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O terceiro de boa-fé - FÁBIO CALDAS DE ARAÚJO - 2020

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05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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CAPA
CAPA
05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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FICHA CATALOGRÁFICA
FICHA CATALOGRÁFICA
Ficha catalográfica
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Araújo, Fábio Caldas de
O terceiro de boa-fé [livro eletrônico] : proteção na aquisição de bens móveis e
imóveis / Fábio Caldas de Araújo. -- 1. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil,
2020.
6 Mb ; ePUB
1 ed. e-book baseada na 1 ed. impressa.
Bibliografia
ISBN 978-65-5065-399-6
1. Boa-fé (Direito) 2. Contratos 3. Direito imobiliário 4. Direito imobiliário - Brasil
5. Imóveis - Leis e legislação I. Título.
20-35404 CDU-347.44:347.141.8
Índices para catálogo sistemático:
1. Boa-fé : Contratos : Obrigações : Direito civil 347.44:347.141.8
2. Contratos de boa-fé : Obrigações : Direito civil347.44:347.141.8
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI
1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI
1
A Sociedade de Consumo no Século XXI
1.1. O consumo e a circulação de bens
O consumo não pode ser definido como uma peculiaridade da sociedade
moderna. A sobrevivência do ser humano sempre dependeu do consumo fundado
na apropriação natural ou comercial de bens.1 O consumo se perfaz pela aquisição
e fruição de bens. Os bens são tutelados pelo sistema jurídico, o qual disciplina os
meios legais de pacificação sobre a sua disputa. De acordo com clássica lição de
Carnelutti, os bens representam o motivo essencial das disputas judiciais, pois os
bens são limitados e os interesses ilimitados, o que gera a necessidade de meios
racionais para o regramento dos conflitos sociais.2 - 3
O que marca o período moderno é o consumo em massa e de modo
globalizado. Muito embora o ato de consumir seja uma constante histórica, o
consumo do homem moderno é diverso do da antiguidade. A preocupação, nos
primórdios da civilização, para a maioria das pessoas, residia unicamente no ato
de sobreviver.4 O ato de consumir estava intimamente ligado à subsistência do
núcleo familiar. No período medieval as cidades desenvolvem-se ao redor dos
feudos, como meio de proteção mútua e como meio de associação e cooperação.5
Os burgos nascem pela busca de um local estável em que as pessoas possam se
estabelecer e viver com razoável segurança.6 Somente no período moderno, com
o desenvolvimento social e econômico, é possível observar a formação de uma
administração municipal e de uma classe burguesa que fornecerá um novo modelo
social, econômico e jurídico.7 Neste período de transição do período medieval para
o moderno, o crescimento do consumo e o acesso aos “novos mundos”,
especialmente ante ao extraordinário desenvolvimento da navegação portuguesa,
por meio da escola de Sagres, tornou possível o acesso à Índia pelo Ocidente, por
meio do contorno ao Cabo da Boa Esperança, cuja tarefa foi empreendida por
Vasco da Gama, no ano de 1499. Outro grande navegador português, Pedro
Álvares Cabral, seria responsável por outro grande feito, a descoberta do Brasil, no
ano de 1500. A expansão geográfica propiciou novos horizontes e fontes de
abastecimento para o continente europeu.
A descoberta do caminho das Índias pela rota ocidental abriu uma nova fonte
para o comércio e consumo de especiarias. O monopólio de Gênova e Veneza é
quebrado, pois ambas as cidades eram abastecidas pelos portos de Tripoli,
Alexandria e Constantinopla.8 Esta última cidade já havia interrompido o
abastecimento com sua tomada pelos Turcos Otomanos no ano de 1453. O
volume comercial cresceria gradualmente pela descoberta de produtos até então
desconhecidos e que conferiam um enriquecimento aos hábitos do homem da
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05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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baixa Idade Média. O forte consumo de especiarias por meio das cidades de
Genova e Veneza já havia provocado uma transformação radical no comércio
jurídico europeu, inclusive com importante reflexo jurídico por meio da criação dos
títulos de crédito, como instrumento de garantia e execução contra o devedor.9
Neste período ainda é possível observar o início do desenvolvimento histórico
das sociedades por ações e o fenômeno da atomização do direito de propriedade
que iniciará uma mudança quanto ao enfoque de proteção irrestrita da propriedade
imobiliária oriunda da tradição romano-canônica.10 O banco de São Jorge, em
Génova, criado em 1407, e que operou até 1805, representaria o marco
embrionário das sociedades por ações.11
A sociedade moderna, especialmente após a revolução industrial, passou a
conhecer o consumo em escala. O impacto e crescimento comercial refletiria no
sistema jurídico. Além do aperfeiçoamento dos títulos de crédito, as sociedades
comerciais passaram a adotar modelos complexos que obrigam à regulação em
leis extravagantes, alterando a topologia codificada que marcou a sedimentação do
direito positivo no século XIX.
Neste panorama deve ser agregada a recepção da boa-fé objetiva como
elemento essencial para a segurança das relações jurídicas, cujo desenvolvimento
se deve ao gênio alemão.12 Muito embora já recepcionada pelo BGB na Alemanha,
em 1896, com seus antecedentes no HGB, é possível afirmar que o tema foi
praticamente desconhecido da doutrina brasileira.13 Apenas no final do século XX,
com a preocupação voltada para a reforma do CCB de 1916, que culminou com o
diploma atual do ano de 2002, a doutrina alcançou maior profundidade quanto ao
importantíssimo tema, especialmente com apoio na doutrina portuguesa.14
A boa-fé objetiva avultou no sistema brasileiro pelas peculiaridades que
informam o sistema de proteção da propriedade imobiliária e mobiliária. O Brasil
sofreu a influência predominante do direito francês por largo período no campo
material e processual. É o que explica, de certo modo, as dificuldades de
construção do sistema tabular em nosso regime jurídico, o qual seria vital, em vista
da debilidade e desorganização na formação dos títulos dominiais. As dimensões
continentais do território brasileiro exigiriam uma forma racional de organização do
cadastro imobiliário e o regime tabular assumiria importância destacada no modelo
brasileiro como elemento de auxílio na estabilidade da proteção e segurança das
relações jurídicas. Por sua vez, percebe-se as dificuldades existentes no direito
português para uma proteção efetiva do terceiro de boa-fé em relação aos bens
móveis, em vista da inexistência de recepção da regra de Bourjon pela qual a
posse vale título (en fait de meubles la possession vau titre). Isso não eliminou a
possibilidade de proteção do terceiro, na aquisição da propriedade imóvel ou móvel
sujeita a registro, no sistema lusitano, pela interessante figura do art. 291 do CCP
e pela proteção específica do CRP por meio dos arts. 5º e 17. O direito brasileiro
nunca contou com este sistema peculiar de proteção para os bens imóveis. O CCB
previa uma proteção ao terceiro de boa-fé por meio da usucapião abreviada
especial, conforme previsão insculpida pelo art. 1.242, parágrafo único. No ano de
2015, a legislação brasileira passou por uma modificação singular ao prever a
possibilidade de proteção do terceiro de boa-fé pormeio do registro, inclusive em
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05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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face da evicção, conforme dicção do art. 54, parágrafo único, da Lei nº
13.097/2015.15
1.2. A necessidade de segurança jurídica
A sociedade moderna procura obter do sistema jurídico o que ele pode conferir
de melhor: segurança jurídica.16 Nesta tarefa de buscar os valores que informam o
ordenamento jurídico com o fim de obter a unidade do sistema, a proteção ao
terceiro de boa-fé se revela fundamental. A procura dos valores fundamentais que
informam a ordem jurídica no campo do direito material ou processual exige a
leitura e compreensão da base em que se radica a Constituição. A Carta Magna
informa os valores que devem orientar a formação dos textos infraconstitucionais e
sua interpretação é renovada pela jurisprudência da Corte Constitucional que traça
os parâmetros para a interpretação dos Direitos Fundamentais. A influência da
Constituição é marcante e reflete um autêntico fenômeno de constitucionalização
das normas do direito privado.17
Mesmo no campo do direito privado, a eficácia horizontal dos direitos
fundamentais não pode mais ser ignorada. A questão ganhou grande rendimento
com o polêmico julgamento do caso Lüth.18 Pela primeira vez, a Corte
Constitucional Alemã admitiu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com
discussão sobre a possibilidade de sua irradiação em relação aos terceiros, nas
relações privadas (Drittwirkung).19 Até então, a construção da proteção dos direitos
fundamentais estava sedimentada na relação Estado-cidadão (Abwehrrecht des
Bürgers gegen den Staat), que marcava a eficácia vertical dos direitos
fundamentais.20 Por meio desta noção, a relação de superioridade do Estado em
relação ao cidadão (princípio da supremacia do interesse público sobre o
particular) seria resguardada pela proteção vertical e imediata dos direitos
fundamentais.
