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2019 - Apostila 1 - Cronica

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UNI-BH 
Curso de Jornalismo
Laboratório de Jornalismo Especializado 
Jornalismo Cultural
Prof. Leo Cunha 
Apostila de Crônica
SUMÁRIO							
						
Textos sobre Crônica						03
Crônicas diversas							11
 
Bibliografia Complementar
SÁ, Jorge de. A crônica. 3 ed. São Paulo: Ática, 1987.
OBS 1 – Trabalhos entregues com 1 aula de atraso valem 20% a menos. Com 2 aulas de atraso, 50% a menos. Depois disso não serão aceitos.
OBS 2 – As avaliações não podem ser entregues com atraso. 
OBS 3 – Qualquer plágio encontrado nos trabalhos e avaliações (mesmo que seja uma frase) implicará em NOTA ZERO.
A crônica no jornalismo luso-brasileiro[footnoteRef:1] [1: - Trecho do artigo “A crônica”, publicado no livro Jornalismo e Literatura – actas do II Encontro Afro-Luso –Brasileiro. Lisboa: Editora Vega] 
José Marques de Melo
O lugar da crônica no jornalismo luso-brasileiro é o das páginas de opinião. Sua feição assemelha-se ao editorial, ao artigo e ao comentário, distinguindo-se, portanto da notícia e da reportagem.
Isso não significa que a nossa crônica esteja dissociada do cotidiano, do contemporâneo. Ao contrário, sua motivação principal é o conjunto dos fatos que o jornal acolhe em suas páginas e colunas. Só que ela não os reconstitui, sua função é a de apreender-lhes o significado, ironizá-los ou vislumbrar a dimensão poética não explicitada pela teia jornalística convencional.
A crônica, na imprensa brasileira e portuguesa, é um gênero jornalístico opinativo, situado na fronteira entre a informação de atualidades e a narração literária, configurando-se como um relato poético do real.
Em trabalho anterior, tivemos a chance de demonstrar a natureza essencialmente jornalística desse gênero da comunicação de massa. 
“Produto do jornal, porque dele depende para a sua expressão pública, vinculada à atualidade, porque se nutre, os fatos do cotidiano, a crônica preenche as três condições issenciais de qualquer manifestação jornalística: atualidade, oportunidade e difusão coletiva. Contudo, a crônica não se estringe ao jornal diário. Ela encontra abrigo nos semanários, especialmente nas revistas de informação geral. E também no rádio. Se bem que a crônica radiofônica, ainda cultivada nas pequenas emissoras das cidades do interior, permanece cingida à estrutura da crônica para o jornal: trata-se de um texto escrito para ser lido, cuja emissão combina a entonação do locutor e os recursos da sonoplastia, criando ambientação especial para sensibilizar o ouvinte.”[footnoteRef:2] [2: - MARQUES DE MELO, José. A opinião no jornalismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1985, p 118.] 
Para Luiz Beltrão, principal teórico e analista do Jornalismo Brasileiro, a crônica evoluiu de um gênero voltado para reconstituir os acontecimentos na aparência, assumindo a fisionomia da análise sutil e graciosa da essência. "Em sua origem, era um gênero histórico. Evoluindo, vestiu roupagem semântica diferente: englobou à narração o comentário; deixou de parte o rigor temporal (o que passa) da atualidade para fixar-se no seu rigor filosófico (o que atua)”. Por isso, ela a define como “forma de expressão do jornalista-escritor para transmitir a leitor seu juízo sobre fatos, idéias e estados psicológicos pessoais e coletivos”[footnoteRef:3]. [3: - BELTRÃO, Luiz. Jornalismo opinativo. Porto Alegre: Sulina, 1980, p. 67.] 
O que distingue plenamente a crônica dos demais gêneros opinativos é o “acento lírico” que Afrânio Coutinho identifica nas suas primeiras manifestações na grande imprensa brasileira do século XIX. 
“Quem percorrer os jornais desse período observará que, no seu bojo, atenuando as exuberâncias da paixão política, insinuava-se algo que tinha principalmente um objetivo: entreter. Era a crônica, destinada a condimentar de maneira suave a informação de certos fatos da semana ou do mês, tornando-a assimilável a todos os paladares. Quase sempre visava sobretudo o mundo feminino, criando, em consequência, um ambiente de finura e civilidade, na imprensa, que exerceu sensível efeito sobre o progresso e o refinamento da vida social brasileira.”[footnoteRef:4] [4: - COUTINHO, Afrânio. Ensaio e crônica. In: A literatura no Brasil, vol 6. Ed. Sul-americana, 1971, p. 110-111.] 
Apesar do seu florescimento no século passado e do seu cultivo por jornalistas-escritores do porte de Machado de Assis e José de Alencar, a crônica brasileira somente assumiria aquela feição de gênero tipicamente nacional (que lhe atribui Paulo Ronai), na década de 30 deste século. É António Cândido quem sugere seu marco histórico: 
“Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou o Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número rescente de escritores e jornalistas, com os seus rotineiros e s seus mestres. Nos anos 30 se afirmara Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de certo modo seria o cronista, voltado de maneira Iraticamente exclusiva para este gênero: Rubem Braga”.[footnoteRef:5] [5: CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: Para gostar de ler, vol V. São Paulo: Ática, 1980.] 
Assim sendo, a crônica brasileira apresenta duas fases bem definidas: a crônica de costume - que se valia dos fatos cotidianos como fonte ,de inspiração para um relato poético ou uma descrição literária - e a crônica moderna - que figura no corpo do jornal não como objeto estranho, mas como matéria inteiramente ligada ao espírito da edição noticiosa. Cronistas como Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Luís Martins, Fernando Goes, Raquel de Queiroz, Eneida, Loureiro Diaféria produzem textos que giram permanentemente em torno da atualidade, captando com argúcia e sensibilidade o dinamismo da notícia que permeia toda a produção jornalística.
Ademais do lirismo que o cronista empresta ao resgate de nuances do cotidiano, sua matéria contém ingredientes de crítica social, donde o seu caráter nitidamente opinativo. É o palpite descompromissado do cronista, fazendo da notícia do jornal o seu ponto de partida, que dá ao leitor a dimensão sutil dos acontecimentos nem sempre revelada claramente pelos repórteres ou pelos articulistas. Daí o fascínio que a crônica exerce em relação ao público leitor, constituindo um gênero que permanece cultivado e sempre renovado no Brasil. 
Mas não se trata de um gênero exclusivamente brasileiro. A literatura portuguesa do Jornalismo registra a sua existência na imprensa periódica e mostra a correspondência de interesse que encontra junto aos leitores. 
