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1 Uma Interpretação Higienista do Brasil: Medicina e Pensamento Social no Império Luiz Otávio Ferreira Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ Introdução Durante o período colonial, a medicina não foi uma fonte importante de produção de imagens e de interpretações sobre o Brasil. A diminuta presença dos médicos no cenário social da Colônia fez com que coubesse aos cronistas e naturalistas o registro de impressões sobre a doença e a saúde no território brasileiro. Inspirada em uma visão edênica do novo mundo (Holanda, 1994), a imagem paradisíaca da salubridade brasileira foi gradualmente substituída por uma avaliação pragmática que destacava as enormes dificuldades impostas pelo mundo natural hostil ao trabalho de ocupação e exploração colonial (Ribeiro, 1997). Mesmo que se possa atribuir ao conquistador europeu a disseminação das mais graves doenças observadas naquele período - varíola, sarampo, tuberculose, sífilis -, a verdade é que, cada vez mais, o mito da salubridade das terras brasileira deixava de se aproximar da realidade . Foi porém na década de 1830 que uma mudança significativa na avaliação da salubridade do Brasil começou a ser percebida. A elaboração da nova percepção médica do país esteve aliada ao inédito esforço de afirmação profissional da medicina. Atuando na capital do Império, os médicos desejavam estabelecer sua autoridade e controle sobre assuntos relativos ao exercício profissional e à organização da saúde pública. Todavia, 2 o mais importante é que eles empenharam-se em produzir uma leitura original do quadro sanitário, cujo resultado mais importante foi a redefinição da importância das condições sócio-ambientais brasileiras como fonte geradora de velhas e novas patologias (Ferreira, 1999). A fundação, em 1829, da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ), entidade que, em 1835, seria transformada na Academia Imperial de Medicina (AIM), está relacionada ao início da institucionalização da higiene no Brasil. É unanimidade entre os historiadores da medicina que em torno das duas sociedades médicas formou-se o grupo mais representativo desse novo estilo de medicina dedicada à tarefa de medicalização da sociedade. Partindo disso, procurou-se estudar suas estratégias discursivas e políticas no sentido de garantir a implantação da higiene e a defesa da ciência médica (Machado,1978; Luz,1982). Uma outra leitura da presença social da SMRJ e da AIM destaca o dilema ideológico dos médicos quanto à viabilidade de implantação de uma sociedade civilizada nos trópicos, na medida que atribuía-se às condições naturais da européias o seu “avançado” estágio de civilização (Kury,1994). Essas duas interpretações não são excludentes, uma vez que entre final o século XVIII e início do XIX a higiene tornou-se um paradigma dominante quando assunto em questão era o processo civilizador. O advento da higiene foi simultâneo às transformações institucionais e científicas relacionadas ao chamado “nascimento da clínica” (Foucault,1980). Todavia, esse movimento teve sua própria história política e científica. O higienismo estava relacionado ao chamado neo-hipocratismo, uma concepção ambientalista da medicina baseada na hipótese da relação intrínseca entre doença, ambiente e sociedade (Lécury,1986; Jordonova, 1979). Teoricamente, a medicina neo-hipocrática apoiava-se em dois conceitos básicos: o de constituição médica e o de topografia médica. Por constituição médica entendia-se as possíveis relações de causa e efeito entre as características do meio ambiente e a manifestação coletiva de uma determinada doença. Já o conceito de topografia médica era definido com as implicações entre as diferentes doenças observadas numa mesma área geográfica. O neo-hipocratismo também se distinguia por duas peculiaridades, uma comprovada e outra que ainda é objeto de controvérsias entre os 3 historiadores. A primeira delas foi a convicção de que as doenças contagiosas eram predominantemente transmitidas pelo