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IMAGEM E CONSTRUÇÃO SOCIAL AULA 1 Prof.ª Sionelly Leite da Silva Lucena CONVERSA INICIAL Para entender como a evolução e a interpretação da imagem se constroem socialmente, precisamos trabalhar a desconstrução do olhar a fim de reconstruí-lo, com outros sentidos. Por exemplo: você já deve ter ouvido falar que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Então, prepare-se para desconstruir esse e outros conceitos que definem a fotografia como algo “naturalmente legível” ou uma “linguagem universal”, pois essa expressão visual está carregada de sentidos e possibilidades de interpretações. CONTEXTUALIZANDO Nos temas desta aula, iremos discutir a imagem enquanto representação social, observando o poder da fotografia em comunicar, surpreender, e até mesmo “autenticar” uma situação. Vamos discutir o caráter de realismo da fotografia por meio do estudo da geração de sentidos na imagem, entendendo os poderes da imagem e suas possibilidades de interpretação, e, por fim, discutir sobre o que é a fotografia. Nesta aula, você compreenderá mais profundamente sobre o olhar subjetivo do operador da câmera, ao abrir espaço para discussões pertinentes, como: a visão tecnológica (baseada em princípios físicos e ópticos) da fotografia, o olhar do operador da câmera (que escolhe e seleciona os recortes do mundo para a construção da imagem) e os efeitos da imagem construída para informação e documentação histórica dos eventos sociais. Pesquise Confira quais são os temas desta aula: 1. Imagem e representação social 2. O poder da Imagem 3. A geração de sentidos na fotografia 4. Afinal, o que é fotografia? TEMA 1 – IMAGEM E REPRESENTAÇÃO SOCIAL No começo, havia a imagem. E até hoje para onde quer que nos voltemos, ela ainda está presente. A expressão visual dos acontecimentos sempre esteve nas manifestações humanas, sendo que das cavernas à contemporaneidade, o homem tem deixado vestígios de sua passagem por meio da produção e expressão da arte, da escrita e das mais diversas cenas do cotidiano. Por toda parte no mundo o homem deixou vestígios de suas faculdades imaginativas sob a forma de desenhos, dos tempos mais remotos do paleolítico à época moderna. (Joly, 2000, p. 17) Imagem é a representação visual de um objeto. O termo imagem (que vem do latim imago) significa “máscara mortuária”. Na tradição ocidental, associa-se a origem dessa máscara à morte, pois era um aparato que delegava ao falecido o não esquecimento, a fim de manter viva sua imagem na memória dos vivos. As máscaras de pedra, que inicialmente cobriam a cabeça do morto, mais tarde foram usadas por atores na representação da presença dos mortos. No Egito, e nas civilizações incas, por exemplo, o costume era o de representar os traços dos falecidos em máscaras mortuárias para honrar sua morte e garantir uma comunicação com o seu espírito. Cada vez mais realista e criativa, a evolução dos aparatos de construção da imagem, como a fotografia, tornou a imagem uma representação do real, que espanta, choca e convida todos a olhá-la. Além de vestígios da presença humana, a imagem abrange muitas áreas do cotidiano e possui diversos significados nas artes, na medicina, no ensino e nas indústrias, pois ela é o sentido, a significação e até mesmo a substituição de algo. As imagens ganharam ares de heterogeneidade em seus significados e em suas contextualizações, sejam elas produzidas pelo homem (fotografia, grafite, arte rupestre) ou mentais. Imagem mental? O que será isso? Leia a explicação de Joly sobre este termo. Chamamos de imagem mental a impressão que temos quando, por exemplo, lemos ou ouvimos a descrição de um lugar, a impressão de o ver quase como se lá estivéssemos. Uma representação mental é elaborada de um modo quase alucinatório e parece pedir emprestadas as suas características à visão. Vê-se. (Adaptado de Joly, 1994, p. 20) As imagens mentais seriam a base de recriação das imagens técnicas, que, por sua vez, se deslocam do imaginário para serem concretizadas em algum meio. Portanto, são uma visualização psicológica que se dá com base nas imagens vistas e “escaneadas” pelos olhos, para depois serem interpretadas