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SUSAN SONTAG- o mundo - imagem in ensaios sobre a fotografia (1)

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SUSIffl
X-?1 "̂ ensaios sobre a r
otogratia
Tradução
de
Joaquim Paiva
^\/ ^ t * § r*^^X "*^ "" YB í r,.s L í O ! E
;v H: í u25i líSCUS - ^
iE T 3TADUAL D£ CAMPINA»
editora aroor Ibck
SUMÁRIO:
Na Caverna de Platão 3
Os Estados Unidos, Através da Fotografia,
em uma Visão Sombria 27
Objetos Melancólicos 51
O Heroísmo da Visão 83
Evangelhos Fotográficos 111
O Mundo-lmagem 4^.147,
Breve Antologia de Citações 175
Para N/cole Stéphane
O Mundo-lmagem
147
A realidade sempre foi interpretada através de regis-
tro fornecido pelas imagens; e os filósofos, desde Platão,
têm procurado aliviar nossa dependência das imagens in-
vocando um modelo de forma de apreensão do r^al em
que a imagem não esteja presente. Masquando, em mea-
dos do século XIX, o modelo parecia finalmente concre-
tizável, a retirada de velhas ilusões religiosas e políticas
diante do avanço do pensamento humam'stico e científi-
co não provocou como se previa — fugas em massa em
direção ao real. Ao contrário, a nova idade da descrença
fortaleceu a fidelidade à imagem. O crédito que já não se
podia mais dar â realidade compreendida na forma de
imagens dava-se agora à realidade entendida como ima-
gens, ilusões. No prefácio à segunda edição (1843) de
The Essence of Christianity, Feuerbach observa, com re-
lação "à nossa era", que essa "prefere a imagem à coisa,
a cópia ao original, a representação à realidade, a aparên
cia ao ser" - ao mesmo tempo em que tem consciência
de estar fazendo apenas isso. E a queixa premonitória
de Feuerbach transformou-se, no século XX, num
diagnóstico amplamente aceito: uma sociedade tor-
na-se "moderna" quando uma de suas principais ativida-
des passa a ser a produção e o consumo de imagens,
quando as imagens, que possuem poderes extraordiná-
rios para determinar nossas exigências com respeito à re-
alidade e são elas mesmas substitutas cobiçadas da expe-
riência autêntica, tornam-se indispensáveis à boa saúde
da economia, à estabilidade política e à busca da fetici
148 dade individual.
As palavras de Feuerbach — escreveu alguns anos de
pois da invenção da câmara — parecem, mais especifica
mente, um pressentimento do impacto que viria a ter a
fotografia. E isso porque as imagens que possuem um
peso praticamente ilimitado na sociedade moderna são
principalmente as imagens fotográficas; e a razão de tal
autoridade advém das qualidades peculiares às imagens
que obtemos através da câmara.
Essas imagens são verdadeiramente capazes de usurpar
a realidade porque, antes de mais nada, uma fotografia é
não só uma imagem (como o é a pintura), uma interpre
tacão do real — mas também um vestígio, diretamente
calcado sobre o real, como uma pegada ou uma máscara
fúnebre. Enquanto um quadro, mesmo aquele que está
conforme os padrões fotográficos da verossimilhança,
nunca é mais que uma forma de interpretação, a fotogra-
fia nunca é menos que o registro de uma emanação (on-
das de luz refletídas por objetos) — vestígio material do
tema fotografado, a tal ponto que quadro algum.se lhe
pode comparar. Entre duas alternativas imaginárias, a de
que Holbein, o Jovem, tivesse vivido tempo bastante pa-
ra poder pintar Shakespeare ou a de que um protótipo
da câmara tivesse sido inventado a tempo de fotografar
o grande dramaturgo inglês, a maioria dos admiradores
de Shakespeare teria escolhido a fotografia. E isso não
apenas porque presumivelmente veríamos como era
Shakespeare, pois mesmo que a fotografia hipotética de-
le estivesse desgastada pelo tempo, dificilmente legível,
com sombras amarronzadas, ainda a preferiríamos pro-
vavelmente a qualquer outro glorioso Holbein. Possuir
um retrato de Shakeepeare seria como possuir um dos
pregos da Verdadeira Cruz.
Grande parte das manifestações contemporâneas de
preocupação de que o mundo das imagens esteja substi
tuindo o mundo real continua a refletir, como em
Feuerbach, o desprezo platónico pela imagem: verdadei-
ra na medida em que se assemelha ao real, postiça por
não ser mais do que mera semelhança. Esse realismo vul-
nerável e ingénuo, entretanto, está um tanto deslocado
na era das imagens fotogiáf iças, pois ccontréste brusco
entre a imagem ("cópia') e a coisa pintada ("o origi-
nal") — que Platão repeticamente ilustra com ) exemplo
da pintura — não se aplica assim de modo tão simples à
fotografia. E nem esse mesmo contraste comribui para
que compreendamos o p"ocesso de elaboracío da ima-
gem desde suas origens, quando era urna atividade práti-
ca e mágica, um meio de nos apoderarmos de alguma
coisa ou exercermos cortrole sobre ela. Quanto mais
atrás buscamos na história, como observou E, H. Gom-
brich, menos evidente é adistinção entre irnagím e reali-
dade; nas sociedades primitivas, o objeto e sia imagem
constituíam simplesmente duas manifestações diferen-
tes, isto é, fisicamente distintas, da mesma energia de es-
pírito. Daí, a suposta eficácia da imagem em propiciar e
exercer o controle sobre presenças vigorosas. Tais pode-
res, tais presenças estavam presentes nela.
Para os defensores do real, de Platão a Feuerbach,
comparar a imagem com a mera aparência — eu seja, su-
por que a imagem é absolutamente distinta do objeto
representado — faz parte daquele processo dedessacrali-
zação que nos separa indefectivelmente do mundo dos
tempos e lugares sagrados, no qual se obtinha uma ima1
gem com o objetivo de que essa participasse da realidade
do objeto representado. O que define a originalidade da
fotografia é, rio momento mesmo em que o secularismo
triunfa completamente na longa e cada vez mais secular
história da pintura, sua capacidade de reviver — em ter-
mos inteiramente seculares — algo parecido com o
status primitivo das imagens. Nossa sensação irreprimí-
vel de que o processo fotográfico é algo mágico assenta-
se em bases verdadeiras. Ninguém considera de modo al-
gum que uma pintura de cavalete se consubstancie no
motivo pintado; ela apenas o representa, ou a ele se refe-
re. Ainda assim, a fotografia não retrata apenas determi-
nado tema, é também uma homenagem a ele. É parte do
terna e um prolongamento dele; como também um meio
potente de possuí-lo e controlá-lo.
A fotografia é, sob vários aspectos, sinónimo de aqui-
sição. Em sua forma mais simples, temos numa fotogra-
fia a posse vicária de uma pessoa ou objeto queridos,
149
posse essa que confere à fotografia algo da qualidade dos
150 objetos únicos. Através da fotografia, encontramo-nos
também numa posição de consumidores de aconteci
mentos, seja os acontecimentos que formam parte de
nossa experiência, seja os que não - distinção entre ti
pôs de experiência que esse consumismo dependente
torna vaga. Uma terceira forma de aquisição é a que,
através das máquinas de elaboração e duplicação de ima
gens, nos possibilita adquirir algo comoa informação (de
preferência à experiência). Com efeito, a importância da
imagem fotográfica como o meio através do qual um nú-
mero cada vez maior de eventos penetra nossa experiên-
cia é, finalmente, apenas um produto paralelo da sua ca-
pacidade de propiciar-nos conhecimentos dissociados da
experiência e independentes dela.
Essa é a forma mais inclusiva da aquisição fotográfica.
Ao ser fotografada, determinada coisa torna-se parte de
um sistema de informações amoldado a esquemas de
classificação e armazenamento que vão desde as sequên-
cias de instantâneos colados, em ordem, nos álbuns de
família, até a acumulação pertinaz e o arquivamento me-
ticuloso necessários para a utilização da fotografia nas
previsões do tempo, na astronomia, na microbiologia, na
geologia, nas atividades policiais, no treinamento e diag-
nóstico dos médicos, no reconhecimento militar e na
história da arte. A fotografia faz mais do que redefinir o
conteúdo da experiência cotidiana (pessoas, coisas, even-
tos, o que quer que vejamos — ainda que diferentemente
e muitas vezes com desatenção - com a visão natural) e
acrescenta vastas quantidades de material que jamais
chegamos a ver. A realidade como tal é redefinida — co
mo objeto para exposições, registro de escrutínios, alvo
deinspeção. A exploração e duplicação fotográfica do
mundo fragmenta a continuidade e alimenta as peças de
um interminável dossiê, possibilitando assim um contro-
le com o qual nem se poderia sonhar sob o sistema ante-
rior de registro da informação: a escrita.