ar. A segunda seria a oposição entre as noções de contágio e de infecção, divergência que supostamente teria divido os higienistas em dois partidos: os contagionistas e os anticontagionistas (Ackerknecht, 1948). Para os contagionistas, uma doença poderia ser transmitida diretamente pelo contato físico entre os indivíduos ou indiretamente pelo manuseio de objetos contaminados pelos doentes ou pela respiração do ar ambiente igualmente contaminado. Dessa maneira, na concepção contagionista, uma doença produzida por determinadas condições ambientais poderia seguir se propagando independentemente da continuação das causas originais. Ao contrário disso, os anticontagionistas não acreditavam que uma doença pudesse ser adquirida independentemente das condições ambientais que haviam propiciado a sua manifestação. Não haveria, portanto, transmissão por contágio direto; a única possibilidade seria por via indireta, quando um indivíduo doente contaminava o ar ambiente que o circundava. A higiene teve fortes afinidades com o despotismo esclarecido europeu, contexto ideológico no qual firmou-se a consciência da necessidade da intervenção do governo na saúde pública (Rosen,1994). A partir disso, idealizou-se a criação de uma imensa rede de agentes capazes de informar e intervir sobre o comportamento demográfico da população (nascimento, morte, casamento, migração, raça) e suas condições de trabalho, habitação, alimentação e saúde; estudar sistematicamente o clima e a geografia das diferentes regiões; registrar o número e a qualificação dos médicos e fiscalizar a prática da medicina; estabelecer o controle médico-estatal sobre os hospitais, escolas, asilos, cadeias, cemitérios, prostíbulos; descrever o quadro nosológico de cada cidade ou região, etc. Todos esses procedimentos estariam garantidos pela aplicação enérgica de uma complexa legislação sanitária que regularia o comportamento coletivo das populações, sobretudo as urbanas. A tradução desses princípios higienistas para o contexto social brasileiro da primeira metade do século XIX foi o maior êxito obtido pela SMRJ e pela AIM. Todavia, é preciso observar que aquelas sociedades científicas não estiveram à frente de um movimento higienista de ampla 4 repercussão política e mobilização social. Isto, de fato, não aconteceu. Na verdade, a tradução dos princípios higienistas ficou restrita à primeira invenção dos problemas médico-sanitários do país (Ferreira, 1996). Um higienista francês na Corte Imperial O principal responsável por este trabalho de tradução foi o médico e higienista francês José Francisco Xavier Sigaud (1796-1856). Sigaud chegou ao Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1825, trazendo uma carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros da França endereçada ao Cônsul Geral daquele país no Rio de Janeiro. A carta recomendava-o como médico e naturalista interessado em clinicar e em desenvolver estudos de história natural pelo interior do Brasil. Formado pela Faculdade de Medicina de Etrasburgo, Sigaud obteve, em 1818, o título de doutor em medicina com uma tese sobre tísica laríngea. Iniciou sua carreira profissional como cirurgião-interno do Hospital Geral de Caridade de Lyon. Convencido pela família, foi clinicar em sua terra natal, Marseille, onde tornou-se membro titular e secretário da Sociedade Real de Medicina daquela cidade. Lá fundou e dirigiu, entre 1823 e 1825, o periódico médico Asclepíade, no qual publicou um trabalho sobre a epidemia de febre amarela que avassalou a cidade de Barcelona no ano de 1822. O ambiente antibonapartista que caracterizou o reinado de Carlos X na França obrigou-o a imigrar para o Brasil. Apesar de tão distante, a escolha de seu novo lar não deve surpreender-nos. O Brasil, destacadamente presentenas notícias em virtude de sua então recente declaração de independência, já possuía fortes laços culturais com a França. Economicamente, as perspectivas do país em 1823 devem ter parecido ao menos tão brilhantes quanto as dos Estados Unidos. Politicamente, a