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05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 1/1 CAPA CAPA 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 1/1 FICHA CATALOGRÁFICA FICHA CATALOGRÁFICA Ficha catalográfica Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Araújo, Fábio Caldas de O terceiro de boa-fé [livro eletrônico] : proteção na aquisição de bens móveis e imóveis / Fábio Caldas de Araújo. -- 1. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2020. 6 Mb ; ePUB 1 ed. e-book baseada na 1 ed. impressa. Bibliografia ISBN 978-65-5065-399-6 1. Boa-fé (Direito) 2. Contratos 3. Direito imobiliário 4. Direito imobiliário - Brasil 5. Imóveis - Leis e legislação I. Título. 20-35404 CDU-347.44:347.141.8 Índices para catálogo sistemático: 1. Boa-fé : Contratos : Obrigações : Direito civil 347.44:347.141.8 2. Contratos de boa-fé : Obrigações : Direito civil347.44:347.141.8 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 1/9 1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI 1. A SOCIEDADE DE CONSUMO NO SÉCULO XXI 1 A Sociedade de Consumo no Século XXI 1.1. O consumo e a circulação de bens O consumo não pode ser definido como uma peculiaridade da sociedade moderna. A sobrevivência do ser humano sempre dependeu do consumo fundado na apropriação natural ou comercial de bens.1 O consumo se perfaz pela aquisição e fruição de bens. Os bens são tutelados pelo sistema jurídico, o qual disciplina os meios legais de pacificação sobre a sua disputa. De acordo com clássica lição de Carnelutti, os bens representam o motivo essencial das disputas judiciais, pois os bens são limitados e os interesses ilimitados, o que gera a necessidade de meios racionais para o regramento dos conflitos sociais.2 - 3 O que marca o período moderno é o consumo em massa e de modo globalizado. Muito embora o ato de consumir seja uma constante histórica, o consumo do homem moderno é diverso do da antiguidade. A preocupação, nos primórdios da civilização, para a maioria das pessoas, residia unicamente no ato de sobreviver.4 O ato de consumir estava intimamente ligado à subsistência do núcleo familiar. No período medieval as cidades desenvolvem-se ao redor dos feudos, como meio de proteção mútua e como meio de associação e cooperação.5 Os burgos nascem pela busca de um local estável em que as pessoas possam se estabelecer e viver com razoável segurança.6 Somente no período moderno, com o desenvolvimento social e econômico, é possível observar a formação de uma administração municipal e de uma classe burguesa que fornecerá um novo modelo social, econômico e jurídico.7 Neste período de transição do período medieval para o moderno, o crescimento do consumo e o acesso aos “novos mundos”, especialmente ante ao extraordinário desenvolvimento da navegação portuguesa, por meio da escola de Sagres, tornou possível o acesso à Índia pelo Ocidente, por meio do contorno ao Cabo da Boa Esperança, cuja tarefa foi empreendida por Vasco da Gama, no ano de 1499. Outro grande navegador português, Pedro Álvares Cabral, seria responsável por outro grande feito, a descoberta do Brasil, no ano de 1500. A expansão geográfica propiciou novos horizontes e fontes de abastecimento para o continente europeu. A descoberta do caminho das Índias pela rota ocidental abriu uma nova fonte para o comércio e consumo de especiarias. O monopólio de Gênova e Veneza é quebrado, pois ambas as cidades eram abastecidas pelos portos de Tripoli, Alexandria e Constantinopla.8 Esta última cidade já havia interrompido o abastecimento com sua tomada pelos Turcos Otomanos no ano de 1453. O volume comercial cresceria gradualmente pela descoberta de produtos até então desconhecidos e que conferiam um enriquecimento aos hábitos do homem da javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 2/9 baixa Idade Média. O forte consumo de especiarias por meio das cidades de Genova e Veneza já havia provocado uma transformação radical no comércio jurídico europeu, inclusive com importante reflexo jurídico por meio da criação dos títulos de crédito, como instrumento de garantia e execução contra o devedor.9 Neste período ainda é possível observar o início do desenvolvimento histórico das sociedades por ações e o fenômeno da atomização do direito de propriedade que iniciará uma mudança quanto ao enfoque de proteção irrestrita da propriedade imobiliária oriunda da tradição romano-canônica.10 O banco de São Jorge, em Génova, criado em 1407, e que operou até 1805, representaria o marco embrionário das sociedades por ações.11 A sociedade moderna, especialmente após a revolução industrial, passou a conhecer o consumo em escala. O impacto e crescimento comercial refletiria no sistema jurídico. Além do aperfeiçoamento dos títulos de crédito, as sociedades comerciais passaram a adotar modelos complexos que obrigam à regulação em leis extravagantes, alterando a topologia codificada que marcou a sedimentação do direito positivo no século XIX. Neste panorama deve ser agregada a recepção da boa-fé objetiva como elemento essencial para a segurança das relações jurídicas, cujo desenvolvimento se deve ao gênio alemão.12 Muito embora já recepcionada pelo BGB na Alemanha, em 1896, com seus antecedentes no HGB, é possível afirmar que o tema foi praticamente desconhecido da doutrina brasileira.13 Apenas no final do século XX, com a preocupação voltada para a reforma do CCB de 1916, que culminou com o diploma atual do ano de 2002, a doutrina alcançou maior profundidade quanto ao importantíssimo tema, especialmente com apoio na doutrina portuguesa.14 A boa-fé objetiva avultou no sistema brasileiro pelas peculiaridades que informam o sistema de proteção da propriedade imobiliária e mobiliária. O Brasil sofreu a influência predominante do direito francês por largo período no campo material e processual. É o que explica, de certo modo, as dificuldades de construção do sistema tabular em nosso regime jurídico, o qual seria vital, em vista da debilidade e desorganização na formação dos títulos dominiais. As dimensões continentais do território brasileiro exigiriam uma forma racional de organização do cadastro imobiliário e o regime tabular assumiria importância destacada no modelo brasileiro como elemento de auxílio na estabilidade da proteção e segurança das relações jurídicas. Por sua vez, percebe-se as dificuldades existentes no direito português para uma proteção efetiva do terceiro de boa-fé em relação aos bens móveis, em vista da inexistência de recepção da regra de Bourjon pela qual a posse vale título (en fait de meubles la possession vau titre). Isso não eliminou a possibilidade de proteção do terceiro, na aquisição da propriedade imóvel ou móvel sujeita a registro, no sistema lusitano, pela interessante figura do art. 291 do CCP e pela proteção específica do CRP por meio dos arts. 5º e 17. O direito brasileiro nunca contou com este sistema peculiar de proteção para os bens imóveis. O CCB previa uma proteção ao terceiro de boa-fé por meio da usucapião abreviada especial, conforme previsão insculpida pelo art. 1.242, parágrafo único. No ano de 2015, a legislação brasileira passou por uma modificação singular ao prever a possibilidade de proteção do terceiro de boa-fé pormeio do registro, inclusive em javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 3/9 face da evicção, conforme dicção do art. 54, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015.15 1.2. A necessidade de segurança jurídica A sociedade moderna procura obter do sistema jurídico o que ele pode conferir de melhor: segurança jurídica.16 Nesta tarefa de buscar os valores que informam o ordenamento jurídico com o fim de obter a unidade do sistema, a proteção ao terceiro de boa-fé se revela fundamental. A procura dos valores fundamentais que informam a ordem jurídica no campo do direito material ou processual exige a leitura e compreensão da base em que se radica a Constituição. A Carta Magna informa os valores que devem orientar a formação dos textos infraconstitucionais e sua interpretação é renovada pela jurisprudência da Corte Constitucional que traça os parâmetros para a interpretação dos Direitos Fundamentais. A influência da Constituição é marcante e reflete um autêntico fenômeno de constitucionalização das normas do direito privado.17 Mesmo no campo do direito privado, a eficácia horizontal dos direitos fundamentais não pode mais ser ignorada. A questão ganhou grande rendimento com o polêmico julgamento do caso Lüth.18 Pela primeira vez, a Corte Constitucional Alemã admitiu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais, com discussão sobre a possibilidade de sua irradiação em relação aos terceiros, nas relações privadas (Drittwirkung).19 Até então, a construção da proteção dos direitos fundamentais estava sedimentada na relação Estado-cidadão (Abwehrrecht des Bürgers gegen den Staat), que marcava a eficácia vertical dos direitos fundamentais.20 Por meio desta noção, a relação de superioridade do Estado em relação ao cidadão (princípio da supremacia do interesse público sobre o particular) seria resguardada pela proteção vertical e imediata dos direitos fundamentais. Não se está aqui a defender a aplicação da eficácia horizontal sobre o direito privado de modo imediato ao terceiro, mas unicamente apontando-se para a importância da questão e a necessidade de conformação do