Victor Silva Lopes descreve a crônica portugesa com matiz semelhante à crônica brasileira. “A crónica é um pequeno texto narrativo que se ocupa de um episódio (às vezes, banal ou insólito) do quotidiano. O cronista prevalece o comentário, numa linguag~m expressiva, por vezes poética, mas simples e clara”. Demonstra também como se trata de um gênero opinativo. “A crónica permite uma interpretação subjectiva da realidade e, frequentemente, faculta ao seu autor a possibilidade de revelar seus ideais. ( ... ) Q autor da crónica termina geralmente com uma conclusão. A ironia, o humor ou a dureza do tema são formas geralmente escolhidas para rematar uma crónica. Aliás, o cronista num jornal procura observar a realidade (sem muitas das vezes se servir da entrevista), julga-a e procura extrair um comportamento social”[footnoteRef:6]. [6: - LOPES, Victor Silva. Iniciação ao jornalismo. Lisboa, CLB, 1981, p. 103.] 
A opinião contida na crônica deve ter, segundo Nuno Rocha, uma função educativa. Eis a concepção que êle apresenta desse gênero jornalístico. 
“A crónica não pode ser vazia, não pode ser sem destino, tem de ter destino, com indicação expressa das pessoas a quem se dirige, e contendo para elas algumas soluções. O cronista deve registar também o mundo em que ele vive e a vida que ele vive. (...) Dentro dessa idéia, a crónica deve ter também um sentido explicativo, mostrando o talento do cronista, desde a ironia, desde a astúcia, dando a explicação dos fenómenos que estão a ocorrer no momento,e lembrando ao leitor outras formas de encarar os fenómenos, de encaixar os fenómenos, outras formas de conhecer a vida. As funções, portanto, que a crónica deve preencher são essencialmente pedagógicas, de esclarecimento e orientação”[footnoteRef:7]. [7: - ROCHA, Nuno. Editorial, crónica e funções do Diretor. In: PRAÇA, José. Jornalismo ao vivo. Lisboa: Encomendi, p.122-123.] 
Outra não é a postura que assumem Letria e Goulão, não obstante eles realcem a dimensão literária, ficcional, da crônica. “Este género jornalístico é o que mais contactos tem com os géneros literários clássicos. Os factos são, portanto, um pretexto para o autor da crónica. A partir daí ele dá vazão aos seus sentimentos e, com absoluta legitimidade, pode entrar no domfnio da ficção. A associação de idéias, o jogo de palavras e conceitos, as contraposições, misturam o real e o imaginário como forma de fazer realçar o primeiro”. Eles concluem, assinalando a influência que possui a crônica na formação de correntes de opinião. “As crônicas aligeiram os jornais, muitas vezes sobrecarregadas com factos. Se a reportagem reproduz a vivência pessoal do jornalista, a crônica transmite a reacção pessoal, com a qual muitas vezes os leitores se identificam, através do humor, da ironia, do elogio emocionado, de todas as formas de sentimentos”[footnoteRef:8]. [8: -LETRIA, José Jorge e GOLÃO, José. Noções de jornalismo. Lisboa: Horizonte, 1982, p.85-86.] 
Essa proximidade da crônica em relação à literatura nem sempre lhe confere o mesmo status dos gêneros literários como o romance, o conto ou o poema. Tanto assim que Antônio Cândido não hesita em dizer que a crônica é a literatura ao "rés-do-chão", um "gênero literário menor". Tal avaliação não significa a desvalorização da crônica, mas consiste na identificação do seu perfil singular, o de um gênero eminentemente jornalístico, que se caracteriza pela ligeireza, pela .superficialidade, pela simplicidade, pelo coloquialismo. E também pela efemeridade. 
Captando esse traço peculiar da crônica luso-brasileira, Jorge de Sá esboça um perfil estilístico convicente, ressaltando a sua natureza de gênero jornalístico. 
“A aparência de simplicidade, portanto, não quer dizer desconhecimento das artimanhas artísticas. Ela decorre do fato de que a crônica surge primeiro no jornal, herdando a sua precaridade, esse seu lado efêmero de quem nasce no começo de uma leitura e morre antes que se acabe o dia, no instante em que o leitor transforma as páginas em papel de embrulho, ou guarda os recortes que mais lhe interessam num arquivo pessoal. O jornal, portanto, nasce, envelhece e morre a cada 24 horas. Nesse contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se inicialmente a leitores apressados, que lêem nos pequenos intervalos da luta diária, no transporte ou raro momento de trégua que a televisão lhes permite. Sua elaboração também se prende a essa urgência: o cronista dispõe de pouco tempo para datilografar o seu texto, criando-o, muitas vezes, na sala enfumaçada de uma redação. Mesmo quando trabalha no conforto e no silêncio da sua casa, ele é premido pela correria com que se faz um jornal, o que acontece mesmo com os suplementos semanais, sempre diagramados com antecedência. À pressa de escrever, junta-se a de viver. Os acontecimentos são extremamente rápidos, e o cronista precisa de um ritmo ágil para poder acompanhá-los. Por isso a sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais próxima da conversa entre dois amigos do que propriamente do texto escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ela não perde de vista o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado”[footnoteRef:9]. [9: SÁ, Jorge de Sá. A crônica. São Paulo: Ática, p. 10-11.] 
Conclusão 
O confronto realizado entre a cromca no Jornalismo Hispano-Americano e no Jornalismo Luso-Brasileiro demonstra, a partir das sistematizações e reflexões contidas nas respectivas bibliografias sobre Jornalismo, que existe um contraste na sua caracterização como gênero jornalístico. Na imprensa hispano-americana a crônica situa-se entre os gêneros informativos, confluindo com a notícia e a reportagem, enquanto na imprensa luso-brasileira ocupa um lugar no conjunto dos gêneros opinativos, aproximando-se mais do editorial, do artigo e do comentário. 
Tal comparação não pode evidentemente ser absolutizada, porque se funda apenas na configuração desse gênero na literatura acadêmica e profissional, faltando uma confrontação com as matérias que se publicam sob essa rubrica na imprensa dos dois blocos geo-culturais. De qualquer maneira, as evidências coligidas na bibliografia permitem afirmar que predomina uma defasagem na caracterização desse gênero jornalístico, ainda que possam ocorrer certas afinidades residuais. Seria o caso de mencionarmos como variante da crônica espanhola a croniquilia, cujo perfil estilístico a identifica de algum modo com a crônica luso-brasileira. Ou ainda, destacarmos que a terminologia jornalística brasileira abrigou, antes da influência que recebemos do jornalismo norte-americano, o uso do termo crônica como sinônimo da reportagem setorial, tal como ocorre na Espanha e no Peru. 