O fato de que o registro fotográfico é sempre, poten
cialmente, uma forma de controle já havia sido reconhe-
cido quando tais poderes estavam em sua infância. Em
1850, Delacroix anotou em seu diário o êxito de algu
mas "experiências na fotocrafia" que estavamsendo fei-
tas em Cambridge, onde os astrônomosvinham fotogra-
fando o Sol e a Lua e haviím logrado obter uma impres-
são da estrela Vega do tamínho de uma cabecade alfine-
te. Ele acrescentou a seguinte observação "curiosa":
Como a luz da estrela que toi daguerreotipada levou 20 anos
para atravessar o espaço quea separa da Terra, o raio que ficou
fixado na chapa havia, por conseguinte, deixado a esfera celes-
te muito tempo antes de Daguerre ter descoberto o processo
por meio do qual acabamos cê adquirir o controle dessa luz.
Deixando para trás noções de controle tão débeis como
as de Delacroix, o progresso da fotografia tornou ainda
mais literal o significado do controle que a fotografia exer
cê sobre a coisa fotografada. A tecnologia que já minimi-
zou o grau em que a distância que separa o fotógrafo do
motivo fotográfico afeta a precisão e a magnitude da
imagem; que possibilitou formas de fotografar coisas
que são inimaginavelmente pequenas e também que, co-
mo as estrelas, estão inimaginavelmente distantes; que
tornou o ato de fotografar independente da própria luz
(fotografia infravermelha) e libertou o objeto-retrato de
seu confinamento a duas dimensões (holografia); que en-
curtou o intervalo entre o instante em que se vê o objeto
a fotografar e aquele em que já se tem a fotografia nas
mãos (desde a primeira Kodak, quando um rolo de fil-
mes revelado levava semanas para ser devolvido ao fotó-
grafo amador, até a Polaroid, que exibe a imagem em
poucos segundos); que não apenas conseguiu imagens
que se movessem (cinema) como também logrou a cap-
tação e transmissão simultânea (vídeo) — essa mesma
tecnologia fez da fotografia um instrumento incompará-
vel para a decifração do comportamento, para a sua pre-
visão e para que nele se possa interferir.
A fotografia tem poderes que nenhum outro sistema
de imagens jamais possuiu, pois, ao contrário dos anteri-
ores, ela não depende do fotógrafo. Por mais cuidadoso
que seja o fotógrafo ao intervir na organização e orienta-
ção do processo fotográfico, o processo em si mesmo
permanecerá sempre óptico-mecânico (ou eletrônico),
151
com funcionamento automático, com uma maquinar 1.1
152 que será indubitavelmente adaptada para fornecer ma pus
da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqúên
cia, mais úteis. A génese mecânica de tais imagens e a
exatidão da força que conferem configuram nova rela
cão entre imagem e realidade. E se é possível dizer que u
fotografia restaura o relacionamento mais primitivo — a
identidade parcial da imagem e do cbjeto —, a força du
imagem é sentida hoje em dia de modo muito diferente.
A noção primitiva acerca da eficácia da imagem pressu
põe que essa possua a qualidade das coisas verdadeiras,
mas nossa tendência é atribuir às coisas reais as qualida-
des de uma imagem.
Como todos sabem, as pessoas primitivas têm medo
de que a câmara lhes roube parte de seu ser. Nas me
mórias que publicou em 1900, ao final de sua longa vi
da. Nadar declara que Balzac também tinha um "vago
pavor" de ser fotografado. A explicação de Balzac, se-
gundo Nadar, era que
todo corpo em seu estado natural foi composto de uma série
de imagens fantasmagóricas superimpostas em camadas^a não
ter mais fim, acondicionadas em infinttésimos filmes í. . .1.
Não tendo sido o homem jamais capaz de criar, isto é, tornar
realidade o que era uma aparição impalpável, ou fazer do nada
um objeto — cada operação daguerriana ia por conseguinte to-
mando para si, separando e usando, até acabar-se, uma das ca-
madas do corpo sobre a qual se focalizava.
Para Balzac, essa marca específica da trepidação parece
ter sido conveniente — "Era o temor de Balzac com res-
peito ao daguerreótipo verdadeiro ou falso?" — pergunta
Nadar. "Era verdadeiro. . ." já que o processo fotográfi-
co é a concretização, digamos assim, de tudo que é mais
original na sua técnica como novetista. A operação bal-
zaquiana consistia em ampliar detalhes insignificantes,
como numa ampliação fotográfica, em justapor traços
ou coisas incongruentes, como numa mostra fotográfica:
tornada expressiva desse modo, qualquer coisa pode ser
vinculada a todas as outras. Para Balzac, o espírito de to-
do um ambiente poderia ser revelado através de um úni-
co detalhe material, por mais mesquinho GJ arbitrário
que pudesse parecer. Toda uma vida pode sr resumida
numa aparência momentânea*. E umamudaiça nas apa-
rências é uma mudança na pessoa, pôs ele s recusou a
colocar qualquer pessoa "de verdade' escodida atrás
daquela aparência. A teoria imaginosa de Bazac, a qual
deu a conhecer a Nadar, de que um corpo i composto
de uma série infinita de "imagens assombrtsas", pode
ser sinistramente comparada à teoria supost;mente rea-
lista que expressa em suas novelas, segundo i qual uma
pessoa é um agregado de aparências que po<em produ-
zir, através de um foco adequado, camadas nfinitas de
significação. Ver a realidade como umconjurto intermi-
nável de situações que se espelham unas àsDUtras, ex-
trair analogias das coisas mais díspares, é o nesmo que
antecipar a forma de percepção típicaquea magem fo-
tográfica estimula. A própria realidade correçou a ser
entendida como uma espécie de escrita, que :em de ser
decodificada — mesmo que as imagens fotogáficas fos-
sem comparadas originalmente à escrita. (O nome que
Nièpce deu ao processo através do qual a imajem apare-
ce na chapa foi heliografia, ou seja, a escrité por meio
da luz solar; Fox Talbot chamou à câmara 'o lápis da
natureza".)
O problema do contraste do "original" coma "cópia"
de Feuerbach reside nas definições estáticas de ambos
quanto ao que sejam realidade e imagem. EU parte do
princípio de que o que é real persiste, imutáxel e intac-
to, quando somente as imagens se tranformaram: escora-
das pelas mais leves pretensões à credibilidace, as ima-
Í53
' Estou me referindo ao realismo de Balzac na Mimesis de Eri;h Auerbach.
A passagem que Auerbach descreve no início de Lê Père Goiiot (1834) —
Balzac está descrevendo a sala de jantar da pensão Vauquer is 7h da ma-
nha e a entrada de Madame Vauquer — não poderia ser rnaisexplícita (ou
proto-proustianal. "A personalidade dela", Balzac escreve, "explica a pen-
são, como a pensão está implícita na pessoa dela. . . a corpulência desali-
nhada daquela mulher de estatura baixa é produto dj vida que se leva aqui,
tal como a tifóide é consequência das exalações de um hospital. A anágua
de lã tricotada que usa, mais comprida do que a saia (feita ds uma roupa
velha), e cujo forro sai pelos buracos do tecido que se está rasgando, resu-
me a sala de visitas, a sala de jantar, o pequeno jardim, anuncia a cozinha e
dá uma ideia vaga de como são os hóspedes. Quando ela está lá, o espetá-
culo é completo."
com funcionamento automático, com uma maquinaria
152 que será indubitavelmente adaptada para fornecer mapas
da realidade cada vez mais detalhados e, em conseqúên
cia, mais úteis. A génese mecânica de tais imagens e a
exatidão da força que conferem configuram nova rela
cão entre imagem e realidade. E se é possível dizer que a
fotografia restaura o relacionamento mais primitivo — a
identidade parcial da imagem e do objeto —, a força da
imagem é sentida hoje em dia de modo muito diferente.
A noção primitiva acerca da eficácia da imagem pressu
põe que essa possua a qualidade das coisas verdadeiras,
mas nossa tendência é atribuir ás coisas reais as qualida-
des de uma imagem.
Como todos sabem, as pessoas primitivas têm medo
de que a câmara lhes roube parte de seu ser. Nas me-
mórias que publicou em1900, ao final de sua longa vi-
da, Nadar declara que Balzac também tinha um "vago
pavor" de ser fotografado. A explicação de Balzac, se-
gundo Nadar, era que
todo corpo em seu estado natural foi composto de uma série
de imagens fantasmagóricas superimpostas em camadas^ a não
ter mais fim, acondicionadas em infinitésimos filmes [. . .].
