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ARTIGO - Uma Interpretação Higienista do Brasil - Medicina e Pensamento Social no Império

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1
 
 
Uma Interpretação Higienista do Brasil: Medicina e Pensamento Social no 
Império 
 
 
 
Luiz Otávio Ferreira 
Casa de Oswaldo Cruz - FIOCRUZ 
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ 
 
 
 
 
 
Introdução 
 
 Durante o período colonial, a medicina não foi uma fonte importante 
de produção de imagens e de interpretações sobre o Brasil. A diminuta 
presença dos médicos no cenário social da Colônia fez com que coubesse 
aos cronistas e naturalistas o registro de impressões sobre a doença e a 
saúde no território brasileiro. Inspirada em uma visão edênica do novo mundo 
(Holanda, 1994), a imagem paradisíaca da salubridade brasileira foi 
gradualmente substituída por uma avaliação pragmática que destacava as 
enormes dificuldades impostas pelo mundo natural hostil ao trabalho de 
ocupação e exploração colonial (Ribeiro, 1997). Mesmo que se possa atribuir 
ao conquistador europeu a disseminação das mais graves doenças 
observadas naquele período - varíola, sarampo, tuberculose, sífilis -, a 
verdade é que, cada vez mais, o mito da salubridade das terras brasileira 
deixava de se aproximar da realidade . 
 Foi porém na década de 1830 que uma mudança significativa na 
avaliação da salubridade do Brasil começou a ser percebida. A elaboração 
da nova percepção médica do país esteve aliada ao inédito esforço de 
afirmação profissional da medicina. Atuando na capital do Império, os 
médicos desejavam estabelecer sua autoridade e controle sobre assuntos 
relativos ao exercício profissional e à organização da saúde pública. Todavia, 
 2
o mais importante é que eles empenharam-se em produzir uma leitura 
original do quadro sanitário, cujo resultado mais importante foi a redefinição 
da importância das condições sócio-ambientais brasileiras como fonte 
geradora de velhas e novas patologias (Ferreira, 1999). 
 A fundação, em 1829, da Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro 
(SMRJ), entidade que, em 1835, seria transformada na Academia Imperial de 
Medicina (AIM), está relacionada ao início da institucionalização da higiene 
no Brasil. É unanimidade entre os historiadores da medicina que em torno 
das duas sociedades médicas formou-se o grupo mais representativo desse 
novo estilo de medicina dedicada à tarefa de medicalização da sociedade. 
Partindo disso, procurou-se estudar suas estratégias discursivas e políticas 
no sentido de garantir a implantação da higiene e a defesa da ciência médica 
(Machado,1978; Luz,1982). Uma outra leitura da presença social da SMRJ e 
da AIM destaca o dilema ideológico dos médicos quanto à viabilidade de 
implantação de uma sociedade civilizada nos trópicos, na medida que 
atribuía-se às condições naturais da européias o seu “avançado” estágio de 
civilização (Kury,1994). Essas duas interpretações não são excludentes, uma 
vez que entre final o século XVIII e início do XIX a higiene tornou-se um 
paradigma dominante quando assunto em questão era o processo civilizador. 
 O advento da higiene foi simultâneo às transformações institucionais 
e científicas relacionadas ao chamado “nascimento da clínica” 
(Foucault,1980). Todavia, esse movimento teve sua própria história política e 
