (a) a existência original de raças diferentes; (b) a mistura racial ou miscigenação; (c) a mobilidade social de mestiços. Pierson atribui esta última à inexistência do preconceito de raça que, facultando a miscigenação, explicaria a ascensão social dos mestiços. Restava, portanto, para entender os preconceitos de fato existentes, aquilo que ele chamou de preconceito de classe. Nem mesmo a rígida estrutura de desigualdades na distribuição de riquezas entrebrancos e negros pode contrariar o historicismo, que vê as diferenças como resultado de pontos de partida diferentes e trata os mestiços embranquecidos como negros que ascenderam socialmente. A esse respeito, há que se fazer justiça a Arthur Ramos, quando, introduzindo o livro de Pierson ao público brasileiro, em 1945, avança a hipótese de trabalho de que os estudos da UNESCO se valerão anos depois: Estas conclusões podem ser comparadas com as do professor negro Frazier, (...) que também nos visitou recentemente, e que verificou a existência de um “preconceito de cor” que deveria ser distinto do “preconceito de raça”. É um assunto aberto à discussão se este preconceito ligado à cor negra mais carregada coincide ou não com o status social e econômico mais baixo, o que as pesquisas de Pierson nos levam a admitir (RAMOS, 1971, p. 96). 113 Em outras palavras: se não existia preconceito racial entre nós – tal como Blumer (1939) o definia –, existiria preconceito de cor – tal como definido por Frazier (1942)? Ou teríamos apenas preconceito de classe, como queria Pierson? Lembremo-nos de que o preconceito racial é entendido, na sociologia de então, a partir do paradigma de Herbert Blumer, como fundamentalmente um processo coletivo, que opera pelos “meios públicos em que indivíduos que são aceitos como porta-vozes de um grupo racial caracterizam publicamente um outro grupo racial”, definindo, neste processo, seu próprio grupo. Para Blumer, isso equivale a colocar ambos os grupos em relação recíproca, definindo suas respectivas posições sociais. São quatro os sentimentos que, segundo Blumer, estarão sempre presentes no preconceito racial do grupo dominante: (a) de superioridade; (b) de que a raça subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; (c) de monopólio sobre certas vantagens e privilégios; e (d) de medo ou suspeita de que a raça subordinada deseje partilhar as prerrogativas da raça dominante. FONTE: Adaptado de <https://www.scielo.br/j/ra/a/B8QfF5wgK3gzDNdk55vFbnB/abstract/?lan- g=pt>. Acesso em: 10 fev. 2022. 114 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu: • A antropologia rural tem a ver com o estudo das condições de vida das populações rurais. • Trabalhadores da agricultura orgânica, agricultura familiar e de movimentos sociais rurais como o MTST são fundamentais para os estudos em antropologia rural. • A antropologia rural tem como um dos seus focos principais a interdependência entre o desenvolvimento da cidade e o trabalho das pessoas que vivem no campo. • A antropologia urbana tem a ver com o estudo das relações e dos espaços das grandes cidades. • A antropologia urbana, ao contrário da antropologia clássica, leva em consideração regiões próximas e urbanas como objetos de estudo. • Um dos principais focos da antropologia urbana é a cultura popular e o lazer nas grandes cidades, levando em consideração as relações sociais que derivam disso. • A antropologia da mídia tem a ver com o estudo da comunicação social entre as pessoas, bem como das redes sociais. • Atualmente, as mídias digitais e as redes sociais também são usadas como meio para pesquisas de campo em antropologia. 115 AUTOATIVIDADE 1 A antropologia da mídia pode ser considerada uma nova área dos estudos antropológicos que surgiu na década de 1990 nos EUA. No Brasil, ela vem sendo difundida aos poucos e a pandemia colaborou para isso, já que a internet e as redes sociais começaram a ser mais utilizadas para as pesquisas etnográficas. Sobre a antropologia da mídia, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A antropologia da mídia possui como seu objeto principal a análise de redes sociais como o Facebook e o Instagram. b) ( ) A antropologia da mídia possui como seu objeto principal a análise dos meios de comunicação social, incluindo ou não o uso das redes sociais. c) ( ) A antropologia da mídia possui como seu objeto principal a análise de regiões afastadas. d) ( ) A antropologia da mídia possui como seu objeto principal as pesquisas etnográficas decorrentes da pandemia. 2 A antropologia rural pode ser aproximada da etnologia indígena, tendo em vista que ambas estão voltadas para a compreensão das populações mais negligenciadas diante da sociedade envolvente. Com base nas informações sobre os objetos de estudo da antropologia rural, analise as sentenças a seguir: I- Os objetos de estudo da antropologia rural incluem os indígenas, caboclos e agricultores que vivem afastados dos grandes centros urbanos. II- Movimentos sociais rurais como o agronegócio são estudados pelos pesquisadores da antropologia rural. III- As condições de vida dos trabalhadores da agricultura familiar são importantes em termos de antropologia rural. IV- A agricultura familiar tem como base a luta pela reforma agrária. V- A agricultura orgânica tem como pré-requisito legislativo a área inferior a quatro módulos fiscais. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e III estão corretas. b) ( ) Somente a sentença III está correta. c) ( ) As sentenças II, III e IV estão corretas. d) ( ) As sentenças IV e V estão corretas. 116 3 A antropologia urbana pode também ser considerada uma antropologia dos espaços urbanos, já que um dos seus principais focos é o espaço em que acontecem as relações sociais da cidade. De acordo com esse pressuposto, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: ( ) Os pesquisadores em antropologia urbana tem como principal foco o tempo que as pessoas passam trabalhando fora de casa. ( ) Os pesquisadores em antropologia urbana consideram objetos como cultura popular e lazer nos espaços urbanos para seus estudos. ( ) Os pesquisadores em antropologia urbana prezam pela distinção entre o espaço da rua e espaço da casa para suas análises. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – V – V. 4 Podemos afirmar que antropologia rural é um campo de estudos antropológicos que parte da distinção entre natureza e cultura, assim como a distinção entre campo e cidade. Considerando a dinâmica de reprodução e desenvolvimento das grandes metrópoles, o que depende diretamente da organização dos trabalhadores rurais, a antropologia rural é importante para pensarmos nos modos de vida atuais. Nesse sentido, disserte sobre o objeto de estudo da antropologia rural, tendo em vista o contexto brasileiro. 5 A antropologia urbana é uma vertente da antropologia baseada no estudo das grandes metrópoles, como São Paulo. É comum que os pesquisadores em antropologia sejam nascidos e criados em cidades grandes. Contudo, o objeto de estudo da antropologia clássica é um “outro” de regiões afastadas. Nesse sentido, disserte sobre o objeto de estudo da antropologia urbana e por qual motivo ela é considerada uma vertente da antropologia. 117 REFERÊNCIAS ARRUDA, R. Etnologia indígena no Brasil: dos primórdios aos estudos de gênero. In: Revista Sociedade e Ambiente. V. 1, n. 1, 2020, p. 107-122. Disponível em: https://bit. ly/3BLfVvx. Acesso em: 10 fev. 2022. BASTIDE, R. O candomblé da Bahia: rito nagô. Tradução de Maria Isaura Pereira Quei- roz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. BENISTE, J. As águas de Oxalá: (awon omi Osala). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CANEDO, D. Cultura é o quê? Reflexões sobre o conceito de cultura e a atuação dos poderes públicos. V ENECULT, 2009. CAMPANELLA, B.; MARTINELI, F. Antropologia da mídia: novas possibilidades de cam- po. 27a Reunião Brasileira de Antropologia. Pará, 2010. Disponível em: https://bit. ly/3QagaER. Acesso em: 10 fev. 2022. CARDOSO DE OLIVEIRA, R. O que é isso que chamamos de antropologia brasileira? 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In: Tempo Social – USP, v. 21, n. 1, junho 2009, p. 187-210. 119 O CAMPO DA ANTROPOLOGIA BRASILEIRA UNIDADE 3 — OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM PLANO DE ESTUDOS A partir do estudo desta unidade, você deverá ser capaz de: • conhecer a respeito da formação de antropólogos no Brasil; • entender o trabalho e o estudo acadêmico do antropólogo de campo; • compreender o trabalho e o estudo acadêmico do antropólogo de gabinete; • analisar os conceitos de modernidade e pós-modernidade no contexto brasileiro; • defi nir o conceito de multiculturalismo, tendo em vista a pluralidade cultural e étnica no Brasil; • conhecer as abordagens da antropologia multiespécie; • entender o debate atual sobre as doenças infecciosas e o agronegócio no Brasil. A cada tópico desta unidade você encontrará autoatividades com o objetivo de reforçar o conteúdo apresentado. TÓPICO 1 – PANORAMA DA GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA NO BRASIL TÓPICO 2 – TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL I: GLOBALIZAÇÃO CULTURAL TÓPICO 3 – TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL II: ANTROPOCENO E BRASIL PÓS-PANDEMIA Preparado para ampliar seus conhecimentos? Respire e vamos em frente! Procure um ambiente que facilite a concentração, assim absorverá melhor as informações. CHAMADA 120 CONFIRA A TRILHA DA UNIDADE 3! Acesse o QR Code abaixo: 121 TÓPICO 1 — PANORAMA DA GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA NO BRASIL UNIDADE 3 1 INTRODUÇÃO No Tópico 1, abordaremos como pode ser realizada a formação em antropologia no Brasil. Mas para que você entenda mais sobre isso, vamos pensar a respeito do caminho que os antropólogos percorreram no Brasil desde a consolidação da disciplina no nosso país. Em seguida, vamos refletir sobre o trabalho do antropólogo em campo. Depois que aprender mais sobre a formação em antropologia, vamos compreender quais são as principais atividades dos antropólogos que fazem pesquisas de campo com grupos sociais. Por fim, conheceremos mais a respeito do antropólogo que chamamos de “gabinete”. Ainda que seja comum afirmar que a parte principal do trabalho antropológico é a pesquisa de campo, repassaremos algumas atividades importantes dos pesquisadores no gabinete, que permitem a organização de todo o material recolhido no campo. 2 FORMAÇÃO EM ANTROPOLOGIA NO BRASIL Depois de percorrermos alguns dos principais temas da antropologia brasileira nas unidades anteriores, agora vamos pensar mais sobre os caminhos de formação que os antropólogos podem percorrer! Antes de qualquer coisa, se você tem interesse em se aprofundar nos conhecimentos antropológicos, um passo importante é conhecer as possibilidades de graduação nessa área. Existem inúmeras universidades públicas e privadas que oferecem cursos de graduação em Antropologia. Não existem tantos cursos de graduação em Antropologia no Brasil reconhecidos pelo MEC. Isso se deve ao fato de que, nos cursos de graduação, é mais comum que a disciplina da antropologia apareça como uma das áreas do curso de graduação em Ciências Sociais. NOTA 122 Do mesmo modo, também encontramos, no Brasil, várias universidades públicas e privadas que disponibilizam cursos de pós-graduação e especialização em Antropologia, ou mesmo cursos livres, como é o caso da UNIASSELVI. De acordo com a pesquisadora Daniela Cordovil (2008), ora antropóloga da Secretaria da Justiça e Direitos Humanos do Pará, a antropologia passou a ser praticada no nosso país no fi m do século XIX. Nesse período, os estudiosos de antropologia percorriam uma formação autodidata. Havia associações em que esses estudiosos se reuniam para trocar informações, contando também com o apoio de materiais vindos da Europa. Cordovil (2008) também enfatiza o fato de que o processo de formação dos antropólogos no Brasil mudou muito desde o século XIX. Enquanto naquela época o estudo autodidata era o principal caminho a ser percorrido, hoje encontramos mais possibilidades! A partir do século XX, foram criadas as primeiras universidades no Brasil. Logo, as carreiras de pesquisas científi cas passaram a ser ofi cializadas, incluindo a disciplina da antropologia. Nesse sentido, Cordovil (2008) cita o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que teve importância na organização dos estudos antropológicos na Universidade de São Paulo (USP): As condições de vida e de trabalho do antropólogo o excluem fi sicamente do seu grupo durante longos períodos. Devido à violência das mudanças a que ele se expõe, adquire uma espécie de desapego crônico: nunca mais em nenhuma parte voltará a sentir-se em suacasa, fi cará psicologicamente mutilado. Como a matemática ou a música, a