Não tendo sido o homem jamais capaz de criar, isto é, tornar
realidade o que era uma aparição impalpável, ou fazer do nada
um objeto — cada operação daguerriana ia por conseguinte to-
mando para si, separando e usando, até acabar-se, uma das ca-
madas do corpo sobre a qual se focalizava.
Para Balzac, essa marca específica da trepidação parece
ter sido conveniente — "Era o temor de Balzac com res-
peito ao daguerreótipo verdadeiro ou falso?" — pergunta
Nadar. "Era verdadeiro. . ." já que o processo fotográfi-
co é a concretização, digamos assim, de tudo que é mais
original na sua técnica como novelista. A operação bal-
zaquiana consistia em ampliar detalhes insignificantes,
como numa ampliação fotográfica, em justapor traços
ou coisas incongruentes, como numa mostra fotográfica:
tornada expressiva desse modo, qualquer coisa pode ser
vinculada a todas as outras. Para Balzac, o espírito de to-
do um ambiente poderia ser revelado através de um úni-
co detalhe material, por mais mesquiiho a arbitrário
que pudesse parecer. Toda uma vida pode ar resumida
numa aparência momentânea*. E umanudaica nas apa-
rências é uma mudança na pessoa, pois ele 9 recusou a
colocar qualquer pessoa "de verdade' escondida atrás
daquela aparência. A teora imaginosa de Bazac, a qual
deu a conhecer a Nadar, de que um corpo i composto
de uma série infinita de 'imagens assombrcsas", pode
ser sinistramente comparada á teoria sjpost;mente rea-
lista que expressa em suas novelas, segundo i qual uma
pessoa é um agregado de aparências que pocem produ-
zir, através de um foco adequado, camadas nfinitas de
significação. Ver a realidade como um conjurto intermi-
nável de situações que se espelham urnas às outras, ex-
trair analogias das coisas mais díspares, é o nesmo que
antecipar a forma de percepção típica que a magem fo-
tográfica estimula. A própria realidade começou a ser
entendida como uma espécie de escrita, que tem de ser
decodificada — mesmo que as imagens fotográficas fos-
sem comparadas originalmente à escrita.'{O nome que
Nièpce deu ao processo através do qual a imagem apare-
ce na chapa foi heliografia, ou seja, a escrita por meio
da luz solar; Fox Talbot chamou à câmara "o lápis da
natureza".)
O problema do contraste do "original" com a "cópia"
de Feuerbach reside nas definições estáticas de ambos
quanto ao que sejam realidade e imagem. Ele parte do
princípio de que o que é real persiste, imutável e intac-
to, quando somente as imagens se tranformaram: escora-
das pelas mais leves pretensões à credibilidade, as ima-
Í53
* Estou me referindo ao realismo de Balzac na Mimesis de Erich Auerbach.
A passagem que Auerbach descreve no im'cio de Lê Père Goriot (1834) —
Balzac está descrevendo a sala de jantar da pensão Vauquer ás 7h da ma-
nhã e a entrada de Madame Vauquer — não poderia ser mais ^explícita (ou
proto-proustiana). "A personalidade dela", Balzac escreve, "e.xplica a pen-
são, como a pensão está implícita na pessoa dela. . . a corpulléncia desali-
nhada daquela mulher de estatura baixa é produto da vida que se leva aqui,
tal como a tifóide é consequência das exalações de um hospital. A anágua
de lã tricotada que usa, mais comprida do que a saia (feita de uma roupa
velha), e cujo forro sai pelos buracos do tecido que se está rasgando, resu-
me a sala de visitas, a sala de jantar, o pequeno jardim, anuncia a cozinha e
dá uma ideia vaga de como são os hóspedes. Quando ela está lá, o espetá-
culoé completo."
gens se tornaram, de alguma forma, ma is sedutoras. Mas
154 as noções de imagem e realidade são complementares.
Quando a noção de realidade se tranforma, também se
transforma a noção de imagem, e vice-versa. "Nossa era"
não prefere as imagens aos objetos reais pela perversida
de em si, mas sim, em parte, como uma reação às formas
pelas quais a noção de realidade tem sido progressiva-
mente complicada e enfraquecida, sendo uma das pri-
meiras dessas formas a crítica da realidade como mera
fachada, a qual surgiu entre os integrantes da classe mé-
dia esclarecida no século passado. (Esse foi naturalmente
o contrário mesmo do efeito desejado.} A redução à
pura fantasia, de amplas partes do que até então vem
sendo considerado real, como o fez Feuerbach ao cha-
mar de religião "o sonho da mente humana" e negar que
ideias teológicas pudessem ser projeções psicológicas; ou
o intumescimento de detalhes casuais e triviais da vida
cotidíana até se transformarem em cifras das forças his-
tóricas e psicológicas ocultas, como o fez Balzac na sua
enciclopédia da realidade social em forma de novela —
constituem em si modos de perceber a realidade como
um conjunto de aparências, como uma imagem.
Poucas pessoas em nossa sociedade compartilham do
pavor primitivo que inspiravam as máquinas fotográficas
e que advém do fato de pensarmos na fotografia como
parte material dessas máquinas. Alguns vestígios do má-
gico permanecem, entretanto: por exemplo, ao relutar-
mos em rasgar ou jogar fora a fotografia de um ente que-
rido, especialmente de alguém que já morreu ou está
longe. Proceder desse modo seria um gesto de rejeição
impiedoso. Em Jude the Ohscure, a descoberta por Ju-
das de que Arabelta vendeu a moldura feita de bordo e
na qual está inserido um retrato dele, com o quat ele a
presenteara no dia em que se casaram, significa para Ju-
das "a morte total de todo sentimento em sua vida" e
constitui o "golpe leve, mas final, que faz vir abaixo
qualquer sentimento existente nele". O verdadeiro pri-
mitivismo moderno, entretanto, não é considerar a ima-
gem como um objeto real; as imagens fotográficas difi-
cilmente serão tão reais assim. Ao contrário, a realidade
se parece cada vez mais com o que a câmara nos mostra.
Hoje em dia, é comum que as pessoas insistam em lem-
brar-se do acidente violento do qual forarn vitimas — um
desastre de avião, um tiroteio, uma bomba terrorista — e
que "parecia um filme". Assim nos expressamos, sendo
aparentemente desnecessárias quaisquer outras descri-
ções, quando queremos explicar como tudoera tão real.
Se nos países não-industrializados multas pessoas ainda
se sentem apreensivas ao serem fotografadas, antevendo
no ato de fotografar alguma espécie de violação, desres-
peito, pilhagem sublimada da personalidadeou da cultu-
ra, nos países industrializados as pessoas fazem questão
de ser fotografadas — e sentem que são corno imagens e
que se tornam realidade através da fotografia,
155
O sentido cada vez mais complexo do real cria seus
próprios fervores e simplificações compensatórios entre
os quais o ato de fotografar é o que acarreta a maior de-
pendência. É como se o fotógrafo, reagindo a um senti-
do da realidade cada vez mais vazio, estivesse procuran-
do uma transfusão — partindo para novas experiências e
refrescando as anteriores. Suas atividades onipresentes
constituem a versão mais radical e segura da mobilidade.
A necessidade de conhecer novas experiências traduz-se
na necessidade de tirar fotografias: a experiência que
procura uma fórmula à prova de crises.
Como o ato de tirar fotografias parece quase obrigató-
rio para quem viaja muito, colecioná-las apaixonadamen-
te exerce especial atracao para os que estão obrigados —
seja por opção, incapacidade ou coerção - a permane-
cer dentro de espaços fechados. Uma coleção de fotogra-
fias pode ser utilizada como um mundo substitutivo,
provido de imagens que enaltecem, consolam ou ator-
mentam. Uma fotografia pode ser o ponto de partida
para um romance (o Judas de Hardyjá se enamorara da
fotografia de Sue Bridehead antes mesmo de a conhe-
cer), mas é mais comum que a relação erótica seja não
somente criada pela fotografia como também compreen-
dida como ato limitado à fotografia. Na obra de CocteauLês Enfants Terribles, o irmão e a irmã narcisistas com-
partilham o quarto de dormir, seu "quarto- secreto",
com imagens de boxeadores, astros cinematográficos e
156 assassinos. Isolando-se em sua toca para poder viver sua
lenda íntima, os dois adolescentes exibem aquelas foto-
grafias como um panteão privado. Numa das paredes da
cela n9 426 da Prisão de Fresnes, no início dos anos 40,
Jean Genet colou fotografias de 20 criminosos que ele
recortara de jornais, 20 rostos nos quais discernia "o sig-
no sagrado dos monstros", e em homenagem a eles es-
creveu Notre Dame dês Fleurs; para Genet eram musas,
modelos, talismãs eróticos. "Eles vigiam meus pequenos
afazeres cotidianos", escreve Genet — sonhos, masturba-
ção e literatura que se fundem entre si — e "são toda a
família que tenho e meus únicos amigos". Para os que se
vêem confinados às suas casas, os prisioneiros, os que se
aprisionam por vontade própria, conviver com fotogra-
fias de pessoas desconhecidas, mas glamourosas, é uma
reacão sentimental ao isolamento e um insolente desafio
ao mesmo.