Não se está aqui a defender a aplicação da eficácia horizontal sobre o direito
privado de modo imediato ao terceiro, mas unicamente apontando-se para a
importância da questão e a necessidade de conformação do direito privado à
ordem Constitucional.21 O direito brasileiro conheceu muito cedo a incidência
horizontal dos direitos fundamentais em virtude do grande tempo de defasagem de
nossa legislação infraconstitucional. Nosso primeiro CCB entrou em vigência no
ano de 1916 e sofreu sua grande reforma apenas no século XXI, com a aprovação
do CCB de 2002. A elaboração e promulgação tardia da primeira codificação
brasileira poderia ter sido motivo de grande vantagem, pois, neste período, o
mundo ocidental já contava com o monumental BGB, que foi promulgado em 1896,
e que contou com prolongada vacatio legis, pois entrou em vigência apenas no ano
de 1900.22
Como informa a melhor doutrina, o BGB é fruto de uma codificação tardia e
representativa da terceira sistemática.23 A poderosa influência do BGB sobre o
direito brasileiro, no que tange à proteção do terceiro, assume peculiar posição no
regime da proteção da propriedade móvel pela boa-fé. Neste ponto peculiar há
uma relação direta com a contribuição francesa pela regra de Bourjon, mas sem
descurar da influência da Gewere, de onde provém a regra de garantia da
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transmissão dos bens móveis (Hand muss Hand wahren), ou mesmo da boa-fé
incentivada pelo direito inglês na realização de feiras públicas (open market). Esta
conjunção informa um regime peculiar que irá influenciar o direito brasileiro,
conforme leitura do art. 1.268 do CCB, no que tange à propriedade móvel. No
regime da propriedade imóvel, as relações jurídicas são marcadas por maior
estabilidade, o que de certa forma demonstra a importância do direito de
propriedade no meio social. Não é lícito procurar estabelecer uma gradação entre
os direitos com o fim de estabelecer classificação quanto a maior ou menor
importância. Atualmente, os direitos da personalidade ocupam uma posição de
destaque pela tutela a temas sensíveis que estão relacionados diretamente à
essência da pessoa e sua dignidade. No entanto, não é menos importante o
regramento dos direitos reais, pois a subsistência do ser humano depende
essencialmente da fruição de bens, o que justifica a importância do seu tratamento
e proteção jurídica.
Aliás, um dos pontos de maior polêmica reside em definir a relação de
interação entre a pessoa e a coisa.24 Nos direitos reais e na sociedade civilizada
esta interação é regrada por normas que disciplinam as formas de aquisição,
conservação e extinção da propriedade. Ainda que fosse desejável que todas as
relações de interação entre a pessoa e a coisa pudessem ser materializadas por
títulos jurídicos, que garantissem segurança e transparência nas relações sociais,
o modelo ideal ainda não foi concretizado. Este é o motivo pelo qual o sistema
jurídico atual ainda necessita de proteção peculiar para a posse. A posse
representa um fato social indelével e que acaba provocando a consolidação de
diversas situações jurídicas, inclusive contrapostas ao direito de propriedade
(usucapião), bem como a necessidade de proteção ao terceiro de boa-fé.
A proteção possessória constrói modelos próprios na formulação de
precedentes que apresentam uma interessante e polêmica linha de evolução que
deverá ser examinada pelo confronto da função social da posse com o direito de
propriedade. No Brasil, o STJ sedimentou proteção poderosa por meio da Súmula
84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de
posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que
desprovido do registro. É necessário investigar se a proteção possessória pode
chegar ao extremo, ao ponto de abalar o direito de propriedade, ou seria uma nova
forma de direito real jurisprudencial? Afinal, o titular de um compromisso de
compra e venda que não registra seu bem imóvel e oculta propositadamente o seu
patrimônio merece proteção efetiva do sistema jurídico? Não seria uma violação da
cláusula geral da boa-fé? O confronto entre o compromitente comprador (possuidor
direto) com o terceiro adquirente que confiou no registro merece solução pela
prevalência da Súmula 84 do STJ? Ou deveria ser garantida a posição do
comprador que confiou no registro de propriedade, nos termos do art. 1.245 do
CCB? O mesmo questionamento pode ser transportado para o regime de
aquisição da propriedade em hasta pública. O CPC/2015 tutela expressamente a
aquisição do terceiro arrematante, nos termos do caput do art. 903: “Qualquer que
seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo
leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável, ainda
que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado ou a ação
autônoma de que trata o § 4º deste artigo, assegurada a possibilidade de
reparação pelos prejuízos sofridos” (grifo nosso). A solução processual é altamente
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elogiável e representa a valorização da boa-fé objetiva na seara processual, na
medida em que fortalece a aquisição derivada oriunda da venda judicial.
Entretanto, esta consolidação da propriedade ao terceiro arrematante de boa-fé
ficaria imune à aplicação da Súmula 84 do STJ? O que dizerquando o terceiro se
apresente e defenda sua posse de boa-fé confrontando o título de propriedade
formado pela consolidação da arrematação. A questão é interessante porque
revela um conflito entre situações legítimas de boa-fé: a boa-fé do arrematante
versus a boa-fé do possuidor.
A estas questões a doutrina e a jurisprudência brasileira não têm dedicado a
atenção adequada. A proteção irrestrita da posse funda-se em uma visão de
hipossuficiência do possuidor. A Súmula 84 do STJ acaba por mudar paradigma
básico do sistema jurídico brasileiro ao transformar a posse de boa-fé em instituto
de maior rendimento do que a propriedade. A posse, a princípio, estaria imune ao
direito de sequela e à eficácia erga omnes do direito real. Seria lícito indagar se a
proteção à tutela individual seria legítima ao ponto de abalar a estrutura estável
conferida pela publicidade registral, ou mesmo a publicidade garantida pelo ato de
alienação judicial? A análise desta questão exige a digressão sobre conceitos
prévios que contribuirão para uma conclusão sobre as indagações
supramencionadas.
O direito de propriedade brasileiro, ao contrário de outros sistemas, é
fortemente influenciado por questões sociais e conflitos possessórios coletivos que
atingem a base de proteção da propriedade, o que provoca um grande impacto
sobre a construção dos institutos jurídicos. A Súmula 84 do STJ reflete o
fortalecimento da posse em um sistema jurídico marcado pela informalidade no
regime de transmissão econômica dos bens. Fatores culturais e sociais influenciam
nesta fórmula que acaba conferindo importância destacada para o contrato
preliminar. Um exemplo desta afirmação reside na proteção conferida aos
contratos de adesão firmados por particulares com incorporadoras. Além disso, a
necessidade da moradia e a proteção constitucional ao patrimônio mínimo
fortalecem a posição do compromitente possuidor ao ponto de sublimar a boa-fé
subjetiva. Neste sentido deve ser mencionada a Súmula 308 do STJ: “A hipoteca
firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à
celebração da promessa de compra e venda não tem eficácia perante os
adquirentes do imóvel”. O precedente firmado é polêmico e de duvidoso acerto ao
estabelecer uma hipótese ampla e irrestrita de defesa da posse, como será
examinado na última parte deste trabalho.
A análise comparativa entre o sistema brasileiro e português é interessante por
permitir a compreensão de determinadas questões que o direito brasileiro
solidificou com base na experiência estrangeira. Um exemplo claro desta
afirmação reside nos dois pontos principais da exposição. O primeiro com relação
à tutela conferida à posse de boa-fé dos bens móveis, no qual o direito brasileiro
apresenta sensível modificação desde a promulgação do CCB de 2002. O direito
brasileiro afastou-se do direito português buscando não só a proteção possessória
do terceiro de boa-fé, mas a garantia do tráfico negocial. O segundo ponto, ao
contrário, não é de afastamento, mas de convergência. Muito embora a
jurisprudência portuguesa seja restritiva quanto à tutela do terceiro de boa-fé,
desde a promulgação do Código Civil Português de 1966, pode-se concluir por
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uma lenta, mas crescente aproximação do direito português ao modelo germânico
de proteção ao terceiro de boa-fé. A leitura do art. 291 do Código Civil Português e
dos arts. 5º, I, e 17º do Código de Registo Português não permitem outra
interpretação. Afastadas as discussões sobre o alcance e interpenetração entre a
lei civil e registral, a realidade é uma só: admite-se a possibilidade de formação da
propriedade a non domino ao terceiro de boa-fé, independentemente da
usucapião. No direito brasileiro, até a promulgação da Lei nº 13.097/2015, esta
conclusão seria inviável e contra legem. Com a previsão do art. 54, parágrafo
único, o direito brasileiro ganha modernidade e a legislação civil alcança um
patamar diferenciado. O grande desafio, desta mudança, ainda não absorvida pela
jurisprudência e doutrina, reside em construir um modelo próprio quanto aos
requisitos de sedimentação da aquisição a non domino pelo registro.