No entanto, o referencial disponível na teoria jornalística é suficiente para construirmos a hipótese da diferenciação da crônica enquanto gênero jornalístico, tanto no que se refere à sua vinculação às categorias funcionais do Jornalismo (informação e opinião), quanto no que diz respeito à estrutura redacional dos textos produzidos sob aquela denominação na imprensa dos países de fala espanhola e portuguesa da Europa e da América. 
Conviria também aduzir uma percepção que emerge da leitura e análise dos manuais e tratados jornalísticos dos dois segmentos geoculturais. Como a crônica tem sua origem na História e na Literatura, e como os textos vinculados a essas duas disciplinas guardam especificidades funcionais e estilísticas, é plausível aventar que a crônica hispano-americana tem raízes fincadas na crônica histórica (cumprindo portanto o papel de narração dos acontecimentos presenciados pelos repórteres-cronistas), diferentemente da crônica luso-brasileira, cuja ancoragem está na crônica literária (pois os cronistas-jornalistas atuam como entretenedores públicos, recorrendo aos artifícios poéticos e ficcionais para minorar as agruras do dia-a-dia, deliciando os leitores com a frivolidade que não exclui absolutamente a crítica social). 
O frívolo cronista (Carlos Drummond de Andrade)
16
Um leitor de Mato Grosso escreve deplorando a frivolidade que é marca registrada desta coluna. Hoje não estou para brincadeira, e retruco-lhe nada menos que com a palavra de um sábio antigo, reproduzida por Goethe em Italianische Reisen. Vai o título em alemão, para maior força do enunciado. Os que não sabemos alemão temos o maior respeito por essa língua. A frase é esta, em português trivial: "Quem não se sentir com tutano suficiente para o necessário e útil, que se reserve em boa hora para o desnecessário e inútil". É o que faço, respaldado pela sentença de um mestre, endossada por outro.
E vou mais longe. O inútil tem sua forma particular de utilidade. É a pausa, o descanso, o refrigério, no desmedido afã de racionalizar todos os atos de nossa vida (e a do próximo) sob o critério exclusivo de eficiência, produtividade, rentabilidade e tal e coisa. Tão compensatória é essa pausa que o inútil acaba por se tornar da maior utilidade, exagero que não hesito em combater, como nocivo ao equilíbrio moral. Não devemos cultivar o ócio ou a frivolidade como valores utilitários de contrapeso, mas pelo simples e puro deleite de fruí-los também como expressões de vida.
No caso mínimo da crônica, o auto-reconhecimento da minha ineficácia social de cronista deixa-me perfeitamente tranqüilo. O jornal não me chamou para esclarecer problemas, orientar leitores, advertir governantes,pressionar o Poder Legislativo, ditar normas aos senhores do mundo. O jornal sabia-me incompetente para o desempenho destas altas missões. Contratou-me, e não vejo erro nisto, por minha incompetência e desembaraço em exercê-la.
De fato, tenho certa prática em frivoleiras matutinas, a serem consumidas com o primeiro café. Este café costuma ser amargo, pois sobre ele desabam todas as aflições do mundo, em 54 páginas ou mais. É preciso que no meio dessa catadupa de desastres venha de roldão alguma coisa insignificante em si, mas que adquira significado pelo contraste com a monstruosidade dos desastres. Pode ser um pé de chinelo, uma pétala de flor, duas conchinhas da praia, o salto de um gafanhoto, uma caricatura, o rebolado da corista, o assobio do rapaz da lavanderia. Pode ser um verso, que não seja épico ; uma citação literária, isenta de pedantismo ou fingindo de pedante, mas brincando com a erudição; uma receita de doce incomível, em que figurem cantabiles de Haydn misturados com aletria e orvalho da floresta da Tijuca. Pode ser tanta coisa ! Sem dosagem certa. Nunca porém em doses cavalares. Respeitemos e amemos esse nobre animal, evitando o excesso de graça. Até a frivolidade carece ter medida, linha sutil que medeia entre o sorriso e o tédio pelo excesso de tintas ou pela repetição do efeito.
Não pretendo fazer aqui a apologia do cronista, em proveito próprio. Reivindico apenas o seu direito ao espaço descompromissado, onde o jogo não visa ao triunfo, à reputação, à medalha; o jogo esgota-se em si, para recomeçar no dia seguinte, sem obrigação de seqüência. A informação apurada, correta, a análise de fenômenos sociais, a avaliação crítica, tarefas essenciais do jornal digno deste nome, não invalidam a presença de um canto de página que tem alguma coisa de ilha visitável, sem acomodações de residência. Como você tem em sua casa um cômodo ou parte de cômodo, ou simplesmente gaveta, ou menos ainda, caixa de plástico ou papelão, onde guarda pequeninas coisas sem utilidade aparente, mas em que os dedos e os olhos gostam de reparar de vez em quando: os nadas de uma existência atulhada de objetos imprescindíveis e, ao cabo, indiferentes, quando não fatigantes.
Meu leitor (ou ex-leitor) mato-grossense-do-norte (sic), não me queira mal porque não alimento a sua fome de conceitos graves, eu que me cansei de gravidade, espontânea ou imposta, e pratico o meu número sem pretensão de contribuir para o restauro do mundo. O sábio citado por Goethe me justifica, absolve e até premia. Eu disse no começo que não estou para brincadeira? Mentira; foi outra frivolidade.
Ciao.
A CRÔNICA E O CONTO (Ricardo Sérgio)
 
Onde termina a "crônica" e começa o "conto"? Esse é o questionamento que, não raro, tenho visto. Com efeito, muitas vezes a crônica confunde-se com o conto. Mas, que fique bem entendido, não é qualquer crônica que se assemelha ao conto. Quando a crônica recebe um tratamento literário em relação ao texto jornalístico, como o uso de várias figuras de linguagem, quando um pequeno enredo é desenvolvido, principalmente com diálogo; é que ela traça fronteiras muito próximas do conto. Tão próxima, que muitas vezes, é difícil estabelecer uma linha divisória. No entanto, podemos enumerar algumas características da crônica que podem ser confrontadas com as do conto.