etnografi a constitui uma dessas raras vocações autênticas, alguém pode descobri-la em si mesmo, ainda que não lhe tenham ensinado (LÉVI-STRAUSS, 1996 apud CORDOVIL, 2008, p. 2). A passagem do texto de Lévi-Strauss mencionada traduz um pouco sobre o que os antropólogos passam ao longo de sua carreira, principalmente no caso daqueles que escolhem realizar etnografi as em regiões afastadas. Assim, os que optam por se aprofundar em caminhos como o da etnologia indígena, sabem que terão que lidar com algumas dessas difi culdades em sua formação. O antropólogo Nina Rodrigues, que já conhecemos anteriormente na nossa disciplina, foi um desses primeiros estudiosos de antropologia no Brasil. INTERESSANTE 123 De certo modo, podemos dizer que a formação em antropologia pressupõe algumas habilidades consideradas inatas, ou seja, aquelas que não podem ser adquiridas mediante os estudos, e outras habilidades que podem ser adquiridas mediante os estudos. Essas primeiras habilidades inatas estão relacionadas àquilo que Lévi-Strauss entende pelas vocações autênticas que alguém descobre em si mesmo sem que ninguém o tenha ensinado. Isso tem a ver com os processos psicológicos que as pessoas que realizam longas etnografi as em lugares afastados passam, como comenta o autor. Já as outras habilidades passam pelos estudos antropológicos e pelas teorias que fundamentam a disciplina, sendo que podem ser adquiridas pelas pessoas que tenham acesso a esse material com a capacidade necessária para sua compreensão. Especifi camente, na década de 1930, que a carreira em antropologia foi consolidada em nível institucional. No começo da difusão da disciplina, os primeiros estudiosos ainda costumavam buscar seus títulos acadêmicos em outros países que não no Brasil. Somente depois de 1965, ano que marcou o nascimento dos programas de pós-graduação no nosso país, os antropólogos brasileiros passaram a conseguir esses títulos sem precisarem ir ao exterior (CORDOVIL, 2008). Cordovil (2008) também comenta que o primeiro programa de pós-graduação em antropologia no Brasil foi criado em 1968 no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) exposto na imagem a seguir: Se quiser saber mais sobre o trabalho de Lévi-Strauss, que é uma das maiores referências para os antropólogos brasileiros, sugerimos que leia o texto Tristes Trópicos, no qual o autor relata sobre os indígenas do Brasil Central. Disponível em: https://docero.com.br/doc/8c8551. É importante termos em mente que a formação do antropólogo passa tanto pelo estudo qualitativo quanto pelo estudo quantitativo. Enquanto o estudo quantitativo tem a ver com cálculos matemáticos e estatísticas, o estudo qualitativo tem a ver com a análise de resultados individuais dos participantes da pesquisa de modo mais descritivo. DICA IMPORTANTE 124 FIGURA 1 – UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO FONTE: <https://bit.ly/3djzyks>. Acesso em: 16 jun. 2022 Depois, também foram criados os mestrados em antropologia na Universidade de Brasília (UnB) e na Universidade de Campinas (Unicamp) em 1972. FIGURA 2 – UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA FONTE: <https://bit.ly/3JEXrin>. Acesso em: 16 jun. 2022 FIGURA 3 – UNIVERSIDADE DE CAMPINAS FONTE: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Feq_unicamp.jpg>. Acesso em: 16 jun. 2022 125 Sobre a formação do antropólogo no Brasil, Cordovil (2008, p. 2-3) também aponta que: A criação destes programas chama atenção para o fato de que antes da antropologia ser percebida e ensinada como uma disciplina do curso de graduação em Ciências Sociais, a formação do Antropólogo foi vista como algo que se atingem apenas quando o estudante obtém o título de mestre. Tanto que para ingressar na Associação Brasileira de Antropologia, criada em 1952 é preciso ter, minimamente, o nível de mestre. Atualmente existem 16 programas de pós-graduação em antropologia em todo o Brasil e são formados anualmente centenas de mestres e doutores em antropologia. O modelo de formação de antropólogos em nível de pós-graduação destina-se à formação de quadros intelectuais capacitados para a pesquisa e ensino, portanto, é natural que o processo seja lento e desgastante. No seu início, na década de 1970 e 80, levava-se em média 4 anos para concluir o mestrado e 6 para finalizar o doutorado. Atualmente, depois de um intenso esforço das agências de fomento esse tempo vem baixando para 2 anos, o mestrado, e 4 anos o doutorado, sob protestos de discentes e professores. Em suma, podemos concluir que a formação do antropólogo depende de uma formação teórica aprofundada que normalmente é alcançada em nível de mestrado. Já a formação posterior seria em nível de doutorado, no qual o estudioso vivencia a metodologia antropológica na prática em sua própria pesquisa. Nas palavras da autora: É consenso entre os docentes de antropologia que para se tornar antropólogo é preciso passar por um intenso período de formação teórica, geralmente obtida durante o mestrado, onde o estudante deve ter contanto com o maior número possível de monografias clássicas, as chamadas etnografias, e conhecer as diferentes escolas da antropologia. Diferente da sociologia, que reconhece unanimemente seus três pais fundadores, os antropólogos possuem uma variedade de contribuições de diferentes escolas, cada uma com seus autores de referência. Para conhecer cada uma delas é preciso que o aspirante a antropólogo tome contato com as etnografias produzidas por essas escolas e de certa forma visite através da leitura seus diferentes campos etnográficos. Reconhece-se que só lendo etnografia será possível realizar uma boa etnografia. A outra parte da formação do antropólogo, posta em prática geralmente em nível de doutorado, é quando ele realiza seu próprio trabalho de campo e vivencia todos os dilemas metodológicos da antropologia, produzindo finalmente sua própria pesquisa. Este modelo clássico de formação de certa forma é transposto em miniatura na formação do graduado, que vem a cursar as universidades onde existe uma habilitação em antropologia dentro do curso de ciências sociais... (CORDOVIL, 2008, 4-5). Assim, retomando o que comentamos no início desse tópico, para pensarmos na formação tradicional de um antropólogo, é inevitável pensarmos também no trajeto da graduação e da pós-graduação, tendo em vista mestrado e doutorado. 126 3 O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO EM CAMPO De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira (1996), o trabalho do antropólogo consiste, sobretudo, em três atos: olhar, ouvir e escrever. No que diz respeito ao trabalho do antropólogo em campo em especial, podemos considerar que os atos mais preliminares são o olhar e o ouvir! Ora, vamos entender isso melhor. Conforme aponta Cardoso de Oliveira (1996), a primeira experiência do antropólogo quando realiza sua pesquisa de campo é olhar. Os profi ssionais dessa área que estudaram as teorias antropológicas chegam em campo carregados de conceitos que moldam o modo de olhar para seus objetos de pesquisa. Nas palavras de Cardoso de Oliveira (1996, p. 16): Imaginemos um antropólogo iniciando uma pesquisa junto a um deter- minado grupo indígena e entrando numa maloca, uma moradia de uma ou mais dezenas de indivíduos, sem ainda conhecer uma palavra do idioma nativo. Essa moradia de tão amplas proporções e de estilo tão peculiar, como, por exemplo, as tradicionais casas coletivas dos antigos Tükúna do Alto Solimões, no Amazonas, teria o seu interior imediatamente vasculhado pelo “Olhar etnográfi co”, por meio do qual toda a teoria que a disciplina dispõe relativamente às residências indígenas passaria a ser instrumentalizada pelo pesquisador, isto é, por ele referida. Nesse sentido, o interior da maloca não seria visto com ingenuidade, como uma mera curiosidade diante do exótico, porém com um olhar devidamente sensibiliza- O ato de escrever, que também faz parte do trabalhode campo, como podemos observar nos chamados “diários de campo” dos antropólogos, pode ser considerado um ato seguinte ao olhar e ouvir. Para fi ns de organização, pensaremos mais a respeito desse ato de escrever no tópico seguinte quando tratarmos do trabalho do antropólogo no gabinete. O termo “objetos de pesquisa” para se referir aos povos afastados pelos antropólogos merece uma ressalva: apesar de serem nomeados como “objetos”, precisamos ter em mente que são pessoas e grupos vivos que possuem seus modos de viver particulares e devem ser tratados com respeito e não somente como “objetos” de estudo! ESTUDOS FUTUROS NOTA 127 do pela teoria disponível. Tendo por base essa teoria, o observador bem preparado, enquanto etnólogo, iria olhá-la como um objeto de investigação previamente já construído por ele, pelo menos numa primeira prefiguração: passaria, então, a contar os fogos (pequenas cozinhas primitivas), cujos resíduos de cinza e carvão indicariam que em torno de cada um deles estiveram reunidos não apenas indivíduos, porém “pessoas”, portanto “seres sociais”, membros de um único “grupo doméstico”; o que lhe daria a informação subsidiária que pelo menos nessa maloca, de conformidade com o número de fogos, estaria abrigada uma certa porção de grupos domésticos, formados por uma ou mais famílias elementares e, eventualmente, de indivíduos “agregados” (originários de outro grupo tribal). Saberia, igualmente, a totalidade dos moradores (ou quase) contando as redes dependuradas nos mourões da maloca dos membros de cada grupo doméstico. Observaria, também, as características arquitetônicas da maloca, classificando-a segundo uma tipologia de alcance planetário sobre estilos de residências, ensinada pela literatura etnológica existente. Esse exemplo tratado pelo autor nos mostra bem como seria o ato de olhar realizado pela pesquisadora ou pelo pesquisador. Em poucas palavras, quando um antropólogo chega em campo, ele passa a observar por meio do olhar tudo que o cerca, nos mínimos detalhes, sendo que esse é o ponto de partida para qualquer trabalho de campo! Além disso, considerando que existem inúmeros escritos antropológicos, é comum que os pesquisadores que chegam a campo já tenham estudado previamente sobre o grupo que é seu objeto de estudo. Dessa forma, os pesquisadores ainda podem comparar o que estudaram sobre o grupo e o que estão vendo naquela realidade particular, marcando as similaridades, diferenças e mudanças que o grupo sofreu ao longo do tempo. Depois dessas primeiras observações em silêncio, os antropólogos costumam recorrer ao segundo ato apontado por Cardoso de Oliveira (1996), que é o ouvir. Contudo, é quase impossível dissociar o ato do ver ao ato de ouvir, pois ambos andam lado a lado na pesquisa de campo. De certo modo, o ato de ouvir complementa o ato de ver! Quando o ato de olhar não é mais suficiente para chegar a conclusões, o ato de ouvir é capaz de dar mais sentido às práticas observadas na medida em que os nativos oferecem explicações. Assim, o ato de ouvir está baseado, sobretudo, na prática de realizar entrevistas. Nas palavras de Cardoso de Oliveira (1996, p. 19): Imaginemos uma entrevista por meio da qual o pesquisador sempre pode obter informações não alcançáveis pela estrita observação. Sabemos que autores como Radcliffe-Brown sempre recomendaram a observação de rituais para estudarmos sistemas religiosos. Para ele, "no empenho de compreender uma religião devemos primeiro concentrar atenção mais nos ritos que nas crenças" (Radcliffe- Brown, 1973). O que significa dizer que a religião podia ser mais 128 rigorosamente observável na conduta ritual por ser ela "o elemento mais estável e duradouro" se a compararmos com as crenças. Porém isso não quer dizer que mesmo essa conduta, sem as idéias que a sustentam, jamais poderia ser inteiramente compreendida. Descrito o ritual, por meio do Olhar e do Ouvir (suas músicas e seus cantos), faltava-lhe a plena compreensão de seu "sentido" para o povo que o realizava e a sua "significação" para o antropólogo que o observava em toda sua exterioridade. Por isso, a obtenção de explicações, dada pelos próprios membros da comunidade investigada, permitiria se chegar àquilo que os antropólogos chamam de "modelo nativo", matéria-prima para o entendi- mento antropológico. Tais explicações nativas só poderiam ser obtidas por meio da "entrevista", portanto, de um Ouvir todo especial. Mas, para isso, há de se saber Ouvir. Ainda de acordo com Cardoso de Oliveira (1996), o ato de ouvir está diretamente relacionado ao método de pesquisa antropológico, conhecido como observação participante. A partir desse método, o antropólogo passa a participar ativamente da realidade do grupo em questão de modo que podem interagir “de igual para igual” com aquele povo e assim obter conclusões mais assertivas. 