A novela Crash (1973) de J. G. Ballard focaliza uma
colecão de fotografias ainda mais especializada a serviço
da obsessão sexual: fotografias de acidentes automobilís-
ticos que Vaughan, amigo do narrador, coleciona en-
quanto ensaia para levar ao palco sua própria morte num
acidente automobilístico. A representação de sua visão
erótica da morte no carro é prognosticada e a própria
fantasia posteriormente erotizada pelo exame cuidadoso
e reiterado dessas fotografias. Numa das extremidades
do espectro, pode-se dizer que toda fotografia é um da-
do objetivo; na outra, é produto da ficção-científica de
cunho psicológico. E assim como, mesmo na realidade
mais horrenda ou aparentemente neutra, podem-se en-
contrar imperativos sexuais, da mesma forma o do-
cumento-fotografia mais banal pode transformar-se num
emblema do desejo. Uma fotografia instantânea é uma
pista para o detetive, um fetiche erótico para o ladrão.
Para Hofrat Behrens.em The Magic Mountain,os raios X
pulmonares de seus pacientes são instrumentos de diag-
nóstico. Para Hans Castrop, cumprindo uma sentença
indefinidamente no sanatório para tuberculosos de
Behrens, e morrendo de amor por Claudia Chaucat, enig-
mática e inalcançável, "o retrato em raios X de Claudia,
que mostra não o seu rosto, mas a estrutura 'ssea delica-
da da parte superior de seu corpo, e osórgãc da cavida-
de torácica, cercados por um invólucrofeitcde sua pró-
pria carne, pálida e fantasmagórica", constiui o trofeu
mais precioso. O "retrato transparente" é im vestígio
muito mais íntimo de sua bem-amada do qie o retrato
que Hofrat pintou de Claudia, aquele "retrat» exterior",
que Hans uma vez admirou com tanto desejo
A fotografia é uma forma de aprisionar i realidade,
considerada recalcitrante e intratável; de fizê-la ficar
quieta. Ou ainda de ampliar uma realidade qie sentimos
como retraída, esvaziada, perecível e remota,Não se po-
de possuir a realidade, mas é possívej!pbssui (e ser pos-
suído por) imagens — corno, de acordo con Proust, o
prisioneiro mais ambicioso dentre todos, nío se pode
possuir o presente, mas o passado. Poucas ati/idades po-
derão ser mais opostas ao trabalho de auto-sacrif ício de
um artista como Proust do que o ato de fotografar, o
qual não exige esforço, e deve ser um dos poucos que
originam obras de arte reconhecidas, em que jm simples
movimento, um apertar dos dedos, produz uma**obra
completa. Enquanto a obra de Proust pressupõe que a
realidade esteja distante, a fotografia implica acesso ins-
tantâneo à realidade. Mas os resultados dessa prática de
acesso instantâneo constituem outra forma de criar dis-
tanciamento. Possuir o mundo em forma de imagens é,
precisamente, reexperimentar o quão irreal e remota é a
realidade.
A estratégia do realismo proustiano pressupõe um dis-
tanciamento daquilo que normalmente sentimos como
real, o presente, com vistas a reanimar aquilo que habi-
tualmente se encontra disponível apenas de maneira re-
mota e sombria, o passado — que é onde o presente se
torna, para Proust, real, ou seja, algo que podemos pos-
suir. Para tal esforço, a fotografia em nada pode contri-
buir. Toda vez que Proust faz menção à fotografia, o faz
de forma depreciativa: como sinónimo de urma relação
meramente voluntária, superficial, muito excluisivamente
visual, com o passado, cuja produção é insignificante
quando comparada com as descobertas profundas que
poderemos fazer se reagirmos às insinuações que provêm
157
de todos os nossos sentidos — na técnica que ele derio
158 minou "memória involuntária". Não podemos imaginar
que a Abertura de Du Cote de chez Swann termine
quando o narrador depara com uma fotografia da igrejii
paroquial de Combray e saboreia aquela migalha visual,
em vez da simples made/eine embebida no chá, o que
faz com que toda uma parte de sua vida lhe aflua à me
mória. Isso, porém, não se deve a que a fotografia não
possa evocar lembranças (pode sim, dependendo do grau
de educação do espectador mais do queda própria foto
grafia), mas àquilo que Proust esclarece a respeito de
suas próprias exigências com relação à recuperação da
imaginação, isto é, de que essa não seja apenas extensiva
e exata, mas que revele a textura e a essência das coisas.
E ao considerar a fotografia na medida somente em que
a pudesse utilizar, como instrumento da memória, Proust
de alguma forma interpreta mal o que é a fotografia:
nem tanto um instrumento da memória, muito mais
uma invenção ou substituto dela.
Não é a realidade que a fotografia torna imedíatamen
te acessível, mas as imagens. Por exemplo, nem todos os
adultos sabem exatamente como eles próprios, seus pais
e avós eram quando crianças — um conhecimento a que
as pessoas jamais poderiam ter acesso antes da invenção
da máquina fotográfica, nem mesmo para aquela reduzi-
díssima minoria entre a qual era costume encomendar
pinturas de seus filhos. A maioria daqueles retratos era
menos informativa do que qualquer fotografia instantâ-
nea. E até mesmo as pessoas muito ricas possuíam em
geral apenas um retrato de si próprias ou de seus ante-
passados quando crianças, ou seja, uma imagem de um
momento da infância, ao passo que é comum termos
muitas fotografias de nós mesmos, oferecendo-nos a câ-
mara a possibilidade de possuirmos um registro comple-
to, em todas as idades. O objetivo dos retratos padroni-
zados das famílias burguesas dos séculos XVIII e XIX
era reafirmar a condição ideal do retratado (que lhe pro-
clamasse a posição social e lhe embelezasse a aparência
pessoal); realizado esse propósito, é fácil entender por
que as pessoas retratadas não sentiam necessidade de
possuir mais de um retrato. O que o registro fotográfico
confirma é, de modo mais modesto, que a pess>a retra-
tada simplesmente existe; por isso, nunca pod«mos ter
muitos registros.
O temor de que a singularidade de uma pessoa pudes-
se ser reforçada pela fotografia jamais foi expresso com
tanta frequência como na década de 1850, quardo o re-
trato fotográfico forneceu o primeiro exemplo de como
a câmara podia criar modas passageiras e indústras dura-
douras. Em Pierre, de Melville, publicado no início da
década, o herói, outro campeão fervoroso do isoamento
voluntário.
159
considerava como, então, corr infinita rapidez, o ret"ato mais
fiel de uma pessoa podia ser trado pelo daguerreótii», ao pas-
so que, em tempos passados, um retrato fiel só estaria ao alcan-
ce dos endinheirados ou dos aristocratas mentais do mundo.
Muito natural, portanto, parecia a conclusão de que, em vez de
imortalizar génios, como antigamente, o retrato naquela época
visasse a apenas trazer à luz ignorantes. Além disso, cuando se
publicam retratos de tantas pessoas, a verdadeira distinção con-
siste em não termos o nosso publicado.
Contudo, se a fotografia se rebaixa, a pintura distorce de
modo oposto: fazendo-se de grandiosa. A intuição de
Melville é de que toda forma de retrato na civilização
dos grandes negócios é um compromisso; pelo menos as-
sim parece a Pierre, modelo dasensibilidade alienada.
Assim como uma fotografia significa tão pouco numa
sociedade de massa, uma pintura significa demasiado. A
natureza da pintura, Pierre observa, torna-a
mais afeita à reverência do que o homem o é; porquanto não
podemos conceber um quadro que possua algo de depreciativo,
ao passo que podemos imaginar muitas coisas inevitavelmente
depreciativas capazes de emocionar o homem.
Mesmo se tais ironias podem ser consideradas como ten-
do sido dissolvidas pela totalidade do triunfo da fotogra-
fia, a principal,diferença entre pintura e fotografia, no
que concerne ao retrato, permanece válida. A pintura re-
sume invariavelmente; a fotografia, geralmente, não. As
imagens fotográficas são parte do testemu nho numa bio-
grafia ou história que fluem. E uma fotografia, ao con
160 trário da pintura, traz em si a promessa de que outras
mais virão.