científica. O higienismo estava relacionado ao chamado neo-hipocratismo, 
uma concepção ambientalista da medicina baseada na hipótese da relação 
intrínseca entre doença, ambiente e sociedade (Lécury,1986; Jordonova, 
1979). Teoricamente, a medicina neo-hipocrática apoiava-se em dois 
conceitos básicos: o de constituição médica e o de topografia médica. Por 
constituição médica entendia-se as possíveis relações de causa e efeito entre 
as características do meio ambiente e a manifestação coletiva de uma 
determinada doença. Já o conceito de topografia médica era definido com as 
implicações entre as diferentes doenças observadas numa mesma área 
geográfica. 
 O neo-hipocratismo também se distinguia por duas peculiaridades, 
uma comprovada e outra que ainda é objeto de controvérsias entre os 
 3
historiadores. A primeira delas foi a convicção de que as doenças 
contagiosas eram predominantemente transmitidas pelo ar. A segunda seria 
a oposição entre as noções de contágio e de infecção, divergência que 
supostamente teria divido os higienistas em dois partidos: os contagionistas e 
os anticontagionistas (Ackerknecht, 1948). Para os contagionistas, uma 
doença poderia ser transmitida diretamente pelo contato físico entre os 
indivíduos ou indiretamente pelo manuseio de objetos contaminados pelos 
doentes ou pela respiração do ar ambiente igualmente contaminado. Dessa 
maneira, na concepção contagionista, uma doença produzida por 
determinadas condições ambientais poderia seguir se propagando 
independentemente da continuação das causas originais. Ao contrário disso, 
os anticontagionistas não acreditavam que uma doença pudesse ser 
adquirida independentemente das condições ambientais que haviam 
propiciado a sua manifestação. Não haveria, portanto, transmissão por 
contágio direto; a única possibilidade seria por via indireta, quando um 
indivíduo doente contaminava o ar ambiente que o circundava. 
 A higiene teve fortes afinidades com o despotismo esclarecido 
europeu, contexto ideológico no qual firmou-se a consciência da necessidade 
da intervenção do governo na saúde pública (Rosen,1994). A partir disso, 
idealizou-se a criação de uma imensa rede de agentes capazes de informar e 
intervir sobre o comportamento demográfico da população (nascimento, 
morte, casamento, migração, raça) e suas condições de trabalho, habitação, 
alimentação e saúde; estudar sistematicamente o clima e a geografia das 
diferentes regiões; registrar o número e a qualificação dos médicos e 
fiscalizar a prática da medicina; estabelecer o controle médico-estatal sobre 
os hospitais, escolas, asilos, cadeias, cemitérios, prostíbulos; descrever o 
quadro nosológico de cada cidade ou região, etc. Todos esses procedimentos 
estariam garantidos pela aplicação enérgica de uma complexa legislação 
sanitária que regularia o comportamento coletivo das populações, sobretudo 
as urbanas. 
 A tradução desses princípios higienistas para o contexto social 
brasileiro da primeira metade do século XIX foi o maior êxito obtido pela 
SMRJ e pela AIM. Todavia, é preciso observar que aquelas sociedades 
científicas não estiveram à frente de um movimento higienista de ampla 
 4
repercussão política e mobilização social. Isto, de fato, não aconteceu. Na 
verdade, a tradução dos princípios higienistas ficou restrita à primeira 
invenção dos problemas médico-sanitários do país (Ferreira, 1996). 
 