mentalmente em um processo psíquico. Ainda nas palavras de Joly, elas são a lembrança visual e a impressão de uma semelhança perfeita com a realidade. Todos nós estamos rodeados de imagens. Se você observar por alguns segundos, sentirá o quanto as imagens estão presentes em nossos ambientes, nas fotografias, no outdoor da esquina, nas estampas das camisetas, nos quadros nas paredes, na estampa da xícara em nossa mesa, na lembrança do cheiro do café – que te faz imaginar o café... As imagens estão em todo lugar e vê-las ocorre de forma tão automática que às vezes demoramos a perceber certo objeto ou elemento presente nelas, mesmo passando tantas vezes os olhos no mesmo lugar. Algumas delas estão tão presentes no nosso cotidiano que são digeridas automaticamente e se tornam ausentes. Por isso, para dar conta de tantas imagens, a visão humana é seletiva: focamos no que nos é mais interessante naquele momento, assim, nossos olhos se concentram e buscam as informações de que precisamos para sobrevivência do corpo e da memória. Se prestássemos atenção em absolutamente tudo ao nosso redor, nosso cérebro teria uma explosão de conteúdos (signos) para perceber, identificar, interpretar e armazenar. Aliás, o estudo da interpretação desses signos faz parte da Teoria Semiótica de Charles Sanders Peirce. Saiba mais Para saber mais sobre a Teoria Semiótica de Charles Sanders Peirce, acesse o link a seguir: <http://www.infoescola.com/filosofia/semiotica/>. Acesso em: 10 dez. 2019. Inteligentes, nossos olhos também são testados. Quando encaramos uma imagem, por exemplo, analisamos as cores, os formatos, as texturas, os cheiros, as luzes e o meio em que ela é exposta. Nossa pupila se adapta às condições de luz, escaneando todas as informações (sem estar sempre focado no mesmo lugar, nosso olho não para!). Após isso, a imagem gera um resultado que pode sofrer alterações de acordo com a interpretação e a associação das ideias do mundo de cada pessoa. As imagens nos testam, individualmente ou coletivamente, e normalmente somos fisgados por elas registro dos raios luminosos, na fotografia, os satélites podem vigiar, por teledetecção, o avanço da desertificação no planeta ou acompanhar e prever fenômenos meteorológicos, ao mesmo tempo que permite que microcâmeras filmem o interior do corpo humano. Em medicina a radiografia permite explorações mais específicas do corpo, assim como o scanner, os raios laser, a ressonância magnética e a ecografia. É a imagem nos fazendo ver, e mais, compreender o mundo dentro e fora de nós mesmos. TEMA 2 – O PODER DA IMAGEM Das formas de expressão visual, a pintura e a fotografia são os tipos contemporâneos de imagem que mais nos rodeiam, exercendo influência sobre nosso estado mental e físico. Contudo, uma mesma imagem tem interpretações diferentes se exposta em contextos diferentes. Quando a fotografia surgiu na era vitoriana, época de sucessivos avanços advindos da Revolução Industrial, imaginava-se que, enquanto a pintura teria em seu âmago o “recriar” de acordo com a inspiração de seu criador (já que era uma expressão de ordem subjetiva), a fotografia teria em sua essência a cópia direta como referência, sendo assim, uma mimese dos fenômenos. Ou seja: a câmera seria a responsável pela captura das fotos, eliminando toda a subjetividade do olhar do fotógrafo e outras condições estéticas da construção fotográfica. Esse pensamento, herdado com o surgimento tecnológico da fotografia, teria abastecido a crença no objeto fotografado, transformando a fotografia em uma espécie de atestado de que aquilo quefoi mostrado aconteceu ou se deu num determinando espaço-tempo. O autor Duane Michals tem uma reflexão bem interessante sobre esse aspecto. As pessoas acreditam na realidade das fotografias, mas não na realidade das pinturas. Isso dá uma vantagem para os fotógrafos. O problema é que os fotógrafos também acreditam na realidade das fotografias. (Michals, 1982, apud Soulages, 2010, p. 80) O que o autor quis dizer é que tanto a pintura quanto a fotografia estão encobertas pela subjetividade do olhar de quem a produz, mas o suporte comumente dirige parte da interpretação e da credibilidade da imagem. Podemos