"Sempre ~- o Documento Humano destinado a man
ter o presente e o futuro em contato com o passado",
disse Lewis Hine. Mas o que a fotografia fornece não é
apenas um registro do passado, senão urn novo modo de
lidar com o presente, como comprovam os efeitos dos
bilhões de documentos fotográficos contemporâneos.
Enquanto velhas fotografias preenchem a imagem men-
tal que temos do passado, as fotografias que tiramos
agora transformam o presente em imagem mental, como
o passado. A câmara estabelece uma relação conclusiva
com o presente (a realidade se conhece por seus vestí-
gios) e fornece uma visão da experiência instantanea-
mente retroativa. A fotografia oferece formas de posse
marcadas pelo escárnio: do passado, do presente, até do
futuro. Em Invitation to a Beheading (1938), o prisio-
neiro Cincinnatus vê o "foto-horóscopo" de uma crian-
ça tirado pelo sinistro M'sieur Pierre: um álbum de "fo-
tografias da pequena Emmie quando menina, na época
uma criança pequena, logo depois pré-adolescente, como
ela é agora, depois — ao retocar e utilizar fotografias de
sua mãe — de Emmie adolescente, noiva, moca de 30
anos, concluindo com uma fotografia na idade de 40
anos, Emmie no leito de morte. Uma "paródia do traba-
lho do tempo", é como Nabokov denomina esse artefato
exemplar; é também uma paródia da obra que é a foto-
grafia.
A fotografia, que pode ser utilizada de tantos modos
narcisísticos, é também instrumento poderoso no senti-
do de despersonalizar a relação que mantemos com o
mundo; e essas utilizações são complementares. Como
um par de binóculos sem lado direito, a câmara faz com
que coisas exóticas e íntimas pareçam próximas; e coisas
familiares pareçam pequenas, abstraías, estranhas, muito
mais distantes. Ela oferece, numa atividade fácil e que
nos leva ao hábito, participação e alienação a uma só
vez, em nossas próprias vidas e na dos outros — permi-
tindo-nos participar, ao mesmo tempo em que reafirma
a alienação. Guerra e fotografia parecem hoje nsepará-
veis; e desastres de avião eoutros acidentes rcrrorosos
sempre atraem pessoas que astão com câmaras, Uma so-
ciedade que faz da aspiração a jamais experimentar pri-
vações, insucessos, miséria, dores, doenças terríveis uma
norma, e na qual a própria norte é vista não como natu-
ral e inevitável, mas como um desastre criei e imerecido,
cria uma curiosidade enorme em torno de taisaconteci-
mentos — curiosidade que é satisfeita em parte através
do ato de fotografar. A sensação de estar isento da cala-
midade estimula nosso interesse em ver fotografias dolo-
rosas e o fato de vê-las sugere e fortalece a sensação de
que estamos isentos. Em parte porque estamos "aqui", e
não "lá", e em parte por causa do caráter de inevitabili-
dade que todo acontecimento adquire ao ser transforma-
do em imagem. No mundo real, algo está ocorrendo e
ninguém sabe o que vai acontecer. No mundo das ima-
gens, aquilo já aconteceu, e acontecerá sempre da mes-
ma forma.
O conhecimento abrangente do que existe no mundo
(a arte, a catástrofe, as belezas da natureza) através das
imagens fotográficas desaponta frequentemente as pes-
soas, surpreende-as e paralisa-as quando vêem a coisa
verdadeira. Pois a imagem tende a subtrair sentimentos
daquelas coisas que experimentamos em primeira mão,
e os sentimentos que nos desperta não são, em grande
parte, aqueles que realmente experimentamos na vida
real. Muitas vezes uma coisa nos perturba mais na forma
de fotografia do que quando efetivamente a conhece-
mos. Num hospital de Xangai, em 1973, ao observar re-
tirarem de um trabalhador de fábrica, que tinha uma úl-
cera em estado adiantado, nove décimos do estômago,
com anestesia por acupuntura, procurei acompanhar a
operação, que durou três horas (foi a primeira operação
que jamais presenciei, sem perturbar-me, nunca sentin-
do, mesmo que por um só momento, a necessidade de
desviar o olhar. Num cinema em Paris, um ano mais tar-
de, a operação menos sangrenta que aparece no do-
cumentário Chung Kuo. de Antonioni, sobre a China,
fez-rne recuar ao primeiro corte do bisturi e desviar o
olhar várias vezes durante a sequência. Somos muito
161
mais vulneráveis aos acontecimentos que nos inquiut.nn
162 sob a forma de imagens fotográficas do que sob a foi m.i
de fatos reais. Essa vulnerabilidade é parte da passividd
de característica de alguém que é espectador mats de
uma vez, espectador de acontecimentos já configurados,
primeiro pelos participantes e depois pelo fotógrafo ou
cineasta. Para a operação verdadeira, tive de esterilizar as
mãos vesti uma bata de operação e depois permaneci de
pé ao lado dos médicos e enfermeiras atarefados, e eu
os papéis que devia desempenhar: de adulto desinibido,
de visitante bem-educado, de testemunha digna de rés
peito. A operação no filme impede não somente essa
modesta participação, mas toda capacidade de reação do
espectador. Na sala de operações, sou eu quem controla
o foco, toma os c/ose-ups e faz as tomadas. No cinema,
Antonioni já selecionou quais as partes da operação que
posso olhar; a câmara me procura — e me obriga a olhar,
deixando-me como única opção não olhar. Além disso, o
filme condensa em poucos minutos algo que leva horas,
deixando apenas partes interessantes que são apresenta-
das de maneira interessante, ou seja, com a intenção de
provocar ou de chocar. O dramático é dramatizado, pela
didática do cenário e da montagem. Viramos a página de
uma revista de fotografias, uma nova sequência tem iní-
cio num filme, produzindo um contraste qut- é mais agu-
do do que o contraste existente entre acontecimentos
sucessivos no tempo real.
Nada para nós poderia ser mais instrutivo com respei-
to ao significado da fotografia — como, entre outras coi-
sas, método de promover o real — do que os ataques ao
filme de Antonioni que foram publicados pela imprensa
chinesa no í n feio de 1974. Tais ataques conformam um
catálogo negativo de todos os inventos da fotografia mo-
derna, seja a própria fotografia ou o filme". Se para nós
a fotografia está intimamente ligada a maneiras de ver
desprovidas de continuidade (trata-se precisamente de
ver o todo através das partes — um detalhe que nos cap-
ta a atenção, ou uma forma muito diferente de cortar a
fotografia), na China ela está vinculada unicamente à
continuidade. Não somente há temas apropriados para a
câmara, temas positivos, inspiradores (atividades exem-
plares, gente sorridente, tenpo bom} e organizados, co-
mo também há modos adequados de fotografar que pró- 163
vêm de noções sobre a ordem moral do espaço, as quais
impedem a própria ideia d3 visão fotográfica, Assim é
que Antonioni foi criticado por fotografar coisas velhas
ou fora de moda — "procurou e fotografou paredes e
jornais murais abandonados há muito tempo";não pres-
tando "atenção alguma aostratores grandes epequenos
que trabalhavam nos campos, [ele] escolheu apenas um
burro que puxava um cilindro de pedra" - e por mos-
trar momentos indecorosos— "com desgosto,filmou as
pessoas assoando o nariz e indo ao vaso sanitário" — e
movimentos indisciplinados — "em vez de filmar estu-
dantes nas salas de aula das escolas primárias de nossas
fábricas, filmou as crianças saindo às carreirasdas salas
ao término das aulas". E acusaram-no de denegrir as pes-
soas e coisas certas pelo modo como as fotografou: por
ter utilizado "cores sombrias e lúgubres" e esconder as
pessoas em "sombras escuras"; por ter focalizado as
mesmas pessoas e coisas em muitas tomadas — "há às ve-
zes tomadas longas, às vezes c/ose-ups, algumas vezes de
frente, outras por detrás" —, isto é, por não ter mostra-
do as coisas sob o ponto de vista de um único observa-
dor, colocado em posição ideal; utilizado ângulos altos e
baixos - "A câmara era focalizada intencionalmente
naquela ponte magnífica e moderna desde ângulos mui-
to ruins, a fim de fazê-la parecer arqueada e cambalean-
te"; e por não ter um número suficiente de boas toma-
'Ver A Vicious Motive, Despicable Tricks — A Criticism of Antonionfs
Anti-Chma Film "China" (Pequim: Foreign Languages Press, 1974), panfle-
to de 18 paginas (sem assinatura} que reproduz um artigo publicado no jor-
nal Renmmh Ribao em 30 de janeiro de 1974; e " Repudiai i ng Antonioni's
Anti-China Film", Peking Revtew, n° 8 (22 de fevereiro de 1974), que for-
nece veisões condensadas de três outros artigos publicados naquele mês. O
ob|etivo de tais artigos não é, obviamente, expressar uma visão sobre a fo-
tografia — o interesse deles a esse respeito passa despercebido —, mas cons-
truir um inimigo ideológico modelo, como em outras campanhas de educa-
ção de massa levadas a cabo durante aquele período. Considerando tal pro-
pósito, não se faz necessário que dezenas de milhões de pessoas mobilizadas
em grandes encontros que se realizavam em escolas, fábricas, unidades do
Exército e comunas em Todo o país para "Criticar o Filme Antichinés de
Antonioni" tivessem realmente visto Chung Kuo, nem que os participan-
tes da ríimpanha "Critique Lin Pião e Confúcio" de 1976 tivessem lido um
texto sequer de Confúcio.
das — "Ele martelou o cérebro para conseguii i
.164 c/ose-ups num esforço de distorcer a imagem do povo r
deformar-lhe a perspectiva espiritual".