situação era tudo o que se poderia desejar. Desde Waterloo, o Brasil era sabidamente um refúgio para os bonapartistas (Hallewell, 1985). No Rio de Janeiro, Sigaud aproximou-se de seu compatriota, o livreiro-editor Pierre Plancher, que pelas mesmas razões políticas também havia imigrado para o Brasil. A experiência anterior como editor fez de Sigaud o principal colaborador de Plancher no Spectador Brasileiro, jornal impresso 5 pelo editor francês desde 1824. Mais tarde, em 1827, participou ativamente do lançamento do mais famoso e bem-sucedido empreendimento comercial de Plancher, o Jornal do Commercio, do qual foi editor. Foi também, naquele mesmo ano, um dos editores do Aurora Fluminense, jornal político-literário criado por ele junto com José Apolinário de Morais e o cirurgião Francisco Crispiano Vaderato. A dupla Sigaud-Plancher teve grande importância para a história da imprensa brasileira do Primeiro Império e do período regencial, particularmente para a história periodismo médico. Foi deles a iniciativa de publicar o primeiro periódico médico brasileiro, O Propagador das Ciências Médicas, que circulou entre os anos de 1827 e 1828. Em 1835, eles lançaram um outro periódico destinado ao público médico, o Diário de Saúde, que circulou até o início de 1836. Foi como editor que Sigaud ficou conhecido no Rio de Janeiro. Sua experiência européia como secretário da Real Academia de Medicina de Marseille e a de editor de periódicos médicos fez com que fosse procurado para participar da criação da SMRJ. Sigaud foi o principal formulador das idéias higienistas defendidas por aquela instituição. Na SMRJ Sigaud apresentou, em 1832, o primeiro trabalho onde expunha suas idéias a respeito do problema sanitário brasileiro: Discurso sobre a Estatística Médica do Brasil. A idéia de elaboração de uma estatística médica do Brasil ajustava-se perfeitamente aos propósitos da SMRJ, uma vez que um dos motivos que levaram à criação daquela entidade médica foi a constatação de que no país desconheciam-se os mais elementares cuidados com a saúde pública. Foi nessa ocasião que Sigaud apresentou o argumento de que o estudo das complexas relações entre o clima e as doenças constituía a abordagem científica que possibilitava a real elucidação das causas das endemias, epidemias e doenças esporádicas que se manifestavam no país. Para ele, a complexidade do quadro nosológico brasileiro seria expressão direta da diversidade geográfica e climática país.1 Originalmente pensado como um projeto coletivo da SMRJ, a 1 Discurso sobre a Estatística Médica do Brasil, lido na Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro na Sessão Púlbica de 30 de Junho de 1832, aniversário de fundação da Sociedade, pelo Dr. José Francisco Sigaud, Presidente da mesma Sociedade. Rio de Janeiro, Tipografia Imperial e Constitucional de E. Seignot-Plancher, 1832, pp.16-17 6 elaboração da estatística médica do Brasil foi um empreendimento realizado individualmente por Sigaud. A razão disso foram os constantes conflitos entre o higienista francês e os membros mais importantes daquela instituição. Os desentendimentos parecem ter começado por ocasião dos concursos para ocupação das primeiras cátedras da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, instituição de ensino criada em 1832 a partir de um plano elaborado pela SMRJ. Como ocorreu com quase todos os fundadores da SMRJ, Sigaud também desejou ocupar um posto acadêmico na nova faculdade, especificamente a cadeira de Medicina Legal. Contudo, não foi admitido e o posto foi ocupado pelo médico José Martins da Cruz Jobim, o mais jovem dos fundadores da SMRJ. Sigaud não pôde sequer participar do concurso, uma vez que alegou-se que a legislação determinava que somente na falta de brasileiros as cátedras das escolas de ensino superior do Império poderiam ser ocupadas por estrangeiros. Houve uma segunda tentativa, na qual Sigaud também não obteve sucesso, com a cátedra de Clínica Interna, que acabou sendo ocupada pelo cirurgião-formado Manoel Valadão