Personagens
Enquanto o contista mergulha de ponta-cabeça na construção da personagem, o cronista age de maneira mais solta. As personagens não têm descrição psicológica profunda; são levemente caracterizadas (uma ou duas características), suficientes para compor seus traços genéricos, com os quais, qualquer pessoa pode se identificar: Fulano é distraído, Beltrano é mau-caráter e nacionalista xenófobo (que tem aversão a estrangeiros). Em geral, as personagens não têm nomes: é a moça, o menino, a velha, o senador, a mulher, a dona de casa. Ou, se têm, são nomes comuns, como: dona Nena, seu Chiquinho, seu Bonifácio, para só citar esses nomes. Às vezes, o cronista cria personagens, mas sempre a partir de uma matriz real, isto é, pessoas reais que se tornam personagens.
Narrador
Enquanto no conto o narrador (protagonista ou observador) é um personagem. Na crônica, o cronista sequer tem a preocupação de colocar-se na pele de um narrador-personagem ou observador.  Assim, quem narra uma crônica é o seu autor mesmo; pois, o cronista parte de experiências próprias, de fatos que testemunhou (com certo envolvimento) ou dos quais participou:
Diz que era um menino de uma precocidade extraordinária e vai daí a gente percebe logo que o menino era um chato, pois não existe nada mais chato que menino precoce e velho assanhado. Mas deixemos de filosofias e narremos; diz que o menino era tão precoce que nasceu falando. (...). (PORTO, Sérgio; O Menino Precoce; in: Garoto Linha Dura)
 Por isso, a crônica tem, quase sempre, um caráter confessional, autobiográfico. Em alguns casos a narrativa é feita na terceira pessoa através de pessoas reais que se tornam personagens envolvidas em acontecimentos reais. 
O Assunto
O assunto de uma crônica é sempre resultado daquilo que o cronista colhe em suas conversas; das frases que ouve; das pessoas que observa; das situações que registra; dos flagrantes de esquina; dos fatos do noticiário; dos incidentes domésticos e coisas que acontecem nas ruas. Portanto, o assunto da crônica, geralmente, está centrado em uma experiência pessoal. Ao passo que o conto, não raro, é produto da imaginação, da ficção.
O cronista pode numa mesma crônica abordar diversos assuntos, desde que estes estejam ligados entre si por uma mesma linha de raciocínio.
O Desfecho
No conto há um conflito e, geralmente, um desfecho para ele. Como a finalidade da crônica é analisar as circunstâncias de um fato e não concluí-lo, o desfecho é, praticamente, inexistente.
"Vamos supor que você surpreenda um garoto pobre tremendo de frio e olhado fixamente para um pulôver novinho na vitrina duma loja. Ora, isso dá uma excelente crônica. Você relataria o flash, a cena em si, mas não o desfecho: o menino comprou ou não o pulôver? Nada disso. Acabando de "pintar" o quadro, terminaria o texto, deixando ao leitor a tarefa de refletir sobre a miséria, a fome, a má distribuição de renda, a injustiça social etc. É essa, muita vezes, a finalidade da crônica e a intenção do cronista. Seu texto não tem resolução, não tem moralcomo na fábula, é aberto para que cada leitor crie o final que melhor desejar. O cronista, no fundo, deseja que seu leitor seja um coautor.” (ASESBP, Associação dos Escritores de Bragança Paulista)
A Linguagem
O cronista procura trazer para suas crônicas a oralidade das ruas, isto é, ser oral no escrito. Daí ser predominante nas crônicas a linguagem coloquial e até popular, para introduzir um linguajar de bate-papo (do botequim, da esquina), de conversa-fiada; todos carregados de gírias.
"[...], pois o artista que deseje cumprir sua função primordial de antena do seu povo, captando tudo aquilo que nós outros não estamos aparelhados para depreender, terá que explorar as potencialidades da língua; buscando uma construção frasal que provoque significações várias (mas não gratuitas ou ocasionais), descortinando para o público uma paisagem até então obscurecida ou ignorada por completo." (SÁ, Jorge de. A crônica. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios)
O Diálogo
É a presença do diálogo na crônica, que faz com que ela se aproxime do conto. Mas, na crônica, o diálogo é forma de interação, que cria uma importante cumplicidade com o leitor, principalmente, através de perguntas lançadas ao ar; ou então, para manter um formato que se aproxime do bate-papo, sua característica marcante:
[...] parado às seis e meia da tarde na esquina das Avenidas Montagne com Champs Elysées, na certeza de que não encontraria um táxi, disse para o operador de rádio de uma emissora carioca que estava comigo: "O jeito é a gente ir de metrô".
E ele: "Comigo não, velhinho. Trem em cima da terra já dá bronca, não sou eu que entro num trem que corre num buraco". (PORTO, Sérgio; Cartão-postal;in: Rosamundo e os outros)
Conclusão
A crônica tem, hoje, uma linguagem própria, um espaço definido e independente - no jornal ou em qualquer outro veículo de comunicação. Não é superior ou inferior ao conto (como é classificada por alguns críticos).
 "A crônica não é um ‘gênero maior’ [...] ‘Graças a Deus’, - seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para a vida, que ela serve de perto, mas para a literatura (...)." (CANDIDO, Antonio. Prefácio Para Gostar de Ler. São Paulo: Ática, 1980.)
Ela é literatura graças ao trabalho consciente dos cronistas-escritores, que fizeram e fazem de seu ofício uma profissão de fé.
Machado de Assis, Olavo Bilac, Humberto Campos, Raquel de Queirós ou Rachel de Queiroz, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Rubens Braga, Paulo Mendes, Paulo Francis, Arnaldo Jabor, Érico Veríssimo e tantos outros, cultivaram-na ou cultivam-na com peculiar engenhosidade, criatividade e assiduidade.  
Ricardo Sérgio, 2007.
			 Afonso Romano de Sant’anna 	
O exercício da crônica 
Vinícius de Moraes
O cronista trabalha com um instrumento de grande divulgação, influência e prestígio, que é a palavra impressa. Um jornal, por menos que seja, é um veículo de idéias que são lidas, meditadas e observadas por uma determinada corrente de pensamento formada à sua volta. 
Um jornal é um pouco como um organismo humano. Se o editorial é o cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os pulmões; o artigo de fundo, o fígado; e as seções, o aparelho digestivo - a crônica é o seu coração. A crônica é matéria tácita de leitura, que desafoga o leitor da tensão do jornal e lhe estimula um pouco a função do sonho e uma certa disponibilidade dentro de um cotidiano quase sempre "muito lido, muito visto, muito conhecido", como diria o poeta Rimbaud. 