Além da iconografia fotográfica de l íderes adorados,
do kitsch revolucionário, de tesouros culturais, produ/i
dos em massa, frequentemente vemos na China fotogra
fías de caráter privado. Muitas pessoas possuem retratos
dos entes queridos pregados à parede ou postos por de
baixo do vidro da penteadeira ou da mesa de escritório.
Muitas dessas fotografias são do tipo de retratos instan
tâneos que no Ocidente tiramos em reuniões familiares
e em viagens; nenhuma delas, porém, é uma fotografia
cândida, nem mesmo a do tipo que o amador que usa a
câmara mais simples, em nossa sociedade, considera nor
mal — um bebé engatinhando no chão, uma pessoa esbo
çando um gesto. Fotografias de esportes mostram o time
em grupo, ou apenas os instantes mais estilizados do jo
go como bale: em geral, o que as pessoas fazem quando
vêem a câmara é reunir-se e formar uma ou duas filas.
Não há interesse algum em captar ninguém em movi-
mento. E isso se explica em parte, supõe se, por certas
velhas convenções de decoro na conduta e na imagística.
E é o critério visual característico daquelas pessoas que
se encontram no primeiro estágio da cultura da câmara,
quando a imagem é definida como algo que pode ser
roubado de seu possuidor; por isso, Antonioni foi críti
cado por "ter forçado a situação e feito tomadas contra
a vontade das pessoas", como "um ladrão". A posse de
uma câmara não justifica a intromissão, como ocorre em
nossa sociedade, queiram ou não as pessoas. (As boas
maneiras da cultura da câmara aconselham que devemos
fingir não estar vendo que um estranho nos está fotogra-
fando num local público, contanto que o fotógrafo per-
maneça a uma discreta distância — ou seja, não devemos
nem proibir a tomada da fotografia e nem posar.) Ao
contrário do que acontece nos Estados Unidos, onde po-
samos onde podemos e paramos quando nos parece ne
cessário, na China o ato de fotografar é sempre um ritual
— o qual implica sempre a pose e, necessariamente, o
consentimento. Uma pessoa que "seguiu deliberadamen
te outras que não sabiam de sua intenção de filma Ias"
estava privando essas mesmat pessoas e coisas do direito
que lhes cabe de posar para iparecer damelhomaneira
possível.
Antonioni dedicou quase toda a sequência de Chung
Kuo sobre a Praça Tien An ii/len, em Pequim -a maior
rneta da peregrinação política no país - aos pregrinos
que esperavam ser fotografados. O interesse de António
ni em mostrar os chineses enquanto executavam aquele
rito elementar, e documentar sua viagem com acamara,
é evidente: a fotografia e o aro de ser fotografado são os
temas contemporâneos preferidos pela câmara. Para os
críticos, o desejo das pessoas que visitam a Praça Tien
An Men de ter uma fotografia sua de souvenir
é um reflexo de seus profundos sentimentos revolucionários.
Entretanto, com más intenções, Antonioni, em ve2 de mós
trar essa realidade, apenas filmou as roupas das pessoas, seus
movimentos e expressões: ora, os cabelos desordenados de
uma pessoa, ora outra espreitando com o olhar ofuscado pelo
sol; numa tomadas, as mangas da camisa de um homem; em
outra, suas calças. . .
165
Os chineses resistem ao desmembramento fotográfico da
realidade. Não se fazem c/ose-ups. Nem os cartões pos-
tais de antiguidades e obras de arte vendidas em museus
revelam parte de alguma coisa; o objeto é sempre foto-
grafado diretamente, centralizado, uniformemente ilu-
minado, em sua totalidade.
Achamos os chineses inocentes por não perceberem^
beleza que pode haver numa porta que estala ou se des-
casca, o pitoresco que existe na desordem, a força do ân-
gulo incomum e o detalhe significativo, a poesia da pes-
soa fotografada de costas. Temos uma noção moderna
de embelezamento — a beleza não é inerente a coisa al-
guma; ela deverá ser encontrada através de outro modo
de ver — e de uma noção mais ampla do significado, que
as muitas modalidades da fotografia ilustra..! e reforçam
poderosamente. Quanto mais numerosas as variações de
uma coisa, mais ricas suas possibilidades de significado:
por isso é possível dizer muito mais com fotografias do
Oeste americano do que da China atual. Independente
mente do que quer que seja verdadeiro com" relaç.To .u>
166 Chung Kuo como item de mercadoria ideológica (e os
chineses não estão errados quandoidizem<que o filme é
condescendente), as imagens de Antonioni simplesmen
te significam mais do que qualqueroutra imagem que os
chineses publiquem de si mesmos. Os chineses não que
rem fotografias que signifiquem muito ou que sejam
muito interessantes. Não desejam ver o mundo sob um
ângulo inusitado, descobrir novos temas. A fotografia
supostamente deve mostrar aquilo que já foi descrito.
A fotografia para nós é uma faca de dois gumes que pró
duz clichés (termo francês que significa não só expressão
comum como também negativo fotográfico) e fornece
vistas "límpidas". Para as autoridades chinesas, só exis-
tem clichés — que elas consideram não serem clichés,
mas visões "corretas".
Na China de hoje, apenas duas realidades são reconhe-
cidas. Vemos a realidade como desesperançada e interes-
santemente pluralística. Lá o tema que se estabelece co-
mo apropriado para debates é aquele sobre o qual haja
"duas linhas", uma certa e outra errada. Nossa sociedade
propõe um espectro de opções e percepções descontí-
nuas. O deles é construído em torno de um observador
único e ideal; e a fotografia dá sua parte de contribuição
ao Grande Monólogo. Para nós, há "pontos de vista" dis-
persos e intercambiáveis; a fotografia é um polílogo. A
presente ideologia chinesa define a realidade como um
processo histórico estruturado em dualismos frequentes,
de significado claramente demarcado e moralmente co-
lorido; o passado, em grande parte, é simplesmente jul-
gado ruim. Para nós, há processos históricos com signifi-
cados espantosamente complexos e às vezes contraditó-
rios; e artes que vão buscar muito do seu valor no fundo
da consciência que temos do tempo como história, tal
como a fotografia. (Por isso é que o passar do tempo
contribui para o valor estético da fotografia,e as cicatri-
zes do tempo tornam os objetos maís e não menos se-
dutores para o fotógrafo.) Com a noção da história; cer-
tificamo-nos de nosso interesse em conhecer o maior nú-
mero possível de coisas. O único uso que os chineses po-
dem fazer de sua história é o didático: o interesse deles
pela história é reduzido, moraista, deformante edespro-
vido de curiosidade. Por conseguinte, a fotografii tal co-
mo a entendemos não tem vez na sociedade chin sã.
Os limites impostos à fotografia na China apnas re-
fletem o caráter de sua sociedade, unificada pr uma
ideologia de conflitos rígidos e incessantes. O uo ilimi-
tado que fazemos da imagem fotográfica não omente
espelha como também dá forrra a nossa sociedad;, unifi-
cada pela rejeição aos conflitos. A noção mesmaque te-
mos do mundo — o "mundo único" capitalista dt século
XX - é uma visão fotográfica geral. O mundo é 'Um só"
não porque esteja unido, e sirr porque uma vista folhos
em seus diversos conteúdos não nos revela conflitos, mas
somente uma diversidade ainda mais aterradora. Tal uni-
dade espúria do mundo vê-se afetada quando lhe tradu-
zimos o conteúdo em imagens. As imagens são sempre
compatíveis, ou podem ser compatíveis, ainda quando
as realidades que pintem não o sejam.