direito privado à ordem Constitucional.21 O direito brasileiro conheceu muito cedo a incidência horizontal dos direitos fundamentais em virtude do grande tempo de defasagem de nossa legislação infraconstitucional. Nosso primeiro CCB entrou em vigência no ano de 1916 e sofreu sua grande reforma apenas no século XXI, com a aprovação do CCB de 2002. A elaboração e promulgação tardia da primeira codificação brasileira poderia ter sido motivo de grande vantagem, pois, neste período, o mundo ocidental já contava com o monumental BGB, que foi promulgado em 1896, e que contou com prolongada vacatio legis, pois entrou em vigência apenas no ano de 1900.22 Como informa a melhor doutrina, o BGB é fruto de uma codificação tardia e representativa da terceira sistemática.23 A poderosa influência do BGB sobre o direito brasileiro, no que tange à proteção do terceiro, assume peculiar posição no regime da proteção da propriedade móvel pela boa-fé. Neste ponto peculiar há uma relação direta com a contribuição francesa pela regra de Bourjon, mas sem descurar da influência da Gewere, de onde provém a regra de garantia da javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 4/9 transmissão dos bens móveis (Hand muss Hand wahren), ou mesmo da boa-fé incentivada pelo direito inglês na realização de feiras públicas (open market). Esta conjunção informa um regime peculiar que irá influenciar o direito brasileiro, conforme leitura do art. 1.268 do CCB, no que tange à propriedade móvel. No regime da propriedade imóvel, as relações jurídicas são marcadas por maior estabilidade, o que de certa forma demonstra a importância do direito de propriedade no meio social. Não é lícito procurar estabelecer uma gradação entre os direitos com o fim de estabelecer classificação quanto a maior ou menor importância. Atualmente, os direitos da personalidade ocupam uma posição de destaque pela tutela a temas sensíveis que estão relacionados diretamente à essência da pessoa e sua dignidade. No entanto, não é menos importante o regramento dos direitos reais, pois a subsistência do ser humano depende essencialmente da fruição de bens, o que justifica a importância do seu tratamento e proteção jurídica. Aliás, um dos pontos de maior polêmica reside em definir a relação de interação entre a pessoa e a coisa.24 Nos direitos reais e na sociedade civilizada esta interação é regrada por normas que disciplinam as formas de aquisição, conservação e extinção da propriedade. Ainda que fosse desejável que todas as relações de interação entre a pessoa e a coisa pudessem ser materializadas por títulos jurídicos, que garantissem segurança e transparência nas relações sociais, o modelo ideal ainda não foi concretizado. Este é o motivo pelo qual o sistema jurídico atual ainda necessita de proteção peculiar para a posse. A posse representa um fato social indelével e que acaba provocando a consolidação de diversas situações jurídicas, inclusive contrapostas ao direito de propriedade (usucapião), bem como a necessidade de proteção ao terceiro de boa-fé. A proteção possessória constrói modelos próprios na formulação de precedentes que apresentam uma interessante e polêmica linha de evolução que deverá ser examinada pelo confronto da função social da posse com o direito de propriedade. No Brasil, o STJ sedimentou proteção poderosa por meio da Súmula 84: É admissível a oposição de embargos de terceiro fundados em alegação de posse advinda do compromisso de compra e venda de imóvel, ainda que desprovido do registro. É necessário investigar se a proteção possessória pode chegar ao extremo, ao ponto de abalar o direito de propriedade, ou seria uma nova forma de direito real jurisprudencial? Afinal, o titular de um compromisso de compra e venda que não registra seu bem imóvel e oculta propositadamente o seu patrimônio merece proteção efetiva do sistema jurídico? Não seria uma violação da cláusula geral da boa-fé? O confronto entre o compromitente comprador (possuidor direto) com o terceiro adquirente que confiou no registro merece solução pela prevalência da Súmula 84 do STJ? Ou deveria ser garantida a posição do comprador que confiou no registro de propriedade, nos termos do art. 1.245 do CCB? O mesmo questionamento pode ser transportado para o regime de aquisição da propriedade em hasta pública. O CPC/2015 tutela expressamente a aquisição do terceiro arrematante, nos termos do caput do art. 903: “Qualquer que seja a modalidade de leilão, assinado o auto pelo juiz, pelo arrematante e pelo leiloeiro, a arrematação será considerada perfeita, acabada e irretratável, ainda que venham a ser julgados procedentes os embargos do executado ou a ação autônoma de que trata o § 4º deste artigo, assegurada a possibilidade de reparação pelos prejuízos sofridos” (grifo nosso). A solução processual é altamente javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 5/9 elogiável e representa a valorização da boa-fé objetiva na seara processual, na medida em que fortalece a aquisição derivada oriunda da venda judicial. Entretanto, esta consolidação da propriedade ao terceiro arrematante de boa-fé ficaria imune à aplicação da Súmula 84 do STJ? O que dizerquando o terceiro se apresente e defenda sua posse de boa-fé confrontando o título de propriedade formado pela consolidação da arrematação. A questão é interessante porque revela um conflito entre situações legítimas de boa-fé: a boa-fé do arrematante versus a boa-fé do possuidor. A estas questões a doutrina e a jurisprudência brasileira não têm dedicado a atenção adequada. A proteção irrestrita da posse funda-se em uma visão de hipossuficiência do possuidor. A Súmula 84 do STJ acaba por mudar paradigma básico do sistema jurídico brasileiro ao transformar a posse de boa-fé em instituto de maior rendimento do que a propriedade. A posse, a princípio, estaria imune ao direito de sequela e à eficácia erga omnes do direito real. Seria lícito indagar se a proteção à tutela individual seria legítima ao ponto de abalar a estrutura estável conferida pela publicidade registral, ou mesmo a publicidade garantida pelo ato de alienação judicial? A análise desta questão exige a digressão sobre conceitos prévios que contribuirão para uma conclusão sobre as indagações supramencionadas. O direito de propriedade brasileiro, ao contrário de outros sistemas, é fortemente influenciado por questões sociais e conflitos possessórios coletivos que atingem a base de proteção da propriedade, o que provoca um grande impacto sobre a construção dos institutos jurídicos. A Súmula 84 do STJ reflete o fortalecimento da posse em um sistema jurídico marcado pela informalidade no regime de transmissão econômica dos bens. Fatores culturais e sociais influenciam nesta fórmula que acaba conferindo importância destacada para o contrato preliminar. Um exemplo desta afirmação reside na proteção conferida aos contratos de adesão firmados por particulares com incorporadoras. Além disso, a necessidade da moradia e a proteção constitucional ao patrimônio mínimo fortalecem a posição do compromitente possuidor ao ponto de sublimar a boa-fé subjetiva. Neste sentido deve ser mencionada a Súmula 308 do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. O precedente firmado é polêmico e de duvidoso acerto ao estabelecer uma hipótese ampla e irrestrita de defesa da posse, como será examinado na última parte deste trabalho. A análise comparativa entre o sistema brasileiro e português é interessante por permitir a compreensão de determinadas questões que o direito brasileiro solidificou com base na experiência estrangeira. Um exemplo claro desta afirmação reside nos dois pontos principais da exposição. O primeiro com relação à tutela conferida à posse de boa-fé dos bens móveis, no qual o direito brasileiro apresenta sensível modificação desde a promulgação do CCB de 2002. O direito brasileiro afastou-se do direito português buscando não só a proteção possessória do terceiro de boa-fé, mas a garantia do tráfico negocial. O segundo ponto, ao contrário, não é de afastamento, mas de convergência. Muito embora a jurisprudência portuguesa seja restritiva quanto à tutela do terceiro de boa-fé, desde a promulgação do Código Civil Português de 1966, pode-se concluir por 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 6/9 uma lenta, mas crescente aproximação do direito português ao modelo germânico de proteção ao terceiro de boa-fé. A leitura do art. 291 do Código Civil Português e dos arts. 5º, I, e 17º do Código de Registo Português não permitem outra interpretação. Afastadas as discussões sobre o alcance e interpenetração entre a lei civil e registral, a realidade é uma só: admite-se a possibilidade de formação da propriedade a non domino ao terceiro de boa-fé, independentemente da usucapião. No direito brasileiro, até a promulgação da Lei nº 13.097/2015, esta conclusão seria inviável e contra legem. Com a previsão do art. 54, parágrafo único, o direito brasileiro ganha modernidade e a legislação civil alcança um patamar diferenciado. O grande desafio, desta mudança, ainda não absorvida pela jurisprudência e doutrina, reside em construir um modelo próprio quanto aos requisitos de sedimentação da aquisição a non domino pelo registro. 1 . Como pontua precisamente Menezes Cordeiro (Da Modernização do Direito Civil, I, p. 151), não seria possível observar a autonomia do direito comercial no direito romano porque, após a formação dos bonae fidei iudicia, “o Direito romano era, todo ele, comercial”. 