Um higienista francês na Corte Imperial 
 
 O principal responsável por este trabalho de tradução foi o médico e 
higienista francês José Francisco Xavier Sigaud (1796-1856). Sigaud chegou 
ao Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1825, trazendo uma carta do Ministro 
dos Negócios Estrangeiros da França endereçada ao Cônsul Geral daquele 
país no Rio de Janeiro. A carta recomendava-o como médico e naturalista 
interessado em clinicar e em desenvolver estudos de história natural pelo 
interior do Brasil. 
 Formado pela Faculdade de Medicina de Etrasburgo, Sigaud obteve, 
em 1818, o título de doutor em medicina com uma tese sobre tísica laríngea. 
Iniciou sua carreira profissional como cirurgião-interno do Hospital Geral de 
Caridade de Lyon. Convencido pela família, foi clinicar em sua terra natal, 
Marseille, onde tornou-se membro titular e secretário da Sociedade Real de 
Medicina daquela cidade. Lá fundou e dirigiu, entre 1823 e 1825, o periódico 
médico Asclepíade, no qual publicou um trabalho sobre a epidemia de febre 
amarela que avassalou a cidade de Barcelona no ano de 1822. 
 O ambiente antibonapartista que caracterizou o reinado de Carlos X na 
França obrigou-o a imigrar para o Brasil. Apesar de tão distante, a escolha de 
seu novo lar não deve surpreender-nos. O Brasil, destacadamente presentenas notícias em virtude de sua então recente declaração de independência, já 
possuía fortes laços culturais com a França. Economicamente, as 
perspectivas do país em 1823 devem ter parecido ao menos tão brilhantes 
quanto as dos Estados Unidos. Politicamente, a situação era tudo o que se 
poderia desejar. Desde Waterloo, o Brasil era sabidamente um refúgio para 
os bonapartistas (Hallewell, 1985). 
 No Rio de Janeiro, Sigaud aproximou-se de seu compatriota, o 
livreiro-editor Pierre Plancher, que pelas mesmas razões políticas também 
havia imigrado para o Brasil. A experiência anterior como editor fez de Sigaud 
o principal colaborador de Plancher no Spectador Brasileiro, jornal impresso 
 5
pelo editor francês desde 1824. Mais tarde, em 1827, participou ativamente 
do lançamento do mais famoso e bem-sucedido empreendimento comercial 
de Plancher, o Jornal do Commercio, do qual foi editor. Foi também, naquele 
mesmo ano, um dos editores do Aurora Fluminense, jornal político-literário 
criado por ele junto com José Apolinário de Morais e o cirurgião Francisco 
Crispiano Vaderato. 
 A dupla Sigaud-Plancher teve grande importância para a história da 
imprensa brasileira do Primeiro Império e do período regencial, 
particularmente para a história periodismo médico. Foi deles a iniciativa 
de publicar o primeiro periódico médico brasileiro, O Propagador das Ciências 
Médicas, que circulou entre os anos de 1827 e 1828. Em 1835, eles 
lançaram um outro periódico destinado ao público médico, o Diário de Saúde, 
que circulou até o início de 1836. 
 Foi como editor que Sigaud ficou conhecido no Rio de Janeiro. Sua 
experiência européia como secretário da Real Academia de Medicina de 
Marseille e a de editor de periódicos médicos fez com que fosse procurado 
para participar da criação da SMRJ. Sigaud foi o principal formulador das 
idéias higienistas defendidas por aquela instituição. 
 Na SMRJ Sigaud apresentou, em 1832, o primeiro trabalho onde 
expunha suas idéias a respeito do problema sanitário brasileiro: Discurso 
sobre a Estatística Médica do Brasil. A idéia de elaboração de uma estatística 
médica do Brasil ajustava-se perfeitamente aos propósitos da SMRJ, uma 
vez que um dos motivos que levaram à criação daquela entidade médica foi a 
constatação de que no país desconheciam-se os mais elementares cuidados 
com a saúde pública. Foi nessa ocasião que Sigaud apresentou o 
argumento de que o estudo das complexas relações entre o clima e as 
doenças constituía a abordagem científica que possibilitava a real elucidação 
das causas das endemias, epidemias e doenças esporádicas que se 
manifestavam no país. Para ele, a complexidade do quadro nosológico 
brasileiro seria expressão direta da diversidade geográfica e climática país.1 
 Originalmente pensado como um projeto coletivo da SMRJ, a 
 