Pimentel, o futuro Barão de Petrópolis, professor da extinta Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro. Não temos informações suficientes para avaliar o quanto ficaram abaladas as relações pessoais entre os líderes da SMRJ com o episódio dos sucessivos vetos ao nome de Sigaud. O que é possível notar é que, depois disso, o nome do higienista francês pouco aparece nas atas das reuniões da sociedade. Também é preciso notar que após ter sido o idealizador e editor do Semanário de Saúde Pública, o primeiro periódico da SMRJ que circulou de 1831 a 1833, Sigaud veio a tornar-se, em 1835, um concorrente no campo do periodismo médico. No mesmo momento em que a SMRJ lançava seu novo periódico, a Revista Médica Fluminense, Sigaud criava o seu próprio jornal científico, o Diário de Saúde. Após o encerramento da atividades do Diário de Saúde, ocorrido em 1836, Sigaud ocupou-se da redação do tratado sobre a higiene do Brasil. Desde então, dedicou-se exclusivamente à clínica privada e à pesquisa do material necessário. Em 1843, Sigaud retornou à França com dois objetivos: verificar as possibilidades de educação de sua filha cega e editar o livro Du Climat et des Maladies du Brésil. Statistique Médicale de cet Empire. Na 7 França, contou com a colaboração do estudioso da história e da literatura brasileira e principal mediador do contato cultural entre os intelectuais brasileiros e a cultura européia, Ferdinand Denis, que lhe cedeu raros documentos históricos que ajudaram na finalização da obra. Finalmente, em 1844, o livro foi editado pela Fortin, Masson et Cie Libraires de Paris. É o ápice da carreira de Sigaud como médico-higienista. A obra foi recebida com entusiasmo pela Academia Real de Medicina de Paris e mereceu também o elogio do rei da França, Luiz Filipe I, que o condecorou com a Cruz da Ordem Real da Legião de Honra. Na volta ao Brasil, Sigaud foi agraciado pelo jovem imperador Pedro II com o título de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, título aliás dado na mesma ocasião ao médico italiano Luiz Vicente De-Simoni, secretário perpétuo da AIM. A coincidência de homenagens talvez tivesse relação com a indiferença da AIM, que não deu nenhum destaque à publicação do livro. Até mesmo a notícia da morte Sigaud, ocorrida em 11 de outubro de 1856, não recebeu nenhum tratamento especial. Foi bem mais tarde, em 1858, que aquela instituição “rendeu homenagem” ao higienista, numa memória elaborada por Antônio Félix Martins e feita em cumprimento da burocrática tarefa de relatar a vida dos 13 sócios que haviam falecido entre 1850 e 18572. O clima e as doenças Brasil O livro Du Climat et des Maladies du Brésil pode ser considerado a obra síntese do pensamento higienista brasileiro da primeira metade do século XIX. Dividido em quatro partes - climatologia, geografia médica, patologia intertropical e estatística médica do Brasil -,essa obra enciclopédica tornou-se um clássico da higiene, sobretudo porque foi durante um longo tempo um dos poucos livros que tratavam especificamente do problema sanitário brasileiro. Por isso, foi citada constantemente nos melhores dicionários de medicina do século XIX, como, por exemplo, no Dictionnaire 2 Breve notícia biográfica dos treze membros da Academia Imperial de Medicina que faleceram no período de 1850 a 1857, lida na sessão anual de 1858, em presença de S. M. Imperial, pelo Sr. Dr. Antônio Félix Martins, membro efetivo da dita Academia.8 Encyclopedie des Sciences Medicales, de A. Dechambre (1876), no Nouveau Dictionnaire de Médicine et de Chirurgie, de Jaccoud (1868) e na Encyclopédie D’Hygiene et de Médicine Publique, de Jules Rochard (1890). Da mesma forma como os naturalistas vinham examinado a geologia, a geografia, o clima, a botânica e a zoologia e até mesmo a cultura própria do continente sul-americano, Sigaud pretendia desenvolver um estudo “puramente científico” da nosologia brasileira. Seu horizonte de análise, segundo ele define, estava estritamente limitado “à climatologia e ao exame das doença que