1
. Como pontua precisamente Menezes Cordeiro (Da Modernização do Direito Civil, I, p. 151), não
seria possível observar a autonomia do direito comercial no direito romano porque, após a
formação dos bonae fidei iudicia, “o Direito romano era, todo ele, comercial”.
2
. Sistema del Diritto Processuale Civile, t. I, p. 33.
3
. Na fase atual, a resolução de conflitos possui meios alternativos ou paralelos na solução de
conflitos (ADR – alternative dispute resolution). Alguns denominam de sistema multiportas (multi-
door system). A possibilidade de vias colaterais ou alternativas para a solução de conflitos é
essencial para a desjudicialização excessiva dos conflitos. Apesar da previsão de outras “portas”,
como a arbitragem, a mediação e a conciliação, denota-se o aumento gradual da utilização do
poder judiciário. Isso também decorre da facilitação do “acesso à justiça”. Em 1995,
regulamentava-se o Juizado Especial Cível e Criminal, pela Lei 9.099/95, atualmente, somente em
microdemandas existem outros dois Juizados para facilitar o acesso do jurisdicionado: O Juizado
Especial Federal (Lei 10.259/01) e o Juizado Especial Estadual das Fazendas Públicas (Lei
12.153/09).
4
. A comprovação da assertiva pode ser constatada pela descrição histórica do inventário de
Zanobi, camponês de Capannale em 1406, conforme estudo de Philippe Ariès e George Duby
(História da vida Privada, t. II, p. 189): “O defunto, proprietário de sua terra, estava bem equipado
em material agrícola, toneis, animais de tiro e de curral (três porcos); suas provisões de trigo e de
vinho teriam bastado até a próxima colheita; nenhuma dívida. Mas na peça exclusiva que o
abrigava com sua família (uma mulher, três filhos), o único móvel marcante é uma cama, uma
grande cama de 2,90 metros com todos os seus pertences e o cortejo de suas arcas, quanto ao
resto, nem mesmo o estritamente necessário”.
5
. João Ameal, História da Europa, t. II, p. 98.
6
. Henri Pirenne, A Cidade Medieval, pp. 49-50.
7
. Sobre o desenvolvimento das cidades e comunas, é essencial a pesquisa da obra de Wilhelm
Ebel, Der Bürgereid als Geltungsgrund und Gestaltungsprinzip des deutschen Mittelalterlichen
Stadtrechts, pp. 08-90, Böhlaus, Weimar, 1958. A formação das comunas e burgos pode ser
diferenciada pelo juramento. Quando o burgo se forma na propriedade do senhor feudal, realiza-se
o juramento que forma a relação jurídica que vincula o suserano e o vassalo. Por outro lado,
quando desvinculada de um senhor feudal, é possível observar a formação de uma associação de
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pessoas que firmam, pelo juramento, um propósito de vida em comum, sem relação de hierarquia,
o que forma a comuna.
8
. Para uma análise da história do comércio e da atividade comercial dos italianos, Goldschmidt,
Universalgeschichte des Handelsrechts (História Universal do Direito Comercial), § 7º, p. 142 e ss.
9
. Foi na Idade Média, por meio dos estudos de Bártolo, que a problemática sobre a necessidade do
título executivo para aparelhar a execução foi retomada. Condenando os princípios do sistema
germano de execução, o qual se realizava sem fundamento, em qualquer prova ou
pronunciamento judicial prévio, Bártolo enunciou a máxima non est incoandum ab executionis.
Certo de que os costumes bárbaro-germânicos não condiziam com a melhor solução para resolver
o problema da execução, causava repúdio a ideia de utilizar-se da penosa actio iudicati para dar
seguimento ao processo de execução. Isso porque, mesmo o credorestando de posse de uma
sentença condenatória, precisaria mover um novo processo com pleno contraditório. Como meio
de acelerar o procedimento, Martino di Fano e, depois, Giovanni Fasolo desenvolveram duas
formas possíveis de execução no período medievo. A primeira, de natureza sumária, exercer-se-ia
com base no poder de ofício do Juiz em movimentar o juízo e denominou-se imploratio per officium
judicis. A segunda continuava a privilegiar a actio iudicati, em face de sua previsão junto ao Direito
Romano. A execução, por ofício do Juiz, influenciou os demais sistemas, levando a criação de um
sistema ágil, onde a possibilidade de execução, sem a necessidade de novo processo de
conhecimento, foi sintetizada pela fórmula: setentia habet parata executionem. Surge o conceito de
execução aparelhada (executio parata), pois o juiz, em função de uma sentença condenatória
(título executivo), obrigava o réu a cumprir o mandamento judicial, sem eliminar a possibilidade
oposição do devedor. Vide, José Alberto dos Reis, Processo de Execução, v. I, p. 74.
10
. O sistema jurídico de tradição romana sempre valorizou a propriedade imobiliária como fonte de
riqueza. Em Roma, a proteção à propriedade imobiliária poderia ser visualizada pelo regime
jurídico solene de transmissão que exigia a mancipatio. Os bens de maior projeção econômica
eram considerados res mancipi. Consideravam-se res mancipi: os terrenos itálicos, os escravos,
animais de tiro e carga e as servidões prediais rústicas. Segundo Dernburg, esta classificação teve
repercussão no período arcaico, pois no período Justinianeu ela deixou de existir: “Für das
altrömische Recht war diese Unterscheidung von größter Wichtigkeit; dem Justinianischen Rechte
sie nicht mehr an” (Para o período arcaico do direito romano, a diferenciação era de grande
importância, mas não mais, no período de Justiniano – tradução livre), in Pandekten, t. I, § 67, p.
158. A transmissão de bens mancipi, pela traditio, gerou uma segunda espécie de propriedade,
denominada de bonitária, ao lado da quiritária.
11
. Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, t. I – Parte Geral, pp. 60-61.
12
. Rudolf Mayer, Bona fides und lex mercatoria in der europäischen Rechtstradition, p. 36 e ss.
13
. Mesmo Pontes de Miranda, maior tratadista brasileiro, não realizou a percepção nítida quanto à
distinção entre os regimes de incidência da boa-fé subjetiva (guter Glaube) e da boa-fé objetiva
(Treu und Glauben). Sobre a boa-fé possessória, deve ser consultado, Pontes de Miranda, Tratado
de Direito Privado, t. X, § 1078, p. 126.
14
. Menezes Cordeiro, A Boa-fé no Direitos Civil, passim. Esta obra representa um marco divisório
do direito moderno quanto ao tema. Quem realizar a leitura integral deste denso trabalho tomará
contato com a análise profunda e o desenvolvimento histórico minucioso sobre a boa-fé, com
pesquisa inigualável nas fontes e que permite compreender temas até então obscuros, como a
distinção entre bona fides e aequitas, bem como a importância de Aristóteles quanto à laicização
do direito e o desapego dos conceitos metafísicos de Platão. Não há paralelo sobre o tema nesta
profundidade, mesmo no direito alemão.
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15
. O sistema registral brasileiro é regido pela Lei nº 6.015/73, com suas subsequentes alterações.
As duas alterações mais importantes e significativas desde sua implantação, no que toca à
proteção da boa-fé, reside na adoção do modelo espanhol do patrimônio de afetação pela Lei nº
10.931/2004 e na inserção do princípio da concentração por meio da Lei nº 13.097/2015. Por meio
da primeira alteração, procurou-se imunizar a matrícula registral para que incorporadoras e
construtoras não pudessem gravar os terrenos que seriam utilizados para a construção de
edifícios, com o fim de não prejudicar terceiros que realizassem a aquisição de unidades por meio
de contratos preliminares. A segunda alteração de impacto veio por meio da Lei nº 13.097/2015,
que positivou o princípio da concentração em seu art. 54. No sistema brasileiro, até então,
somente as ações reais e reipersecutórias poderiam ser objeto de registro com o fim de proteger
terceiros de boa-fé. Todavia, com o fim de permitir proteção integral, toda e qualquer constrição
judicial (arresto, sequestro, indisponibilidade) poderá (rectius, deverá) ser averbada para prevenir
eventual insolvabilidade do devedor perante terceiros (art. 54, III e IV). E mais, o art. 54, parágrafo
único, é de leitura cristalina: Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da
matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção , ao terceiro de boa-fé (grifo
nosso) que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto
nos arts. 129 e 130 da Lei n º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 , e as hipóteses de aquisição e
extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel.
16
. Canaris, Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, § 1º, p. 18.
17
. Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 20.