entender isso por meio do ponto de vista do fotógrafo, quando ele escolhe a cena, o recorte, a objetiva/lente (se será uma grande angular, por exemplo, captura-se uma cena mais aberta; se escolhe uma teleobjetiva, busca-se algo longe ou em realce de detalhes), o ângulo; da mesma forma que o pintor escolhe a cena, recria em cores e pinceladas. As ferramentas são diferentes, mas ambos, fotógrafo ou pintor, fazem seleções do que será construído imageticamente com seus aparatos. A discussão sobre a realidade e a ficção na fotografia traz, portanto, essa característica imperativa, dando início a uma confusão entre dois conceitos: a descoberta de possibilidades e a essência da fotografia. Com a mistura entre o que seria possível e o que seria essência, a cópia exata e fiel dos fenômenos foi mantida como estatuto da fotografia, por muitos e muitos anos, descartando de seu alicerce, a princípio, o estreitamento com a arte. Desde seu surgimento, datado oficialmente de 1826, a fotografia é interpretada como registro do real. No ano de 1839, o jornalista Jules Janin, entusiasmado com o daguerreótipo, disse a seguinte metáfora: “Nenhuma mão humana poderia desenhar como o sol desenha”. Sem pincel e tinta, a fotografia trabalha com a luz, escrevendo e desenhando a imagem com o brilho e intensidade do jogo luz-sombra. Nessa concepção objetivista, a realidade poderia se materializar fotograficamente ao duplicar a imagem de um objeto. Sendo assim, a fotografia serviria de testemunho. Mas, de onde teria surgido essa exatidão da fotografia e esse caráter representacional ligado ao objeto? Alguns pontos iniciais advêm do efeito da perspectiva da pintura renascentista, que é diferente da imagem fotográfica. Com a introdução da câmara escura, renovou-se o procedimento do verdadeiro, já que eram os processos físicos e químicos que reproduziam e fixavam a imagem. Assim, pelo fato de a fotografia ser um processo técnico, rompeu-se a ideia da ligação do homem com a produção de sua obra, pois sendo esse processo uma captura “direta” de um fenômeno, não caberia espaço para a subjetividade (como ocorre com a pintura, em que a imagem surgiria da imaginação do artista). Porém, na prática, a realidade na fotografia se situa no mesmo plano que a pintura. Assim como a pintura é construída conforme a imaginação de seu autor, a fotografia também pode ser influenciada pelo fotógrafo por meio da manipulação das unidades sígnicas durante a composição do quadro, na escolha dos elementos que irão compor a imagem, nas técnicas de revelação em laboratório, nos softwares de tratamento e manipulação de imagem, nos ajustes do equipamento antes do click, e outras escolhas técnicas e estéticas. Assim, a fotografia, vista como um produto subjetivo, não apenas uma reprodução, se coloca também no plano da ficção, como a pintura. Tanto uma imagem como uma informação podem ser facilmente manipuladas. E você, como futuro jornalista, precisa estar bem atento a isso. Dica: Assista ao filme Mera coincidência (Wag The Dog) que aborda de maneira bem clara como a realidade pode ser distorcida. TEMA 3 – A GERAÇÃO DE SENTIDOS NA FOTOGRAFIA Henry Jenkins, no livro A cultura da convergência (2009), menciona a história de Dino Ignácio, um jovem americano que produziu algumas colagens em seu computador – por meio do programa de edição Photoshop – manipulando imagens de personalidades conhecidas (de Adolf Hitler à Pamela Anderson) junto ao personagem Beto, do programa de TV americano Vila Sésamo (1970). Uma de suas colagens1 consistiu em “unir” na mesma imagem Beto e Osama bin Laden, considerado o inimigo número um dos Estados Unidos. Após os ataques às torres gêmeas americanas, em 11 de setembro de 2001, um editor em Bangladesh, ao buscar na Internet uma imagem de bin Laden, se deparou com a colagem de Ignácio. Encontrada a imagem, o editor decidiu imprimi-la em cartazes e blusas para usar o material em um protesto. A rede de TV americana CNN ficou surpresa ao perceber a confusão durante a cobertura do protesto: Beto e bin Laden juntos em um protesto antiamericano, como era possível? As imagens circularam nas TVs americanas e causaram indignação, inclusive, entre os