Daí a seriedade do oficio do cronista e a freqüência com que ele, sob a pressão de sua tirania diária, aplica-lhe balões de oxigênio. Os melhores cronistas do mundo, que foram os do século XVIII, na Inglaterra - os chamados essayists - praticaram o essay, isto de onde viria a sair a crônica moderna, com um zelo artesanal tão proficiente quanto o de um bom carpinteiro ou relojoeiro. Libertados da noção exclusivamente moral do primitivo essay, os oitocentistas ingleses deram à crônica suas primeiras lições de liberdade, casualidade e lirismo, sem perda do valor formal e da objetividade. Addison, Stecle, Goldsmith e sobretudo Hazlitt e Lamb - estes os dois maiores - fizeram da crônica, como um bom mestre carpinteiro o faria com uma cadeira, um objeto leve mas sólido, sentável por pessoas gordas ou magras. 
Do último, a crônica "O convalescente" serviria bem para ilustrar o estado de espírito maníaco - lírico - depressivo do cronista de hoje, inteiramente entregue ao egoísmo de sua doença e à constante consideração de sua pessoinha, isolado no seu mundo de cortinas corridas, a lamber complacentemente as próprias feridas diante de um espelho pessimista. 
Num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer em ser também ele um doente; em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo sofrimento fisico; na falta de segurança e objetividade dos enfraquecidos por excessos de cama e carência de exercícios. Sua obrigação é ser leve, nunca vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua crônica é um copo d'água em que todos bebem, e a água há que ser fresca, limpa, luminosa para a satisfação real dos que nela matam a sede. 
Num momento em que o grande mal de grande parte do mundo é o entreguismo, a timidez e a franca covardia, o exercício da crônica reticente, da crônica vaga, da crônica temperamental, da crônica ególatra, da crônica à clef, da crônica da cartola - é um crime tão grande quanto o de se vender, em época de epidemia, um antibiótico adulterado. A restauração da crônica, no espírito da dignidade com que a praticaram os essayists ingleses do século XVIII, deveria constituir matéria de funda meditação por parte de seus cultores no Brasil.
A crônica como gênero e como antijornalismo (Carlos Heitor Cony, FSP)
"A crônica só é gênero menor em termos de literatura. Admite-se como inabalável a certeza de que a literatura tende a ser perene, intemporal. Não faltam teóricos para garantir que a arte, nela incluindo a arte literária, existe para superar a morte. E, se a literatura busca a infinitude, a crônica é crônica mesmo, expressão de finitude. É temporal, fatiada da realidade e desvinculada do tempo maior que é o da literatura como arte.
Mas daí não se deve concluir que ela seja uma defunta. Dizem que se trata de produto típico do jornalismo brasileiro, mas não exclusivo. Sendo por definição um texto datado, tem fases, sacrifica-se a modismos, mas, devido à elegância ou habilidade de seus cultores, consegue sobreviver em diferentes manifestações pleonasticamente crônicas: como gênero (crônica) e como vinculada a um tempo (crônica também).
Temos a crônica esportiva, a social, a policial, a política, a econômica. Elas se diferenciam do "artigo" porque é basicamente centrada num eixo permanente: o "eu" do autor. Daí que o gênero é romântico por definição e necessidade.
O artigo procura a objetividade, a clareza, o raciocínio, o desdobramento de premissas e uma conclusão. Baseia-se na fonte de informação cultural ou factual, expressa-se numa linguagem apropriada para ser uma coisa e outra, ou seja, objetiva e informativa.
Já a crônica, gravitando em torno dos mesmos segmentos (política, esporte, economia, polícia, sociedade etc.) tem menos ou nenhum compromisso com a objetividade ou a informação. Sua validade (nunca a necessidade) dependerá da qualidade do texto em si. Há cronistas esportivos de excelente texto (Mário Filho e Nelson Rodrigues no passado, Armando Nogueira hoje), como há bons cronistas em cada um desses nichos jornalísticos.
Evidente que, entre os segmentos citados, tem destaque a literatura, daí resultando que a crônica literária tem um núcleo afim ao do romance, do conto e da poesia. Foi nele que tiveram glória Humberto de Campos e Rubem Braga, para citar um antigo e um mais recente. Mas o maior de todos é mesmo Machado de Assis, que fazia uma crônica bastante eclética, pulando de um nicho ao outro e, muitas vezes, absorvendo num único texto todos os segmentos, inclusive o literário.
A imprensa moderna, altamente competitiva e cara, não chegou a mutilar o gênero, mas direcionou-o a estratégia geral do que hoje se chama "comunicação". Numa palavra: exige que tudo o que é veiculado no jornal ou revista, das condições do tempo ao desempenho das bolsas, seja útil ao leitor, seja aquilo que nas redações é chamado de "serviço".
Daí que sobra um espaço reduzido ao cronista sem assunto, sem informação e sem outro serviço que não o estilo mais sofisticado que só será apreciado por determinados leitores e não pela massa consumidora do jornal ou revista.
Quanto à falta de vida que Rubem Braga condenava na imprensa em geral, justificando dessa forma sua brilhante militância na crônica, prefiro discordar com alguma veemência. Vida é o que não falta no jornal. Há até demais. O que falta é uma qualidade (ou defeito) que foi banida das redações e se tornou a besta-negra do jornalismo: a emoção.
Temos a vida demais - disse acima. Desastres, inundações, estupros, explorações da fé e do mercado, remédios falsificados, políticos corrompidos e corruptores, vedetes grávidas ou a engravidar, bolsas despencando, atletas se dopando - tudo isso é vida. Vida que pode ser bem ou mal descrita pelos cronistas de cada setor.
Banida do texto jornalístico, a emoção foi considerada cafona, desnecessária, primária. Nelson Rodrigues reclamava da falta de pontos de exclamação nas manchetes, mesmo nas mais prosaicas. Exemplo: ''Pânico na Bolsa de Nova York!'' é uma coisa. Sem exclamação é outra.
Não se conclua que a emoção seja simples pontuação. Ela é uma forma de ver o mundo, um estilo de sofrer ou de gozar a vida. Dou o exemplo quemais tenho à mão, que é o meu mesmo. Quando morreu Mila, minha maior amiga, passei alguns dias sem escrever a crônica diária na página 2 da Folha. Pediram-me que, ao retomar o ofício, explicasse aos leitores que não fora censurado nem reprimido, pois vinha de uma série de artigos contundentes contra o governo da época - que por sinal é o mesmo.
Fiz a crônica sobre a morte de Mila, um texto gemebundo, sangrento na dor que sentia - e ainda sinto, pois ainda não tive coragem de substituí-la.
Houve um surpreendente retorno, a ponto de receber reclamações do serviço de atendimento aos leitores do jornal que desejavam ter acesso ao meu telefone, fax ou e-mail para mandarem mensagens de consolo e carinho. Nada menos jornalístico, nada mais churrascaria.