2 . Sistema del Diritto Processuale Civile, t. I, p. 33. 3 . Na fase atual, a resolução de conflitos possui meios alternativos ou paralelos na solução de conflitos (ADR – alternative dispute resolution). Alguns denominam de sistema multiportas (multi- door system). A possibilidade de vias colaterais ou alternativas para a solução de conflitos é essencial para a desjudicialização excessiva dos conflitos. Apesar da previsão de outras “portas”, como a arbitragem, a mediação e a conciliação, denota-se o aumento gradual da utilização do poder judiciário. Isso também decorre da facilitação do “acesso à justiça”. Em 1995, regulamentava-se o Juizado Especial Cível e Criminal, pela Lei 9.099/95, atualmente, somente em microdemandas existem outros dois Juizados para facilitar o acesso do jurisdicionado: O Juizado Especial Federal (Lei 10.259/01) e o Juizado Especial Estadual das Fazendas Públicas (Lei 12.153/09). 4 . A comprovação da assertiva pode ser constatada pela descrição histórica do inventário de Zanobi, camponês de Capannale em 1406, conforme estudo de Philippe Ariès e George Duby (História da vida Privada, t. II, p. 189): “O defunto, proprietário de sua terra, estava bem equipado em material agrícola, toneis, animais de tiro e de curral (três porcos); suas provisões de trigo e de vinho teriam bastado até a próxima colheita; nenhuma dívida. Mas na peça exclusiva que o abrigava com sua família (uma mulher, três filhos), o único móvel marcante é uma cama, uma grande cama de 2,90 metros com todos os seus pertences e o cortejo de suas arcas, quanto ao resto, nem mesmo o estritamente necessário”. 5 . João Ameal, História da Europa, t. II, p. 98. 6 . Henri Pirenne, A Cidade Medieval, pp. 49-50. 7 . Sobre o desenvolvimento das cidades e comunas, é essencial a pesquisa da obra de Wilhelm Ebel, Der Bürgereid als Geltungsgrund und Gestaltungsprinzip des deutschen Mittelalterlichen Stadtrechts, pp. 08-90, Böhlaus, Weimar, 1958. A formação das comunas e burgos pode ser diferenciada pelo juramento. Quando o burgo se forma na propriedade do senhor feudal, realiza-se o juramento que forma a relação jurídica que vincula o suserano e o vassalo. Por outro lado, quando desvinculada de um senhor feudal, é possível observar a formação de uma associação de 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 7/9 pessoas que firmam, pelo juramento, um propósito de vida em comum, sem relação de hierarquia, o que forma a comuna. 8 . Para uma análise da história do comércio e da atividade comercial dos italianos, Goldschmidt, Universalgeschichte des Handelsrechts (História Universal do Direito Comercial), § 7º, p. 142 e ss. 9 . Foi na Idade Média, por meio dos estudos de Bártolo, que a problemática sobre a necessidade do título executivo para aparelhar a execução foi retomada. Condenando os princípios do sistema germano de execução, o qual se realizava sem fundamento, em qualquer prova ou pronunciamento judicial prévio, Bártolo enunciou a máxima non est incoandum ab executionis. Certo de que os costumes bárbaro-germânicos não condiziam com a melhor solução para resolver o problema da execução, causava repúdio a ideia de utilizar-se da penosa actio iudicati para dar seguimento ao processo de execução. Isso porque, mesmo o credorestando de posse de uma sentença condenatória, precisaria mover um novo processo com pleno contraditório. Como meio de acelerar o procedimento, Martino di Fano e, depois, Giovanni Fasolo desenvolveram duas formas possíveis de execução no período medievo. A primeira, de natureza sumária, exercer-se-ia com base no poder de ofício do Juiz em movimentar o juízo e denominou-se imploratio per officium judicis. A segunda continuava a privilegiar a actio iudicati, em face de sua previsão junto ao Direito Romano. A execução, por ofício do Juiz, influenciou os demais sistemas, levando a criação de um sistema ágil, onde a possibilidade de execução, sem a necessidade de novo processo de conhecimento, foi sintetizada pela fórmula: setentia habet parata executionem. Surge o conceito de execução aparelhada (executio parata), pois o juiz, em função de uma sentença condenatória (título executivo), obrigava o réu a cumprir o mandamento judicial, sem eliminar a possibilidade oposição do devedor. Vide, José Alberto dos Reis, Processo de Execução, v. I, p. 74. 10 . O sistema jurídico de tradição romana sempre valorizou a propriedade imobiliária como fonte de riqueza. Em Roma, a proteção à propriedade imobiliária poderia ser visualizada pelo regime jurídico solene de transmissão que exigia a mancipatio. Os bens de maior projeção econômica eram considerados res mancipi. Consideravam-se res mancipi: os terrenos itálicos, os escravos, animais de tiro e carga e as servidões prediais rústicas. Segundo Dernburg, esta classificação teve repercussão no período arcaico, pois no período Justinianeu ela deixou de existir: “Für das altrömische Recht war diese Unterscheidung von größter Wichtigkeit; dem Justinianischen Rechte sie nicht mehr an” (Para o período arcaico do direito romano, a diferenciação era de grande importância, mas não mais, no período de Justiniano – tradução livre), in Pandekten, t. I, § 67, p. 158. A transmissão de bens mancipi, pela traditio, gerou uma segunda espécie de propriedade, denominada de bonitária, ao lado da quiritária. 11 . Menezes Cordeiro, Direito das Sociedades, t. I – Parte Geral, pp. 60-61. 12 . Rudolf Mayer, Bona fides und lex mercatoria in der europäischen Rechtstradition, p. 36 e ss. 13 . Mesmo Pontes de Miranda, maior tratadista brasileiro, não realizou a percepção nítida quanto à distinção entre os regimes de incidência da boa-fé subjetiva (guter Glaube) e da boa-fé objetiva (Treu und Glauben). Sobre a boa-fé possessória, deve ser consultado, Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, t. X, § 1078, p. 126. 14 . Menezes Cordeiro, A Boa-fé no Direitos Civil, passim. Esta obra representa um marco divisório do direito moderno quanto ao tema. Quem realizar a leitura integral deste denso trabalho tomará contato com a análise profunda e o desenvolvimento histórico minucioso sobre a boa-fé, com pesquisa inigualável nas fontes e que permite compreender temas até então obscuros, como a distinção entre bona fides e aequitas, bem como a importância de Aristóteles quanto à laicização do direito e o desapego dos conceitos metafísicos de Platão. Não há paralelo sobre o tema nesta profundidade, mesmo no direito alemão. 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 8/9 15 . O sistema registral brasileiro é regido pela Lei nº 6.015/73, com suas subsequentes alterações. As duas alterações mais importantes e significativas desde sua implantação, no que toca à proteção da boa-fé, reside na adoção do modelo espanhol do patrimônio de afetação pela Lei nº 10.931/2004 e na inserção do princípio da concentração por meio da Lei nº 13.097/2015. Por meio da primeira alteração, procurou-se imunizar a matrícula registral para que incorporadoras e construtoras não pudessem gravar os terrenos que seriam utilizados para a construção de edifícios, com o fim de não prejudicar terceiros que realizassem a aquisição de unidades por meio de contratos preliminares. A segunda alteração de impacto veio por meio da Lei nº 13.097/2015, que positivou o princípio da concentração em seu art. 54. No sistema brasileiro, até então, somente as ações reais e reipersecutórias poderiam ser objeto de registro com o fim de proteger terceiros de boa-fé. Todavia, com o fim de permitir proteção integral, toda e qualquer constrição judicial (arresto, sequestro, indisponibilidade) poderá (rectius, deverá) ser averbada para prevenir eventual insolvabilidade do devedor perante terceiros (art. 54, III e IV). E mais, o art. 54, parágrafo único, é de leitura cristalina: Não poderão ser opostas situações jurídicas não constantes da matrícula no Registro de Imóveis, inclusive para fins de evicção , ao terceiro de boa-fé (grifo nosso) que adquirir ou receber em garantia direitos reais sobre o imóvel, ressalvados o disposto nos arts. 129 e 130 da Lei n º 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 , e as hipóteses de aquisição e extinção da propriedade que independam de registro de título de imóvel. 16 . Canaris, Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, § 1º, p. 18. 17 . Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 20. 18 . O caso Lüth narra leading case na década de cinquenta (1958), que inaugurou a aplicação das normas de direito fundamental sobre o direito privado. Erich Lüth realizou protesto contra a exibição do filme Unsterbliche Geliebte (Amada Imortal), de Veit Harlan, por sua suposta vinculação ao nazismo. Este cineasta teria produzido, na decada de 1940, filme antisemita denominado Jud Süß (O Judeu Süß), que o levou a ser processado por crime de guerra. Todavia, Veit Harlan foi absolvido por ficar caracterizada a impossibilidade de conduta diversa, sob risco de morte, uma vez que seguiu ordens de Goebbels, famoso Ministro da Propaganda Nazista. Lüth foi alvo de ação judicial inibitória e foi condenado a uma obrigação de abstenção. Em seu recurso ao Tribunal Constitucional, a decisão do Landgericht foi reformada e garantiu o direito fundamental à opinião e a possibilidade de influenciar terceiros. A ponderação levou em consideração a primazia do direito de manifestação em face dos bens jurídicos expostos na manifestação de Lüth. 19 . Vide a excelente crítica de Canaris sobre a utilização da eficácia da irradiação na decisão histórica (Bverf, 7, 198-230). O ilustre civilista diferencia com propriedade a distinção entre a eficácia imediata e a vigência imediata dos direitos fundamentais, que provocam consequências absolutamente distintas e que não são observadas na nomenclatura jurídica. Isso é comum no Direito Brasileiro em que a expressão Drittwirkung é tomada como sinônima para ambas as situações em grande parte dos manuais e cursos de direito constitucional. 