1 Discurso sobre a Estatística Médica do Brasil, lido na Sociedade de Medicina do Rio de 
Janeiro na Sessão Púlbica de 30 de Junho de 1832, aniversário de fundação da 
Sociedade, pelo Dr. José Francisco Sigaud, Presidente da mesma Sociedade. Rio de 
Janeiro, Tipografia Imperial e Constitucional de E. Seignot-Plancher, 1832, pp.16-17 
 6
elaboração da estatística médica do Brasil foi um empreendimento realizado 
individualmente por Sigaud. A razão disso foram os constantes conflitos entre 
o higienista francês e os membros mais importantes daquela instituição. 
 Os desentendimentos parecem ter começado por ocasião dos 
concursos para ocupação das primeiras cátedras da Faculdade de Medicina 
do Rio de Janeiro, instituição de ensino criada em 1832 a partir de um plano 
elaborado pela SMRJ. Como ocorreu com quase todos os fundadores da 
SMRJ, Sigaud também desejou ocupar um posto acadêmico na nova 
faculdade, especificamente a cadeira de Medicina Legal. Contudo, não foi 
admitido e o posto foi ocupado pelo médico José Martins da Cruz Jobim, o 
mais jovem dos fundadores da SMRJ. Sigaud não pôde sequer participar do 
concurso, uma vez que alegou-se que a legislação determinava que somente 
na falta de brasileiros as cátedras das escolas de ensino superior do Império 
poderiam ser ocupadas por estrangeiros. Houve uma segunda tentativa, na 
qual Sigaud também não obteve sucesso, com a cátedra de Clínica Interna, 
que acabou sendo ocupada pelo cirurgião-formado Manoel Valadão Pimentel, 
o futuro Barão de Petrópolis, professor da extinta Academia Médico-Cirúrgica 
do Rio de Janeiro. 
 Não temos informações suficientes para avaliar o quanto ficaram 
abaladas as relações pessoais entre os líderes da SMRJ com o episódio dos 
sucessivos vetos ao nome de Sigaud. O que é possível notar é que, depois 
disso, o nome do higienista francês pouco aparece nas atas das reuniões da 
sociedade. Também é preciso notar que após ter sido o idealizador e editor 
do Semanário de Saúde Pública, o primeiro periódico da SMRJ que circulou 
de 1831 a 1833, Sigaud veio a tornar-se, em 1835, um concorrente no campo 
do periodismo médico. No mesmo momento em que a SMRJ lançava seu 
novo periódico, a Revista Médica Fluminense, Sigaud criava o seu próprio 
jornal científico, o Diário de Saúde. 
 Após o encerramento da atividades do Diário de Saúde, ocorrido em 
1836, Sigaud ocupou-se da redação do tratado sobre a higiene do Brasil. 
Desde então, dedicou-se exclusivamente à clínica privada e à pesquisa do 
material necessário. Em 1843, Sigaud retornou à França com dois objetivos: 
verificar as possibilidades de educação de sua filha cega e editar o livro Du 
Climat et des Maladies du Brésil. Statistique Médicale de cet Empire. Na 
 7
França, contou com a colaboração do estudioso da história e da literatura 
brasileira e principal mediador do contato cultural entre os intelectuais 
brasileiros e a cultura européia, Ferdinand Denis, que lhe cedeu raros 
documentos históricos que ajudaram na finalização da obra. 
 Finalmente, em 1844, o livro foi editado pela Fortin, Masson et Cie 
Libraires de Paris. É o ápice da carreira de Sigaud como médico-higienista. A 
obra foi recebida com entusiasmo pela Academia Real de Medicina de Paris 
e mereceu também o elogio do rei da França, Luiz Filipe I, que o condecorou 
com a Cruz da Ordem Real da Legião de Honra. Na volta ao Brasil, Sigaud foi 
agraciado pelo jovem imperador Pedro II com o título de Cavaleiro da Ordem 
Imperial do Cruzeiro, título aliás dado na mesma ocasião ao médico italiano 
Luiz Vicente De-Simoni, secretário perpétuo da AIM. A coincidência de 
homenagens talvez tivesse relação com a indiferença da AIM, que não deu 
nenhum destaque à publicação do livro. Até mesmo a notícia da morte 
Sigaud, ocorrida em 11 de outubro de 1856, não recebeu nenhum tratamento 
especial. Foi bem mais tarde, em 1858, que aquela instituição “rendeu 
homenagem” ao higienista, numa memória elaborada por Antônio Félix 
Martins e feita em cumprimento da burocrática tarefa de relatar a vida dos 13 
sócios que haviam falecido entre 1850 e 18572. 
 
 
O clima e as doenças Brasil 
 
 O livro Du Climat et des Maladies du Brésil pode ser considerado a 
obra síntese do pensamento higienista brasileiro da primeira metade do 
século XIX. Dividido em quatro partes - climatologia, geografia médica, 
patologia intertropical e estatística médica do Brasil -,essa obra enciclopédica 
tornou-se um clássico da higiene, sobretudo porque foi durante um longo 
tempo um dos poucos livros que tratavam especificamente do problema 
sanitário brasileiro. Por isso, foi citada constantemente nos melhores 
dicionários de medicina do século XIX, como, por exemplo, no Dictionnaire 
 