produtores do programa Vila Sésamo, já que a imagem de um de seus personagens estava vinculada a uma figura tão emblemática (e odiada) em seu país, os Estados Unidos. A decisão era reverter isso em processo judicial, mas a quem deveriam ser cobradas as devidas providências? Ignácio? O editor em Bangladesh? Quem, afinal, seria penalizado pela dimensão do acontecido? A exibição de Vila Sésamo fez sucesso em diversos países onde foi exibido, inclusive no Paquistão, porém, nesse país, o formato do programa foi adaptado com o veto do personagem Beto. Por isso, ele não foi reconhecido nos cartazes e nas blusas pelos paquistaneses e muito menos pelo próprio editor em Bangladesh. Por não reconhecer o personagem Beto, já que não faz parte de seu repertório visual, o editor em Bangladesh nos atenta para mais um desdobramento desse caso: por que uma imagem gerou interpretações e reações diferentes? Afinal, quais são os efeitos de sentido da colagem feita por Ignácio? Ao dar o pontapé ao complexo percurso da colagem de Beto e bin Laden, Ignácio transformou sua “criatividade” em um problema internacional. 3.1 Polissemia da fotografia Para compreender essas questões, é preciso entender a polissemia da fotografia. Para a semântica, há três níveis na interpretação dos signos: os sentidos conotativo, denotativo e o subjetivo. • Denotativo: sentido literal da expressão/signo; • Conotativo: sentido metafórico; 1 Saiba mais em: <http://news.bbc.co.uk/2/hi/south_asia/1594600.stm>. Acesso em: 10 jan. 2020. • Subjetivo: sentido individual e psicológico, de acordo com a experiência de cada um. Por exemplo: na análise da imagem de Ignácio, temos pelo menos três pontos de vista/interpretação: de Ignácio, do editor em Bangladesh e dos produtores de Vila Sésamo. • Para Ignácio, o sentido da imagem seria o conotativo, pois ao retirar Beto e Osama bin Laden de seus contextos originais, a colagem faz uma metáfora com suas figuras; • Para o editor de Bangladesh, a imagem vista foi no sentido denotativo, pois seu foco se concentrou na busca da figura de Osama bin Laden, que foi identificada na colagem de Ignácio; • Para os produtores do programa Vila Sésamo, a leitura foi interpretada um caráter subjetivo, por terem uma relação próxima ao Beto, além disso, a imagem veio em sinal de ofensa ao seu programa e ao seu país. Nesse contexto, também pode-se entender a imagem pelo sentido conotativo, já que a subjetividade da interpretação é erguida pela relação de proximidade. Portanto, uma mesma imagem pode gerar diferentes sentidos e interpretações. Seja por fatores de experiências pessoais, coletivas, contexto em que ela é exposta, processo de leitura ou pela mensagem verbal que a acompanha (subtítulo ou um título que a batize), parte da percepção também se deve aos elementos externos à imagem, que a complementam e conduzem o leitor a assentar os pensamentos em algo já predeterminado. São os chamados elementos de significação, que, quando atreladosa alguma imagem, induzem o leitor a decodificar a mensagem. Assim, a construção de uma fotografia começa nas escolhas do fotógrafo: entre a objetividade e a subjetividade, a apreciação estética e a decodificação sígnica, a objetiva grande angular e a teleobjetiva, as cores primárias e os tons variantes do preto e do branco, a profundidade de campo e os planos nítidos, o enquadramento e a escolha do momento de apertar o botão do click etc. Após essas escolhas, nasce a imagem com um universo de mensagens que os leitores poderão absorver, em cada traço desenhado pela luz. Não se pode esperar da imagem uma interpretação única: é o leitor quem identifica os signos de acordo com suas peculiaridades culturais e quem lhe confere o sentido final. Saiba mais Veja este caso que exemplifica como a fotografia é feita de escolhas. Disponível em: <https://catracalivre.com.br/geral/dica-digital/indicacao/foto-de-dilma-transpassada-por- espada-vence-premio-internacional/>. Acesso em: 10 dez. 2019. TEMA 4 – AFINAL, O QUE É FOTOGRAFIA? Família reunida e todos se apertam para caber na foto. Até que alguém grita: “Olha o passarinho!”