compõem o domínio da patologia intertropical” (Sigaud, 1844, p.4). Não foram poucas as dificuldades encontradas pelo médico francês. Além do trabalho exaustivo de selecionar, no vasto acervo de conhecimentos já então produzidos sobre a história natural brasileira, informações relevantes sobre o clima e as doenças do país, Sigaud não pode contarcom os recursos materiais necessários para realizar satisfatoriamente seu ambicioso projeto. Sem contar como o apoio oficial da Academia Imperial de Medicina e do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, ele não pode se deslocar para a Bahia, Pernambuco e Lisboa, locais onde sabia existirem fontes históricas importantes. Por isso, os trabalhos publicados por seus colegas brasileiros nos periódicos médicos que circularam no Rio de Janeiro nas décadas de 1830 e 1840 foram, ao lado dos textos dos naturalistas estrangeiros (Humbolt, La Condamine, Newyed, Martius, Warden, Saint-Hilarie), seu principal material de pesquisa. Se a ausência de referências a documentos importantes sobre a saúde e a doença no Brasil durante o período colonial é um fato que, sem dúvida, fragiliza a obra de Sigaud, por outro lado, o uso intensivo da produção científica dos médicos locais contemporâneos atribui ao livro extrema relevância como expressão do pensamento médico brasileiro da primeira metade do século XIX. Minha leitura de Du Climat et des Maladies du Brésil parte do seguinte argumento: ainda que o higienista não tivesse a intenção de elaborar uma interpretação da sociedade brasileira tal como, na mesma época, se propunham os letrados vinculados ao IHGB, não podemos deixar de notar que, em virtude da própria orientação teórica adotada pelo autor, não poderia deixar de estar presente, como resultado indireto da análise sobre as 9 relações entre clima e doença, uma singular maneira de ver o Brasil. Gilberto Freyre parece ter sido o único grande pensador social brasileiro a notar a importância da obra científica de Sigaud para a compreensão da sociedade brasileira. Em Casa-Grande & Senzala e em Sobrados e Mocambos, o higienista francês aparece como um dos autores mais citados. Na sua obra mais famosa, o sociólogo dialoga com Du Climat et des Maladies du Brésil quanto trata da questão relacionada à insalubridade do clima tropical como obstáculo ao projeto colonizador português. Escrevendo numa época em que o clima já não era mais considerado “o senhor-deus-todo-poderoso de antigamente”, quando acreditava-se piamente que as doenças tropicas já estariam “amansadas quando não subjugadas pela higiene ou pela engenharia sanitária”, Gilberto Freyre, obviamente, não poderia concordar integralmente com as idéias de Sigaud. No entanto, é preciso notar que Casa Grande & Senzala remonta aos três primeiros séculos da epopéia colonizadora portuguesa no Brasil, tempo em que o clima deveria ser considerado em seu estado cru. Assim, ao descrever o clima aqui encontrado pelo colonizador português como sendo um “clima irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo”, Gilberto Freyre recupera o conceito presente em Du Climat et des Maladies du Brésil a respeito da importância do elemento climático no processo civilizador brasileiro. Além disso, outro um aspecto da obra de Sigaud explorado por Gilberto Freyre diz respeito aos hábitos culturais dos brasileiros, sobretudo os relacionados à alimentação. Tratando, em CGS, da gênese da cozinha brasileira, o sociólogo reconhece o pioneirismos de Sigaud, citando-o como o primeiro “que se ocupou com critério científico da alimentação brasileira” e como aquele que caracterizou a cozinha baiana como sendo a verdadeira cozinha nacional (Freyre, 1975, pp. 13, 14 , 457). Os dois pontos argutamente apreendidos por Gilberto Freyre sintetizam bem a essência da análise de Sigaud sobre as características patogênicas peculiares ao Brasil. Du Climat et des Maladies du Brésil pode ser lido como o relato do confronto entre um clima agressivo (quente, úmido, palustre) e o desenvolvimento de uma sociedade que se