18
. O caso Lüth narra leading case na década de cinquenta (1958), que inaugurou a aplicação das
normas de direito fundamental sobre o direito privado. Erich Lüth realizou protesto contra a
exibição do filme Unsterbliche Geliebte (Amada Imortal), de Veit Harlan, por sua suposta
vinculação ao nazismo. Este cineasta teria produzido, na decada de 1940, filme antisemita
denominado Jud Süß (O Judeu Süß), que o levou a ser processado por crime de guerra. Todavia,
Veit Harlan foi absolvido por ficar caracterizada a impossibilidade de conduta diversa, sob risco de
morte, uma vez que seguiu ordens de Goebbels, famoso Ministro da Propaganda Nazista. Lüth foi
alvo de ação judicial inibitória e foi condenado a uma obrigação de abstenção. Em seu recurso ao
Tribunal Constitucional, a decisão do Landgericht foi reformada e garantiu o direito fundamental à
opinião e a possibilidade de influenciar terceiros. A ponderação levou em consideração a primazia
do direito de manifestação em face dos bens jurídicos expostos na manifestação de Lüth.
19
. Vide a excelente crítica de Canaris sobre a utilização da eficácia da irradiação na decisão
histórica (Bverf, 7, 198-230). O ilustre civilista diferencia com propriedade a distinção entre a
eficácia imediata e a vigência imediata dos direitos fundamentais, que provocam consequências
absolutamente distintas e que não são observadas na nomenclatura jurídica. Isso é comum no
Direito Brasileiro em que a expressão Drittwirkung é tomada como sinônima para ambas as
situações em grande parte dos manuais e cursos de direito constitucional.
20
. Zippelius/Würtenberger, Deutsches Staatsrecht, § 17, p. 177,
21
. Sobre a eficácia imediata e mediata dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado,
Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 54.
22
. O avanço do diploma alemão para a época pode ser visualizado na discussão do projeto do BGB,
com a separação clara entre o regime público e privado, in Motive zu dem Entwurfe eines
Bürgerliches Gesetzbuches für das Deutsche Reich, t. I, pp. 2-14.
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23
. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral, t. I, p. 72.
24
. Sobre as possíveis teorias que explicam a relação jurídica real, Menezes Cordeiro, Direitos
Reais, 213-260. Vide ainda o interessante trabalho de Rigaud, Le Droit Réel – Histoire et Theories,
especialmente pp. 113 e ss.
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2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS
2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS
2
A Boa-fé e os Direitos Reais
2.1. A boa-fé e sua incidência no direito privado e público
A boa-fé é marcada por sua projeção sistêmica e por representar um vértice de
influência sobre o campo do direito privado e público. É peculiar a influência cada
vez maior da boa-fé nas relações jurídicas que são marcadas pelo direito público.
A boa-fé revela um fator importantíssimo de reequilíbrio na relação público-privado,
o que pode ser explicado pela necessidade de mudança do objeto de proteção do
bem jurídico na relação de direito público.
O fortalecimento do Estado no período moderno surge de uma lenta maturação
com período marcante na guerra dos 30 (trinta) anos no século XVII, que
fortaleceu a noção de soberania e território e preparou as bases para a separação
efetiva dos poderes no século XVIII.1 O surgimento do Estado como ente jurídico
marcado pela superioridade hierárquica na relação jurídica provocou a
sedimentação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.2
A aplicação irrestrita e sem limites deste princípio gerou situações de extrema
desigualdade e injustiça, especialmente no campo contratual e na
responsabilidade civil. A supremacia do príncipe permitiria a resolução imotivada
de relações jurídicas, ou a irresponsabilidade absoluta em situações de
cometimento de ato ilícito (The King can do no wrong). O século XVII preparou a
base de nascimento do Estado Moderno ao estabelecer limites para o Príncipe.3
A atuação do soberano deveria estar voltada para o bem estar geral e não
particular. A formação do direito público propiciou a noção natural de supremacia
do interesse estatal que representaria a vontade e o bem estar geral com
sedimentação das funções estatais no século XIX.4 Esta noção, apesar de ainda
ser predominante no direito público, exige uma revisão de postura.
No âmbito do direito público, o objeto da atividade administrativa deve estar
pautado pela proteção e segurança dos direitos fundamentais. O compromisso do
Estado com a realização dos direitos primários realça o seu papel ordenador
(Ordnungsfunktion) e provedor da atividade essencial para o bem estar dos
cidadãos (Gestaltungsfunktion).5 O interesse estatal deve estar voltado para a
proteção dos direitos fundamentais e não para a salvaguarda do interesse público
que reflete um conceito indeterminado e de contornos duvidosos.6 Esta noção é
fundamental como novo vetor de orientação da atividade administrativa, na medida
em que a supremacia do interesse público não pode servir de argumento para
fragilizar a posição jurídica do administrado. A proteção conferida pelos direitos
fundamentais visa a uma limitação da atividade estatal sobre o indivíduo
(Abwehrrechte).7 A vinculação do Estado aos direitos fundamentais e o
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direcionamento de sua atividade para sua proteção não elimina o seu poder de
império (Hoheitsverwaltung). O Estado, no exercício da função administrativa,
exerce poder de polícia e poder de imposição de seus atos (Zwangsgewalt), mas o
controle de sua atividade, e os limites do seu exercício, são controlados pela
cláusula de proteção aos direitos fundamentais. A supremacia da atividade estatal
somente é legítima quando conforma a atividade estatal ao respeito e proteção aos
direitos fundamentais.
No campo do direito público, a força da boa-fé deve ser ressaltada no âmbito
material e processual. A boa-fé ganha progressiva importância e força nas
relações contratuais com a Administração Pública como meio de proteção e
equilíbrio para evitar que o indivíduo possa ser prejudicado de modo indevido. Nos
contratos administrativos, por exemplo, as nulidades que tenham causa na
atividade equivocada ou de má-fé do agente público não poderá acarretar em
prejuízo para o terceiro de boa-fé que confia na liceidade da atividade
administrativa. Podemos citar como exemplo o art. 59, parágrafo único, da Lei nº
8.666/93, que regula, no Direito Brasileiro, o regime de nulidade do contrato
administrativo: A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o
contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e
por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja
imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. Isso
significa que o particular que estiver de boa-fé e não tenha contribuído de modo
doloso para a contratação nula com o poder público terá direito à indenização.
O ressarcimento é garantido pela primazia da boa-fé na relação jurídica
contratual. Nesta situação podemos citar o Município ou Estado que destina verba
para obra diversa que justificou o convênio firmado com a União Federal. O
terceiro que vence a licitação e inicia a execução do contrato poderá estar de boa-
fé e sem conhecimento efetivo sobre a origem dos recursos destinados ao seu
pagamento. A nulidade da licitação não pode ser oposta ao particular que executou
o serviço. A exceção de ilicitude não pode se servir de causa para o incumprimento
do contrato.8 Outro exemplo refere-se à proibição da surpresa em relação aos
ocupantes de função pública que tenham auferido remuneração de boa-fé. A
existência de erro da Administração Pública, ou alteração no entendimento da
Administração Pública, ou mesmo a modificação quanto ao entendimento da
jurisprudência, não serão argumentos suficientes para alterar a posição jurídica
estabilizada. Respeita-se a boa-fé e proíbe-se o venire contra factum proprium da
Administração Pública.9 Os exemplos citados conformam a proteção pela boa-fé, o
que reflete, em última análise, a uma proteção de direito fundamental individual
que veda a retroatividade e a alteração de situação jurídica consumada (art. 5º,
XXXVI, CFB e art. 18º, 3, da CFP).
2.1.1. A boa-fé no direito público: A seara processual
No âmbito do direito público, ainda merece destaque as reformas dos
ordenamentos português e brasileiro, representados pela alteração da legislação
processual. A reforma do Direito Processual Civil Português tornou expressa a
previsão da boa-fé no art. 8º: “As partes devem agir de boa-fé e observar os
deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. A influência
deste diploma sobre a reforma operada no recentíssimo Código Processual Civil
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Brasileiro é manifesta como se depreende da redação do art. 5º: “Aquele que de
qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-
fé”.10
Em toda e qualquer relação jurídica, a boa-fé estará presente como elemento
ético e indissociável de integração, interpretação e correção. Na seara processual,
o tema da boa-fé no direito processual brasileiro é absolutamente incipiente. A
boa-fé sempre foi tratada como elemento secundário e com repercussão prática
apenas no campo da fixação da pena de litigância de má-fé. A sua incidência
sempre foi tratada de modo acidental como meio de justificar a ausência de má-fé.
A nova legislação procura estabelecer um novo patamar para a boa-fé na seara
processual. Sua importância ultrapassa a mera análise de conduta de
contraposição com a má-fé para fins de fixação de apuração de perdas e danos
oriundos da relação processual (art. 79 do CPC).