20 . Zippelius/Würtenberger, Deutsches Staatsrecht, § 17, p. 177, 21 . Sobre a eficácia imediata e mediata dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado, Canaris, Direitos Fundamentais e Direito Privado, p. 54. 22 . O avanço do diploma alemão para a época pode ser visualizado na discussão do projeto do BGB, com a separação clara entre o regime público e privado, in Motive zu dem Entwurfe eines Bürgerliches Gesetzbuches für das Deutsche Reich, t. I, pp. 2-14. 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 9/9 23 . Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português – Parte Geral, t. I, p. 72. 24 . Sobre as possíveis teorias que explicam a relação jurídica real, Menezes Cordeiro, Direitos Reais, 213-260. Vide ainda o interessante trabalho de Rigaud, Le Droit Réel – Histoire et Theories, especialmente pp. 113 e ss. 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480…1/5 2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS 2. A BOA-FÉ E OS DIREITOS REAIS 2 A Boa-fé e os Direitos Reais 2.1. A boa-fé e sua incidência no direito privado e público A boa-fé é marcada por sua projeção sistêmica e por representar um vértice de influência sobre o campo do direito privado e público. É peculiar a influência cada vez maior da boa-fé nas relações jurídicas que são marcadas pelo direito público. A boa-fé revela um fator importantíssimo de reequilíbrio na relação público-privado, o que pode ser explicado pela necessidade de mudança do objeto de proteção do bem jurídico na relação de direito público. O fortalecimento do Estado no período moderno surge de uma lenta maturação com período marcante na guerra dos 30 (trinta) anos no século XVII, que fortaleceu a noção de soberania e território e preparou as bases para a separação efetiva dos poderes no século XVIII.1 O surgimento do Estado como ente jurídico marcado pela superioridade hierárquica na relação jurídica provocou a sedimentação do princípio da supremacia do interesse público sobre o particular.2 A aplicação irrestrita e sem limites deste princípio gerou situações de extrema desigualdade e injustiça, especialmente no campo contratual e na responsabilidade civil. A supremacia do príncipe permitiria a resolução imotivada de relações jurídicas, ou a irresponsabilidade absoluta em situações de cometimento de ato ilícito (The King can do no wrong). O século XVII preparou a base de nascimento do Estado Moderno ao estabelecer limites para o Príncipe.3 A atuação do soberano deveria estar voltada para o bem estar geral e não particular. A formação do direito público propiciou a noção natural de supremacia do interesse estatal que representaria a vontade e o bem estar geral com sedimentação das funções estatais no século XIX.4 Esta noção, apesar de ainda ser predominante no direito público, exige uma revisão de postura. No âmbito do direito público, o objeto da atividade administrativa deve estar pautado pela proteção e segurança dos direitos fundamentais. O compromisso do Estado com a realização dos direitos primários realça o seu papel ordenador (Ordnungsfunktion) e provedor da atividade essencial para o bem estar dos cidadãos (Gestaltungsfunktion).5 O interesse estatal deve estar voltado para a proteção dos direitos fundamentais e não para a salvaguarda do interesse público que reflete um conceito indeterminado e de contornos duvidosos.6 Esta noção é fundamental como novo vetor de orientação da atividade administrativa, na medida em que a supremacia do interesse público não pode servir de argumento para fragilizar a posição jurídica do administrado. A proteção conferida pelos direitos fundamentais visa a uma limitação da atividade estatal sobre o indivíduo (Abwehrrechte).7 A vinculação do Estado aos direitos fundamentais e o javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 2/5 direcionamento de sua atividade para sua proteção não elimina o seu poder de império (Hoheitsverwaltung). O Estado, no exercício da função administrativa, exerce poder de polícia e poder de imposição de seus atos (Zwangsgewalt), mas o controle de sua atividade, e os limites do seu exercício, são controlados pela cláusula de proteção aos direitos fundamentais. A supremacia da atividade estatal somente é legítima quando conforma a atividade estatal ao respeito e proteção aos direitos fundamentais. No campo do direito público, a força da boa-fé deve ser ressaltada no âmbito material e processual. A boa-fé ganha progressiva importância e força nas relações contratuais com a Administração Pública como meio de proteção e equilíbrio para evitar que o indivíduo possa ser prejudicado de modo indevido. Nos contratos administrativos, por exemplo, as nulidades que tenham causa na atividade equivocada ou de má-fé do agente público não poderá acarretar em prejuízo para o terceiro de boa-fé que confia na liceidade da atividade administrativa. Podemos citar como exemplo o art. 59, parágrafo único, da Lei nº 8.666/93, que regula, no Direito Brasileiro, o regime de nulidade do contrato administrativo: A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa. Isso significa que o particular que estiver de boa-fé e não tenha contribuído de modo doloso para a contratação nula com o poder público terá direito à indenização. O ressarcimento é garantido pela primazia da boa-fé na relação jurídica contratual. Nesta situação podemos citar o Município ou Estado que destina verba para obra diversa que justificou o convênio firmado com a União Federal. O terceiro que vence a licitação e inicia a execução do contrato poderá estar de boa- fé e sem conhecimento efetivo sobre a origem dos recursos destinados ao seu pagamento. A nulidade da licitação não pode ser oposta ao particular que executou o serviço. A exceção de ilicitude não pode se servir de causa para o incumprimento do contrato.8 Outro exemplo refere-se à proibição da surpresa em relação aos ocupantes de função pública que tenham auferido remuneração de boa-fé. A existência de erro da Administração Pública, ou alteração no entendimento da Administração Pública, ou mesmo a modificação quanto ao entendimento da jurisprudência, não serão argumentos suficientes para alterar a posição jurídica estabilizada. Respeita-se a boa-fé e proíbe-se o venire contra factum proprium da Administração Pública.9 Os exemplos citados conformam a proteção pela boa-fé, o que reflete, em última análise, a uma proteção de direito fundamental individual que veda a retroatividade e a alteração de situação jurídica consumada (art. 5º, XXXVI, CFB e art. 18º, 3, da CFP). 2.1.1. A boa-fé no direito público: A seara processual No âmbito do direito público, ainda merece destaque as reformas dos ordenamentos português e brasileiro, representados pela alteração da legislação processual. A reforma do Direito Processual Civil Português tornou expressa a previsão da boa-fé no art. 8º: “As partes devem agir de boa-fé e observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo anterior”. A influência deste diploma sobre a reforma operada no recentíssimo Código Processual Civil javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 3/5 Brasileiro é manifesta como se depreende da redação do art. 5º: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa- fé”.10 Em toda e qualquer relação jurídica, a boa-fé estará presente como elemento ético e indissociável de integração, interpretação e correção. Na seara processual, o tema da boa-fé no direito processual brasileiro é absolutamente incipiente. A boa-fé sempre foi tratada como elemento secundário e com repercussão prática apenas no campo da fixação da pena de litigância de má-fé. A sua incidência sempre foi tratada de modo acidental como meio de justificar a ausência de má-fé. A nova legislação procura estabelecer um novo patamar para a boa-fé na seara processual. Sua importância ultrapassa a mera análise de conduta de contraposição com a má-fé para fins de fixação de apuração de perdas e danos oriundos da relação processual (art. 79 do CPC). A boa-fé está prevista como elemento expresso de interpretação e integração do pedido formulado pelo autor em seu articulado inicial (art. 322, § 2º, CPC).11 Apesar da obrigatoriedade da postulação judicial ser certa e determinada paraa delimitação do objeto litigioso, em muitas situações, a extensão do pedido poderá ser modulada pela interpretação judicial. A boa-fé assumirá papel de interpretação e de integração cujo reflexo será imediato quanto à projeção da sentença e do caso julgado. Não se pode olvidar que a projeção do que será estabilizado pela sentença encontra seu limite no pedido formulado pelo autor (Der Streitgegenstand). Acontece que o pedido, embora completo, não