. Embora quase sempre não haja um pássaro à volta, sem questionar, os posantes da foto param, não falam, mal respiram, segurando o sorriso, por vezes forçado, até o fotógrafo apertar o botão. Feita a foto, todos voltam a relaxar, como se estivessem tirando um sapato apertado, e caminhando novamente com os pés descalços, livres, pisando no chão. Diante desse corriqueiro cenário fotográfico, surgem as perguntas: • De onde veio a expressão Olha o passarinho? • Por que ficamos tão sem graça, desajeitados, diante da câmera fotográfica? • E, afinal, o que é fotografia? A primeira pergunta, talvez, seja a mais fácil de ser respondida. Segundo Ari Riboldi, autor do livro O bode expiatório, as primeiras câmeras exigiam muito tempo para capturar a imagem, por isso, os retratistas (assim eram chamados os fotógrafos da época) precisavam executar algumas artimanhas para prender a atenção dos retratados. Para isso, muitos colocavam uma gaiola com um pássaro próximo da câmera para distrair os modelos, que fixavam seu olhar na ave engaiolada. Fonte: <yuriedmundo.com>. E por que ficamos desajeitados na frente da câmera? O que ela pode revelar? Em apenas um click a fotografia circunscreve um traço do tempo e do espaço de uma realidade. Mas, para que isso aconteça, é preciso olhar para o equipamento que registre esse momento. Assim, como defende Boris Kossoy (1999), a fotografia é provida de uma segunda realidade. O vestígio fotográfico tem seus espaços de tempo: o passado que existiu, já que o click transforma em fotografia o que aconteceu; o presente, que se dá no ato fotográfico; e o futuro, já que a fotografia servirá de memória para os que virão a vê-la, a posteriori. É no futuro que a lembrança estará guardada, para ser revivida. Se no folclore os espelhos são amaldiçoados, para alguns povos a fotografia era dotada do mesmo poder. Algumas tribos indígenas acreditavam que se tivessem sua imagem capturada por um equipamento, teriam suas almas aprisionadas. Parece loucura ou ignorância, mas eles não estavam completamente errados. Não que o ato fotográfico esteja incutido desse poder assombroso, mas, ao ver uma imagem, automaticamente refletimos a energia daquilo que vemos. Isso se dá por meio da memória, ativada pelos olhos que tocam a imagem, que, por sua vez, desperta sentimentos, o que nos faz vibrar e emanar energia. Em rituais religiosos, por exemplo, é comum que pessoas levem retratos de entes, para que a pessoa receba graças, mesmo estando ausente. A foto age, assim, como substituta do corpo. Uma curiosidade, ao menos aos olhos contemporâneos, são as fotos post- mortem. Esse tipo de foto era feita na tentativa de preservar a imagem do morto. Como os retratos eram caros para a época, e as pessoas tinham baixa expectativa de vida, muitos retratos eram feitos logo após a morte do familiar, uma última lembrança, incorporada ao não esquecimento. Feitas em cenários e locações em que os modelos tinham vestimentas apropriadas a festas e eventos sociais, com uma maquiagem impecável, havia a tentativa de simular uma cena de seu cotidiano. Na fotografia a seguir, todas as pessoas que aparecem na imagem estão mortas. Atente para a personagem ao centro, que tem seu rosto virado para trás, por estar deformada – uma forma de mantê-la na memória, sem a pálida lembrança da morte. Fonte: <www.alemdaimaginacao.com>. Saiba mais Quer saber mais sobre as fotos post-mortem? Acesse a reportagem disponível no link a seguir. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/geral-36461785>. Até hoje, as fotos são acionadoras da lembrança, por isso, são ilusórias. Elas não traduzem a realidade em absoluto, mas sua representação, dependendo de como a memória guardou afetivamente aquele referente. Portanto, as fotografias são mais fortes que qualquer interpretação de racionalidade, pois ativam as emoções das pessoas. Veja, a seguir, o que escritora Susan Sontag diz sobre esse contexto. Somos mais vulneráveis aos acontecimentos que nos inquietam sob a forma de imagens fotográficas do que sob a forma de fatos reais. [...] uma vez que somos espectadores (passivos) de acontecimentos já configurados. (Sontag, 1983, p. 161-162) Quando a "ilusão" se completa na mente do leitor, este tem a sensação de assistir a um recorte imprevisível, dotado