Antes de ser um leitor, o consumidor de jornal é um ser humano tornado carente pela solidão, pelo egoísmo (próprio e alheio), pelo nenhum sentido da sociedade como um todo. Quando um cara tem coragem de gritar que está sofrendo, fatalmente encontra alguém que o compreende e, algumas vezes, o ame. Isso não dá apenas samba. Dá crônica também.
"O repórter de três cabeças"
Tenho 20 anos e acabo de me tornar repórter policial. O chefe de redação, Sr. Azevedo, me convoca para minha primeira reportagem. Numa favela carioca, moradores ateiam fogo a um homem, acusado de matar a pauladas o filho adolescente.
O assassino, com braços e tórax derretidos pelo fogo, ocupa um leito de hospital público, mas não corre risco de vida. Na favela, o coração destruído, sua mulher vela o filho morto.
Vou primeiro ao morro. É um crime pequeno, um episódio na vida de gente comum. No barraco, encontro apenas um velho fotógrafo de A Notícia que - com a frieza de um açougueiro experiente - escolhe as imagens mais repugnantes.
"Meu marido é um cachorro", a mulher grita. "Um bicho!". Olho o corpo do rapaz, lustroso como um boneco de cera, a cabeça enrolada em bandagens imundas, o rosto borrado por placas roxas. "Ele matou meu filho por nada", a mulher continua. "Matou como se fosse um rato".
Encho-me de ódio. Ao chegar ao hospital para ouvir o assassino, pois as normas do jornalismo exigem sempre os dois lados das histórias, trago o espírito arreganhado. Largado em uma enfermaria obscura, o homem parece uma sombra de homem. Uma nódoa na paisagem.
"Por que o sr. fez isso?, pergunto, mal conseguindo encará-lo. O homem tem os olhos parados, como pérolas sujas esquecidas no fundo de uma gaveta, e não pára de tremer. Insisto: "Por quê?" Ele me olha e diz: "Ele me odiava porque eu sou só um lixeiro." Ergo a voz e, em tom de reprimenda, digo que isso não é motivo suficiente para matar.
O homem suspira. Depois diz: "Ele roubava meu dinheiro e, enquanto eu carregava lixo, ia para a cama com minha mulher." Julgo ouvir um ruído vago, mas tenebroso, como se o teto da enfermaria começasse a desabar sobre mim. Não consigo dizer mais nada. Saio.
Na redação, o Sr. Azevedo ordena: "Quero uma história violenta, que tenha início, meio e fim, pois precisamos de manchetes".
Sento-me para escrever. O esquema clássico do noticiário policial me pede uma narrativa reta, em que haja uma vítima, um assassino monstruoso e uma viúva infeliz. Começo a escrever, mas não posso avançar. Sinto-me tonto. Vou ao banheiro e vomito.
De volta, escrevo uma primeira versão, a mais neutra que posso imaginar, em que os vários pontos de vista se entrelaçam. Ofereço-a ao Sr. Azevedo. Ele lê e diz: "O que é isso, um boletim de ocorrência? Quero uma história coerente, e não um relatório".
Volto para a máquina e escrevo, agora, três versões da reportagem. Ajo como um repórter que tivesse três cabeças. Na primeira, o homem é um cão danado que mata a pauladas um filho ingênuo e infeliz. Na segunda, é um homem fraco que enlouquece, manipulado pelo filho pervertido e pela mulher incestuosa. Tento uma terceira versão em que pai e filho são inocentes, fantoches nas mãos de uma megera.
As três narrativas não cabem em uma história só e, no entanto, seria assim, na conjunção contraditória das três, que eu estaria mais próximo da verdade. Mas, eu descubro, ela é o que menos importa a meu chefe.
O Sr. Azevedo, com o ar agastado, vem me cobrar a reportagem. "Nossa hora estourou", grita. Fecho os olhos, misturo as três páginas datilografadas, sorteio uma delas e, sem ver o resultado, entrego-a. O Sr. Azevedo lê e diz: "Agora sim a história faz sentido."
Tomo o ônibus para casa. Levo no bolso as duas versões desprezadas. Amasso-as e jogo pela janela. Deixo que o vento do Aterro do Flamengo bata com força em meu rosto, castigando-me. Tento respirar, ainda sem sucesso, pois é como se uma rolha de decepção me trancasse o peito. Não tenho coragem de ler o jornal no dia seguinte. Até hoje não sei qual de minhas três versões foi publicada. 
José Castello (Estadão, 5/8/97)
"Herói. Morto. Nós"
Lourenço Diaféria (FSP, 01/09/77)
Não me venham com besteiras de dizer que herói não existe. Passei metade do dia imaginando uma palavra menos desgastada para definir o gesto desse sargento Sílvio, que pulou no poço das ariranhas para salvar o garoto de catorze anos, que estava sendo dilacerado pelos bichos.
O garoto está salvo. O sargento morreu e está sendo enterrado em sua terra.
Que nome devo dar a esse homem?
Escrevo com todas as letras: o sargento Sílvio é um herói. Se não morreu na guerra, se não disparou nenhum tiro, se não foi enforcado, tanto melhor.
Podem me explicar que esse tipo de heroísmo é resultado de uma total inconsciência do perigo. Pois quero que se lixem as explicações. Para mim, o herói — como o santo — é aquele que vive sua vida até ás últimas conseqüências. O herói redime a humanidade à deriva.
Esse sargento Sílvio podia estar vivo da silva com seus quatro filhos e sua mulher. Acabaria capitão, major.
Está morto.
Um belíssimo sargento morto.
E todavia.
Todavia eu digo, com todas as letras: prefiro esse sargento herói ao duque de Caxias.
O duque de Caxias é um homem a cavalo reduzido a uma estátua. Aquela espada que o duque ergue ao ar aqui na Praça Princesa Isabel — onde se reúnem os ciganos e as pombas do entardecer — oxidou-se no coração do povo. O povo está cansado de espadas e de cavalos. O povo urina nos heróis de pedestal. Ao povo desgosta o herói de bronze, irretocável e irretorquível, como as enfadonhas lições repetidas por cansadas professoras que não acreditam no que mandam decorar.
O povo quer o herói sargento que seja como ele: povo. Um sargento que dê as mãos aos filhos e à mulher, e passeie incógnito e desfardado, sem divisas, entre seus irmãos.
No instante em que o sargento — apesar do grito de perigo e de alerta de sua mulher — salta no fosso das simpáticas e ferozes ariranhas, para salvar da morte o garoto que não era seu, ele está ensinando a este país, de heróis estáticos e fundidos em metal, que todos somos responsáveis pelos espinhos que machucam o couro de todos.