esgota a projeção dos efeitos da sentença e da coisa julgada. A real extensão do pedido é vinculada aos fatos que são expostos na causa de pedir, uma vez que todo pedido somente pode ser acolhido quando devidamente fundamentado (Die Begründung des Anspruchs).12 Ainda no campo processual, a boa-fé consiste em modelo de solução favorável ao terceiro que confia na inexistência de vinculação do bem adquirido a qualquer processo que envolva o alienante. A reforma processual brasileira sedimentou o ônus processual do credor/exequente em materializar os atos preventivos no registro tabular para permitir que o bem possa ser expropriado sem eventual postulação do terceiro de boa-fé (art. 844 do CPC).13 Esta alteração, que é voltada para os bens imóveis, vem acompanhada de solução própria para os bens móveis que será examinada oportunamente. O sistema processual brasileiro acaba por vedar a possibilidade de desfazimento da expropriação judicial de bens móveis que são submetidos à hasta pública, como medida de proteção à boa-fé processual.14 No sistema processual português a questão é simplificada pela modernidade do processo de comunicação eletrônica entre o juízo e o serviço registral. A leitura do art. 755 do Código de Processo civil Português informa que a materialização da penhora sobre os bens imóveis será realizada diretamente por comunicação eletrônica15 pelo agente da execução.16 Este simples panorama permite demonstrar a influência da boa-fé em todo o sistema jurídico que não se limita ao campo do direito privado, muito embora suas raízes e sua intensa construção devam ser hauridas no direito civil que propiciou campo de alto rendimento para o instituto.17 O exame do tema passa necessariamente por algumas considerações sobre o regime jurídico dos direitos reais, em cujo campo se situa o objeto de investigação. A boa-fé civil, no campo javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 4/5 possessório e dominial, será analisada como elemento integrante da exposição sobre a aquisição a non domino. 1 . A formação do Estado Moderno não se confunde com a Majestas populi Romani. O Estado Romano em sua fase final era representado pela figura do Imperador e pelo exercício absoluto do imperium por meio dos magistrados (Edicta, Rescripta, Decreta). Não existia qualquer traço de organização com funções independentes. Com o fim do Império Romano, o modelo romano tentou ser resgatado pelo Império Carolíngio, mas sem sucesso. O período medieval foi marcado pela multiplicação dos poderes locais baseada na territorialidade do feudo. O período da baixa Idade Média representaria o início da unificação e fortalecimento do poder do príncipe sobre o território da comunidade (Landeshoheit-Otto Mayer, Derecho Administrativo Alemán, p. 29). 2 . Renato Alessi, Principi di Diritto Ammnistrativo, v. I, p. 251. 3 . Em um primeiro momento, a figura do Príncipe foi essencial para a centralização de poderes e para a unificação territorial. O apoio da burguesia foi fundamental para a formação do Estado, pois o modelo medieval baseado no sistema de concessões e privilégios, entre o suserano e o vassalo, representava um empecilho para o desenvolvimento econômico do próprio comércio. Como informa Orlando de Carvalho (Direito das Coisas, p. 33): “Apoiada nos reis contra os terratenentes que dominam a propriedade tanto urbana como rústica, a burguesia citadina torna-se o primeiro motor de dissolução do feudalismo, cujas peias impedem o seu desenvolvimento completo e cujo domínio do solo impede a sua instalação”. 4 . Ernst Forsthoff, Lehrbuch des Verwaltungsrechts- Allgemeiner Teil, t. I, § 1º, p. 3. 5 . Alfred Katz, Staatsrecht, § 3º, p. 20 6 . Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, p. 171 e ss. 7 . “Grundrecht wirken im Verhältnis zwischen Staat und Individuum” (Grabenwater/Holoubek, Verfassungsrecht – Allgemeines Verwaltungsrecht, p. 164). 8 . Como esclarece Marçal Justen Filho, “O terceiro, desde que de boa-fé, não pode ser prejudicado pelo vício que desconhecia nem poderia conhecer” (Comentários À Lei de Licitações e Contratos Administrativos, 482). 9 . Cf. STF, “Os valores percebidos em razão de decisão administrativa, dispensam a restituição quando auferidas de boa-fé, aliada à ocorrência de errônea interpretação da Lei, ao caráter alimentício das parcelas percebidas e ao pagamento por iniciativa da Administração Pública sem participação dos servidores” (MS 31.259 AgR, Relator(a): Min. Luiz Fux, 1ª T., julgado em 24/11/2015, g.n.). 10 . Como ressalta Nelson Nery Jr., “a regra é universal” (Teoria Geral dos Recursos, p. 170), ao comentar sobre a necessidade da boa-fé no âmbito recursal civil para a incidência do princípio da fungibilidade. 11 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia74480… 5/5 . “A interpretação do pedido considerará o conjunto da postulação e observará o princípio da boa- fé.” 12 . Arthur Nikisch, Der Streitgegenstand im Zivilprozess, § 4º, p. 55 13 . O dispositivo resolve problema que perdurou por longo tempo quanto à responsabilidade do juízo ou do exequente quanto aos atos necessários para aperfeiçoar a medida constritiva. Atualmente, caberá ao juízo o deferimento da medida constritiva, mas sua implementação é de responsabilidade do exequente: “Para presunção absoluta de conhecimento por terceiros, cabe ao exequente providenciar a averbação do arresto ou da penhora no registro competente, mediante apresentação de cópia do auto ou do termo, independentemente de mandado judicial”. 14 . Quanto ao ponto, abre-se uma contraposição entre o art. 447 e o art. 1.268, ambos do CCB. O primeiro revela a tradicional garantia da evicção que subsiste nos contratos onerosos, ainda que a aquisição tenha sido realizado em hasta pública. O segundo revela a regra pela qual a posse de boa-fé legitima a transmissão da propriedade móvel ao terceiro, desde que realizada em regime de publicidade. Esta contraposição hoje está fragilizada pelo regime imposto pelo art. 54, parágrafo único, da Lei nº 13.097/2015, que fortaleceu a posição do terceiro na alienação dos bens imóveis. 15 . No Brasil, desde a Lei Federal nº 11.977/2009, foi instituída a obrigatoriedade de integração eletrônica do sistema de registro de imóveis no prazo de 5 anos, o qual se esgotou em 2014 e não restou materializado. O Conselho Nacional de Justiça emitiu o Provimento nº 47 em junho de 2015 e regulamentou o art. 39 da referida Lei quanto ao modus operandi e estabeleceu prazo adicional de 360 (trezentos e sessenta) dias para a integração (art. 9º). As dimensões continentais do território brasileiro e o próprio atraso na implementação do processo eletrônico tornam duvidoso o cumprimento do prazo. Isso não elimina o processo irreversível de informatização do foro judicial e extrajudicial. A Lei nº 13.097/2015 alterou o art. 41 da Lei 11.977/09 e prevê o acesso eletrônico, sem qualquer custo, das informações registrais, aos poderes públicos. 16 . O sistema processual português, desde a reforma operada no ano de 2003, abandonou o modelo de exclusividade de controle e prática dos atos executivos pelo juiz e pelooficial de justiça, respectivamente. O agente da execução será o responsável pela introdução e materialização dos atos executivos, incluindo a comunicação da penhora pelo art. 755 do CPCP. Como o agente atua por iniciativa do exequente/credor, é possível afirmar que não difere o modelo lusitano, do brasileiro, quanto à necessidade de iniciativa (princípio dispositivo) para o início dos atos executivos. Para uma visão geral sobre o agente da execução, Rui Pinto, Manual da Execução e Despejo, p. 85-87. 17 . Para um estudo completo sobre a análise e desenvolvimento das diversas fases da boa-fé no direito romano, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, pp. 17-147. O conceito da bona fides no âmbito possessório tem sua base histórica fincada no direito romano, inclusive quanto às repercussões que serão sentidas nas codificações modernas quanto à adoção da boa-fé subjetiva psicológica ou ética. Um belo extrato desta afirmação pode ser consultado no estudo de Bonfante, Essenza della bona fides e suo rapposto colla teorica dell'errore, pp. 85-91. 