A boa-fé está prevista como elemento expresso de interpretação e integração
do pedido formulado pelo autor em seu articulado inicial (art. 322, § 2º, CPC).11
Apesar da obrigatoriedade da postulação judicial ser certa e determinada paraa
delimitação do objeto litigioso, em muitas situações, a extensão do pedido poderá
ser modulada pela interpretação judicial. A boa-fé assumirá papel de interpretação
e de integração cujo reflexo será imediato quanto à projeção da sentença e do
caso julgado. Não se pode olvidar que a projeção do que será estabilizado pela
sentença encontra seu limite no pedido formulado pelo autor (Der
Streitgegenstand). Acontece que o pedido, embora completo, não esgota a
projeção dos efeitos da sentença e da coisa julgada. A real extensão do pedido é
vinculada aos fatos que são expostos na causa de pedir, uma vez que todo pedido
somente pode ser acolhido quando devidamente fundamentado (Die Begründung
des Anspruchs).12 Ainda no campo processual, a boa-fé consiste em modelo de
solução favorável ao terceiro que confia na inexistência de vinculação do bem
adquirido a qualquer processo que envolva o alienante. A reforma processual
brasileira sedimentou o ônus processual do credor/exequente em materializar os
atos preventivos no registro tabular para permitir que o bem possa ser expropriado
sem eventual postulação do terceiro de boa-fé (art. 844 do CPC).13 Esta alteração,
que é voltada para os bens imóveis, vem acompanhada de solução própria para os
bens móveis que será examinada oportunamente. O sistema processual brasileiro
acaba por vedar a possibilidade de desfazimento da expropriação judicial de bens
móveis que são submetidos à hasta pública, como medida de proteção à boa-fé
processual.14 No sistema processual português a questão é simplificada pela
modernidade do processo de comunicação eletrônica entre o juízo e o serviço
registral. A leitura do art. 755 do Código de Processo civil Português informa que a
materialização da penhora sobre os bens imóveis será realizada diretamente por
comunicação eletrônica15 pelo agente da execução.16
Este simples panorama permite demonstrar a influência da boa-fé em todo o
sistema jurídico que não se limita ao campo do direito privado, muito embora suas
raízes e sua intensa construção devam ser hauridas no direito civil que propiciou
campo de alto rendimento para o instituto.17 O exame do tema passa
necessariamente por algumas considerações sobre o regime jurídico dos direitos
reais, em cujo campo se situa o objeto de investigação. A boa-fé civil, no campo
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possessório e dominial, será analisada como elemento integrante da exposição
sobre a aquisição a non domino.
1
. A formação do Estado Moderno não se confunde com a Majestas populi Romani. O Estado
Romano em sua fase final era representado pela figura do Imperador e pelo exercício absoluto do
imperium por meio dos magistrados (Edicta, Rescripta, Decreta). Não existia qualquer traço de
organização com funções independentes. Com o fim do Império Romano, o modelo romano tentou
ser resgatado pelo Império Carolíngio, mas sem sucesso. O período medieval foi marcado pela
multiplicação dos poderes locais baseada na territorialidade do feudo. O período da baixa Idade
Média representaria o início da unificação e fortalecimento do poder do príncipe sobre o território
da comunidade (Landeshoheit-Otto Mayer, Derecho Administrativo Alemán, p. 29).
2
. Renato Alessi, Principi di Diritto Ammnistrativo, v. I, p. 251.
3
. Em um primeiro momento, a figura do Príncipe foi essencial para a centralização de poderes e
para a unificação territorial. O apoio da burguesia foi fundamental para a formação do Estado, pois
o modelo medieval baseado no sistema de concessões e privilégios, entre o suserano e o vassalo,
representava um empecilho para o desenvolvimento econômico do próprio comércio. Como
informa Orlando de Carvalho (Direito das Coisas, p. 33): “Apoiada nos reis contra os terratenentes
que dominam a propriedade tanto urbana como rústica, a burguesia citadina torna-se o primeiro
motor de dissolução do feudalismo, cujas peias impedem o seu desenvolvimento completo e cujo
domínio do solo impede a sua instalação”.
4
. Ernst Forsthoff, Lehrbuch des Verwaltungsrechts- Allgemeiner Teil, t. I, § 1º, p. 3.
5
. Alfred Katz, Staatsrecht, § 3º, p. 20
6
. Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, p. 171 e ss.
7
. “Grundrecht wirken im Verhältnis zwischen Staat und Individuum” (Grabenwater/Holoubek,
Verfassungsrecht – Allgemeines Verwaltungsrecht, p. 164).
8
. Como esclarece Marçal Justen Filho, “O terceiro, desde que de boa-fé, não pode ser prejudicado
pelo vício que desconhecia nem poderia conhecer” (Comentários À Lei de Licitações e Contratos
Administrativos, 482).
9
. Cf. STF, “Os valores percebidos em razão de decisão administrativa, dispensam a restituição
quando auferidas de boa-fé, aliada à ocorrência de errônea interpretação da Lei, ao caráter
alimentício das parcelas percebidas e ao pagamento por iniciativa da Administração Pública sem
participação dos servidores” (MS 31.259 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, 1ª T., julgado em
24/11/2015, g.n.).
10
. Como ressalta Nelson Nery Jr., “a regra é universal” (Teoria Geral dos Recursos, p. 170), ao
comentar sobre a necessidade da boa-fé no âmbito recursal civil para a incidência do princípio da
fungibilidade.
11
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. “A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa-
fé.”
12
. Arthur Nikisch, Der Streitgegenstand im Zivilprozess, § 4º, p. 55
13
. O dispositivo resolve problema que perdurou por longo tempo quanto à responsabilidade do juízo
ou do exequente quanto aos atos necessários para aperfeiçoar a medida constritiva. Atualmente,
caberá ao juízo o deferimento da medida constritiva, mas sua implementação é de
responsabilidade do exequente: “Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao
exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante
apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial”.
14
. Quanto ao ponto, abre-se uma contraposição entre o art. 447 e o art. 1.268, ambos do CCB. O
primeiro revela a tradicional garantia da evicção que subsiste nos contratos onerosos, ainda que a
aquisição tenha sido realizado em hasta pública. O segundo revela a regra pela qual a posse de
boa-fé legitima a transmissão da propriedade móvel ao terceiro, desde que realizada em regime de
publicidade. Esta contraposição hoje está fragilizada pelo regime imposto pelo art. 54, parágrafo
único, da Lei nº 13.097/2015, que fortaleceu a posição do terceiro na alienação dos bens imóveis.
15
. No Brasil, desde a Lei Federal nº 11.977/2009, foi instituída a obrigatoriedade de integração
eletrônica do sistema de registro de imóveis no prazo de 5 anos, o qual se esgotou em 2014 e não
restou materializado. O Conselho Nacional de Justiça emitiu o Provimento nº 47 em junho de 2015
e regulamentou o art. 39 da referida Lei quanto ao modus operandi e estabeleceu prazo adicional
de 360 (trezentos e sessenta) dias para a integração (art. 9º). As dimensões continentais do
território brasileiro e o próprio atraso na implementação do processo eletrônico tornam duvidoso o
cumprimento do prazo. Isso não elimina o processo irreversível de informatização do foro judicial e
extrajudicial. A Lei nº 13.097/2015 alterou o art. 41 da Lei 11.977/09 e prevê o acesso eletrônico,
sem qualquer custo, das informações registrais, aos poderes públicos.
16
. O sistema processual português, desde a reforma operada no ano de 2003, abandonou o modelo
de exclusividade de controle e prática dos atos executivos pelo juiz e pelooficial de justiça,
respectivamente. O agente da execução será o responsável pela introdução e materialização dos
atos executivos, incluindo a comunicação da penhora pelo art. 755 do CPCP. Como o agente atua
por iniciativa do exequente/credor, é possível afirmar que não difere o modelo lusitano, do
brasileiro, quanto à necessidade de iniciativa (princípio dispositivo) para o início dos atos
executivos. Para uma visão geral sobre o agente da execução, Rui Pinto, Manual da Execução e
Despejo, p. 85-87.
17
. Para um estudo completo sobre a análise e desenvolvimento das diversas fases da boa-fé no
direito romano, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 17-147. O conceito da bona
fides no âmbito possessório tem sua base histórica fincada no direito romano, inclusive quanto às
repercussões que serão sentidas nas codificações modernas quanto à adoção da boa-fé subjetiva
psicológica ou ética. Um belo extrato desta afirmação pode ser consultado no estudo de Bonfante,
Essenza della bona fides e suo rapposto colla teorica dell'errore, pp. 85-91.
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3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS
3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS
3
O Regime Jurídico dos Direitos Reais
3.1. Aspectos gerais da relação jurídica real
A boa-fé pode ser analisada dentro de vários quadrantes que compõe o sistema civil, o
que exigiria um aumento considerável do espectro deste trabalho.1 Optou-se pelo seu exame
unicamente quanto às relações jurídicas que compõe a seara dos direitos reais. Essa
separação não torna o exame, por si só, mais fácil, até o dificulta, na medida em que o
enfoque particular exige a fixação dos princípios e regras aplicáveis ao regime jurídico dos
direitos reais. É necessário extremar e identificar a relação jurídica real dentro do sistema
civil.