A fotografia não reproduz simplesmente o real, reci-
cla-o — um processo-chave na sociedade moderna. Na
forma de imagens fotográficas, novos usos são atribuí-
dos às coisas e eventos, novos significados lhes são da-
dos, os quais vão além da distinção entre belo e feio,
verdadeiro e falso, útil e inútil, bom gosto e mau gos-
to. A fotografia é um dos principais instrumentos para
a obtenção daquela qualidade, que apaga tais diferenças,
adscrita às coisas e situações: "o interessante". O que
torna uma coisa interessante é o fato de poder ser vista
como igual ou semelhante a outra. Há uma arte e moda
no ver as coisas que as torna mais interessantes; e para
alimentar essa arte e moda, uma reciclagem constante
dos artefatos e gostos do passado se processa. Os cli-
chés, reciclados, tornam-se metaclichês. A reciclagem
fotográfica faz surgirem clichés a partir de objetos úni-
cos, e artefatos inconfundíveis e vívidos a partir de cli-
chés. Imagens das coisas reais são interpostas a imagens
das imagens. Os chineses circunscrevem as modallídades
de utilização da fotografia de maneira que não h;aja ca-
madas ou estratos de imagens, e todas as imagens; refor-
167
çam-se e reiteram-se entre si'. Fazemos da fotografia um
168 instrumento através do qual, precisamente, podemos di-
zer qualquer coisa e servir a qualquer propósito. Àquilo
que na realidade é discrição, as imagens se associam. Na
forma de fotografia, a explosão de uma bomba atómica
pode ser utilizada para fazer anúncio de um cofre.
Para nós, a diferença entre o fotógrafo possuidor de
uma visão individual e o fotógrafo documentador objeti-
vo parece fundamental, sendo essa diferença muitas ve-
zes encarada, erradamente, como o marco que separa a
fotografia como arte da fotografia como documento.
Ambas, são, entretanto, extensões lógicas do significado
da fotografia: um apontamento potencial de tudo o que
existe no mundo, sob todos os ângulos possíveis. O mes-
mo Nadar que tirou retratos das celebridades mais famo-
sas da época e as primeiras foto-entrevistas foi também o
primeiro fotógrafo que tirou fotografias aéreas; e quan-
do executou a "operação daguerríana" em Paris, desde
um balão, em 1855, compreendeu imediatamente a uti-
lidade futura, para os estrategistas, da fotografia.
Duas atitudes marcaram a suposição de que qualquer
coisa no mundo é motivo para a fotografia. Descobrimos
que há beleza ou pelo menos interesse em tudo, se ob-
servarmos com olhos realmente abertos. (E o próprio es-
tetícismo da realidade, que põe todas as coisas, quais
quer que sejam, ao alcance da câmara, é que permite
"A preocupação dos chineses com a função reiterativa das imagens (e das
palavras) inspira a distribuição de imagens adicionais, fotografias que pin-
tam cenas em que, obviamente, fotógrafo algum poderia ter estado presen-
te; e o uso contínuo de tais fotografias dá-nos uma ideia de como é pobre o
entendimento que a maioria das pessoas tem do que significam as imagens
fotográficas e o ato de fotografar. Em seu livro Chinese Shadows, Simon
Leys dá um exemplo do "Movimento para Emular a Lei Feng", campanha
de massa levada a cabo em meados da década de 1960 com o objetivo de
inculcar nas pessoas os ideais da cidadania maoísta, construídos em torno
da apoteose de um Cidadão Desconhecido, um recruta chamado Lei Feng
que morreu aos 20 anos num acidente banal. A exposição dedicada a Lei
Feng e organizada nas grandes cidades incluía "documentos fotográficos,
tais como 'Lei Feng auxiliando uma senhora idosa a atravessar a rua', 'Lei
Feng secretamente Is/cl lavando a roupa de seu companheiro', 'Lei Feng
dando seu almoço para o companheiro que se esquecera de levara marmi-
ta', e assim por diante", e aparentemente ninguém questionou a "presença
providencial de um fotógrafo durante os vários incidentes na vida daquele
soldado humilde, è até então desconhecido". Na China, o que torna verda-
deira uma imagem é o fato de as pessoas gostarem de vê-la.
também que se opte, no ;aso de qualqjer fotografia,
mesmo as de tipo nitidamente prático, p^rserela arte.)
A outra atitude trata todasas coisas como objetos de al-
gum uso, presente ou futuo, como matéria para estima-
tivas, decisões e predições. De acordo cor uma daquelas
atitudes, nada existe que não deva ser VÍKO; conforme a
outra, nada há que não deva ser registrdo. A câmara
concretiza uma visão estética da realídadena medida em
que é uma máquina de brinquedo que cobca ao alcance
de qualquer um a possibilidade de ernitr julgamentos
desinteressados sobre a importância, o interesse e a bele-
za. ("Aquilo ali daria uma boa fotografia.") A câmara
concretiza a visão instrumental da realidade na medida
em que reúne informações que nos habilitam a reagir de
modo muito mais exato e rápido aos acontecimentos. A
reacão pode, naturalmente, ser tanto repressiva quanto
benevolente: fotografias de reconhecimemo militar con-
tribuem para a extinção de vidas, e os raios X, para sal
vá-las.
Embora essas duas atitudes, a estética e a instrumen-
tal, pareçam produzir sentimentos contraditórios e até
mesmo incompatíveis com respeito a pessoas e situa-
ções, é essa a contradição nitidamente característica da
atitude que membros de uma sociedade cue divorcia o
público do privado devem compartilhar e com a qual de-
vem conviver. E talvez não haja atividade alguma que
nos prepare tão bem para conviver com tais atitudes
contraditórias quanto a fotografia, que se conforma tão
brilhantemente a ambas. De um lado, a câmara coloca a
visão a serviço do poder - do Estado, da indústria, da ci-
ência. De outro, a câmara torna expressiva a visão den-
tro do espaço mítico conhecido como vida privada. Na
China, onde política e moralismo não deixam espaço al-
gum para as expressões da sensibilidade estética, somen-
te algumas coisas podem ser fotografadas, e apenas den-
tro de certos limites. Para nós, à medida que nos torna-
mos cada vez mais desligados da política, tanto mais de-
simpedido será o espaço que poderemos preencher com
os exercícios de sensibilidade que se podem realizar com
a câmara. Um dos efeitos da tecnologia fotográfica mais
recente (vídeo, filmes instantâneos) tem sido o de orien
169
168
çam-se e reiteram-se entre si * . Fazemos da fotografia um
instrumento através do qual, precisamente, podemos di-
zer qualquer coisa e servir a qualquer propósito. Àquilo
que na realidade é discrição, as imagens se associam. Na
forma de fotografia, a explosão de uma bomba atómica
pode ser utilizada para fazer anúncio de um cofre.
Para nós, a diferença entre o fotógrafo possuidor de
uma visão individual e o fotógrafo documentador objeti-
vo parece fundamental, sendo essa diferença muitas ve-
zes encarada, erradamente, como o marco que separa a
fotografia como arte da fotografia como documento.
Ambas, são, entretanto,extensões lógicas do significado
da fotografia: um apontamento potencial de tudo o que
existe no mundo, sob todos os ângulos possíveis. O mes-
mo Nadar que tirou retratos das celebridades mais famo-
sas da época e as primeiras foto-entrevistas foi também o
primeiro fotógrafo que tirou fotografias aéreas; e quan-
do executou a "operação daguerriana" em Paris, desde
um balão, em 1855, compreendeu imediatamente a uti-
lidade futura, para os estrategístas, da fotografia.
Duas atitudes marcaram a suposição de que qualquer
coisa no mundo é motivo para a fotografia. Descobrimos
que há beleza ou pelo menos interesse em tudo, se ob-
servarmos com olhos realmente abertos. (E o próprio es-
teticismo da realidade, que põe todas as coisas, quais-
quer que sejam, ao alcance da câmara, é que permite
*A preocupação dos chineses com a função reiterativa das imagens (e das
palavras) inspira a distribuição de imagens adicionais, fotografias que pín- .
tam cenas em que, obviamente, fotógrafo algum poderia ter estado presen-
te; e o uso contínuo de tais fotografias dá-nos uma ideia de como é pobre o
entendimento que a maioria das pessoas tem do que significam as imagens
fotográficas e o ato de fotografar. Em seu livro Chinese Shadows, Simon
Levs dá um exemplo do "Movimento para Emular a Lei Feng", campanha
de massa levada a cabo em meados da década de 1960 com o objelivo de
inculcar nas pessoas os ideais da cidadania maoísta, construídos em torno
da apoteose de um Cidadão Desconhecido, um recruta chamado Lei Feng
que morreu aos 20 anos num acidente banal. A exposição dedicada a Lei
Feng e organizada nas grandes cidades incluía "documentos fotográficos,
tais como 'Lei Feng auxiliando uma senhora idosa a atravessar a rua', 'Lei
Feng secretamente Is/c] lavando a roupa de seu companheiro', 'Lei Feng
dando seu almoço para o companheiro que se esquecera de levar a marmi-
ta', e assim por diante", e aparentemente ninguém questionou a "presença
providencial de um fotógrafo durante os vários incidentes na vida daquele
soldado humilde, e até então desconhecido". Na China, o que torna verda-
deira uma imagem é o fato de as pessoas gostarem de vê-la.