4 O TRABALHO DO ANTROPÓLOGO NO GABINETE Depois de entendermos mais sobre o trabalho do antropólogo em campo, que é marca da tradição antropológica, vamos pensar sobre o trabalho do antropólogo no chamado gabinete. Roberto Cardoso de Oliveira (1996) comenta que os atos de olhar e ouvir que vimos no item anterior compõem, sobretudo, o trabalho de campo. Já o ato de escrever, que corresponde ao produto final do trabalho de campo, é a etapa final do fazer antropológico segundo o autor. Cardoso de Oliveira (1996) cita o importante antropólogo estadunidense Clifford James Geertz para tratar dessa etapa final. Geertz dividiu duas etapas da investigação antropológica, sendo a primeira entendida como um “estando lá” e a segunda, como um “estando aqui”. Ou seja, esse “estando lá” diz respeito ao trabalho de campo propriamente dito, e esse “estando aqui” é exatamente a experiência do gabinete. Se quiser saber mais sobre o trabalho de Geertz nesse sentido, o que é uma grande referência para os feitos da antropologia brasileira, sugerimos que leia seu texto intitulado Trabalhos e vidas: o antropólogo como autor. Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/1364. DICA 129 Vamos ver como Cardoso de Oliveira (1996, p. 22) trata o tema em suas palavras: Mas se o Olhar e o Ouvir podem ser considerados como os atos cognitivos mais preliminares no trabalho de campo (trabalho que os antropólogos se acostumaram a se valer da expressão inglesa fieldwork para denominá-lo), é seguramente no ato de Escrever, portanto na configuração final do produto desse trabalho, que a questão do conhecimento se torna tanto ou mais crítica. Um livro relativamente recente de Clifford Geertz, Trabalhos e vidas: o antropólogo como autor, infelizmente, ao que eu saiba, ainda não traduzido para o português, oferece importantes pistas para desenvolvermos esse tema. Geertz parte da ideia de separar e, naturalmente, avaliar, duas etapas bem distintas na investigação empírica: a primeira, que ele procura qualificar como a do antropólogo "estando lá" (being there), isto é, vivendo a situação de estar no campo; e a segunda, que se seguiria àquela, corresponderia à experiência de viver, melhor dizendo, trabalhar "estando aqui" (being here), a saber, bem instalado em seu gabinete urbano, gozando o convívio com seus colegas e usufruindo tudo o que as instituições universitárias e de pesquisa podem oferecer. Nesses termos, o Olhar e o Ouvir seriam parte da primeira etapa, enquanto o Escrever seria parte inerente da segunda. Como comentamos no item anterior, também é comum que os antropólogos tenham o chamado “diário de campo” para fazerem suas anotações no ambiente do campo. Depois dos atos de ver e ouvir, ou seja, depois das observações obtidas a partir da visão e das conversas e entrevistas realizadas com os interlocutores em campo, os pesquisadores escrevem as informações obtidas nos seus diários de campo. FIGURA 4 – PESSOA ESCREVENDO EM DIÁRIO FONTE: <https://bit.ly/3zJ6WIG>. Acesso em: 16 jun. 2022 Logo, a produção do diário de campo também faz parte do ato deescrever. Contudo, o ato de escrever o trabalho final a partir do que foi experimentado em campo, é um ato próprio do que Cardoso de Oliveira (1996) entende pelo gabinete! Nas palavras de Cardoso de Oliveira (1996, p. 22-23): 130 Devemos entender, assim, por Escrever o ato exercitado por excelência no gabinete, cujas características o singularizam de forma marcante, sobretudo quando o compararmos com o que se escreve no campo, seja ao fazermos nosso diário, seja nas anotações que rabiscamos em nossas cadernetas. E se tomarmos ainda Geertz por referência vemos que, na maneira pela qual ele encaminha suas reflexões, é o Escreve aqui", portanto fora da situação de campo, que cumpre sua mais alta função cognitiva. Por quê? Devido ao fato de iniciarmos propriamente no gabinete o processo de textualização dos fenómenos socioculturais observados "estando lá". Já as condições de textualização, i.e., de trazer os fatos observados (vistos e ouvidos) para o plano do discurso, não deixam de ser muito particulares e exercem, por sua vez, um papel definitivo tanto no processo de comunicação interpares (i.e., no seio da comunidade profissional), quanto no de conhecimento propriamente dito. Mesmo porque há uma relação dialética entre o comunicar e o conhecer, uma vez que ambos partilham de uma mesma condição: a que é dada pela linguagem. Embora essa linguagem seja importante em si mesma, como tema de reflexão, haja vista aquilo que poderíamos chamar de "guinada lingüística" (ou linguistics turn), que perpassa atualmente tanto a filosofia como as ciências sociais, o aspecto que desejo tratar aqui, se bem que de modo muito sucinto, é unicamente o da disciplina e de seu próprio idioma, por meio do qual os que exercitam a antropologia (ou, mesmo, qualquer outra ciência social) pensam e se comunicam. Alguém já escreveu que o homem não pensa sozinho, num monólogo solitário, mas o faz socialmente, no interior de uma "comunidade de comunicação" e "de argumentação"(Apel, 1985). Ele está, portanto, contido no espaço interno de um horizonte socialmente construído (no caso o da sua própria sociedade e/ou de sua comunidade profissional). Desculpando-me pela imprecisão da analogia, diria que ele se pensa no interior de uma "representação coletiva": expressão essa, afinal, bem familiar ao cientista social e que, de certo modo, dá uma ideia aproximada daquilo que entendo por "idioma" de uma disciplina. Diante disso, também vale mantermos em mente a relação entre a escrita antropológica e a autoridade do antropólogo. A escrita antropológica sempre é feita a partir de um ponto de vista, ou melhor, a partir do ponto de vista do antropólogo que está escrevendo. Isso pressupõe uma espécie de autoridade por parte desse pesquisador, na medida em que a escrita vem carregada de conceitos próprios da antropologia e da visão de mundo do próprio autor. Portanto, podemos afirmar que um escrito antropológico, apesar de estar baseado em uma metodologia científica, nunca é neutro! 131 RESUMO DO TÓPICO 1 Neste tópico, você aprendeu: • A formação em antropologia no Brasil começou a partir do século XX, com a criação das primeiras universidades no país. • O trabalho do antropólogo pode ser resumido em olhar, ouvir e escrever. • O ato de olhar antropologicamente consiste na observação dos elementos do grupo social que é objeto de estudo. • O ato de ouvir antropologicamente consiste na realização de conversas e entrevistas com os interlocutores do grupo social que é objeto de estudo. • O ato de escrever antropologicamente é o modo pelo qual o antropólogo sistematiza o material recolhido em campo e é algo feito no “gabinete”. 132 AUTOATIVIDADE 1 Para pensarmos a respeito da formação em antropologia no Brasil, é inevitável percorrermos um caminho histórico que conta com a criação das primeiras universidades até a criação dos primeiros cursos de pós-graduação na área. Tendo em vista esse contexto em nosso país, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) Até o final do século XX, os estudiosos de antropologia no Brasil eram autodidatas. b) ( ) O primeiro programa de pós-graduação em antropologia no Brasil foi criado na década de 1960. c) ( ) A Associação Brasileira de Antropologia foi criada na década de 1960. d) ( ) O mestrado em antropologia na Universidade de Brasília foi criado na década de 1980. 2 O trabalho do antropólogo pode ser compreendido pela experiência de campo e pelo trabalho realizado depois do campo, que está voltado para a sistematização do trabalho na forma do escrito antropológico. Com base nessas etapas do trabalho do antropólogo, analise as sentenças a seguir: I- O ato de olhar antropologicamente tem a ver com a observação do grupo estudado desde o contexto geral até os mínimos detalhes. II- O ato de escrever antropologicamente acontece, sobretudo, durante o trabalho de campo na forma de diário. III- O ato de ouvir antropologicamente se dá por meio de entrevistas com o grupo estudado. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 Os estudantes interessados nos saberes antropológicos podem recorrer aos cursos de graduação em Antropologia e em Ciências Sociais. As universidades públicas e particulares do Brasil oferecem essas oportunidades, sendo que estão espalhadas pelas regiões do nosso país. Sobre as regiões que disponibilizam a graduação nessas áreas, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: 133 ( ) As principais Universidades para cursar a graduação em Antropologia no sudeste do Brasil são a UFF, a UFMG e a UFSCar. ( ) A região norte do Brasil não oferece possibilidade de graduação em Antropologia em suas Universidades. ( ) As principais universidades que oferecem cursos de graduação em Ciências Sociais no Brasil estão localizadas na região sudeste. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 O antropólogo brasileiro Roberto Cardoso de Oliveira tratou os atos mais preliminares do trabalho do antropólogo em campo, que são olhar e ouvir. Tendo em vista esses dois atos, disserte sobre como eles podem ser utilizados para a pesquisa antropológica a partir do conhecimento do autor mencionado. 5 De acordo com Roberto Cardoso de Oliveira, o ato de escrever é algo que acontece, sobretudo, depois da pesquisa realizada em campo. Nesse contexto, disserte sobre os fundamentos da escrita antropológica a partir do pensamento desse autor. 134 135 TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL I: GLOBALIZAÇÃO CULTURAL 1 INTRODUÇÃO No Tópico 2, nós abordaremos alguns conceitos atuais fundamentais para os pensadores da antropologia brasileira. Partiremos da noção de globalização no seu sentido amplo para depois pensarmos nas questões de globalização cultural. Depois, voltaremos nossa atenção para os estudos relacionados à modernidade e à pós-modernidade. Esse campo do conhecimento tem a ver principalmente com o estudo das consequências do capitalismo. Em seguida, vamos entender um pouco sobre o multiculturalismo, tendo em vista a diversidade cultural e étnica do Brasil. Entenderemos como o multiculturalismo pode ser considerado uma consequência da globalização e por que isso é importante para a luta pela igualdade na sociedade. 2 O QUE É GLOBALIZAÇÃO CULTURAL? FIGURA 5 – BANDEIRAS FONTE: <https://bit.ly/3Quslwc>. Acesso em: 16 jun. 2022. UNIDADE 3 TÓPICO 2 - 136 Depois de aprendermos mais a respeito da formação e do trabalho das antropólogas e dos antropólogos brasileiros, agora vamos entender mais sobre o conceito de globalização cultural! Antes de qualquer coisa, para ficar claro o que é a globalização cultural, vamos pensar mais a respeito do próprio conceito de globalização. De acordo com o pesquisadorbrasileiro Gustavo Lins Ribeiro (2011), existem diversos pensamentos antropológicos a respeito do conceito de globalização. Assim, a preocupação de Ribeiro foi reunir essas perspectivas em torno do que ele chama de uma Antropologia da Globalização. Vamos nos apoiar no trajeto desse pesquisador para compreender o tema! De acordo com Ribeiro (2011), existem duas definições básicas sobre o conceito de globalização. A primeira definição tem a ver com a ampliação na circulação de coisas, pessoas e informações numa escala global. Nas palavras do autor: Primeiramente, penso a globalização como o aumento da circulação de coisas, pessoas e informações em escala global. Estas diferenciações são apenas analíticas. Muitas vezes as pessoas, coisas e informações viajam juntas. Quero frisar que se trata de um aumento, isto é, do incremento de vários processos que já existiam. Assim, evita-se o primeiro, e talvez o mais primário, erro sobre a globalização: considerá-la um processo que só existe a partir do final do século XX. Na verdade, sem uma longa história de expansão capitalista, algo que já havia sido indicado por Marx quando afirmava que o horizonte do capital era o mundo, não existiria aquilo que, ironicamente, denominei de “globalização realmente existente” para me referir à existência, pós-queda do muro de Berlin (1989), de um “capitalismo triunfante” sem barreiras e englobador de novos mercados e territórios) (RIBEIRO, 2011, p. 7). FIGURA 6 – REDE ENTRE PAÍSES FONTE: <https://bit.ly/3vMCb4k>. Acesso em: 16 jun. 2022. 