É necessária uma breve análise sobre a posição dos direitos reais no quadrante geral.
Essa reflexão assume importância em vista da crise enfrentada pela teoria da relação
jurídica. A criação genial da relação jurídica por Savigny, agregada à formatação sistêmica
sugerida por Heise, influenciou abertamente o modelo alemão e o direito brasileiro.2 Nossa
legislação adotou expressamente o tratamento sistemático de divisão dos livros do direito
civil, com base na diferenciação da relação jurídica (parte geral, obrigacional, real, familiar e
sucessões).3 Nosso modelo não seguiu a influência francesa ou austríaca que foram fiéis à
separação proposta por Gaio em 160 a.C., ao estabelecer a divisão sistêmica do direito em
três livros, em suas Instituições (Institutiones): a) pessoas (personae); b) coisas (res); e c)
ações (actiones).4
O período atual é marcado por um esgotamento do modelo clássico que informa a
divisão tradicional das matérias perante a legislação civil brasileira. Aliás, basta um exame
na profusão de leis esparsas e de novos ramos do direito que não guardam posição
simétrica com os livros previstos do Código Civil Brasileiro. Não há dúvida de que a divisão
ainda é extremamente relevante e útil, mas a interpenetração entre os ramos, aliada à
falência da Parte Geral, demonstram a necessidade do diálogo entre as fontes (Der Dialog
der Quellen), uma vez que o modelo atual exige a adequada compreensão quanto à
interpenetração das leis especiais.5
O modelo jurídico atual não se contenta mais com construções dogmáticas puras e
formais para a solução e enfrentamento dos problemas do dia a dia. O modelo cartesiano
oferecido pela lógica formal e que procura construir a teoria da decisão judicial apoiada em
um silogismo jurídico não responde mais aos anseios do século XXI. O ato decisório e a
formação dos precedentes, com força vinculante, não se resume mais à aplicação da norma
positiva ao caso concreto.6 A multiplicidade normativa é insuficiente para regrar todas as
novas situações fáticas que são descortinadas diariamente. A densidade dos problemas
jurídicos, mesmo no âmbito privado, informa que o conflito intersubjetivo é capaz de irradiar
ondas que propiciam a necessidade de nova perspectiva sobre questões que aparentemente
estavam sedimentadas por princípios seculares. É o que se verifica de modo muito claro na
seara dos direitos reais cujo campo sempre foi considerado o de maior estabilidade pela
necessidade de regras claras e rígidas para a proteção da propriedade, bem como dos
direitos reais desmembrados (direitos reais de gozo e garantia). Outro ponto a ser
considerado é que ótica da legislação civil tradicional exige adaptação para dois pontos
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cruciais: a) coletivização dos conflitos; e b) a desmaterialização da relação jurídica pela
influência das novas realidades e do direito digital.
A sociedade hodierna é marcada pela globalização e multiplicidade das relações jurídicas
que desconhecem os conceitos de fronteira impostos pelo direito internacional clássico. A
legislação civil atual é pensada para o ambiente coletivo, em vista da necessidade de
disciplina das relações negociais que atingem um número indeterminado de pessoas. Na
formação deste vínculo jurídico não está mais em jogo a igualdade na formação, pois sabe-
se de antemão que a relação contratual, na maioria das vezes, é fruto de mera adesão, o
que exige a criação de mecanismos específicos de proteção no direito material e processual.
A Europa inicia a encampação do direito processual coletivo e a acomodação de conceitos
bem desenvolvidos no direito anglo-saxão, como a defesa de interesses difusos.7 O
comércio eletrônico representa uma fonte de desafios para o direito privado interno e
internacional. As relações negociais passaram a depender como nunca da lealdade e
confiança. O denominado e-commerce somente se sustentará na medida em que exista o
respeito ao direito à informação e transparência no comércio virtual que respeitem a boa-fé
do adquirente.
Por esse motivo, é de fácil percepção que no âmbito do direito material e processual o
conceptualismo e formalismo8 jurídico herdados de Puchta não refletem a noção de um
sistema jurídico que possa propiciar a unidade da ordem jurídica.9 O século XX foi marcado
por certa letargia quando comparado com as grandes transformações que marcaram o
século XIX.10 O século XXI traz como desafios o rompimento de conceitos e a adequação da
ordem jurídica para a realização efetiva dos direitos emergentes de uma nova ordem social.
A aproximação do sistema jurídico da realidade vivenciada no meio social representa a
tentativa de conferir unidade na ordem jurídica e no processo de intepretação e aplicação do
direito. O processo de decisão atual não leva em consideração apenas os elementos
normativos que são dados pelo esquema de subsunção (fato versus norma). Os elementos
de pré-entendimento e as consequências que a decisão possa provocar na ordem social e
econômica não podem ser olvidadas.11 Nesse contexto os elementos conceptuais herdados
da tradição do direito romano são testados no período hodierno e a construção dos
elementos estruturais que deram suporte à sistematização dos direitos são postos à prova
em um período marcado pela relativização dos arquétipos idealizados por Savigny.
Especificamente no campo do direito privado se observa a um interessante fenômeno de
expansão horizontal e vertical com a criação de novos setores de regramento, bem como no
aprofundamento normativo de todos os campos do direito civil. No direito de família, que
passou por um processo de laicização com a Revolução Francesa, observou-se
necessidade de regrar novas situações que são fruto de interferências quanto ao
desenvolvimento deoutro ramo que é do direito da personalidade. É o caso da autorização
conferida por determinados regimes jurídicos quanto à possibilidade mudança do sexo que
interfere em questões sensíveis como o direito à adoção ou mesmo o regramento da união
entre pessoas. No direito da personalidade surgem questões de alto impacto como a
possibilidade de defesa do direito ao suicídio com discussões sobre a eutanásia ativa ou
passiva. No direito das sucessões, o progresso tecnológico e a melhoria nas condições de
vida permitem que as pessoas tenham maior longevidade. Isso acarreta questões que antes
não eram enfrentadas pelo sistema jurídico, como a possibilidade de formulação de
testamento em vida também denominado de testamento biológico. Na esfera dos direitos
reais, a desmaterialização do direito de propriedade e a transformação do conceito de coisas
(Sachen) acaba por demonstrar a importância dos bens móveis e necessidade repensar a
tutela dos animais.12 A concepção romana de mais valia da propriedade imóvel é
ultrapassada. Os valores mobiliários demonstram prima facie, a força do mercado acionário
e suas consequências danosas em função da volatilidade de seu valor e pela possibilidade
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de danos coletivos imensuráveis, cujas crises econômicas mundiais revelam, por si só, a
legitimidade do argumento.
3.2. A formação sistemática dos direitos reais
Não basta a afirmação de que os direitos reais se ocupam da atribuição de bens móveis
ou imóveis ao ser humano. O direito obrigacional também realiza essa tarefa quando se
estabelecem vínculos jurídicos por meio da prestação e contraprestação (negócios
bivinculantes) como na compra e venda, ou por meio de uma única prestação (negócios
monovinculantes) como no contrato de doação.13
A seara dos direitos reais havia sido preliminarmente intuída por Gaio, conforme
ilustração anterior, quando separou o tratamento das pessoas (personae) e coisas (res). No
direito romano essa separação ainda não refletia uma sistematização dos direitos reais. Na
verdade, o direito romano, antes de refletir um sistema de direitos materiais (ius) expressou
um sistema de ações (actiones). Neste ponto foi decisiva a contribuição de Windscheid que
isolou e identificou o conceito de pretensão diferenciando-o da criação moderna do direito
subjetivo.14 O mais importante seria saber se uma ação poderia proteger a pretensão do
titular.