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 1/30 3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS 3. O REGIME JURÍDICO DOS DIREITOS REAIS 3 O Regime Jurídico dos Direitos Reais 3.1. Aspectos gerais da relação jurídica real A boa-fé pode ser analisada dentro de vários quadrantes que compõe o sistema civil, o que exigiria um aumento considerável do espectro deste trabalho.1 Optou-se pelo seu exame unicamente quanto às relações jurídicas que compõe a seara dos direitos reais. Essa separação não torna o exame, por si só, mais fácil, até o dificulta, na medida em que o enfoque particular exige a fixação dos princípios e regras aplicáveis ao regime jurídico dos direitos reais. É necessário extremar e identificar a relação jurídica real dentro do sistema civil. É necessária uma breve análise sobre a posição dos direitos reais no quadrante geral. Essa reflexão assume importância em vista da crise enfrentada pela teoria da relação jurídica. A criação genial da relação jurídica por Savigny, agregada à formatação sistêmica sugerida por Heise, influenciou abertamente o modelo alemão e o direito brasileiro.2 Nossa legislação adotou expressamente o tratamento sistemático de divisão dos livros do direito civil, com base na diferenciação da relação jurídica (parte geral, obrigacional, real, familiar e sucessões).3 Nosso modelo não seguiu a influência francesa ou austríaca que foram fiéis à separação proposta por Gaio em 160 a.C., ao estabelecer a divisão sistêmica do direito em três livros, em suas Instituições (Institutiones): a) pessoas (personae); b) coisas (res); e c) ações (actiones).4 O período atual é marcado por um esgotamento do modelo clássico que informa a divisão tradicional das matérias perante a legislação civil brasileira. Aliás, basta um exame na profusão de leis esparsas e de novos ramos do direito que não guardam posição simétrica com os livros previstos do Código Civil Brasileiro. Não há dúvida de que a divisão ainda é extremamente relevante e útil, mas a interpenetração entre os ramos, aliada à falência da Parte Geral, demonstram a necessidade do diálogo entre as fontes (Der Dialog der Quellen), uma vez que o modelo atual exige a adequada compreensão quanto à interpenetração das leis especiais.5 O modelo jurídico atual não se contenta mais com construções dogmáticas puras e formais para a solução e enfrentamento dos problemas do dia a dia. O modelo cartesiano oferecido pela lógica formal e que procura construir a teoria da decisão judicial apoiada em um silogismo jurídico não responde mais aos anseios do século XXI. O ato decisório e a formação dos precedentes, com força vinculante, não se resume mais à aplicação da norma positiva ao caso concreto.6 A multiplicidade normativa é insuficiente para regrar todas as novas situações fáticas que são descortinadas diariamente. A densidade dos problemas jurídicos, mesmo no âmbito privado, informa que o conflito intersubjetivo é capaz de irradiar ondas que propiciam a necessidade de nova perspectiva sobre questões que aparentemente estavam sedimentadas por princípios seculares. É o que se verifica de modo muito claro na seara dos direitos reais cujo campo sempre foi considerado o de maior estabilidade pela necessidade de regras claras e rígidas para a proteção da propriedade, bem como dos direitos reais desmembrados (direitos reais de gozo e garantia). Outro ponto a ser considerado é que ótica da legislação civil tradicional exige adaptação para dois pontos javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 2/30 cruciais: a) coletivização dos conflitos; e b) a desmaterialização da relação jurídica pela influência das novas realidades e do direito digital. A sociedade hodierna é marcada pela globalização e multiplicidade das relações jurídicas que desconhecem os conceitos de fronteira impostos pelo direito internacional clássico. A legislação civil atual é pensada para o ambiente coletivo, em vista da necessidade de disciplina das relações negociais que atingem um número indeterminado de pessoas. Na formação deste vínculo jurídico não está mais em jogo a igualdade na formação, pois sabe- se de antemão que a relação contratual, na maioria das vezes, é fruto de mera adesão, o que exige a criação de mecanismos específicos de proteção no direito material e processual. A Europa inicia a encampação do direito processual coletivo e a acomodação de conceitos bem desenvolvidos no direito anglo-saxão, como a defesa de interesses difusos.7 O comércio eletrônico representa uma fonte de desafios para o direito privado interno e internacional. As relações negociais passaram a depender como nunca da lealdade e confiança. O denominado e-commerce somente se sustentará na medida em que exista o respeito ao direito à informação e transparência no comércio virtual que respeitem a boa-fé do adquirente. Por esse motivo, é de fácil percepção que no âmbito do direito material e processual o conceptualismo e formalismo8 jurídico herdados de Puchta não refletem a noção de um sistema jurídico que possa propiciar a unidade da ordem jurídica.9 O século XX foi marcado por certa letargia quando comparado com as grandes transformações que marcaram o século XIX.10 O século XXI traz como desafios o rompimento de conceitos e a adequação da ordem jurídica para a realização efetiva dos direitos emergentes de uma nova ordem social. A aproximação do sistema jurídico da realidade vivenciada no meio social representa a tentativa de conferir unidade na ordem jurídica e no processo de intepretação e aplicação do direito. O processo de decisão atual não leva em consideração apenas os elementos normativos que são dados pelo esquema de subsunção (fato versus norma). Os elementos de pré-entendimento e as consequências que a decisão possa provocar na ordem social e econômica não podem ser olvidadas.11 Nesse contexto os elementos conceptuais herdados da tradição do direito romano são testados no período hodierno e a construção dos elementos estruturais que deram suporte à sistematização dos direitos são postos à prova em um período marcado pela relativização dos arquétipos idealizados por Savigny. Especificamente no campo do direito privado se observa a um interessante fenômeno de expansão horizontal e vertical com a criação de novos setores de regramento, bem como no aprofundamento normativo de todos os campos do direito civil. No direito de família, que passou por um processo de laicização com a Revolução Francesa, observou-se necessidade de regrar novas situações que são fruto de interferências quanto ao desenvolvimento deoutro ramo que é do direito da personalidade. É o caso da autorização conferida por determinados regimes jurídicos quanto à possibilidade mudança do sexo que interfere em questões sensíveis como o direito à adoção ou mesmo o regramento da união entre pessoas. No direito da personalidade surgem questões de alto impacto como a possibilidade de defesa do direito ao suicídio com discussões sobre a eutanásia ativa ou passiva. No direito das sucessões, o progresso tecnológico e a melhoria nas condições de vida permitem que as pessoas tenham maior longevidade. Isso acarreta questões que antes não eram enfrentadas pelo sistema jurídico, como a possibilidade de formulação de testamento em vida também denominado de testamento biológico. Na esfera dos direitos reais, a desmaterialização do direito de propriedade e a transformação do conceito de coisas (Sachen) acaba por demonstrar a importância dos bens móveis e necessidade repensar a tutela dos animais.12 A concepção romana de mais valia da propriedade imóvel é ultrapassada. Os valores mobiliários demonstram prima facie, a força do mercado acionário e suas consequências danosas em função da volatilidade de seu valor e pela possibilidade javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 3/30 de danos coletivos imensuráveis, cujas crises econômicas mundiais revelam, por si só, a legitimidade do argumento. 3.2. A formação sistemática dos direitos reais Não basta a afirmação de que os direitos reais se ocupam da atribuição de bens móveis ou imóveis ao ser humano. O direito obrigacional também realiza essa tarefa quando se estabelecem vínculos jurídicos por meio da prestação e contraprestação (negócios bivinculantes) como na compra e venda, ou por meio de uma única prestação (negócios monovinculantes) como no contrato de doação.13 A seara dos direitos reais havia sido preliminarmente intuída por Gaio, conforme ilustração anterior, quando separou o tratamento das pessoas (personae) e coisas (res). No direito romano essa separação ainda não refletia uma sistematização dos direitos reais. Na verdade, o direito romano, antes de refletir um sistema de direitos materiais (ius) expressou um sistema de ações (actiones). Neste ponto foi decisiva a contribuição de Windscheid que isolou e identificou o conceito de pretensão diferenciando-o da criação moderna do direito subjetivo.14 O mais importante seria saber se uma ação poderia proteger a pretensão do titular. Os juristas romanos eram práticos, e com aguçado poder criativo, jamais buscaram uma distinção conceitual e principiológica dos direitos reais, ou muito menos uma contraposição com os direitos obrigacionais.15 O racionalismo moderno é que procurou extremar os pontos de distinção entre a seara dos direitos reais e dos direitos obrigacionais como meio de permitir uma sistematização.16 Parte da doutrina procurou antever um tratamento distinto da pretensão real e pessoal por meio da Lex Poetelia Papiria (326 a.C.).17 O referido diploma legal se tornou célebre como exemplo da possibilidade de execução pessoal para pagamento de dívidas.18 Por meio dela, o devedor poderia ser oferecido por três vezes para fins de satisfação do débito. A não satisfação do débito no terceiro dia de feira pública ocasionaria a morte ou a escravidão do devedor (getötet oder Sklave).19 A escravidão apenas seria possível trans Tiberium, pois nenhum cidadão romano poderia se tornar escravo dentro do território de Roma.20 Muito embora, o direito romano tenha fornecido a base de reconstrução do sistema jurídico no período moderno ele acaba por revelar, sob o ângulo sistemático, um modelo processual e não material. E justamente no direito moderno ocorre uma inversão quanto ao ressurgimento, pois o direito material, como fonte primária de regulação, estabilidade e solução de problemas renasce em primeiro lugar. O direito processual acabaria por encontrar sua sistematização própria e autônoma apenas em 1868 por obra de Oskar von Bülow.21 A sistematização que diferencia os direitos reais dos demais ramos do direito: obrigacional, contratual, responsabilidade civil, família e sucessões decorre de um rearranjo de origem medieval, por obra dos glosadores. Os estudos do período intermédio criam as expressões ius in rem e ius in personam perante o Brachilogus Iuris Civilis ou corpus legum.22 As expressões rem e personam qualificavam as actiones in rem e actiones in personam.23 O primeiro período do processo civil romano foi marcado pela previsão da tipicidade das ações (legis actiones). A mais importante das ações era representada pela legis actio sacramento que poderia recair sobre o objeto (in rem) ou sobre uma pessoa (in personam).24 A feição prática dos romanos abriu espaço para a meditação e construção das categorias jurídicas modernas. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 4/30 A sistematização jurídica operada no século XIX, especialmente por obra do pandectismo germânico se revelou fundamental para o desenvolvimento do direito e aprimoramento de inúmeros institutos jurídicos que seriam adaptados para o uso moderno (usus modernus pandectarum). A sistematização dos direitos reais como ramo autônomo passou pela criação da teoria da relação jurídica, conforme já mencionado, como fruto da contribuição de Savigny.25 Essa criação também apoiada em Heise, autor já referido e permitiu que diversos grupos de direitos fossem divididos e enlaçados pela parte geral que iluminaria os demais ramos, dentre eles, os direitos reais. Essa influência foi poderosa ao ponto de influenciar a sistematização da legislação portuguesa e brasileira. A construção e sistematização dos direitos reais envolve polêmica ante a necessidade de explicar a relação sujeito versus objeto. O tema ainda é delicado quando se procura estabelecer, em qualquer codificação, o fundamento que justifica o liame jurídico formado entre a pessoa e a coisa. 3.3. Os direitos reais perante a tardia codificação brasileira O Código de 1916 inseriu o Brasil dentre os países de codificação tardia e que recepcionaram a influência do Pandectismo. A importância da codificação, como instrumento de síntese dos valores de um povo, já era reconhecida desde Justiniano, quando o imperador romano determinou a elaboração do Corpus Iuris Civilis.26 No continente europeu, no início do século XIX, a França já demonstrava a força da recepção do direito romano adaptado aos usos e costumes. Destacam-se os trabalhos preparatório da recepção elaborados por Domat e Pothier que são fundamentais na homogeneização da legislação francesa.27 Na formação do direito luso-brasileiro houve uma contribuição e construção própria pautada pela riquíssima legislação das Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603) que representaram o grande monumento legislativo de Portugal, sendo que essa última perdurou mais de quatro séculos, inclusive por mais tempo no Brasil do que em Portugal. A disputa em torno da necessidade da codificação acendeu o espírito dos juristas do século XIX, especialmente após a célebre disputa (dentre tantas outras que marcaram essa fase) entre Savigny e Thibaut.28 Sabe-se que o primeiro jurista se pautou por uma defesa férrea pela desnecessidade de um código. Partidário e fundador da escola histórica, Savigny não concebia como útil ou viável engessar o sistema jurídico com um código positivo que eliminaria as fontes vivas da expressão do espíritodo povo alemão (Volksgeist).29 Dessa célebre disputa, desnecessário mencionar que a opinião de Thibaut restou vitoriosa. A vitória do seu posicionamento não representou uma simples disputa acadêmica. Não se tratava de um debate alçado ao plano teorético, mas de uma aguçada perspectiva do momento histórico que comprovou a veracidade de sua tese. A necessidade da positivação do direito, num período em que se buscava uma nova identidade para o sistema jurídico, prevaleceu como modelo ideal para o século XIX.30 O legado da revolução francesa, ancorada nos primados de igualdade, liberdade e fraternidade, centrou-se, no âmbito jurídico, pela positivação do direito costumeiro. A existência de um diploma homogêneo, com tônus universal, na forma escrita, seria conditio sine quae non para garantir a igualdade na aplicação da lei. Sem a existência de um texto escrito, com acesso público e que garantisse a consulta universal sobre os direitos e deveres de cada cidadão, o ideário revolucionário restaria comprometido. O diploma francês exerceu grande fascínio em toda a Europa e concitou os próprios alemães a realizar a empreitada. A poderosa influência de Savigny atrasaria em mais de 50 javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 5/30 anos o processo de codificação, o que resultou, numa visão sobranceira e otimista, num ponto positivo para o direito brasileiro e para o próprio direito alemão. A sistematização do direito alemão, por meio do BGB, foi antecedida da unificação do seu território, o que se deve ao grande esforço empreendido por Bismark. A necessidade de condensação dos diversos diplomas que regiam os Estados unificados (Länder) exigiu um longo período de discussão e maturação do BGB. Destacou-se a figura de Windscheid na sistematização e harmonização do texto. O aproveitamento da experiência francesa conjugada com a robustez da dogmática alemã preparou o campo para o nascimento do monumental Código Civil Alemão. Passados mais de 100 anos, sua estrutura somente exigiu uma profunda alteração no ano de 2002 (grosse Lösung), em vista da necessidade de acomodar o direito comunitário e a legislação consumerista, a qual acabou sendo inserida no BGB.31 A menção quanto à manifesta vantagem da codificação tardia do direito alemão, para o direito brasileiro, se deve ao fato de que nosso sistema teve tempo suficiente para sofrer alguma influência do pensamento germânico, ainda que parcial. Até então, o Brasil vivia um período peculiar pela sobrevivência das Ordenações Filipinas e sua aplicação com a utilização de leis extravagantes compiladas, quando mesmo em Portugal, o seu texto já não era mais utilizado. O caso brasileiro, quanto à codificação, conta com nota pitoresca marcada pela genialidade de um jurista excepcional e profundo conhecedor do direito romano e lusitano: Teixeira de Freitas. O seu legado particular para o direito brasileiro é inquestionável pela construção de um monumental projeto de Código Civil. O seu trabalho ainda construído no século XIX seria marcado pela atualidade e arrojo, o qual não vingou pela incapacidade política do Reinado e pelas vaidades que marcam a paternidade de uma legislação dessa envergadura. O trabalho de Teixeira de Freitas representou fonte viva da aplicação das leis civis, após a segunda metade do século XIX.32 Apesar do monumental estudo de sua consolidação, inclusive atualizando-a até a 3ª edição, seu projeto não foi encampado, mas influenciou sobremaneira o pensamento de Clóvis e, de forma quase que integral, a codificação do Direito Argentino que sofreu recente reforma quanto ao seu Código Civil demonstrando os bons serviços do jurista brasileiro por mais de cem anos naquele país. No tocante aos direitos reais, Teixeira de Freitas pode ser considerado pioneiro, pelo menos na América Latina, na formulação da teoria da sujeição passiva universal, com muita antecedência a Planiol, a quem é atribuída a sua criação.33-34 De acordo com Menezes Cordeiro35, posição primaz deve ser atribuída a Windscheid, quanto ao esboço originário da teoria da sujeição passiva universal pela noção de poder absoluto. Em outras, palavras a relação jurídica real não deixa de ser uma relação inter volentes, mas de conteúdo negativo, pois imprime um dever de abstenção.36 Trata-se de uma teoria considerada personalista, em que o sujeito passivo é total e não é representado pela res, mas sim pela sociedade, que tem o dever de abstenção quanto aos potenciais atos nocivos dirigidos ao direito de propriedade. Como se trata de uma abstenção genérica, fala-se em eficácia erga omnes. 