2 Breve notícia biográfica dos treze membros da Academia Imperial de Medicina que 
faleceram no período de 1850 a 1857, lida na sessão anual de 1858, em presença de S. M. 
Imperial, pelo Sr. Dr. Antônio Félix Martins, membro efetivo da dita Academia.8
Encyclopedie des Sciences Medicales, de A. Dechambre (1876), no Nouveau 
Dictionnaire de Médicine et de Chirurgie, de Jaccoud (1868) e na 
Encyclopédie D’Hygiene et de Médicine Publique, de Jules Rochard (1890). 
 Da mesma forma como os naturalistas vinham examinado a geologia, 
a geografia, o clima, a botânica e a zoologia e até mesmo a cultura própria do 
continente sul-americano, Sigaud pretendia desenvolver um estudo 
“puramente científico” da nosologia brasileira. Seu horizonte de análise, 
segundo ele define, estava estritamente limitado “à climatologia e ao exame 
das doença que compõem o domínio da patologia intertropical” (Sigaud, 
1844, p.4). 
 Não foram poucas as dificuldades encontradas pelo médico francês. 
Além do trabalho exaustivo de selecionar, no vasto acervo de conhecimentos 
já então produzidos sobre a história natural brasileira, informações relevantes 
sobre o clima e as doenças do país, Sigaud não pode contarcom os recursos 
materiais necessários para realizar satisfatoriamente seu ambicioso projeto. 
Sem contar como o apoio oficial da Academia Imperial de Medicina e do 
Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, ele não pode se deslocar para a 
Bahia, Pernambuco e Lisboa, locais onde sabia existirem fontes históricas 
importantes. Por isso, os trabalhos publicados por seus colegas brasileiros 
nos periódicos médicos que circularam no Rio de Janeiro nas décadas de 
1830 e 1840 foram, ao lado dos textos dos naturalistas estrangeiros 
(Humbolt, La Condamine, Newyed, Martius, Warden, Saint-Hilarie), seu 
principal material de pesquisa. Se a ausência de referências a documentos 
importantes sobre a saúde e a doença no Brasil durante o período colonial é 
um fato que, sem dúvida, fragiliza a obra de Sigaud, por outro lado, o uso 
intensivo da produção científica dos médicos locais contemporâneos atribui 
ao livro extrema relevância como expressão do pensamento médico brasileiro 
da primeira metade do século XIX. 
 Minha leitura de Du Climat et des Maladies du Brésil parte do seguinte 
argumento: ainda que o higienista não tivesse a intenção de elaborar uma 
interpretação da sociedade brasileira tal como, na mesma época, se 
propunham os letrados vinculados ao IHGB, não podemos deixar de notar 
que, em virtude da própria orientação teórica adotada pelo autor, não poderia 
deixar de estar presente, como resultado indireto da análise sobre as 
 9
relações entre clima e doença, uma singular maneira de ver o Brasil. 
 Gilberto Freyre parece ter sido o único grande pensador social 
brasileiro a notar a importância da obra científica de Sigaud para a 
compreensão da sociedade brasileira. Em Casa-Grande & Senzala e em 
Sobrados e Mocambos, o higienista francês aparece como um dos autores 
mais citados. Na sua obra mais famosa, o sociólogo dialoga com Du Climat 
et des Maladies du Brésil quanto trata da questão relacionada à insalubridade 
do clima tropical como obstáculo ao projeto colonizador português. 
Escrevendo numa época em que o clima já não era mais considerado “o 
senhor-deus-todo-poderoso de antigamente”, quando acreditava-se 
piamente que as doenças tropicas já estariam “amansadas quando não 
subjugadas pela higiene ou pela engenharia sanitária”, Gilberto Freyre, 
obviamente, não poderia concordar integralmente com as idéias de Sigaud. 
No entanto, é preciso notar que Casa Grande & Senzala remonta aos três 
primeiros séculos da epopéia colonizadora portuguesa no Brasil, tempo em 
que o clima deveria ser considerado em seu estado cru. Assim, ao descrever 
o clima aqui encontrado pelo colonizador português como sendo um “clima 
irregular, palustre, perturbador do sistema digestivo”, Gilberto Freyre recupera 
o conceito presente em Du Climat et des Maladies du Brésil a respeito da 
importância do elemento climático no processo civilizador brasileiro. Além 
disso, outro um aspecto da obra de Sigaud explorado por Gilberto Freyre diz 
respeito aos hábitos culturais dos brasileiros, sobretudo os relacionados à 
alimentação. Tratando, em CGS, da gênese da cozinha brasileira, o sociólogo 
reconhece o pioneirismos de Sigaud, citando-o como o primeiro “que se 
ocupou com critério científico da alimentação brasileira” e como aquele que 