do sentimento de "realidade". Embora ressalte o caráter simbólico da mensagem, a fotografia só obtém êxito porque nela o leitor é cercado pelo sentimento de realidade acima de qualquer suspeita. E é sobre esse indício que se passam os códigos. A racionalidade é posta somente depois de aceitar a realidade do que se vê. O real na sua verdade é sempre algo inatingível, mas, em menor ou maior medida, sempre aproximável pela mediação do signo. É nessa aproximação que reside nossa responsabilidade ética com a linguagem. (Santaella, 1996, p. 64) Atualmente, a velocidade da informática desvaloriza o "estar" no espaço sensível. Quando Elliot Erwitt afirma que "a fotografia nos leva a lugares a que não pertencemos", refere-se ao prazer resultante do fato de o leitor vivenciar os temas da fotografia, não somente ela. TROCANDO IDEIAS A fotografia é efeito do deslumbramento do homem frente às imagens do mundo, uma forma de concretizar aquilo que se vê. É o vestígio, marcado com luz, que até hoje torna a fotografia desconcertante, irradiadora de memória. É a percepção visual do que se vê, mas, principalmente, do que se olha na contemplação dos elementos do mundo. E por esta arte possuir o dote de refletir a aparência das coisas, surge sua capacidade de reproduzir, recortar, recordar e reviver. Agora, procure refletir: para você, o que é fotografia? NA PRÁTICA Assista ao filme Repórteres de guerra (The Bang Bang Club, 2010) baseado no livro biográfico The Bang-Bang Club: Snapshots from a Hidden War. Identifique quais questões são tratadas sobre a fotografia clicada por Kevin Carter, no Sudão. FINALIZANDO Não se pode obter uma única interpretação de uma imagem: cabe ao leitor olhá- la e interpretá-la. Assim como na leitura de um conto, toda imagem se revela com uma discrepância: cada um vê e lê uma mensagem distinta, ainda que vinda do mesmo referente. Contudo, por bastante tempo, creditou-se à fotografia o peso de registro do real, tanto que, em 1839, o jornalista Jules Janin (apud Rouillé, 2009, p. 69) usou a metáfora do reflexo para definir o daguerreótipo, que conservava a impressão dos objetos. Nessa concepção objetivista, a realidade vista como algo material e a verdade estaria contida nos objetos visíveis. Sendo assim, o que consta na fotografia seria algo que de fato existiu e a imagem seria otestemunho desse fenômeno. Mas de onde teriam surgido a certeza e a exatidão da fotografia com o objeto? Com a introdução da câmara escura e o processo fotográfico ser objetivo, químico e físico, renovou-se o procedimento do verdadeiro na imagem (que antes era exclusivamente manipulado pelos pintores). Por isso, a fotografia começou a ser vista como um registro daquilo que a pintura ainda não havia conseguido realizar perfeitamente. Essa característica imperialista seria o princípio da confusão entre a possibilidade e a essência da fotografia. François Soulages diz que a partir de diferentes formas de se construir e ler uma fotografia, pode-se gerar diversos significados, dependendo das condições do espectador, da contextualização ou da manipulação dos signos por meio de sua constituição. Olhar uma foto é estar diante de uma tomada de ilusão ao seu referente, de uma segunda realidade. Não é uma forma de assemelhar-se ao visível, mas de tornar visível algum fenômeno relembrado, associado, percebido e interpretado. REFERÊNCIAS ACORSI, R.; BONI, P. C. A margem de interpretação e a geração de sentido no fotojornalismo. 2006. Disponível em: <https://casperlibero.edu.br/wp- content/uploads/2014/05/A-margem-de-intepreta%C3%A7%C3%A3o-e-a- gera%C3%A7%C3%A3o-de-sentido-no-fotojornalismo.pdf>. Acesso em: 10 dez. 2019. JENKINS, H. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009. MARINOVICH, G.; SILVA, J. O clube do bangue-bangue: instantâneos de uma guerra oculta. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. ROUILLÉ, A. A fotografia: entre documento e arte contemporânea. Tradução de Constância Egrejas. São Paulo: Editora Senac, 2009. SOULAGES, F. Estética da fotografia: perda e permanência. Tradução de Iraci D. Poleti e Regina S. Campos. São Paulo: Editora São Paulo, 2010.
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