37 Embora o posicionamento possa ser criticado pelo uso formal da relação jurídica como categoria base, o fato é que a explicação logrou sistematizar a matéria na doutrina brasileira.38 Deve-se frisar que os valores que orientaram nosso primeiro Código estavam ligados a um período de transição, o que levou à aceitação incondicionada de princípios como o do pacta sunt servanda, com base na autonomia fictícia de liberdade das partes, privilegiando o individualismo e, por via reflexa, a doutrina do liberalismo. A influência do subjetivismo ainda javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 6/30 é presente e forte como se observa da doutrina do erro, bem como das formulações sobre a posse de boa-fé sobre o viés psicológico. A legislação civil brasileira acabaria por sofrer, após a publicação do Código Civil os influxos das mutações e novos valores que permeavam o perfil do direito civil no século XX, no qual não se poderia negar a necessidade da socialidade como valor base e que traria influência na análise da relação jurídica em suas diversas projeções.39 Os excessos do liberalismo econômico fortaleceram a posição do Estado e sua intervenção no domínio econômico e pode-se tomar a Constituição de Weimar como um exemplo característico dessa afirmação. No âmbito dos direitos reais, o século XX passa a considerar a propriedade como um direito essencial, mas sujeito ao cumprimento da função social. No ordenamento brasileiro a função social foi incorporada de modo expresso pelo texto constitucional de 1934. Nessa visão, o caráter absoluto do direito de propriedade, sobre o qual gravita toda a sistematização dos direitos reais, acaba por sofrer uma readequação que não será apenas incorporada pelo direito brasileiro, mas pelos principais ordenamentos mundiais. Exemplo sensível dessa afirmação, que representou fontes de injustiça contratual e com reflexos diretos na formação do direito de propriedade, na primeira metade do século XX, no sistema brasileiro, residiu na aplicação literal do art. 1088 do Código Civil Brasileiro de 1916. Esse dispositivo permitia a livre resolução do contrato-promessa, até o momento da conclusão do contrato-definitivo. O compromisso preliminar de compra e venda acabou por se disseminar como um instrumento de aquisição da propriedade por prestações, em relação a imóveis loteados. Em um período de grande expansão e ocupação dos centros urbanísticos, o regime de aquisição da propriedade imóvel passou por período de intensa comercialização. A compra a prazo representou um fator importante para permitir a aquisição da propriedade imóvel. O comprador, sem ter condições de realizar a aquisição do bem pelo preço à vista, celebrava o contrato preliminar com a promessa de receber a outorga da escritura pública definitiva, por ocasião da quitação. As atitudes inescrupulosas dos compromitentes vendedores fariam com que exercitassem poderpotestativo oriundo do art. 1088 do Código Civil Brasileiro /1916, em vista da possibilidade do arrependimento até a conclusão do contrato definitivo. Fala-se em atitude inescrupulosa e não exercício regular de direito porque havia uma utilização abusiva da cláusula de arrependimento. E o motivo era simples: inexistia correção monetária regulamentada para a atualização das dívidas legais e convencionais.40 O dispositivo era fonte de gritante desequilíbrio e pela sua importância transcrevemos: "Quando o instrumento público for exigido como prova do contrato, qualquer das partes pode arrepender-se, antes de o assinar, ressarcindo à outra as perdas e danos resultantes do arrependimento, sem prejuízo do estatuído nos arts. 1.095 a 1.097." 41 O abuso de direito no exercício da pretensão e a violação da boa-fé eram claros, mas a interpretação literal aliada à inexistência de correção monetária no direito brasileiro acabava por incentivar à resolução imotivada. Como consequência, ao final de um largo parcelamento, o comprador recebia o que havia pago, sem qualquer correção e o vendedor oferecia novamente o imóvel para venda a prestações para um novo comprador. A correção dessa distorção ocorreu pela edição do Decreto-lei nº 58/37.42 O diploma veio como meio de correção e equilíbrio privilegiando a justiça contratual e o reconhecimento da função social da propriedade.43 A grave descompensação provocada pela aplicação do art. 1088 acabaria estendendo a aplicação do regime do Decreto-lei nº 58/37 para os imóveis, urbanos e rurais, não loteados, por meio da Lei nº 649, de 11 de março de 1949. Posteriormente foi elaborada lei específica para o parcelamento da propriedade urbana, por meio da Lei nº 6.766/79.44 Essa passagem revela o embrião da valorização da posse no sistema brasileiro como instituto jurídico autônomo e não como um simples complementar do direito de propriedade. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 7/30 As transformações da ordem social e econômica do século XX ainda trazem à tona o real papel da codificação para um período marcado pela necessidade de dinamismo e que se contrapõe à estabilidade normativa propiciada por um novo Código. A complexidade e a estrutura multifacetária de um diploma vocacionado para o regramento do direito privado não se mostra aberto para mutilações constantes. Ao menos no direito brasileiro, essa constatação acabou justificando a expansão de farta legislação extravagante. Um exemplo nítido dessa afirmação residiu na opção do legislador brasileiro em não inserir a legislação consumerista no Código Civil de 2002. Uma opção diversa em relação ao diploma alemão que acabou por regular a posição do fornecedor (§14-Unternehmer) e consumidor (§ 13- Verbraucher) perante o BGB e com restrição ao tratamento das pessoas físicas.45 3.3.1. A codificação e o direito funcional de propriedade O Código Civil Brasileiro de 2002 operou uma nítida incorporação da socialidade como elemento balizador do direito de propriedade e dos demais institutos que derivam de sua decomposição. A posse como elemento primário que poderá, ou não, compor a situação jurídica do proprietário está inserida no ambiente social e torna o proprietário responsável efetivo pelo uso particular do bem em conformidade com a ordem social. O art. 1228, caput e § 1º, do Código Civil Brasileiro estabelecem o compromisso do uso racional, social e ecológico da propriedade.46 A visão atual do direito brasileiro sobre o direito de propriedade não corresponde aos fins delimitados pela clássica dicção do art. 544 do CCF, mas para a visão da propriedade como um direito absoluto e integrado ao meio social, uma vez que caberá ao seu titular o direito de fruir, utilizar e aliená-la, mas sem prejuízo de que sua função e atividade esteja adequada ao ambiente social em que os poderes são exercidos. As limitações sociais estão relacionadas ao equilíbrio da convivência, ao uso lícito para fins econômicos, ao uso racional da propriedade na qual se busca o difícil equilíbrio entre a utilização e a preservação do meio- ambiente com garantia da subsistência dos recursos naturais e industriais para a sobrevivência do ser humano. Ultrapassa-se a visão da propriedade como um direito irrestrito e sem limites para a visão da propriedade como um direito funcional.47 Essa visão passa a acomodar uma noção simples e óbvia. A propriedade não pode ser regulada com foco exclusivo na fruição do seu titular, pois as faculdades conferidas ao titular devem levar em consideração os terceiros. Se todos devem respeitar o direito do proprietário pela cláusula geral de abstenção (eficácia erga omnes) não é menos verdade que todos possuem o direito de não serem afetados pelo uso indevido da propriedade particular. Dentro dessa visão havia a necessidade de acomodação das situações fáticas novas e que exigiam uma atualização da legislação brasileira. É certo que dentre os ramos do direito civil é possível afirmar que os direitos reais são marcados por maior estabilidade. Isto não eliminou a necessidade de atualização de nossa legislação que passou por nova codificação no ano de 2002. Novas figuras foram incorporadas ao Código em franca atualização do seu texto. A boa- fé prevista até então, na modalidade subjetiva, e com maior evidência nos direitos reais passou a contar com previsão na parte geral, no art. 113 do Código Civil Brasileiro: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos e do lugar de sua celebração." Como será examinado à frente, no esquema dos direitos reais, no sistema brasileiro que é causal, a verificação da boa-fé na fase negocial será fundamental, em vista das repercussões fáticas e jurídicas quando sua ausência não justifique a manutenção das declarações de vontade emitidas. Ao contrário do sistema alemão que prevê o isolamento do negócio jurídico real (princípio da abstração), o direito brasileiro não permite essa separação e revela a interação entre o titulus e o modus adquirendi. Essa situação parece não mudar mesmo com a promulgação da Lei nº 13.097/2015. javascript:void(0) javascript:void(0) javascript:void(0) 05/08/2020 Thomson Reuters ProView - O Terceiro de Boa-Fé - Ed. 2020 https://proview.thomsonreuters.com/title.html?redirect=true&titleKey=rt%2Fmonografias%2F241268517%2Fv1.2&titleStage=F&titleAcct=ia7448… 8/30 O Código Civil Brasileiro de 2002 introduziu o conceito de posse-trabalho, que consiste em elemento diferenciador para a diminuição dos prazos da usucapião permitindo a formação do direito de propriedade em prazo abreviado (art. 1238, parágrafo único). O Código Civil Brasileiro ainda incorporou possibilidade de formação abreviada de propriedade pela confluência da boa-fé e do registro, o que representa um rompimento com o entendimento clássico do direito brasileiro quanto à prevalência do direito de propriedade em face de uma situação aparente (art. 1242, parágrafo único).48 A função social da propriedade como princípio ordenador revela sua força na inversão do secular princípio superficies solo cedit pelo art. 1255, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro.49 A previsão, apesar de inovadora para o sistema brasileiro, já estava presente no Código Civil Português perante o art. 1340.50 A influência é direta sobre a codificação brasileira e o instituto toma como elemento central boa-fé do titular da acessão.51 A acessão configura modo de aquisição originário de propriedade que poderá ou não estar vinculado à causa contratual.52 O período atual acaba sendo marcado pela confluência normativa, pois o Código Civil é insuficiente para disciplinar a gama de interesses e direitos que necessitam de harmonização com a dicção do art. 1228, caput. A necessidade do uso racional da propriedade acaba se tornando uma condição de convivência
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