caracterizou a cozinha baiana como sendo a verdadeira cozinha nacional 
(Freyre, 1975, pp. 13, 14 , 457). 
 Os dois pontos argutamente apreendidos por Gilberto Freyre 
sintetizam bem a essência da análise de Sigaud sobre as características 
patogênicas peculiares ao Brasil. Du Climat et des Maladies du Brésil pode 
ser lido como o relato do confronto entre um clima agressivo (quente, úmido, 
palustre) e o desenvolvimento de uma sociedade que se pretende apresentar 
como moderna e adequada ao ambiente natural. No fundo, o problema, 
tratado na forma de um sisudo tratado de higiene, é o da construção de um 
 10
estilo de vida civilizado e tropical. 
 Como foi já comentado neste texto, Du Climat et des Maladies du 
Brésil foi escrito sob a influência do neo-hipocratismo - concepção ambiental 
da medicina que se apoiava na hipótese da relação intrínseca entre doença, 
natureza e cultura. A fidelidade de Sigaud a esses princípios pode ser aferida 
pelo exame das hipóteses que sustentam sua interpretação sobre a situação 
sanitária do Brasil. Antes mesmo antes das teorias raciais ganharem 
evidencia como paradigma dominante para a explicação dos problemas (ou 
virtudes) da sociedade, o higienista francês rejeitava, de pronto, a idéia de 
que o problema sanitário decorresse da composição racial brasileira. Mesmo 
reconhecendo a existência de patologias que acometiam de modo distinto 
brancos, negros e índios, para Sigaud, a mistura racial não teria produzido 
novas doenças ou modificado profundamente a constituição física dos 
brasileiros. O clima das localidades e o 
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*********************************************racasso o processo civilizador no 
ambiente tropical. Na verdade, ao tratar do clima brasileiro, Sigaud o 
decompunha em seus os elementos constitutivos - calor, umidade, 
eletricidade, ventos, produções do solo -, avaliando separadamente o papel 
de cada um deles no que tange à sua ação patogênica. Dessa maneira, o 
clima brasileiro não é visto como um todo. A relação entre clima e doença é 
estabelecida considerando o tipo de influência exercida por cada uma das 
suas diferentes formas de manifestação física. Trabalhado desta forma, 
Sigaud pôde escapar ao determinismo climático, concluindo que as 
 11
condições ambientais brasileiras, vistas em seu conjunto, não poderiam ser 
consideradas como essencialmente nocivas à vida humana e muito menos 
como obstáculo intransponível ao assentamento de uma cultura civilizada. 
Nesse aspecto, o ponto de vista de Siguad se aproxima da explicação 
romântica da natureza brasileira desenvolvida pelo seu colega, o médico e 
naturalista Emílio Joaquim da Silva Maia (Kury, 1999). 
 No entanto,haveria no clima brasileiro um elemento patologicamente 
importante: a umidade. Ao clima úmido atribuía-se o problema da 
insalubridade do ar. Se a umidade era tida como a responsável pela 
variedade e densidade da flora tropical brasileira, o mesmo fator climático 
também atuaria negativamente acelerando o processo de decomposição da 
matéria orgânica vegetal e animal. O resultado disso seria a constituição de 
um clima palustre, isto é, um estado constante de contaminação do ar 
causado pelas emanações (miasmas) resultantes da decomposição orgânica. 
A presença excessiva do “elemento palustre” atribuiria singularidade à 
patologia brasileira, fazendo com que as febres (malignas e benignas) de 
origem miasmática se apresentassem como as doenças tipicamente 
nacionais. 
 Dominado pelas febres causadas pela intoxicação paludosa, o quadro 
da patologia brasileira apresentaria apenas uma outra doença cuja origem 
poderia ser diretamente relacionada ao clima: a opilação. Doença 
amplamente disseminada entre os escravos (Karasch, 1987) e reconhecida 
popularmente em virtude dos seus sintomas característicos, a debilidade 
física - cansaço - e a geofagia - hábito de comer terra -, a opilação tornou-se 
um problema científico na década de 1830 quando o médico brasileiro José 
Martins da Cruz Jobim - também um dos fundadores da Sociedade de 
Medicina do Rio de Janeiro - definiu-a como o resultado da ação deletéria 
do clima tropical sobre o sangue. Por isso, Jobim deu à doença o nome de 
hipoemia intertropical, denominação que, segundo o médico, definiria um tipo 
de anemia exclusivamente tropical.3 Para Sigaud, a hipoemia dos trópicos 
era, de fato, o “sinete e chancela da zona tórrida” (Sigaud, op.cit., p. 313), 
 