Esse sargento não é do grupo do cambalacho. Esse sargento não pensou se, para ser honesto para consigo mesmo, um cidadão deve ser civil ou militar. Duvido, e faço pouco, que esse pobre sargento morto fez revoluções de bar, na base do uísque e da farolagem, e duvido que em algum Instante ele imaginou que apareceria na primeira página dos jornais.
É apenas um homem que — como disse quando pressentiu as suas últimas quarenta e oito horas, quando pressentiu o roteiro de sua última viagem — não podia permanecer insensível diante de uma criança sem defesa.
O povo prefere esses heróis: de carne e sangue.
Mas, como sempre, o herói é reconhecido depois, muito depois. Tarde demais.
É isso, sargento: nestes tempos cruéis e embotados, a gente não teve o instante de te reconhecer entre o povo. A gente não distinguiu teu rosto na multidão. Éramos irmãos, e só descobrimos isso agora, quando o sangue verte, e quando te enterramos. O herói e o santo é o que derrama seu sangue. Esse é o preço que deles cobramos.
Podíamos ter estendido nossas mãos e te arrancado do fosso das ariranhas — como você tirou o menino de catorze anos — mas queríamos que alguém fizesseo gesto de solidariedade em nosso lugar.
Sempre é assim: o herói e o santo é o que estende as mãos. E este é o nosso grande remorso: o de fazer as coisas urgentes e inadiáveis — tarde demais.
EXERCÍCIO COMPARATIVO – EDITORIAL E CRÔNICA
A razão calcinada
Em vez de conter, Bolsonaro alimenta espetáculo de desinformação sobre Amazônia
Não é fácil debater os desafios da Amazônia nem sequer quando há interlocutores de boa-fé interessados na compreensão e na elucidação de seus principais problemas.
A interação complexa de variáveis como a oscilação climática, a ação humana e as linhas de continuidade e ruptura da política pública, bem como da sua execução no nível do terreno, dificulta o diagnóstico. A escolha da melhor forma de intervir tampouco é simples.
Raia ao impossível tentar desembaraçar esse novelo em meio à epidemia de desinformação e má-fé que arrebata da direita à esquerda, manifesta-se dentro e fora do país e acomete chefes de Estado e autoridades responsáveis pelo assunto.
Emmanuel Macron, o presidente francês dedicado a alimentar uma altercação pueril com o seu homólogo brasileiro, pôs-se a fazer conjecturas sobre um estatuto internacional para a região amazônica.
Ao recorrer a tal disparate, cujo efeito prático limita-se a atiçar a paranoia nacionalista de grupos influentes no Palácio do Planalto, Macron parece mais interessado em prolongar a baixaria, de olho em dividendos políticos domésticos, do que em colaborar para a mitigação do desmate e das queimadas.
Mas os campeões do engodo, das ideias fora de lugar, das grosserias e das provocações baratas nesse episódio são, sem dúvida, autoridades brasileiras, a começar do presidente Jair Bolsonaro (PSL).
Vá lá que cidadãos, celebridades e políticos locais e estrangeiros demonstrem ignorância ou difundam falsidades acerca do que lhes é distante ou sobre o que não têm responsabilidade. Não é aceitável a governantes do Brasil – obrigados a bem informar e a agir conforme a melhor ciência disponível – tomar parte desse picadeiro.
Como o espetáculo não pode parar, ele prosseguiu nesta terça (27), na reunião de Bolsonaro com governadores da região amazônica. Em vez de enfocar as medidas para combater o desflorestamento e os incêndios, o presidente preferiu ocupar os ouvidos dos chefes estaduais com mais uma teoria conspiratória sem alicerce nos fatos.
Sua decisão de não mais demarcar terras indígenas, segundo o mandatário brasileiro, seria a causa das queimadas. Com isso insinuou, de novo irresponsavelmente, que haja ação orquestrada de ONGs por trás dos incêndios florestais.
Jair Bolsonaro se perde nesses espasmos sincopados de que brotam retalhos de pensamento e ideias coxas. Enfrenta a sua primeira crise de grandes proporções, em que precisa mobilizar recursos humanos e materiais, no Brasil e no exterior, e transmitir uma linha de ação clara a seus comandados.
Mas a mensagem não chega; nem sequer é formulada. A cabeça do presidente gira em falso nos preconceitos de sempre. Calcinados ficam a razão e o bom senso.
Editorial da Folha de S. Paulo, 28 de agosto de 2019
O fim da Amazônia
	
Lembro bem do dia em que o céu escureceu. Dezenove de agosto de 2019. No meio da tarde, a fumaça das queimadas florestais encontrou uma frente fria e virou noite em São Paulo. Como se Deus, desgostoso com a descendência de Adão, houvesse revogado o “Fiat Lux”. Como se Zeus, ao ver o que os homens tinham feito com o fogo roubado por Prometeu, apagasse o sol. 
	“O medo do Asterix era que o céu caísse sobre nossas cabeças,” – disse o meu amigo Ricardo, encarando o teto preto – “pois bem, caiu”. Eu tinha 41 anos. Meus filhos, seis e quatro.
	Muitos interpretaram aquela treva diurna como um alarme, talvez o último antes da catástrofe climática, depois de uma série incontável de avisos em forma de secas e enchentes e degelos e furacões.
	Olhando pela janela o céu escuro, ouvi a pergunta: “Se vocês sabiam o que estava acontecendo, por que não fizeram nada?”. Eram meus netos, trinta anos depois daquele breu – ou seja, hoje, em 2049 –, revoltados com a herança deixada por nossa geração. 
	Suei ao nos imaginar em 2049 numa terra alguns graus mais quente, falta d’água do Oiapoque ao Chuí, a Amazônia em processo irreversível de savanização, calotas polares derretidas, vastas extensões tropicais inabitáveis, migração em massa, guerras, fome, malária, dengue e chikungunya matando da Patagônia à Dinamarca.
	A noite no meio do dia me pareceu um sinal óbvio demais para ser ignorado: bíblico, hollywoodiano, chegava a ser clichê —e ainda bem que os clichês funcionam, pois naquele mundo tão torto, que ameaçava sair definitivamente dos trilhos, a sensatez urpreendentemente prevaleceu. 
	Acontece que os responsáveis pelo agronegócio brasileiro também tinham janela e perceberam que do jeito que a coisa ia seus produtos seriam boicotados, como os produtos da África do Sul durante o apartheid. (O termo “pária” pipocava na imprensa para descrever como o Brasil estava sendo visto internacionalmente).