pretende apresentar como moderna e adequada ao ambiente natural. No fundo, o problema, tratado na forma de um sisudo tratado de higiene, é o da construção de um 10 estilo de vida civilizado e tropical. Como foi já comentado neste texto, Du Climat et des Maladies du Brésil foi escrito sob a influência do neo-hipocratismo - concepção ambiental da medicina que se apoiava na hipótese da relação intrínseca entre doença, natureza e cultura. A fidelidade de Sigaud a esses princípios pode ser aferida pelo exame das hipóteses que sustentam sua interpretação sobre a situação sanitária do Brasil. Antes mesmo antes das teorias raciais ganharem evidencia como paradigma dominante para a explicação dos problemas (ou virtudes) da sociedade, o higienista francês rejeitava, de pronto, a idéia de que o problema sanitário decorresse da composição racial brasileira. Mesmo reconhecendo a existência de patologias que acometiam de modo distinto brancos, negros e índios, para Sigaud, a mistura racial não teria produzido novas doenças ou modificado profundamente a constituição física dos brasileiros. O clima das localidades e o ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** ***************************************************************************************** *********************************************racasso o processo civilizador no ambiente tropical. Na verdade, ao tratar do clima brasileiro, Sigaud o decompunha em seus os elementos constitutivos - calor, umidade, eletricidade, ventos, produções do solo -, avaliando separadamente o papel de cada um deles no que tange à sua ação patogênica. Dessa maneira, o clima brasileiro não é visto como um todo. A relação entre clima e doença é estabelecida considerando o tipo de influência exercida por cada uma das suas diferentes formas de manifestação física. Trabalhado desta forma, Sigaud pôde escapar ao determinismo climático, concluindo que as 11 condições ambientais brasileiras, vistas em seu conjunto, não poderiam ser consideradas como essencialmente nocivas à vida humana e muito menos como obstáculo intransponível ao assentamento de uma cultura civilizada. Nesse aspecto, o ponto de vista de Siguad se aproxima da explicação romântica da natureza brasileira desenvolvida pelo seu colega, o médico e naturalista Emílio Joaquim da Silva Maia (Kury, 1999). No entanto,haveria no clima brasileiro um elemento patologicamente importante: a umidade. Ao clima úmido atribuía-se o problema da insalubridade do ar. Se a umidade era tida como a responsável pela variedade e densidade da flora tropical brasileira, o mesmo fator climático também atuaria negativamente acelerando o processo de decomposição da matéria orgânica vegetal e animal. O resultado disso seria a constituição de um clima palustre, isto é, um estado constante de contaminação do ar causado pelas emanações (miasmas) resultantes da decomposição orgânica. A presença excessiva do “elemento palustre” atribuiria singularidade à patologia brasileira, fazendo com que as febres (malignas e benignas) de origem miasmática se apresentassem como as doenças tipicamente nacionais. Dominado pelas febres causadas pela intoxicação paludosa, o quadro da patologia brasileira apresentaria apenas uma outra doença cuja origem poderia ser diretamente relacionada ao clima: a opilação. Doença amplamente disseminada entre os escravos (Karasch, 1987) e reconhecida popularmente em virtude dos seus sintomas característicos, a debilidade física - cansaço - e a geofagia - hábito de comer terra -, a opilação tornou-se um problema científico na década de 1830 quando o médico brasileiro José Martins da Cruz Jobim - também um dos fundadores da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro - definiu-a como o resultado da ação deletéria do clima tropical sobre o sangue. Por isso, Jobim deu à doença o nome de hipoemia intertropical, denominação que, segundo o médico, definiria um tipo de anemia exclusivamente tropical.3 Para Sigaud, a hipoemia dos trópicos era, de fato, o “sinete e chancela da zona