também que se opte, no caso de qualquer fotograf ia
^r Piíi íiríp í
mesmo as de tipo nitidamente pratico, por ? «'" *> «•'
A outra atitude trata todas as coisas cono o'Je
gum uso, presente ou futuro, como matéria 'a
tívas, decisões e predições. De acordo com uiia dacl
atitudes, nada existe que ião deva ser rito;-0™0™
outra, nada há que não ceva ser registrado *
concretiza uma visão estética da realidade nam
que é uma máquina de brinquedo que coloc. a°
de qualquer um a possibilidade de emitir ligamentos
* . *CP P f\p P-
desinteressados sobre a importância, o rntere>bt= e ""
za. ("Aquilo ali daria uma boa fotografia/' A c [ara
concretiza a visão instrumental da realidade na '
em que reúne informações que nos habilitar*.3
modo muito mais exato e rápido aos acontar1."
reação pode, naturalmente, ser tanto repres"va
benevolente: fotografias de reconhecimento™1
tribuem para a extinção de vidas, e os raios*, pá
vá-l as.
Embora essas duas atitudes, a estética e a \™ Bn;
tal, pareçam produzir sentimentos contradí>orios e ate
* "lím P SITUfí-mesmo incompatíveis com respeito a pesst^ t
coes, é essa a contradição nitidamente caracter
atitude que membros de uma sociedade que1 dlx
público do privado devem compartilhar e cor"
vem conviver. E talvez não haja atívidade Alguma qu€
nos prepare tão bem para conviver com ta'j
contraditórias quanto a fotografia, que se cd™
brilhantemente a ambas. De um lado, a câm^r|
visão a serviço do poder -- do Estado, da inddstria' da
ència. De outro, a câmara torna expressiva a1 visão den-
tro do espaço mítico conhecido como vida Flva(
China, onde política e moralismo não deixan" espaço
gum para as expressões da sensibil idade estét:ica- S(
te algumas coisas podem ser fotografadas, e <apenas d
tro de certos limites. Para nós, à medida que? r
mós cada vez mais desligados da política, ten™ ™
simpedido será o espaço que poderemos pre#n
os exercícios de sensibilidade que se podem realiza
a câmara. Um dos efeitos da tecnologia foto$rat|Ca r
recente (vídeo, filmes instantâneos) tem sido1 ° de orierv
169
tar para utilizações narcisísticas uma parte maior das ati-
170 vidades que executamos privadamente com a câmara —
ou seja, para a autovigilância. Mas modalidades de rege-
neração da imagem, tão populares em nossos dias, como
as que se desenrolam no quarto de dormir, na sessão de
terapia e no seminário de fim de semana parecem muito
menos significativas que o potencial do vídeo como ins-
trumento de vigilância em lugares públicos. É de presu-
mir que os chineses acabarão utilizando a fotografia dos
mesmos modos instrumentais como a utilizamos nós,
com a exceçao, talvez, desse último. A tendência a con-
siderar o caráter equivalente ao comportamento torna
mais aceitável a imposição pública e ampla do olhar me-
canizado que a câmara possibilita e o qual se origina fora
de nós mesmos. Os modelos de ordem na China, de lon-
ge muito mais repressivos, exigem não apenas uma ob-
servação cuidadosa do comportamento, mas também
uma mudança de atitude; naquele país, a vigilância é in-
ternalizada num grau sem precedentes, o que sugere um
futuro limitado para a câmara como instrumento de vigi-
lância na sociedade chinesa.
A China é o modelo de determinado tipo de ditadura
cuja ideia básica é "o bom", no qual se impõem os mais
rigorosos limites possíveis em todas as formas de expres-
são, inclusive nas imagens. O futuro poderá revelar outro
tipo de ditadura, cuja ideia diretriz seja "o interessante",
no qual imagens de toda espécie, estereotipadas e excên-
tricas, proliferem. Algo parecido sugere Invitation to a
Beheading, de Nabokov. O retrato ali construído de um
Estado totalitário modelo contém apenas uma arte, oni-
presente: a fotografia — e o fotógrafo amigo que ronda
a cela de morte do herói vem a ser, no final da novela, o
carrasco. E aparentemente não há como (a menos que
ocorra uma vasta amnésia histórica, como na China} li-
mitar a proliferação da imagem fotográfica. O único pro-
blema é saber se a função do mundo das imagens criado
pela câmara poderia ser diferente. A presente função é
suficientemente clara, se considerarmos em que contex-
tos vemos as imagens fotográficas, que dependências
acarretam, que antagonismos pacificam — isto é, que ins-
tituições sustentam, a que necessidades efetívamente ser-
vem.
^«
:
Uma sociedade capitalista exige uma cultura baseada
em imagens. Necessita fornecer quantidades muito gran-
des de divertimentos a fim de estimular o consumo e
anestesiar os danos causados pelo fato de pertencermos
a determinada classe, raça 01 sexo. E necessita igualmen-
te reunir quantidades ilimitédas de informação, e>plorar
os recursos naturais de modo eficiente, aumentara pro-
dutividade, manter a ordem, fazer a guerra eoroporcio-
nar empregos aos burocratas. A dupla capacidade da câ-
mara de tornar subjetiva e objetiva a realidade satisfaz
essas necessidades de forma ideal, e reforça-as A câmara
define a realidade de dois modos indispensáveis ao funci-
onamento de uma sociedade industrial avançada: como
seus óculos (para as massas) e como objeto de vigilância
(para os dirigentes). A produção de imagens fornece
também uma ideologia dominante. A transformação so-
cial é substituída por uma transformação das imagens. A
liberdade de consumir uma pluralidade de imagens e
bens equivale à própria liberdade. A contração da liber-
dade de opção política em liberdade de consumo econó-
mico exige a produção ilimitada e o consumo de ima-
gens.
A razão final que justifica a necessidade de fotografar
todas as coisas encontra-se na própria lógica do consu-
mo. Consumir é sinónimo de queimar, gastar — e, por-
tanto, da necessidade de reabastecer-se. À proporção
que fabricamos imagens e as consumimos, passamos a
necessitar de mais imagens ainda, e assim por diante. As
imagens, porém, nâb constituem um tesouro em busca
do qual o mundo deva ser esquadrinhado; sãoprecisa-
mente o que está à mão onde quer que o olho bata. A
posse da câmara pode inspirar em nós algo parecido com
a luxúria. E, como toda expressão da luxúria digna de
crédito, essa também não pode ser satisfeita: em primei-
ro lugar porque as possibilidades da fotografia são infini-
tas; e em segundo porque tal projeto é, afinal de contas,
autodestrutível. As tentativas empreendidas por fotógra-
fos no sentido de apoiar certa percepção da realidade já
exaurida contribuem para essa mesma exaustão. A sensa-
171
cão sufocante que experimentamos quanto à transitorie
172 dade de todas as coisas torna-se mais intensa desde o
momento em que a câmara nos permitiu "fixar" o ins-
tante fugaz. Consumimos imagens a um ritmo cada vez
mais acelerado, e assím como Balzac suspeitava que a
câmara consumia partes do corpo, as imagens consomem
a realidade. A câmara é o antídoto e a doença, um meio
de apoderar-se da realidade e de torná-la obsoleta.
Os poderes da fotografia, na verdade, desplatonizaram
nossa percepção da realidade, tornando cada vez menos
aceitável seu reflexo sobre nossa experiência nos termos
da distinção entre imagens e coisas, cópias e originais.
Comparar imagens com sombras convinha perfeitamente
à atitude depreciativa de Platão com respeito às imagens
— transitórias, quase totalmente desprovidas de conteú-
do informativo, imateriais, co presenças impotentes das
coisas reais que as projetam. Mas a força da imagem fo-
tográfica origina-se no fato de serem elas realidades ma-
teriais por direito próprio, depósitos ricos em informa-
ção deixados no rastro da coisa que as emitiu, meio vigo-
roso de virar o feitiço contra o feiticeiro, no caso a reali-
dade — de transformá-la em sombras. As imagens são
muito mais reais do que se poderia supor. E exatamente
porque significam um recurso ilimitado, que não pode
ser esgotado pelo desperdício consumista, há muito mais
razão para aplicar-se a elas o recurso conservacionista. Se
o mundo real quiser dispor de um meio mais adequado
de incluir o das imagens, necessitará de uma ecologia
não somente das coisas reais, mas das imagens também.
Breve Antologia
de Citações
(Em
homenagem a W.B.)
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