137 Já a segunda defi nição do conceito de globalização tratado pelo está relacionado com uma verdadeira mistura das relações entre os lugares do mundo. Nas palavras de Ribeiro (2011, p. 7): A segunda defi nição de globalização relaciona-se com o reembaralhamento das relações entre lugares. Globalização é o aumento da infl uência do que não está aqui, aqui. Tal concepção, ao mesmo tempo em que permite pensar o presente, mantém seu caráter processual (estamos falando, de novo, do aumento de intensidade de um processo) levando a considerar a história das diferentes relações entre o próximo e o distante, entre “nosotros” e “los otros”, fórmula que fi ca muito mais clara em espanhol. Por exemplo, uma coisa eram os processos de mudanças econômicas, políticas, tecnológicas, culturais e lingüísticas, causados pelo comércio de longa distância estudado, digamos, pelos arqueólogos no México pré-colombiano. Outra coisa são os fenômenos similares, hoje, em um mundo encolhido (Ibidem). Agora que entendemos mais sobre a globalização em si, vamos, enfi m, pensar sobre a globalização cultural. Em poucas palavras, a globalização cultural tem a ver com a infl uência da globalização sobre as culturas dos povos espalhados pelo globo. Tomando a primeira defi nição de globalização consolidada por Ribeiro (2011), podemos pensar antropologicamente a globalização, tendo em vista a circulação de coisas, pessoas e informações. No que diz respeito ao aumento da circulação de coisas, Ribeiro (2011) comenta sobre a importância do mercado mundial como sendo o maior cenário para isso. De acordo com o autor, o mercado é o lugar próprio para a conexão entre diferentes A ideia de globalização, que gira em torno da raiz global, será importante para entender a respeito do multiculturalismo adiante. Um texto muito importante com relação ao tema da globalização cultural, que serve de referência para as antropólogas e os antropólogos brasileiros, é intitulado Dimensões culturais da globalização, escrito pelo antropólogo indiano Arjun Appadurai. Caso queira se aprofundar mais no tema, sugerimos essa leitura! Disponível em: https://docero.com.br/doc/excexve. ESTUDOS FUTUROS DICA 138 “grupos étnicos, zonas ecológicas e locais de produção” (RIBEIRO, 2011, p. 12) a partir das mercadorias de troca. Esse fenômeno, por sua vez, é uma marca do capitalismo contemporâneo. Conforme comenta o autor: No que diz respeito ao incremento da circulação de objetos na era da globalização, quis evitar realizar apenas uma etnografia da disseminação de novos hábitos e itens de consumo. A pesquisa etnográfica que propus, além de considerar este tópico, fazia-me recordar diversas contribuições da antropologia brasileira relativas à análise de mercados informais de trabalho, feiras, cultura e economia popular (veja-se, por exemplo, Machado da Silva, 1971; Garcia, 1984). Além disto, permitia retomar uma interface mais concreta e clássica com a antropologia urbana através de diferentes vieses (estudos de territórios urbanos, de categorias específicas de trabalhadores, da dinâmica de sua economia), só que, desta vez, levando em consideração o processo de globalização. Foi possível, então, lançar luz sobre os processos de criação de um emergente pequeno empresariado a partir de camadas populares, de comerciantes seminômades modernos que manipulam os desejos de consumo e as possibilidades de comercialização dos objetos e bugigangas que simbolizam a modernidade para consumidores de classe média. Revelaria, assim, uma poderosa e importante manipulação popular das forças econômicas da globalização e difusão de mercadorias a nível mundial (RIBEIRO, 2011, p. 13). Nesse sentido, o importante geógrafo brasileiro Milton Santos (2010, p. 143-144, amplamente citado por antropólogos, também pontua que: Sem dúvida, o mercado vai impondo, com maior ou menor força, aqui e ali, elementos mais ou menos maciços da cultura de massa, indispensável, como ela é ao reino do mercado, e a expansão paralela das formas de globalização econômica, financeira técnica e cultural. Essa conquista, mais ou menos eficaz segundo os lugares e as sociedades, jamais é completa, pois encontra a resistência da cultura preexistente. Constituem-se, assim formas mistas sincréticas, entre as quais, oferecida como espetáculo, uma cultura popular domesticada associando a um fundo genuíno de formas exóticas que incluem novas técnicas. Já sobre a circulação de pessoas em nível da globalização cultural, Ribeiro (2011) entende que é preciso levar em consideração principalmente as migrações internacionais. O final do século XIX e início do século XX marcaram grandes níveis de migração em nível global, o que o autor vê como um “encolhimento do mundo”. Essas migrações permitem repensar as identidades sociais e étnicas, ou seja, permitem repensar elementos fundamentais da cultura em termos de globalização. Ribeiro (2011, p. 16) cita o exemplo dos bichos de obra para pensar nesse tema: 139 De fato, o estudo de migrações internacionais provê cenários interessantes para pensar e repensar as teorias sobre identidades sociais e étnicas. O estudo dos bichos de obra, em particular, provou-se altamente profícuo. Eram pessoas expostas, ao longo de toda a sua vida laboral, aos interesses e efeitos do capitalismo transnacional. No caso concreto de Yacyretá, a segmentação étnica do mercado de trabalho estava estruturada de tal forma que no topo da pirâmide encontravam-se italianos que trabalhavam para a empreiteira principal, responsável pela execução da obra. As grandes empresas transnacionais da construção civil possuem obras em desenvolvimento em diferentes países do mundo. Os seus trabalhadores, sobretudo os técnicos especializados, são transferidos de obra em obra em escala global. O conjunto das obras conforma os circuitos migratórios dos grandes projetos. Os bichos de obra são pessoas que entram no circuito migratório dos grandes projetos e nele passam a viver permanentemente durante sua vida de trabalho ativo. Mais ainda, como encontrei entre os trabalhadores especializados de origem italiana casos de até terceira geração de pessoas que vivem permanentemente vinculadas aos circuitos migratórios dos grandes projetos em escala mundial, considerei como o bicho de obra arquetípico a pessoa nascida e criada em acampamentos de grandes obras pelo mundo afora e que assume estes circuitos eacampamentos como definidores de suas identidades. Por fim, Ribeiro (2011) relaciona o aumento da circulação de informações aos cenários dos direitos humanos, do desenvolvimento e da diversidade cultural. Nesse sentido, a globalização possui uma influência sobre os discursos globais de modo que conecta as questões particulares a questões universais. Segundo o autor, essas questões podem então ser negociadas democraticamente e provocam uma série de novos conceitos. Nas palavras de Ribeiro (2011, p. 20-21): Este exercício serviu de ponte para explorar as relações entre diversidade cultural e outro discurso global, o do Patrimônio Cultural da Humanidade. A definição de Patrimônio Cultural da Humanidade depende do que se entenda por “valor universal excepcional”. “Valor universal excepcional” define o quê (na verdade quem) é universal e merece ser parte do patrimônio mundial, isto é, o quê/ quem transcende os confins de uma localidade e é capaz de ser admirado por outros em uma economia simbólica global. Valor universal excepcional é mais um exemplo da força ilocucionária de alguns discursos. Cria reconhecimento em uma época na qual abundam demandas por reconhecimento. As discussões sobre “valor universal excepcional” não podem ser reduzidas à luta para controlar uma definição abstrata, sem impacto, de universalidade. Ao contrário, “valor universal excepcional” tornou-se uma questão a ser debatida graças à sua força ilocucionária. É, na verdade, um artefato taxonômico e artefatos taxonômicos, em geral, provocam efeitos de poder que estruturam relações entre distintos atores coletivos. É também um significante vazio e flutuante (Lévi-Strauss, 1973; Laclau, 1994). Como não pode ser definido, a sua força ilocucionária torna-se mais importante do que o seu significado. Finalmente, a noção de “valor universal excepcional” congrega elites profissionais e políticas, nacionais e transnacionais, ao redor de discursos sobre que símbolos de identidades coletivas são mais legítimos para serem disseminados em fluxos simbólicos nacionais e globais nos quais abundam discursos globais sobre diversidade cultural. 140 3 MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE FIGURA 7 – VIADUTO EM SÃO PAULO FONTE: <https://bit.ly/3BKtYBI>. Acesso em: 16 jun. 2022. Além da noção de globalização, também é importante entendermos mais sobre o que significam os conceitos de modernidade e pós-modernidade. Em primeiro lugar, devemos ter em mente que a modernidade foi marcada pelo surgimento do Iluminismo na Europa nos meados do século XVIII. Portanto, a modernidade possui uma relação direta com o crescimento do sistema capitalista em termos globais (ARAÚJO, 2007). Tendo em vista que a modernidade nasceu com o Iluminismo, ela também é fortemente marcada por uma era em que a razão é valorizada. O pesquisador brasileiro José William Corrêa de Araújo (2007, p. 26-27) resume bem essa época nos seguintes termos: Modernidade é sinônimo de sociedade moderna ou civilização industrial e está associada a um conjunto de atitudes perante o mundo, como a ideia de que o mundo é passível de transformação pela intervenção humana; um complexo de instituições econômicas, em especial a produção industrial e a economia de mercado; toda uma gama de instituições políticas, como o Estado nacional e a democracia de massa; a primazia e a centralidade do indivíduo e não, do grupo como sujeito de direitos e de decisões; o primado da subjetividade; o pluralismo e a ideologia; a concepção linear de história; a realimentação mútua entre ciência e tecnologia, com a hegemonia de sua racionalidade própria; o predomínio cada vez maior do simbolismo formal de cunho numérico-matemático (informática); a pesquisa e industrialização em níveis diversos de qualidade técnica (transformadora, inovadora, criadora); a burocratização e a organização política da sociedade. 141 Já a pós-modernidade é uma época que surgiu como uma superação da modernidade. Ela veio para mostrar que ideais modernos tais como a razão, o progresso, o nacionalismo, o capitalismo e mesmo o socialismo seriam fracassados e tenta romper com tudo isso. Contudo, precisamos saber que o conceito de pós-modernidade não é tão rígido e é mais difícil de ser defi nido com precisão, sendo até mesmo considerado um conceito fl uido (ARAÚJO, 2007). Nesse contexto, o século XX marcou o declínio da modernidade e a chegada da pós-modernidade. Acontecimentos globais como o nazismo na Europa mostraram que os ideais modernos eram fracassados! Nas palavras de Araújo (2007, p. 71-72): A Pós-Modernidade expressa o fracasso do Iluminismo racionalista moderno, que levou o mundo às grandes ideologias de esquerda e de direita, as quais quiseram, cada uma a seu modo, coagir toda humanidade a aceitar suas “luzes”, mesmo com violências, holocaustos e desumanidades. O século XX é o século do declínio da Modernidade, mesmo sendo o das conquistas da técnica. Nele, presenciou-se as violências extremas do nazifascismo, do comunismo e mesmo do capitalismo liberal, o qual impôs a pobreza e a miséria a centenas de milhões de pessoas pelo mundo afora. Diante do fracasso dessas grandes ideologias, surge o agnosticismo desencantado, sem arroubos por verdades absolutas e universais. Este, se adapta bem ao pluralismo e ao individualismo vigentes FONTE: <https://bit.ly/3QjPDES>. Acesso em: 10 mar. 2022. FIGURA 8 – INDÚSTRIAS A ideia de modernidade será importante para entender a relação entre o multiculturalismo nas sociedades modernas no próximo item dos nossos estudos. ESTUDOS FUTUROS 142 na grande sociedade, ao hedonismo do prazer imediato e fácil, ao permissivismo comportamental e ético, e ao consumismo oferecido pela nova ordem econômica mundial fundada na hegemonia do livre mercado globalizado. Enquanto a modernidade era marcada pelo capitalismo e pela produção de mercadorias em massa, podemos dizer que a pós-modernidade é marcada pelo aumento dos meios de comunicação de massa. Assim, elementos como a internet foram intensificados e até mesmo passaram a contribuir para as demandas de consumo de mercadorias na forma de propagandas. E não só mercadorias, mas a publicidade da mídia passou a oferecer não somente mercadorias, mas também elementos culturais como política e religião! “’Poder consumir’ acaba sendo traduzido como sinônimo de participação, inserção social e até exercício de cidadania” (ARAÚJO, 2007, P. 49). FIGURA 9 – CONSUMO Confira o quadro a seguir para organizarmos visualmente as diferenças entre a modernidade e a pós-modernidade: FONTE: <https://bit.ly/3QxW5bv>. Acesso em: 16 jun. 2022. O sociólogo francês Michel Maffesoli (apud VIEIRA, 2014), professor da Universidade de Sorbonne, afirma que o Brasil é um “laboratório da pós- modernidade”. De acordo com o autor, nosso país seria dotado de uma criatividade da juventude brasileira, um foco no presente e uma rejeição ao individualismo que seriam próprios dessa era pós-moderna! INTERESSANTE 143 Por fim, sugerimos a leitura do texto Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade, escrito pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini, que é uma grande referência para os antropólogos brasileiros. FONTE: CANCLINI, N. G. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. DICA QUADRO 1 – DIFERENÇAS ENTRE MODERNIDADE E PÓS-MODERNIDADE FONTE: <https://images.app.goo.gl/PfNKmU7Syp4LN3m28>. Acesso em: 10 mar. 2022 Modernidade Pós-modernidade Redes de percepção e conhecimento Imprensa Audiovisual Figura do tempo Linha (história e progresso) Ponto (atualidade e acontecimento) Idade canônica O adulto O jovem Paradigma de atração Logos (utopias, sistemas e programas) Imago (afetos e fantasmas) Símbolo Sistemas (ideologias) Modelos (tecnologia) Classe espiritual (detentora do sagrado social) Inteligência laica (professores e doutores) O conhecimento Mídia(difusores e produtores) A informação Referência legítima O ideal (é necessário, é verdade) A performance (é necessário, funciona) Motor de obediência A lei (dogmatismo) A opinião (relativismo) Meio normal de influência A publicação A aparição Estatuto do indivíduo Cidadão (a convencer) Consumidor (a seduzir) Meio de identificação O herói A “star” Dicção da autoridade Li no livro (verdade como palavra impressa) Vi na TV (verdade como uma imagem direta) Regime de autoridade simbólica O legível (o fundamento ou a verdade lógica) O visível (o acontecimento ou o verossímil) Unidade de direção social O teórico ou o chefe (princípio ideológico) O aritmético ou o líder (princípio estatístico) Centro de gravidade subjetiva A consciência O corpo 144 4 MULTICULTURALISMO FIGURA 10 – MULTICULTURALISMO FONTE: <https://bit.ly/3A5ka3S>. Acesso em: 10 mar. 2022. Agora que entendemos um pouco mais sobre a globalização, a globalização cultural, a modernidade e a pós-modernidade, podemos pensar a respeito do conceito de multiculturalismo. Em termos gerais, o multiculturalismo tem a ver com uma espécie de fusão entre as culturas que passaram a ter mais contato a partir da segunda metade do século XX. A questão política que gira em torno do multiculturalismo é a justiça social e a luta pela conquista de direitos para os grupos sociais considerados desprivilegiados (MELO, 2015). Ora, a justiça social e a luta por direitos, sejam eles sociais, políticos, econômicos e mesmo culturais, fazem parte de uma luta maior pela igualdade. De acordo com o importante sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, amplamente utilizado como referência para os antropólogos brasileiros, o multiculturalismo significa “a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio de sociedades ‘modernas’” (SANTOS; NUNES, 2003, p. 26). Vamos ver o que aponta a pesquisadora brasileira Carolina Giordani Kretzmann (2017, p. 14-15), estudiosa de Boaventura de Souza Santos: Conforme Boaventura de Souza Santos e João Arriscado Nunes (2003), multiculturalismo, justiça multicultural, cidadanias plurais e direitos coletivos são algumas das expressões que definem as tensões entre o reconhecimento da diferença e a realização da igualdade, que estão no centro de lutas emancipatórias de movimentos e grupos que reivindicam um novo ideal de cidadania e 145 Tendo em vista o contexto da globalização, da modernidade e da pós- modernidade apresentado anteriormente, podemos afirmar que o multiculturalismo se encontra presente em todos os países que possuem algumas características específicas. De acordo com Kretzmann, essas características seriam elencadas “por instituições democráticas, por uma população heterogênea e por uma economia pós-industrial em vias de globalização” (KRETZMANN, 2017, p. 15). FONTE: <https://bit.ly/3Q9LpzY>. Acesso em: 16 jun. 2022. a construção de um multiculturalismo emancipatório. Diante dessa tensão, questionam os autores: Como é possível, ao mesmo tempo, exigir que seja reconhecida a diferença, tal como ela se constituiu através da história, e exigir que os “outros” nos olhem como iguais e reconheçam em nós mesmos direitos de que são titulares? Esse questionamento citado por Kretzmann nos faz retornar ao que foi mencionado sobre a coexistência de diferentes culturas nas sociedades modernas. Assim como o conceito de pós-modernidade, o conceito de multiculturalismo também apresenta suas dificuldades na hora de ser definido. Contudo, a autora afirma que o multiculturalismo passou a ser um conceito usado para “descrever as diferenças culturais em um contexto transnacional e global” (KRETZMANN, 2017, p. 15). FIGURA 11 – DIFERENÇAS RACIAIS Caso queira saber mais sobre a luta pela igualdade pautada no multiculturalismo, sugerimos a leitura do texto Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural, organizado por Boaventura de Sousa Santos. Disponível em: https://wandersoncmagalhaes.files.wordpress. com/2013/12/reconhecerparalibertar.pdf. Acesso em: 23 jun. 2022. DICA https://wandersoncmagalhaes.files.wordpress.com/2013/12/reconhecerparalibertar.pdf https://wandersoncmagalhaes.files.wordpress.com/2013/12/reconhecerparalibertar.pdf 146 Dada a globalização, muitos dos países espalhados pelo mundo são considerados multiculturais. Países como Canadá, México, Austrália, Brasil e mesmo países da Europa possuem lutas multiculturais em torno da luta pelos direitos dos grupos à margem da sociedade. Sobre os países americanos, Kretzmann (2017, p. 15-16) comenta que: A luta multicultural está enraizada no processo histórico de formação dos países americanos, que passaram por um processo de conquista e colonização, seguido de uma política de assimilação forçada e de eliminação da identidade dos povos que habitavam as terras “descobertas”. Após o desaparecimento de grande parte da população indígena brasileira e da verdadeira segregação dos povos e culturas ditas “diferentes”, surge a consciência de que deve haver o reconhecimento e o respeito a estes povos e às suas manifestações culturais. [...] Percebe-se então, já no princípio da história da colonização brasileira, a imposição e a opressão de uma cultura que se queria hegemônica, assentando e definindo os contornos do que hoje ainda persiste: a necessidade de afirmação étnica e cultural dos grupos formadores do povo brasileiro. Em resumo, o multiculturalismo está diretamente relacionado aos países americanos e, em especial, ao Brasil. Na citação, percebemos que a palavra “descobertas”, que se refere às terras colonizadas, está entre aspas e isso não é por acaso! No contexto do Brasil, os antropólogos ativistas lutam para que a ideia do descobrimento caia por terra. Isso porque, antes da chegada dos colonizadores, diversas etnias indígenas já habitavam o território. Assim, o multiculturalismo também versa sobre a afirmação étnica e cultural desses povos, como entendemos a partir da citação. FIGURA 12 – ALDEIA INDÍGENA FONTE: <https://bit.ly/3A6mCHj>. Acesso em: 16 jun. 2022. 147 Dentre esses países que possuem as características específicas do multiculturalismo que foram mencionadas, devemos destacar o nosso próprio país! O Brasil abrange uma enorme pluralidade cultural e étnica, como vimos ao longo de toda a nossa disciplina, e por isso podemos dizer que o Brasil é de fato multicultural. Além disso, como também já vimos, existem grupos sociais, como indígenas e quilombolas, que são inferiorizados perante a sociedade dominante e que reúnem inúmeras lutas pelo reconhecimento de seus direitos. Esse é um fenômeno próprio do multiculturalismo brasileiro. IMPORTANTE 148 RESUMO DO TÓPICO 2 Neste tópico, você aprendeu: • Existem duas definições principais sobre o conceito de globalização. • A primeira definição de globalização tem a ver com o aumento da circulação de coisas, pessoas e informações em escala global. • A segunda definição de globalização tem a ver com a mistura das relações entre os diversos locais do planeta. • A globalização cultural, por sua vez, está voltada para a influência da globalização sobre as culturas espalhadas pelo planeta. • A era da modernidade está relacionada à produção em massa (civilização industrial). • A era da pós-modernidade está relacionada à comunicação em massa. • O multiculturalismo faz parte da fusão entre as culturas espalhadas pelo mundo, que é uma consequência da globalização. • O multiculturalismo tem a ver com a luta pelo reconhecimento dos direitos das populações inferiorizadas na sociedade. 149 AUTOATIVIDADE 1 A modernidade é uma era que nasceu a partir do Iluminismo na Europa durante o século XVIII, marcando a primazia do pensamento racional. Sobre a modernidade no Brasil e no mundo, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) A modernidade pode ser considerada um sinônimo da civilização industrial regulada pela intervenção humana sobre o mundo. b) ( ) A modernidadeé marcada pela centralidade dos grupos sociais sobre o indivíduo. c) ( ) A modernidade tem a ver com a produção industrial, mas não com a economia de mercado. d) ( ) A modernidade veio antes da democracia e da instituição do Estado nacional. 2 Modernidade e pós-modernidade são termos diretamente relacionados. Podemos dizer que a pós-modernidade é uma era derivada da modernidade, que marcou uma espécie de transição do foco entre a produção de mercadorias para a produção da comunicação em massa. Com base nas definições dos conceitos de modernidade e pós-modernidade, analise as sentenças a seguir: I- Enquanto a modernidade é marcada pela imprensa, a pós-modernidade é marcada pelo audiovisual. II- O jovem é a idade canônica que marca a modernidade, e o adulto é a que marca a pós-modernidade. III- A modernidade está voltada para a história e o progresso enquanto a pós- modernidade está voltada para a atualidade pontual. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I e III estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 O Brasil possui características próprias da modernidade, como criatividade, foco no presente e rejeição ao individualismo. Por isso, nosso país é considerado um laboratório de pós-modernidade. Sobre as características que qualificam um país enquanto pós-modernos, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: 150 ( ) Uma frase comum que marca o contexto pós-moderno é a “eu vi na TV”, tomando a verdade como uma imagem direta. ( ) O contexto pós-moderno dá mais importância para o que é legível do que para o que é visível. ( ) O grande fluxo de informação disponibilizado na mídia é uma marca do contexto pós-moderno. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 O multiculturalismo está diretamente relacionado ao conceito de globalização na medida em que é uma consequência do estreitamento das fronteiras entre os países em nível global. Esse estreitamento permitiu uma espécie de fusão das culturas entre as nações. Nesse contexto, comente por que o Brasil pode ser considerado um exemplo de um país multicultural. 5 O conceito de globalização cultural é uma derivação do conceito de globalização na medida em que integra a influência da globalização sobre a diversidade cultural mundial. O pesquisador brasileiro Gustavo Lins Ribeiro explora duas definições sobre o conceito de globalização. Nesse contexto, disserte sobre os princípios que fundamentam essas duas definições. 151 TÓPICO 3 - TEMAS CONTEMPORÂNEOS DE ANTROPOLOGIA NO BRASIL II: ANTROPOCENO E BRASIL PÓS-PANDEMIA 1 INTRODUÇÃO No Tópico 3, nós abordaremos o conceito de Antropoceno. Esse é um tema que gera uma ampla discussão, pois coloca em xeque a época em que vivemos. Assim, tendo em vista a ação humana sobre o planeta como um todo, pensaremos a respeito de algumas de suas consequências. Em seguida, voltaremos nossa atenção para os estudos da antropologia multiespécie, que marca essa crítica sobre o Antropoceno. Vamos conhecer mais sobre o objeto de estudo antropologia multiespécie e por que é importante estudarmos as relações que vão para além do próprio ser humano. Por fim, refletiremos um pouco sobre a relação entre as doenças infecciosas como a pandemia do novo coronavírus e o agronegócio no Brasil. Por fim, conheceremos alguns dos pensamentos que podem servir de inspiração para lidarmos com o Brasil depois da pandemia. 