Os juristas romanos eram práticos, e com aguçado poder criativo, jamais buscaram uma
distinção conceitual e principiológica dos direitos reais, ou muito menos uma contraposição
com os direitos obrigacionais.15 O racionalismo moderno é que procurou extremar os pontos
de distinção entre a seara dos direitos reais e dos direitos obrigacionais como meio de
permitir uma sistematização.16 Parte da doutrina procurou antever um tratamento distinto da
pretensão real e pessoal por meio da Lex Poetelia Papiria (326 a.C.).17 O referido diploma
legal se tornou célebre como exemplo da possibilidade de execução pessoal para
pagamento de dívidas.18 Por meio dela, o devedor poderia ser oferecido por três vezes para
fins de satisfação do débito. A não satisfação do débito no terceiro dia de feira pública
ocasionaria a morte ou a escravidão do devedor (getötet oder Sklave).19 A escravidão
apenas seria possível trans Tiberium, pois nenhum cidadão romano poderia se tornar
escravo dentro do território de Roma.20
Muito embora, o direito romano tenha fornecido a base de reconstrução do sistema
jurídico no período moderno ele acaba por revelar, sob o ângulo sistemático, um modelo
processual e não material. E justamente no direito moderno ocorre uma inversão quanto ao
ressurgimento, pois o direito material, como fonte primária de regulação, estabilidade e
solução de problemas renasce em primeiro lugar. O direito processual acabaria por
encontrar sua sistematização própria e autônoma apenas em 1868 por obra de Oskar von
Bülow.21
A sistematização que diferencia os direitos reais dos demais ramos do direito:
obrigacional, contratual, responsabilidade civil, família e sucessões decorre de um rearranjo
de origem medieval, por obra dos glosadores. Os estudos do período intermédio criam as
expressões ius in rem e ius in personam perante o Brachilogus Iuris Civilis ou corpus
legum.22
As expressões rem e personam qualificavam as actiones in rem e actiones in
personam.23 O primeiro período do processo civil romano foi marcado pela previsão da
tipicidade das ações (legis actiones). A mais importante das ações era representada pela
legis actio sacramento que poderia recair sobre o objeto (in rem) ou sobre uma pessoa (in
personam).24 A feição prática dos romanos abriu espaço para a meditação e construção das
categorias jurídicas modernas.
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A sistematização jurídica operada no século XIX, especialmente por obra do pandectismo
germânico se revelou fundamental para o desenvolvimento do direito e aprimoramento de
inúmeros institutos jurídicos que seriam adaptados para o uso moderno (usus modernus
pandectarum). A sistematização dos direitos reais como ramo autônomo passou pela criação
da teoria da relação jurídica, conforme já mencionado, como fruto da contribuição de
Savigny.25 Essa criação também apoiada em Heise, autor já referido e permitiu que diversos
grupos de direitos fossem divididos e enlaçados pela parte geral que iluminaria os demais
ramos, dentre eles, os direitos reais. Essa influência foi poderosa ao ponto de influenciar a
sistematização da legislação portuguesa e brasileira.
A construção e sistematização dos direitos reais envolve polêmica ante a necessidade de
explicar a relação sujeito versus objeto. O tema ainda é delicado quando se procura
estabelecer, em qualquer codificação, o fundamento que justifica o liame jurídico formado
entre a pessoa e a coisa.
3.3. Os direitos reais perante a tardia codificação brasileira
O Código de 1916 inseriu o Brasil dentre os países de codificação tardia e que
recepcionaram a influência do Pandectismo. A importância da codificação, como instrumento
de síntese dos valores de um povo, já era reconhecida desde Justiniano, quando o
imperador romano determinou a elaboração do Corpus Iuris Civilis.26 No continente europeu,
no início do século XIX, a França já demonstrava a força da recepção do direito romano
adaptado aos usos e costumes. Destacam-se os trabalhos preparatório da recepção
elaborados por Domat e Pothier que são fundamentais na homogeneização da legislação
francesa.27
Na formação do direito luso-brasileiro houve uma contribuição e construção própria
pautada pela riquíssima legislação das Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e
Filipinas (1603) que representaram o grande monumento legislativo de Portugal, sendo que
essa última perdurou mais de quatro séculos, inclusive por mais tempo no Brasil do que em
Portugal.
A disputa em torno da necessidade da codificação acendeu o espírito dos juristas do
século XIX, especialmente após a célebre disputa (dentre tantas outras que marcaram essa
fase) entre Savigny e Thibaut.28 Sabe-se que o primeiro jurista se pautou por uma defesa
férrea pela desnecessidade de um código. Partidário e fundador da escola histórica, Savigny
não concebia como útil ou viável engessar o sistema jurídico com um código positivo que
eliminaria as fontes vivas da expressão do espíritodo povo alemão (Volksgeist).29
Dessa célebre disputa, desnecessário mencionar que a opinião de Thibaut restou
vitoriosa. A vitória do seu posicionamento não representou uma simples disputa acadêmica.
Não se tratava de um debate alçado ao plano teorético, mas de uma aguçada perspectiva do
momento histórico que comprovou a veracidade de sua tese. A necessidade da positivação
do direito, num período em que se buscava uma nova identidade para o sistema jurídico,
prevaleceu como modelo ideal para o século XIX.30 O legado da revolução francesa,
ancorada nos primados de igualdade, liberdade e fraternidade, centrou-se, no âmbito
jurídico, pela positivação do direito costumeiro. A existência de um diploma homogêneo, com
tônus universal, na forma escrita, seria conditio sine quae non para garantir a igualdade na
aplicação da lei. Sem a existência de um texto escrito, com acesso público e que garantisse
a consulta universal sobre os direitos e deveres de cada cidadão, o ideário revolucionário
restaria comprometido.
O diploma francês exerceu grande fascínio em toda a Europa e concitou os próprios
alemães a realizar a empreitada. A poderosa influência de Savigny atrasaria em mais de 50
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anos o processo de codificação, o que resultou, numa visão sobranceira e otimista, num
ponto positivo para o direito brasileiro e para o próprio direito alemão.
A sistematização do direito alemão, por meio do BGB, foi antecedida da unificação do
seu território, o que se deve ao grande esforço empreendido por Bismark. A necessidade de
condensação dos diversos diplomas que regiam os Estados unificados (Länder) exigiu um
longo período de discussão e maturação do BGB. Destacou-se a figura de Windscheid na
sistematização e harmonização do texto. O aproveitamento da experiência francesa
conjugada com a robustez da dogmática alemã preparou o campo para o nascimento do
monumental Código Civil Alemão. Passados mais de 100 anos, sua estrutura somente exigiu
uma profunda alteração no ano de 2002 (grosse Lösung), em vista da necessidade de
acomodar o direito comunitário e a legislação consumerista, a qual acabou sendo inserida no
BGB.31
A menção quanto à manifesta vantagem da codificação tardia do direito alemão, para o
direito brasileiro, se deve ao fato de que nosso sistema teve tempo suficiente para sofrer
alguma influência do pensamento germânico, ainda que parcial. Até então, o Brasil vivia um
período peculiar pela sobrevivência das Ordenações Filipinas e sua aplicação com a
utilização de leis extravagantes compiladas, quando mesmo em Portugal, o seu texto já não
era mais utilizado.
O caso brasileiro, quanto à codificação, conta com nota pitoresca marcada pela
genialidade de um jurista excepcional e profundo conhecedor do direito romano e lusitano:
Teixeira de Freitas. O seu legado particular para o direito brasileiro é inquestionável pela
construção de um monumental projeto de Código Civil. O seu trabalho ainda construído no
século XIX seria marcado pela atualidade e arrojo, o qual não vingou pela incapacidade
política do Reinado e pelas vaidades que marcam a paternidade de uma legislação dessa
envergadura.
O trabalho de Teixeira de Freitas representou fonte viva da aplicação das leis civis, após
a segunda metade do século XIX.32 Apesar do monumental estudo de sua consolidação,
inclusive atualizando-a até a 3ª edição, seu projeto não foi encampado, mas influenciou
sobremaneira o pensamento de Clóvis e, de forma quase que integral, a codificação do
Direito Argentino que sofreu recente reforma quanto ao seu Código Civil demonstrando os
bons serviços do jurista brasileiro por mais de cem anos naquele país.
No tocante aos direitos reais, Teixeira de Freitas pode ser considerado pioneiro, pelo
menos na América Latina, na formulação da teoria da sujeição passiva universal, com muita
antecedência a Planiol, a quem é atribuída a sua criação.33-34 De acordo com Menezes
Cordeiro35, posição primaz deve ser atribuída a Windscheid, quanto ao esboço originário da
teoria da sujeição passiva universal pela noção de poder absoluto. Em outras, palavras a
relação jurídica real não deixa de ser uma relação inter volentes, mas de conteúdo negativo,
pois imprime um dever de abstenção.36
Trata-se de uma teoria considerada personalista, em que o sujeito passivo é total e não é
representado pela res, mas sim pela sociedade, que tem o dever de abstenção quanto aos
potenciais atos nocivos dirigidos ao direito de propriedade. Como se trata de uma abstenção
genérica, fala-se em eficácia erga omnes. 37 Embora o posicionamento possa ser criticado
pelo uso formal da relação jurídica como categoria base, o fato é que a explicação logrou
sistematizar a matéria na doutrina brasileira.38
Deve-se frisar que os valores que orientaram nosso primeiro Código estavam ligados a
um período de transição, o que levou à aceitação incondicionada de princípios como o do
pacta sunt servanda, com base na autonomia fictícia de liberdade das partes, privilegiando o
individualismo e, por via reflexa, a doutrina do liberalismo. A influência do subjetivismo ainda
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é presente e forte como se observa da doutrina do erro, bem como das formulações sobre a
posse de boa-fé sobre o viés psicológico.