3 Discurso sobre as moléstias que mais afligem a classe pobre do Rio de Janeiro; lido na 
sessào pública da Academia Imperial de Medicina, a 30 de junho de 1835, pelo seu 
presidente José Martins da Cruz Jobim. Rio de Janeiro, Tipografia Fluminense de Brito e 
Cia. 
 12
uma vez que nenhuma doença semelhante podia ser encontrada na Europa. 
Mesmo assim, haveria medidas preventivas passíveis de serem adotadas 
para evitar o acometimento. O principal cuidado recomendo pelo higienista 
dizia respeito à necessidade de se alterar a alimentação típica dos grupos 
sociais afetados (escravos e trabalhadores livres pobres), formada 
basicamente de milho, mandioca, arroz e feijão. 
 Apesar de contestada desde do final da década de 1860, a tese 
climática da origem da opilação esteve em voga até o final dos século XIX 
(Edler, 1999). O declínio da hipoemia intertropical coincidiu exatamente com 
a ascensão do movimento sanitarista que, durante a primeira república, 
contestou o determinismo climático e racial na explicação da singularidade 
patológica e social brasileira (Lima & Hochman, 1998; Lima 1999). Nesse 
contexto, a opilação alcançou ainda mais evidência, sendo descrita como 
uma doença parasitária - ancilostomose - que, ao lado da malária e da 
doença de Chagas, compunha o quadro das três mais importantes doenças 
do homem brasileiro. 
 Uma vez que o clima brasileiro não ser visto como uma ameaça 
incontornável à saúde, Sigaud podia considerar como perfeitamente viável a 
aclimatação do europeu no Brasil. Na verdade, o problema da adaptação do 
imigrante europeu aos trópicos não deveria ser buscado no clima mas sim na 
cultura alimentar inadequada às condições de vida sob calor e umidade 
intensos. Por isso, recomendava o abandono dos hábitos alimentares típicos 
do velho mundo em favor de uma alimentação mais sóbria que excluía o uso 
de bebidas alcoólicas e do leite, além da adoção de certos cuidados 
higiênicos como, por exemplo, a moderação na atividade sexual. 
 Finalmente, essa visão relativamente positiva do quadro climático 
brasileiro, de cuja ação patogênica se destacavam apenas as “febres 
palustres” e a hipoemia intertropical, ficava ainda mais realçada pela análise 
desenvolvida por Sigaud da história das epidemias do Brasil. Para o 
higienista, ainda que tenha sido comum, durante o período colonial, a 
ocorrência de graves epidemias de varíola, sarampo, gripe, disenteria e, é 
claro, de “febres palustres”, era preciso notar que, no território brasileiro, não 
havia registro de ocorrência de epidemias dos três maiores flagelos da 
história médica de então: a peste, o cólera e a febre amarela. Essa teria sido 
 13
a herança positiva do isolamento imposto pelo domínio colonial português. Na 
primeira metade do século XIX, época em que a Europa, a América do 
Norte e Ásia serviam de cenário para arrasadoras epidemias de alguma 
daquelas doenças, o fato do Brasil permanecer como uma região isenta fazia 
sobressair ainda mais a salubridade do clima. 
 
 
 
 
 
 
 
Considerações finais 
 
 A imagem positiva do Brasil no que diz respeito à sua salubridade se 
modificaria radicalmente a partir de 1850. A manifestação das primeiras 
epidemias de cólera e febre amarela no Rio de Janeiro e na Bahia abalou 
seriamente a convicção presente entre os médicos de que o Brasil era um 
país são. Desde então, o discurso produzido pelos médicos ressalta a 
necessidade de se agir energicamente no campo da saúde pública, uma vez 
que as epidemias ameaçavam seriamente a economia e ordem social 
(Chalhoub, 1994). Dessa maneira, o pensamento médico do século XIX 
preparava terreno para a grande investida sanitarista da Primeira República. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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