2 O QUE É ANTROPOCENO? FIGURA 13 – AQUECIMENTO GLOBAL FONTE: <https://bit.ly/3dkyXis>. Acesso em: 16 jun. 2022. UNIDADE 3 152 Talvez você já tenha ouvido algo sobre o conceito de Antropoceno, mas, afi nal, o que ele quer dizer? Esse termo foi empregado pela primeira vez pelo biólogo estadunidense Eugene Stoemer na década de 1980, mas somente foi formalizado nos anos 2000 numa publicação em conjunto com o Prêmio Nobel de Química pelo químico holandês Paul Crutzen. Nesse escrito, o termo Antropoceno foi utilizado para se referir à era geológica atual, enfatizando a atuação do homem sobre a geologia e a ecologia e o coincidente aumento das concentrações de gás carbônico e gás metano no mundo (SILVA; ARBILLA, 2018). A palavra antropoceno deriva do termo grego anthropo, que signifi ca humano, e do termo também grego ceno, que signifi ca novo. Como veremos no quadro adiante, as épocas geológicas sempre terminam com o sufi xo ceno. Contudo, o termo Antropoceno passou a ser utilizado por antropólogos internacionais e brasileiros como uma forma de analisar a situação atual em que vivemos, criando uma aliança entre os conhecimentos biológicos e os conhecimentos antropológicos. É impossível dissociar os fenômenos ambientais dos fenômenos políticos e sociais e vice-versa. Por isso, os antropólogos puderam se apropriar desse termo inicialmente biológico para realizar uma crítica a nível antropológico. A antropóloga estadunidense Anna Tsing é uma grande referência para os pesquisadores brasileiros do campo da antropologia que estudam o Antropoceno. Nas palavras da autora: O gás carbônico e o gás metano são compostos químicos produzidos, sobretudo, pela queima de combustíveis fósseis como o petróleo, por queimadas e desmatamentos, pela pecuária, entre outros fatores. Esses gases são responsáveis pela maior parte do efeito estufa, aquele fenômeno relacionado ao aquecimento global do nosso planeta. Isso é perigoso devido a algumas consequências como o derretimento das calotas polares, elevação dos níveis oceânicos e extinção de espécies. Eugene Stoemer criou o termo, mas Paul Crutzen que foi o vencedor do Prêmio Nobel de Química, popularizou o uso da palavra Antropoceno. Crutzen comenta que usou o termo Antropoceno no calor do momento, rebatendo alguém que havia comentado algo sobre o Holoceno, e tornou o termo famoso. NOTA INTERESSANTE 153 Para pensarmos no Antropoceno, também é importante pensarmos nas ciências geológicas no que diz respeito à defi nição das unidades da Escala de Tempo Geológico Internacional – um sistema de medida que tem por objetivo organizar a história geológica do nosso planeta. No quadro a seguir, podemos observar um resumo dessa divisão com os eventos mais importantes de cada época. Na época do Holoceno, por sua vez, foi quando aconteceu a dispersão da espécie humana nesse tempo mais recente. A Escala de Tempo Geológico Internacional ainda não reconheceu o Antropoceno como uma época geológica de fato, ainda que o termo esteja difundido no campo de pesquisadores científi cos ao redor do mundo. Logo, podemos dizer que ofi cialmente o Antropoceno faz parte do Holoceno. Vamos entender tudo isso melhor na tabela a seguir: Anna Tsing também é uma referência para os antropólogos brasileiros que pesquisam sobre a antropologia multiespécie, como veremos adiante. Caso queira explorar mais o tema do Antropoceno e seus impactos, sugerimos que visite o chamado Atlas Feral disponível no link https:// feralatlas.org. O site reúne um trabalho colaborativo entre diversos cientistas, pesquisadores da área acadêmica, artistas e escritores de diversas partes do mundo. Esse trabalho teve por objetivo analisar alguns fenômenos mundiais nesse período do Antropoceno. ESTUDOS FUTUROS DICA Vivemos em um mundo de paisagens em ruínas e inesperadas catástrofes ambientais. As mudanças climáticas são uma das grandes pautas da ciência e da política contemporâneas, e perdas de biodiversidade nos levam ao que vem sendo chamado de a Sexta Extinção. Nas últimas décadas, cunhou-se o termo Antropoceno para se referir ao impacto de proporções geológicas que a jornada humana teve sobre a transformação da dinâmica ambiental do planeta. É um debate que tem transformado também os estudos ambientais, tanto nas Ciências da Natureza, quanto nas Ciências Humanas, sob o desafi o de observaresse processo em andamento (TSING, 2019, p. 5). Em poucas palavras, o Antropoceno diz respeito a uma época que enfatiza as consequências provocadas pelos seres humanos sobre a regulação do nosso planeta. 154 QUADRO 2 – ESCALA DE TEMPO GEOLÓGICO INTERNACIONAL FONTE: <https://bit.ly/3P8mons>. Acesso em: 10 mar. 2022. Outro fato importante com relação ao Antropoceno é que autores como Stoemer defendem que ele corresponde ao início da Revolução Industrial e à criação da máquina a vapor. Isso tudo marcou um período de grandes transformações com relação à evolução do planeta Terra. Além disso, no ano de 2004 foi publicado um livro chamado Global Change and the Earth System: A Planet Under Pressure pelo Internacional Geosphere- Biosphere Programme (IGBP). O mencionado livro considerou que existe uma série de fatores ambientais e socioeconômicos que marcaram o início do Antropoceno, os quais foram chamados de Grande Aceleração (SILVA; ARBILLA, 2018). FIGURA 14 – POLUIÇÃO INDUSTRIAL FONTE: <https://bit.ly/3A3h807>. Acesso em: 16 jun. 2022 155 A Grande Aceleração envolve principalmente os fatores que os pesquisadores Silva e Arbilla resumiram a seguir: -Os processos biológicos interagem fortemente com os processos químicos e físicos, de tal forma que desempenham um papel fundamental na manutenção do equilíbrio da Terra. -As mudanças globais vão além dos câmbios climáticos e as atividades antropogênicas influenciam o sistema de igual ou maior forma que as forças naturais, levando a mudanças fora dos limites esperados para as variações naturais. -Os efeitos estão inter-relacionados e as relações causas-efeitos não são lineares, extrapolando os níveis locais em que acontecem. -A dinâmica da Terra está caracterizada por umbrais críticos e mudanças abruptas, de forma que as atividades humanas podem, inadvertidamente, causar consequências catastróficas para o sistema. -A Terra, como sistema, está atualmente fora do intervalo de mudanças esperadas de forma natural (de acordo com o acontecido nos últimos 500.000 anos) e a magnitude e velocidade dessas mudanças não têm precedentes na sua história (SILVA; ARBILLA, 2018, p. 1624-1625). Ora, em poucas palavras podemos dizer que o Antropoceno corresponde ao fato de que o ser humano passou a ser uma nova força geológica sobre o planeta. Ou seja, na época do Antropoceno, não são somente as forças naturais que influenciam na regulação dos processos terrestres, mas também as ações dos seres humanos. Devemos ressaltar que essa influência humana provoca reações inesperadas por parte da Terra e não somente aquelas consideradas naturais e previsíveis, o que torna nosso futuro incerto e perigoso! Portanto, nesse sentido se faz importante a análise antropológica sobre o Antropoceno. Como falamos, essa época é marcada não só por consequências ambientais, mas também por consequências econômicas e sociais, sendo que elas não podem ser separadas! Assim, as antropólogas e os antropólogos passaram a analisar os fenômenos antropocênicos que afetam nossa vida em sociedade. Se quiser ler mais sobre o Antropoceno no contexto antropológico, sugerimos o livro do antropólogo francês Bruno Latour Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno, muito difundido entre os antropólogos brasileiros. DICA 156 3 ABORDAGENS DA ANTROPOLOGIA MULTIESPÉCIE Agora que entendemos mais sobre o termo Antropoceno, vamos refl etir sobre as abordagens da antropologia multiespécie. Ora, o que signifi ca o termo multiespécie? Em poucas palavras, podemos dizer que multiespécie se refere a um tipo específi co de relação que envolve seres de diferentes espécies. Em primeiro plano, essas relações se referem ao que acontece entre seres humanos e não humanos, mas também podem se referir a relações entre seres não humanos e outros seres não humanos. Dentre esses seres não humanos estão os animais, as plantas, os fungos, entre outros. FIGURA 15 – INTERAÇÃO MULTIESPÉCIE FONTE: <https://bit.ly/3BMrhzp>. Acesso em: 16 jun. 2022. As abordagens multiespécie passaram a ser um campo de interesse dentro dos estudos antropológicos como uma tentativa de escapar do antropocentrismo, ou seja, do foco das relações que acontecem apenas entre seres humanos. Apesar de vivermos em uma sociedade humana, estamos constantemente nos relacionando com seres de outras espécies, como nossos animais domésticos, com os animais e plantas dos quais nos alimentamos, com os elementos que vieram da natureza dos quais construímos nossas casas, entre outros. Por isso e muito mais é importante pensarmos nas relações multiespécie em termos antropológicos! O termo antropocentrismo é usado para se referir a uma linha de pensamento que entende o ser humano como o centro do universo e de certa forma superior a todos os outros seres que existem no mundo. NOTA 157 Conforme aponta o pesquisador brasileiro Felipe Süssekind (2018) da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, estudioso das relações multiespécie, para entendermos essas relações devemos passar por duas etapas. A primeira etapa tem a ver com o próprio antropocentrismo que conduz o pensamento antropológico na medida em que coloca a vida humana como superior à vida de todos aqueles que não são humanos. A segunda etapa, por sua vez, está voltada para aquela distinção entre cultura e natureza que vimos no início de nossa disciplina. Süssekind (2018) comenta sobre uma chamada “virada multiespécie” no campo da antropologia, que aconteceu na medida em que passou a ser questionada a exclusividade dos estudos voltados apenas para os seres humanos. Nesse sentido, o pensamento antropológico passou a se aliar com outras áreas de conhecimento como a biologia e a ecologia. Do mesmo modo, a oposição entre natureza e cultura também passou a ser questionada no campo da antropologia, visto que os estudos mais recentes não aceitam mais essa dicotomia, mas tentam enxergar a natureza e a cultura como duas faces de uma mesma moeda. Conforme comenta Süssekind (2018, p. 173-174): Mais recentemente, a noção de simbiose tem sido desenvolvida por diferentes autores ligados aos estudos multiespécies, particularmente Donna Haraway, no sentido de explorar seu potencial para descrever as relações e enredamentos possíveis que constituem experiências compartilhadas de vida. Mais do que usar uma imagem biológica como metáfora para descrever uma relação social, o que está em jogo nesse caso é um modo de conceber as relações em que a ideia do social ou do biológico, como domínios ontológicos separados, simplesmente não faz sentido. A hipótese de Gaia, formulada nos anos 1960 por James Lovelock e Lynn Margullis, tem fornecido, nesse mesmo sentido, alternativas poderosas para a ideia tipicamente moderna da “natureza” como algo estável, exterior e transcendente, disponível como recurso para os fins humanos. Gaia é o nome dado por Lovelock ao sistema planetário dotado de vida, o sistema de interações bioquímicas complexas que sustenta o fenômeno da vida. Um sistema vivo que se retroalimenta, ligado a um equilíbrio entre os elementos que compõem a ecoesfera terrestre; o humano como agenciamento de efeitos planetários. Relida por Stengers e Latour, guardadas as diferenças significativas entre eles, Gaia coloca questões incontornáveis para a política e a experiência Se quiser conhecer mais sobre os escritos recentes voltados para as relações multiespécie no campo da antropologia brasileira de outros pesquisadores, sugerimos que leia os textos: Brotou batata para mim, de Ana Gabriela Morim de Lima, Entre plantas e palavras, de Joana Cabral de Oliveira, O funeral do caçador: caça e perigo na Amazônia, de Uirá Garcia e A cosmopolítica dos animais, de Juliana Fausto. DICA 158 contemporâneas. A compreensão da inter-relação entre a ação humana e os fenômenos naturais e ambientais revela, além disso, possíveis pontes entre o pensamento científico contemporâneo e o pensamento de povos e culturas quede fato nunca conceberam o humano como um domínio separado e oposto àquela da natureza. O diálogo com cosmologias indígenas, a catástrofe climática, a extinção de espécies, as paisagens devastadas e os modos de vida ligados a elas, esses são também temas cruciais para os debates em torno dos estudos multiespécies. Süssekind (2018) toma como base de seu pensamento a antropóloga estadunidense Anna Tsing, que conhecemos na GIO anterior. O autor menciona uma frase da antropóloga que é a seguinte: “a natureza humana é uma relação entre espécies”. Nas palavras de Süssekind (2018, p. 172): Organismos e ambientes são coproduzidos pelas relações que entretêm entre si, o que aponta para uma visão dos sistemas materiais-semióticos que atravessam ecologia e antropologia. Trocas de informações entre organismos em processos evolutivos se articulam, nesse caso, com trocas que acontecem dentro de processos socioculturais de grupos humanos. Ora, isso quer dizer que não existe vida humana sem as outras espécies e sem a relação com as outras espécies! Os processos sociais e culturais dos seres humanos também envolvem a relação com outras espécies. Além dos estudos estrangeiros de Anna Tsing, outra grande referência para os antropólogos brasileiros que são interessados nas relações multiespécie é a antropóloga estadunidense Donna