A legislação civil brasileira acabaria por sofrer, após a publicação do Código Civil os
influxos das mutações e novos valores que permeavam o perfil do direito civil no século XX,
no qual não se poderia negar a necessidade da socialidade como valor base e que traria
influência na análise da relação jurídica em suas diversas projeções.39 Os excessos do
liberalismo econômico fortaleceram a posição do Estado e sua intervenção no domínio
econômico e pode-se tomar a Constituição de Weimar como um exemplo característico
dessa afirmação. No âmbito dos direitos reais, o século XX passa a considerar a propriedade
como um direito essencial, mas sujeito ao cumprimento da função social. No ordenamento
brasileiro a função social foi incorporada de modo expresso pelo texto constitucional de
1934. Nessa visão, o caráter absoluto do direito de propriedade, sobre o qual gravita toda a
sistematização dos direitos reais, acaba por sofrer uma readequação que não será apenas
incorporada pelo direito brasileiro, mas pelos principais ordenamentos mundiais.
Exemplo sensível dessa afirmação, que representou fontes de injustiça contratual e com
reflexos diretos na formação do direito de propriedade, na primeira metade do século XX, no
sistema brasileiro, residiu na aplicação literal do art. 1088 do Código Civil Brasileiro de 1916.
Esse dispositivo permitia a livre resolução do contrato-promessa, até o momento da
conclusão do contrato-definitivo. O compromisso preliminar de compra e venda acabou por
se disseminar como um instrumento de aquisição da propriedade por prestações, em relação
a imóveis loteados. Em um período de grande expansão e ocupação dos centros
urbanísticos, o regime de aquisição da propriedade imóvel passou por período de intensa
comercialização. A compra a prazo representou um fator importante para permitir a
aquisição da propriedade imóvel.
O comprador, sem ter condições de realizar a aquisição do bem pelo preço à vista,
celebrava o contrato preliminar com a promessa de receber a outorga da escritura pública
definitiva, por ocasião da quitação. As atitudes inescrupulosas dos compromitentes
vendedores fariam com que exercitassem poderpotestativo oriundo do art. 1088 do Código
Civil Brasileiro /1916, em vista da possibilidade do arrependimento até a conclusão do
contrato definitivo. Fala-se em atitude inescrupulosa e não exercício regular de direito porque
havia uma utilização abusiva da cláusula de arrependimento. E o motivo era simples:
inexistia correção monetária regulamentada para a atualização das dívidas legais e
convencionais.40 O dispositivo era fonte de gritante desequilíbrio e pela sua importância
transcrevemos: "Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer
das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos
resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097." 41
O abuso de direito no exercício da pretensão e a violação da boa-fé eram claros, mas a
interpretação literal aliada à inexistência de correção monetária no direito brasileiro acabava
por incentivar à resolução imotivada. Como consequência, ao final de um largo
parcelamento, o comprador recebia o que havia pago, sem qualquer correção e o vendedor
oferecia novamente o imóvel para venda a prestações para um novo comprador.
A correção dessa distorção ocorreu pela edição do Decreto-lei nº 58/37.42 O diploma veio
como meio de correção e equilíbrio privilegiando a justiça contratual e o reconhecimento da
função social da propriedade.43 A grave descompensação provocada pela aplicação do art.
1088 acabaria estendendo a aplicação do regime do Decreto-lei nº 58/37 para os imóveis,
urbanos e rurais, não loteados, por meio da Lei nº 649, de 11 de março de 1949.
Posteriormente foi elaborada lei específica para o parcelamento da propriedade urbana, por
meio da Lei nº 6.766/79.44 Essa passagem revela o embrião da valorização da posse no
sistema brasileiro como instituto jurídico autônomo e não como um simples complementar do
direito de propriedade.
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As transformações da ordem social e econômica do século XX ainda trazem à tona o real
papel da codificação para um período marcado pela necessidade de dinamismo e que se
contrapõe à estabilidade normativa propiciada por um novo Código. A complexidade e a
estrutura multifacetária de um diploma vocacionado para o regramento do direito privado não
se mostra aberto para mutilações constantes. Ao menos no direito brasileiro, essa
constatação acabou justificando a expansão de farta legislação extravagante. Um exemplo
nítido dessa afirmação residiu na opção do legislador brasileiro em não inserir a legislação
consumerista no Código Civil de 2002. Uma opção diversa em relação ao diploma alemão
que acabou por regular a posição do fornecedor (§14-Unternehmer) e consumidor (§ 13-
Verbraucher) perante o BGB e com restrição ao tratamento das pessoas físicas.45
3.3.1. A codificação e o direito funcional de propriedade
O Código Civil Brasileiro de 2002 operou uma nítida incorporação da socialidade como
elemento balizador do direito de propriedade e dos demais institutos que derivam de sua
decomposição. A posse como elemento primário que poderá, ou não, compor a situação
jurídica do proprietário está inserida no ambiente social e torna o proprietário responsável
efetivo pelo uso particular do bem em conformidade com a ordem social. O art. 1228, caput e
§ 1º, do Código Civil Brasileiro estabelecem o compromisso do uso racional, social e
ecológico da propriedade.46
A visão atual do direito brasileiro sobre o direito de propriedade não corresponde aos fins
delimitados pela clássica dicção do art. 544 do CCF, mas para a visão da propriedade como
um direito absoluto e integrado ao meio social, uma vez que caberá ao seu titular o direito de
fruir, utilizar e aliená-la, mas sem prejuízo de que sua função e atividade esteja adequada ao
ambiente social em que os poderes são exercidos. As limitações sociais estão relacionadas
ao equilíbrio da convivência, ao uso lícito para fins econômicos, ao uso racional da
propriedade na qual se busca o difícil equilíbrio entre a utilização e a preservação do meio-
ambiente com garantia da subsistência dos recursos naturais e industriais para a
sobrevivência do ser humano. Ultrapassa-se a visão da propriedade como um direito
irrestrito e sem limites para a visão da propriedade como um direito funcional.47 Essa visão
passa a acomodar uma noção simples e óbvia. A propriedade não pode ser regulada com
foco exclusivo na fruição do seu titular, pois as faculdades conferidas ao titular devem levar
em consideração os terceiros. Se todos devem respeitar o direito do proprietário pela
cláusula geral de abstenção (eficácia erga omnes) não é menos verdade que todos possuem
o direito de não serem afetados pelo uso indevido da propriedade particular.
Dentro dessa visão havia a necessidade de acomodação das situações fáticas novas e
que exigiam uma atualização da legislação brasileira. É certo que dentre os ramos do direito
civil é possível afirmar que os direitos reais são marcados por maior estabilidade. Isto não
eliminou a necessidade de atualização de nossa legislação que passou por nova codificação
no ano de 2002.
Novas figuras foram incorporadas ao Código em franca atualização do seu texto. A boa-
fé prevista até então, na modalidade subjetiva, e com maior evidência nos direitos reais
passou a contar com previsão na parte geral, no art. 113 do Código Civil Brasileiro: "Os
negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e do lugar de sua
celebração." Como será examinado à frente, no esquema dos direitos reais, no sistema
brasileiro que é causal, a verificação da boa-fé na fase negocial será fundamental, em vista
das repercussões fáticas e jurídicas quando sua ausência não justifique a manutenção das
declarações de vontade emitidas. Ao contrário do sistema alemão que prevê o isolamento do
negócio jurídico real (princípio da abstração), o direito brasileiro não permite essa separação
e revela a interação entre o titulus e o modus adquirendi. Essa situação parece não mudar
mesmo com a promulgação da Lei nº 13.097/2015.
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05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020
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O Código Civil Brasileiro de 2002 introduziu o conceito de posse-trabalho, que consiste
em elemento diferenciador para a diminuição dos prazos da usucapião permitindo a
formação do direito de propriedade em prazo abreviado (art. 1238, parágrafo único). O
Código Civil Brasileiro ainda incorporou possibilidade de formação abreviada de propriedade
pela confluência da boa-fé e do registro, o que representa um rompimento com o
entendimento clássico do direito brasileiro quanto à prevalência do direito de propriedade em
face de uma situação aparente (art. 1242, parágrafo único).48 A função social da propriedade
como princípio ordenador revela sua força na inversão do secular princípio superficies solo
cedit pelo art. 1255, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro.49 A previsão, apesar de
inovadora para o sistema brasileiro, já estava presente no Código Civil Português perante o
art. 1340.50 A influência é direta sobre a codificação brasileira e o instituto toma como
elemento central boa-fé do titular da acessão.51 A acessão configura modo de aquisição
originário de propriedade que poderá ou não estar vinculado à causa contratual.52
O período atual acaba sendo marcado pela confluência normativa, pois o Código Civil é
insuficiente para disciplinar a gama de interesses e direitos que necessitam de
harmonização com a dicção do art. 1228, caput. A necessidade do uso racional da
propriedade acaba se tornando uma condição de convivência

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