tórrida” (Sigaud, op.cit., p. 313), 3 Discurso sobre as moléstias que mais afligem a classe pobre do Rio de Janeiro; lido na sessào pública da Academia Imperial de Medicina, a 30 de junho de 1835, pelo seu presidente José Martins da Cruz Jobim. Rio de Janeiro, Tipografia Fluminense de Brito e Cia. 12 uma vez que nenhuma doença semelhante podia ser encontrada na Europa. Mesmo assim, haveria medidas preventivas passíveis de serem adotadas para evitar o acometimento. O principal cuidado recomendo pelo higienista dizia respeito à necessidade de se alterar a alimentação típica dos grupos sociais afetados (escravos e trabalhadores livres pobres), formada basicamente de milho, mandioca, arroz e feijão. Apesar de contestada desde do final da década de 1860, a tese climática da origem da opilação esteve em voga até o final dos século XIX (Edler, 1999). O declínio da hipoemia intertropical coincidiu exatamente com a ascensão do movimento sanitarista que, durante a primeira república, contestou o determinismo climático e racial na explicação da singularidade patológica e social brasileira (Lima & Hochman, 1998; Lima 1999). Nesse contexto, a opilação alcançou ainda mais evidência, sendo descrita como uma doença parasitária - ancilostomose - que, ao lado da malária e da doença de Chagas, compunha o quadro das três mais importantes doenças do homem brasileiro. Uma vez que o clima brasileiro não ser visto como uma ameaça incontornável à saúde, Sigaud podia considerar como perfeitamente viável a aclimatação do europeu no Brasil. Na verdade, o problema da adaptação do imigrante europeu aos trópicos não deveria ser buscado no clima mas sim na cultura alimentar inadequada às condições de vida sob calor e umidade intensos. Por isso, recomendava o abandono dos hábitos alimentares típicos do velho mundo em favor de uma alimentação mais sóbria que excluía o uso de bebidas alcoólicas e do leite, além da adoção de certos cuidados higiênicos como, por exemplo, a moderação na atividade sexual. Finalmente, essa visão relativamente positiva do quadro climático brasileiro, de cuja ação patogênica se destacavam apenas as “febres palustres” e a hipoemia intertropical, ficava ainda mais realçada pela análise desenvolvida por Sigaud da história das epidemias do Brasil. Para o higienista, ainda que tenha sido comum, durante o período colonial, a ocorrência de graves epidemias de varíola, sarampo, gripe, disenteria e, é claro, de “febres palustres”, era preciso notar que, no território brasileiro, não havia registro de ocorrência de epidemias dos três maiores flagelos da história médica de então: a peste, o cólera e a febre amarela. Essa teria sido 13 a herança positiva do isolamento imposto pelo domínio colonial português. Na primeira metade do século XIX, época em que a Europa, a América do Norte e Ásia serviam de cenário para arrasadoras epidemias de alguma daquelas doenças, o fato do Brasil permanecer como uma região isenta fazia sobressair ainda mais a salubridade do clima. Considerações finais A imagem positiva do Brasil no que diz respeito à sua salubridade se modificaria radicalmente a partir de 1850. A manifestação das primeiras epidemias de cólera e febre amarela no Rio de Janeiro e na Bahia abalou seriamente a convicção presente entre os médicos de que o Brasil era um país são. Desde então, o discurso produzido pelos médicos ressalta a necessidade de se agir energicamente no campo da saúde pública, uma vez que as epidemias ameaçavam seriamente a economia e ordem social (Chalhoub, 1994). Dessa maneira, o pensamento médico do século XIX preparava terreno para a grande investida sanitarista da Primeira República. 14 Referências Bibliográficas Ackerknecht, Erwin (1948). ‘Anticontagionism between 1821 and 1848’.In: Bulletin of History of Medicine, nº 22, pp.562-593. Chalhoub, Sidiney (1994). Cidade Febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. Tese de livre-docência. Unicamp, Departamento de História. Edler, Flávio Coelho (1999). 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