Haraway, mencionada por Süssekind. Por isso, também sugerimos que procure pelos trabalhos desta autora. Além do âmbito antropológico, a questão das relações multiespécie também tem perpassado o âmbito da própria legislação brasileira no que diz respeito ao reconhecimento de famílias multiespécie no caso da guarda de animais domésticos. Isso acontece quando uma família reconhece seus animais de estimação como membros da própria família e assim passam a reivindicar os direitos de família a esses animais. No caso de separação de um casal, por exemplo, isso pode ter como consequência a guarda compartilhada dos animais domésticos, o que anteriormente só acontecia com relação aos filhos humanos. Por isso, mais uma vez se torna importante a análise antropológica sobre esse assunto! DICA INTERESSANTE 159 FONTE: <https://bit.ly/3JFuHG6>. Acesso em: 16 jun. 2022. Agora que estamos chegando ao final da nossa disciplina, é inevitável tocarmos no assunto da pandemia do novo coronavírus, que nos afligiu por mais tempo do que esperávamos! Mais que isso, também vamos tocar na relação entre a pandemia e o agronegócio. De acordo com o pesquisador estadunidense Rob Wallace, a origem da pandemia de Covid-19 tem a ver com as práticas predatórias do agronegócio mundial e principalmente à pecuária intensiva. Nas palavras do pesquisador Allan Rodrigo de Campos Silva (2020, p. 427), estudioso de Rob Wallace: A leitura do recém lançado “Pandemia e agronegócio” junta os fios de uma história ainda mal contada. Para o autor, as origens da atual pandemia de COVID-19, assim como diversas outras epidemias dos últimos anos, residem na globalização das práticas predatórias do agronegócio, mais especificamente na pecuária intensiva, hoje caracterizada por um verdadeiro sistema de produção de patógenos integrado à criação de porcos e galinhas. Ou seja, em cada celeiro do agronegócio deveríamos enxergar também uma fábrica de patógenos. Estrategicamente posicionado na fronteira entre os estudos da Geografia e da Biologia Evolutiva, Wallace constrói cuidadosamente um percurso explicativo, percorrendo décadas de estudos sobre a dinâmica e evolutiva de vírus e bactérias na interface com os sistemas produtivos capitalistas. Em resumo, os efeitos colaterais do agronegócio abrangem a produção de reiteradas catástrofes ecológicas, que fazem com que epidemias e pandemias sejam cada vez mais comuns – e destrutivas. 4 DOENÇAS INFECCIOSAS, AGRONEGÓCIO E BRASIL PÓS- PANDEMIA FIGURA 16 – PANDEMIA NO BRASIL 160 Se quiser saber mais sobre a relação entre a pandemia do novo coronavírus e o agronegócio, sugerimos que leia o texto Pandemia e agronegócio escrito por Rob Wallace. DICA FIGURA 17 – AGRONEGÓCIO FONTE: <https://bit.ly/3pbl2gY>. Acesso em: 16 jun. 2022. Ainda de acordo com Wallace, conforme comenta Silva (2000, p. 428), outras doenças infecciosas e mesmo surtos epidêmicos como a gripe aviária e a gripe suína, assim como a Covid-19, surgiram em função da expansão do agronegócio mundial, o qual “destrói sistemas fl orestais inteiros e aumenta a interface com vetores de transmissão, facilitando assim o chamado transbordamento (spillover) sobre populações humanas”. A pecuária intensiva, ou seja, a criação de animais para consumo humano em grande escala industrial, é responsável por essa grande proliferação de organismos causadores de doenças como os vírus e bactérias. Isso acontece porque os locais de produção pecuária fornecem condições favoráveis para a reprodução desses organismos em dois sentidos: “esses micro-organismos estariam encontrando as melhores condições possíveis para o aprimoramento da sua virulência – a capacidade de infectar um hospedeiro – e para o aumento da sua patogenicidade – a sua capacidade de causar dano ao hospedeiro” (SILVA, 2000, p. 248). 161 Tomando como ponto de partida a questão do agronegócio e da pecuária em termos mundiais, Wallace também chama a atenção para o caso brasileiro. O Brasil é um país líder na criação de gado, na plantação de soja e em outras práticas ligadas ao agronegócio, que favorecem a degradação ambiental e o aumento da disseminação de epidemias. Conforme ainda comenta Silva (2000, p. 430): O pantanal brasileiro, uma das maiores planícies alagáveis do planeta, abrigando mais de 600 espécies de aves, sofre com a pressão da destruição ambiental do agronegócio, com seus campos drenados para criação de gado e produção soja, ao mesmo tempo em que se proliferam os celeiros da avicultura industrial por todo o país. Essa dinâmica, em conjunto com as queimadas da Amazônia, o aumento da grilagem e da pressão sobre reservas indígenas alcançaram um patamar catastrófi co durante 2019 e início de 2020, sob o governo de Bolsonaro. O argumento de Rob Wallace também é bastante crítico se voltado ao cenário brasileiro, uma vez que todas as condições econômicas e ambientais que deram origem a surtos de doenças na China ou nos EUA, podem ser encontradas de forma abundante no território brasileiro de forma abundante. No mesmo sentido, o documento Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia da Covid-19, traça as relações diretas entre a agricultura intensiva e a pandemia. Nas palavras de Hara Flaeschen (ANO, página): O documento “Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de Covid-19?”, lançado em 27 de maio, demonstra que além da agroindústria aumentar as chances de novas zoonoses – com destruição de habitats naturais –, também deixa as pessoas mais vulneráveis a doenças do tipo. Isto é porque o uso de agrotóxicos nos alimentos afeta o sistema imunológico, enquanto o consumo de ultraprocessados intensifi ca doenças e agravos não transmissíveis. Movimentos a favor dos direitos dos animais, como o veganismo, também reforçam essas ideias estabelecidas por Wallace e por isso são contra a produção de animais para consumo humano. As pessoas que fazem parte da corrente vegana boicotam o consumo a qualquer produto animal ou que seja derivado de animais, como carnes, ovos, laticínios e mesmo roupas de couro ou qualquer outra coisa que venha de animais. INTERESSANTE 162 Sugerimos que leia o texto Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia da Covid-19, na íntegra. Disponível em: https://bit. ly/3QudMbJ. Acesso em: 23 jun. 2022. DICA Tendo em vista esse cenário de catástrofes ambientais, pandemias e mortes de seres humanos e animais em larga escala, o que podemos fazer? Ou melhor, o que podemos fazer enquanto brasileiros? Alguns diriam que uma saída para isso seria o veganismo, mas outros diriam que parao veganismo funcionar precisaria ser algo adotado pela maior parte da população. Mas também, seguindo a linha de pensamento de Donna Haraway (2016), uma saída seria o que preza sua famosa frase “Faça parentes, não bebês!” Ora, o que significa fazer parentes e não bebês? Isso não significa que os seres humanos deveriam parar de se reproduzir ou ter filhos, mas outra coisa! Isso significa que os seres humanos deveriam expandir a sua abrangência de parentes, ou seja, que deveriam não somente abranger os seres humanos como seus parentes, mas também novos parentes multiespécie. De acordo com Haraway (2016), uma saída para a crise mundial que vivemos é estabelecer novas formas de relações com animais, plantas e outros seres no sentido de que todos dependemos uns dos outros e que devemos nos cuidar! FIGURA 18 – HUMANA E ANIMAL SELVAGEM FONTE: <https://pixabay.com/pt/photos/esquilo-africano-paraxerus-1580046/>. Acesso em: 10 mar. 2022. Vamos terminar nossa disciplina com as palavras de Anna Tsing (2019), quem assume que estamos vivendo em tempos difíceis ou mesmo em uma “ruína”: 163 Sugerimos que leia o texto Viver nas ruínas: paisagens multiespécie no antropoceno, de Anna Tsing na íntegra. Disponível em: https://bit.ly/3vRw3bg. DICA As paisagens globais de hoje estão repletas desse tipo de ruína. Ainda assim, esses lugares podem ser animados apesar dos anúncios de sua morte; campos de ativos abandonados às vezes geram novas vidas multiespécies e multiculturais. Em um estado global de precariedade, não temos outras opções além de procurar vida nessa ruína (TSING, 2019, p. 2). Portanto, uma maneira de sobreviver a esse Brasil pós-pandemia, além de criar novas relações ou parentes multiespécie como diria Donna Haraway (2016), é procurar novas formas de viver em meio a essa “ruína”! 164 ANTROPOCENO, CAPITALOCENO, PLANTATIONOCENO, CHTHULUCENO: FAZENDO PARENTES Donna Haraway Não há dúvida de que os processos antrópicos tiveram efeitos planetários, em inter/intra-ação com outros processos e espécies, desde que nos reconhecemos como espécie (algumas dezenas de milhares de anos) e investimos em uma agricultura em larga escala (alguns milhares de anos). Certamente que, desde o início, as bactérias e seus parentes foram, e ainda são, os maiores de todos os terraformadores (e reformadores) planetários, também em uma miríade de tipos de inter/intra-ação (incluindo as pessoas e suas práticas, tecnológicas e outras). A propagação de plantas por dispersão de sementes, milhões de anos antes da agricultura humana, representou uma grande mudança no planeta, e assim foram muitos outros eventos ecológicos de desenvolvimento histórico, revolucionários e evolucionários. As pessoas iniciaram essa discussão muito cedo e de forma dinâmica, mesmo antes deles/nós sermos chamados de Homo sapiens. Mas penso que a relevância de nomear de Antropoceno, Plantationoceno ou Capitaloceno tem a ver com a escala, a relação taxa/velocidade, a sincronicidade e a complexidade. A questão constante, quando se considera fenômenos sistêmicos, tem de ser: quando as mudanças de grau se tornam mudanças de espécie? E quais são os efeitos das pessoas (não o Humano) situadas bioculturalmente, biotecnologicamente, biopoliticamente e historicamente com relação a, e combinado com os efeitos de outros arranjos de espécies e outras forças bióticas/abióticas? Nenhuma espécie, nem mesmo a nossa própria – essa espécie arrogante que finge ser constituída de bons indivíduos nos chamados roteiros Ocidentais modernos – age sozinha; arranjos de espécies orgânicas e de atores abióticos fazem história, tanto evolucionária como de outros tipos também. Mas há um ponto de inflexão das consequências que muda o nome do “jogo” da vida na terra para todos e tudo? Trata-se de mais do que “mudanças climáticas”; trata-se também da enorme carga de produtos químicos tóxicos, de mineração, de esgotamento de lagos e rios, sob e acima do solo, de simplificação de ecossistemas, de grandes genocídios de pessoas e outros seres etc., em padrões sistemicamente ligados que podem gerar repetidos e devastadores colapsos do sistema. A recursividade pode ser terrível. LEITURA COMPLEMENTAR 165 Anna Tsing (2015), em um artigo recente chamado “Feral Biologies”, sugere que o ponto de inflexão entre o Holoceno e o Antropoceno pode eliminar a maior parte dos refúgios a partir dos quais diversos grupos de espécies (com ou sem pessoas) podem ser reconstituídos após eventos extremos (como desertificação, desmatamento…). Isso tem parentesco com o argumento da World-Ecology, Research Network, coordenada por Jason Moore, de que a natureza barata está no fim; o barateamento da natureza não pode continuar mais a sustentar a extração e a produção no e do mundo contemporâneo, porque a maioria das reservas da terra foram drenadas, queimadas, esgotadas, envenenadas, exterminadas e, de várias outras formas, exauridas. Vastos investimentos em tecnologias extremamente criativas e destrutivas podem conter esse acerto de contas, mas a natureza barata realmente acabou. Anna Tsing argumenta que o Holoceno foi um longo período em que os refúgios, os locais de refúgio, ainda existiam, e eram até mesmo abundantes, sustentando a reformulação da rica diversidade cultural e biológica. Talvez a indignação merecedora de um nome como Antropoceno seja a da destruição de espaços-tempos de refúgio para as pessoas e outros seres. Eu, juntamente com outras pessoas, penso que o Antropoceno é mais um evento-limite do que uma época, como a fronteira K-Pg entre o Cretáceo e o Paleoceno. O Antropoceno marca descontinuidades graves; o que vem depois não será como o que veio antes. Penso que o nosso trabalho é fazer com que o Antropoceno seja tão curto e tênue quanto possível, e cultivar, uns com os outros, em todos os sentidos imagináveis, épocas por vir que possam reconstituir os refúgios. Neste momento, a terra está cheia de refugiados, humanos e não humanos, e sem refúgios. Então, penso que mais do que um grande nome, na verdade, é preciso pensar num novo e potente nome. Assim, Antropoceno, Plantationoceno e Capitaloceno (termo de Andreas Malm e Jason Moore antes de ser meu). E também insisto em que precisamos de um nome para as dinâmicas de forças e poderes chthonicas em curso, das quais as pessoas são uma parte, dentro das quais esse processo está em jogo. Talvez, mas só talvez, e apenas com intenso compromisso e trabalho colaborativo com outros terranos, será possível fazer florescer arranjos multiespécies ricas, que incluam as pessoas. Estou chamando tudo isso de Chthuluceno – passado, presente e o que está por vir. Estes espaços-tempos reais e possíveis não foram nomeados após o pesadelo- racista e misógino do monstro Cthulhu (note diferença na ortografia), do escritor de ficção científica H. P. Lovecraft, e sim após os diversos poderes e forças tentaculares de toda a terra e das coisas recolhidas com nomes como Naga, Gaia, Tangaroa (emerge da plenitude aquática de Papa), Terra, Haniyasu-hime, Mulher-Aranha, Pachamama, Oya, Gorgo, Raven, A’akuluujjusi e muitas mais. “Meu” Chthuluceno, mesmo sobrecarregado com seus problemáticos tentáculos gregos, emaranha-se com uma miríade de temporalidades e espacialidades e uma miríade de entidades em arranjos intra-ativos, incluindo mais-que-humanos, outros-que-não-humanos, desumanos e humano- como-húmus (human-ashumus). Mesmo num texto em inglês-americano como este, Naga, Gaia, Tangaroa, Medusa, Mulher-Aranha, e todos os seus parentes, são alguns 166 dos muitos mil nomes próprios para uma linhagem de ficção científica que Lovecraft não poderia ter imaginado ou abraçado – ou seja, teias de fabulação especulativa, feminismo especulativo, ficção científica e fatos científicos. O que importa é que narrativas contam narrativas, e que conceitos pensam conceitos. Matematicamente, visualmente e narrativamente, é importante pensar que figuras figuram figuras, que sistemas sistematizamsistemas. Todos os mil nomes propostos são grandes demais e pequenos demais; todas as histórias são grandes demais e pequenas demais. Como Jim Clifford me ensinou, nós precisamos de narrativas (e teorias) que sejam grandes o bastante (e não mais que isso) para reunir as complexidades e manter as bordas abertas e ávidas por novas e velhas conexões surpreendentes (CLIFFORD, 2013). Uma maneira de viver e morrer bem, como seres mortais no Chthuluceno, é unir forças para reconstituir refúgios, para tornar possível uma parcial e robusta recuperação e recomposição biológica-cultural-política-tecnológica, que deve incluir o luto por perdas irreversíveis. Thom van Dooren (2014) e Vinciane Despret (2013) me ensinaram isso. Há tantas perdas já, e haverá muitas mais. Esse renovado florescimento generativo não pode ser criado a partir de mitos de imortalidade ou do fracasso de nos tornarmos parte dos mortos e extintos. Há um monte de trabalho para o Orador dos Mortos de Orson Scott Card (1986) e ainda mais para a reformulação de Ursula Le Guin em Always Coming Home. Eu sou uma compostista, não uma pós-humanista: somos todos compostos, adubo, não pós-humanos. O limite que é o Antropoceno/Capitaloceno significa muitas coisas, incluindo o fato de que a imensa destruição irreversível está realmente ocorrendo, não só para os 11 bilhões ou mais de pessoas que vão estar na terra perto do final do século 21, mas também para uma miríade de outros seres. (O número incompreensível, mas sóbrio, de cerca de 11 bilhões somente será mantido se as taxas de natalidade de bebês humanos, em todo o mundo atual, permanecerem baixas; se elas subirem novamente, todas as apostas caem por terra). “À beira da extinção” não é apenas uma metáfora; e “colapso de sistema” não é um filme de suspense. Pergunte a qualquer refugiado, de qualquer espécie. O Chthuluceno precisa de pelo menos um slogan (certamente, mais do que um); continuam gritando “Ciborgues para Sobrevivência Terrestre”, “Corra Rápido, Morda Forte” e “Cale-se e Treine”, eu proponho “Faça Parentes, Não Bebês!”. Fazer parentes é, talvez, a parte mais difícil e mais urgente do problema. As feministas do nosso tempo têm sido líderes em desvendar a suposta necessidade natural dos laços entre sexo e gênero, raça e sexo, raça e nação, classe e raça, gênero e morfologia, sexo e reprodução, e reprodução e composição de pessoas (nossa dívida aqui especialmente para com os melanésios, em aliança com Marilyn Strathern (1990) e seus parentes etnógrafos). Se for para existir uma ecojustiça de multiespécies, que esta também 167 possa abraçar a diversidade das pessoas. É chegada a hora de as feministas exercerem liderança também na imaginação, na teoria e na ação, para desfazer ambos os laços: de genealogia/parentesco e parentes/espécies. Bactérias e fungos são excelentes para nos dar metáforas, mas, metáforas a parte (boa sorte com isso!), nós temos um trabalho de mamífero a fazer com os nossos colaboradores e cotrabalhadores sim-poiéticos, bióticos e abióticos. Precisamos fazer parentes sim-chthonicamente, sim-poieticamente. Quem e o que quer que sejamos, precisamos fazer-com – tornar-com, compor-com – os “terranos” (obrigado por esse termo, Bruno Latour-em-modo anglófono)[13]. Nós, pessoas humanas em todos os lugares, devemos abordar as urgências sistêmicas intensas; no entanto, até agora, como Kim Stanley Robinson (2012) colocou em 2312, estamos vivendo tempos de “Hesitação” (esta narrativa de ficção científica, que vai de 2005 a 2060, é demasiado otimista?), um “estado de agitação incerto”. Talvez “A Hesitação” seja um nome mais apropriado do que Antropoceno ou Capitaloceno! “A Hesitação” será gravada nos estratos rochosos da terra; na verdade, já está escrita nas camadas mineralizadas da terra. Os sim- ctônicos não hesitam; eles compõem e se decompõem, práticas tão perigosas quanto promissoras. O mínimo que se pode dizer é que a hegemonia humana não é um caso sim-chthonico. Como definem os artistas ecossexuais Beth Stephens e Annie Sprinkle, a compostagem é tão quente! Meu propósito é fazer com que “parente” signifique algo diferente, mais do que entidades ligadas por ancestralidade ou genealogia. O movimento suave de desfamiliarização pode parecer, por um momento, um erro, mas depois (com sorte) aparecerá sempre como correto. Fazer parentes é fazer pessoas, não necessariamente como indivíduos ou como seres humanos. Na Universidade, fui movida pelos trocadilhos de Shakespeare, kin e kind (parente e gentil em português) – os mais gentis não eram necessariamente parentes de uma mesma família; tornar-se parente e tornar-se gentil (como categoria, cuidado, parente sem laços de nascimento, parentes paralelos, e vários outros ecos) expande a imaginação e pode mudar a história. Marilyn Strathern me ensinou que os “parentes”, em inglês britânico, eram originalmente “relações lógicas” e só se tornaram “membros da família” no século 17. Este, definitivamente, está entre os factoides que eu amo. Saia do inglês e os selvagens se multiplicam. Penso que a extensão e a recomposição da palavra “parente” são permitidas pelo fato de que todos os terráqueos são parentes, no sentido mais profundo, e já passaram da hora de começar a cuidar dos tipos-como-arranjos (não espécies uma por vez). Parentesco é uma palavra que traz em si um arranjo. Todos os seres compartilham de uma “carne” comum, paralelamente, semioticamente e genealogicamente. Os antepassados mostram-se estranhos muito interessantes; parentes são não familiares (fora do que pensávamos ser a família ou os genes), estranhos, assombrosos, ativos. Demais para um pequeno slogan, eu sei! Ainda assim, tente. Nos próximos dois séculos, ou mais, talvez os seres humanos deste planeta possam ser novamente dois ou três bilhões, http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-plantationoceno-chthuluceno-fazendo-parentes/#_edn13 168 aproximadamente e, nesse tempo, fazer parte de um bem-estar cada vez maior para os diversos seres humanos e outros seres, agindo como meios e não apenas como fins. Então, faça parentes, não bebês! O que importa é como parentes geram parentes. FONTE: <http://climacom.mudancasclimaticas.net.br/antropoceno-capitaloceno-plantationoceno- chthuluceno-fazendo-parentes/>. Acesso em: 10 mar. 2022. 169 RESUMO DO TÓPICO 3 Neste tópico, você aprendeu: • O termo Antropoceno é usado para se referir à época geológica atual em que vivemos. • Antropoceno tem a ver com essa época marcada pelo aumento das concentrações de gás carbônico e gás metano no planeta. • Antropoceno também tem a ver com uma época em que as ações dos seres humanos passaram a ser consideradas uma nova força geológica sobre o planeta. • As relações multiespécie dizem respeito a relações que envolvem seres de diferentes espécies. • As relações multiespécie são de interesse da antropologia na medida em que o antropocentrismo deixou de fazer sentido. • As doenças infecciosas e as epidemias possuem uma relação direta com o agronegócio mundial. • As práticas brasileiras de criação de gado e plantação de soja favorecem o surgimento de novas epidemias. • Uma maneira de sobrevivermos à crise mundial que vivemos é criarmos novas formas de nos relacionar com os demais seres que vivem no mundo. 170 AUTOATIVIDADE 1 Com base na definição acerca do conceito de Antropoceno, os pesquisadores da antropologia brasileira encontraram novas formas de refletir sobre a época em que vivemos. Tendo em vista esse conceito, assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) O Antropoceno é uma época marcada pelo aumento da concentração de oxigênio do planeta Terra. b) ( ) O Antropoceno é considerado uma época geológica de acordo com a Escala de Tempo Geológico Internacional. c) ( ) O Antropoceno é uma época marcada pelo fato de que o ser humano passou a ser uma nova força geológica sobre os processos terrestres. d) ( ) O Antropoceno é uma época que provoca consequênciasambientais ao nosso planeta, mas não consequências sociais. 2 A Escala de Tempo Geológico Internacional é utilizada para classificar o tempo geológico do planeta Terra. Apesar de estar relacionada, sobretudo, à geologia, também é utilizada para realizar análises sociais e consequentemente antropológicas. Com base nessa Escala e na definição de Antropoceno, analise as sentenças a seguir: I- O Antropoceno não faz parte da Escala de Tempo Geológico Internacional, ainda que seja um conceito amplamente utilizado por cientistas reconhecidos na área. II- Podemos dizer que o Antropoceno faz parte da época do Holoceno, marcada pela dispersão da espécie humana. III- O Antropoceno é a época anterior à Revolução Industrial e ao desenvolvimento da máquina à vapor. IV- O Holoceno faz parte do período Quaternário, o mais recente na Escala de Tempo Geológico. Assinale a alternativa CORRETA: a) ( ) As sentenças I e II estão corretas. b) ( ) Somente a sentença II está correta. c) ( ) As sentenças I, II e IV estão corretas. d) ( ) Somente a sentença III está correta. 3 O conceito de multiespécie provoca grandes debates no campo antropológico. Isso acontece porque coloca em xeque alguns pressupostos da antropologia, como o antropocentrismo e a oposição entre natureza e cultura. Tendo em vista esse conceito, classifique V para as sentenças verdadeiras e F para as falsas: 171 ( ) Multiespécie é um termo utilizado para se referir a um tipo de relação que envolve seres de diferentes espécies. ( ) O estudo sobre as relações multiespécie pertence ao âmbito da antropologia na medida em que se distancia da biologia. ( ) O estudo sobre as relações multiespécie representou uma verdadeira virada nos estudos antropológicos, sendo que trouxe uma forma de escapar do antropocentrismo. Assinale a alternativa que apresenta a sequência CORRETA: a) ( ) V – F – F. b) ( ) V – F – V. c) ( ) F – V – F. d) ( ) F – F – V. 4 As relações multiespécie podem ser consideradas aquelas relações que acontecem entre seres humanos e outras espécies ou mesmo entre as outras espécies entre elas mesmas. A partir dessa noção, podemos pensar nas mais variadas espécies de relações entre os seres viventes para além dos seres humanos. Tendo em vista essa temática, disserte sobre a importância dos estudos sobre as relações multiespécie para a antropologia. 5 Alguns estudiosos afirmam que há uma relação direta entre o agronegócio global e a proliferação de doenças infecciosas e mesmo pandemias. Tendo em vista essa afirmação, disserte sobre como isso tem a ver com o contexto brasileiro. 172 REFERÊNCIAS ABRASCO. IPEN. Agronegócio e pandemia no Brasil: uma sindemia está agravando a pandemia de Covid-19? 2021. Disponível em: https://www.abrasco.org.br/site/wp- content/uploads/2021/05/Agronegocio-_-ABrasco-IPEN.pdf. Acesso em: 27 fev. 2022. ARAÚJO, J. W. C. A noção da consciência moral em Bernhard Häring e sua contribuição à atual crise de valores. Tese (Doutorado em Teologia). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007. Disponível em: https:// xdocs.com.br/doc/a-noao-de-conciencia-moral-de-bernhard-haring-e-sua- contribuiao-a-atual-crise-de-valores-jose-wiliam-correa-de-araujo-px8q29x7dy8w. 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