	Os industriais também tinham janela e perceberam que sem floresta não haveria água e sem água não haveria energia e sem energia não haveria indústria. Também tinham janela os investidores do mercado financeiro, que se deram conta de que não haveria liquidez na savana e nem pregão no deserto. 
	Agosto de 2019 foi um ponto de inflexão. Os agricultores, os industriais e os investidores se juntaram aos 96% de brasileiros que, segundo pesquisa Ibope da época, diziam se importar com a preservação da Amazônia e decidiram peitar o tétrico governante que havíamos eleito em 2018.
	Durante os próximos três anos e meio, conseguimos barrar institucionalmente a piromania – simbólica e literal – com que o homúnculo desvairado vinha incendiando o país, em todas as áreas.
	Não foi fácil. O Brasil saiu chamuscado, arranhando, exausto, mas sobreviveu. O novo governo eleito em 2022, um governo de coalizão e reconstrução, retomou e melhorou as políticas protecionistas que vinham sendo criadas desde o governo Sarney, paulatinamente aperfeiçoadas nos governos Collor, FHC, Lula e Dilma. A Amazônia sobreviveu. Verdade que o mundo hoje é bem diferente daquele no qual eu nasci; o estrago já era grande em 2019.
	Meus netos só conhecem abelhas e borboletas dos livros, de filmes e da realidade virtual e quando contei pra eles a história do Titanic, ficaram bem menos impressionados com o destino do navio do que com a descrição de um iceberg.
	Estamos vivos, porém. Somos livres. Seguimos na luta. Hoje faz sol e o céu é azul.
	Crônica de Antonio Prata, 25 de agosto de 2019
 CRÔNICA E ESPORTE
Visão de jogo
Luiz Roberto Piva
O fotógrafo de futebol é o ilusionista. Você pode ver o jogo ao vivo e não lembrar direito ou deturpar ou misturar ou retê-lo com perfeição. Mas não é um truque. É um engano, um consolo. 
Pode ouvi-lo pelo rádio e, sendo ou não influenciado pelo narrador, também criar imagens e fatos que podem ou não ser verdadeiros. Mas isso é como ler um livro, ouvir uma piada, uma história, um depoimento. Não é truque. 
Menos ainda o jogo na TV. Suas imagens, ao contrário, surgiram, e são cada vez mais precisas nisso, para acabar com os enganos, as dúvidas, as deturpações de memória e opinião. Preto e colorido no branco. 
A foto, não. Ela é prestidigitação pura: faz surgirem objetos, planos, expressões, entrelaçamentos, lances; faz sumirem jogadores, campos, bolas – como o mágico à sua frente, usando somente a realidade, faz surgirem cartolas de dentro de coelhos, narizes de dentro de moedas, cabeças fora dos corpos. 
Ali, bem na sua cara. Você sabe que é truque. Mas fica pensando se não é mágica mesmo. Se o que o fotógrafo faz não é só fingir que é um truque. Para que finjamos não acreditar nele.
CRÔNICA E CIÊNCIAS
Rui Castro, Revista Manchete
O rolo do casamento Mario Prata (Isto É, 1998)
– Você coloca o papel higiênico – no rolo – com o papel saindo por cima ou por baixo?
O Kadu e a Bel se separaram. Pergunta você, que não sabe quem são os dois, e eu com isso?
O casal era o últimoda minha geração a manter os sagrados laços do matrimônio, a insistir na célula mater da sociedade. Mais de 20 anos, quase avós. Não acreditava quando me encontrei com o Kadu nos 40 anos da Élia, sábado passado.
– Mas o que houve, cara?
– Você não vai acreditar. A gente se separou por causa do rolo de papel higiênico... Pode?
– Como é que é? Bebeu?
– Sério. Foi quase litigioso.
– Calma, calma. Vamos por partes. Você e a Bel se separaram por causa de um rolo de papel higiênico?
– Um, não! Vários! Vinte anos de papel higiênico. Faça a conta.
Pirou, pensei. Ou está gozando com a minha cara.
– Você, por exemplo, quando coloca o papel higiênico no rolo, deixa o papel saindo por cima do rolo ou por baixo? Hein? Por cima ou por baixo?
Eu juro que nunca havia pensado nisso. Tentei lembrar do meu banheiro, da última vez que usei o rolo, nada. Por cima ou por baixo? Mal sabia, naquele momento, que o problema iria me acompanhar por toda a noite e, até hoje, não penso noutra coisa. Já ando fazendo pesquisas com amigos e amigas. Foi minha vez de perguntar:
– Você, por exemplo, põe por baixo ou por cima?
– Por baixo, é claro! Tem uma pesquisa nos Estados Unidos que constatou que a maioria do homens (71%) põe por baixo. E a maioria das mulheres põe por cima. Parece mentira, mas a pesquisa existe. Entrou no processo de divórcio. Já a USP nunca se manifestou.
– Mas vocês passaram a vida toda brigando por causa disso?
– Claro que não. Só os últimos cinco anos. Era um horror. Quando eu trocava o rolo, colocava por baixo. Quando voltava lá, estava por cima. Ela ia lá, de noite, e mudava. Bastava ela sair de casa que eu mudava de novo. A gente chegou num ponto em que estava quase partindo pra porrada! O casamento virou uma merda.
– Eu acho que eu ponho por baixo...
– O quê?
– Nada, nada. Mas o que ela alegava para colocar por cima?
– Uma tese frágil, foi o que o meu advogado defendeu. Ela dizia que, colocando por cima, quando você girava ele com força, a ponta sempre ficaria à disposição. E quando estava por baixo e você fazia o mesmo movimento a ponta sumia.
– Não deixa de ter a sua lógica a posição da Bel.
– Pô, cara, até você está contra mim? Tenho certeza que você coloca por baixo. Homem que é homem põe por baixo. O Junior, por exemplo, põe por baixo. Desde pequenininho. Faz parte da personalidade do homem. Vai por mim.
– Tudo bem, tudo bem. Mas se separar, depois de tantos anos, por isso? Por um rolo de papel higiênico?
– A gente tentou de tudo. Fomos fazer terapia de casal. A Madalena, que era a psicóloga, até sugeriu que a gente usasse folha dupla e soltasse uma por cima e uma por baixo. Mas embaralhava tudo. Ficava a maior confusão. A gente tentou de tudo. Mas, a cada dia, o problema aumentava. Começamos a discutir com os casais amigos, com vizinhos. Achavam que a gente estava louco. Cada vez era pior o problema. Eu voltava para casa pensando: aquela vaca virou o papel higiênico de novo! Sonhava com rolos e mais rolos de papel higiênico! Verdadeiros pesadelos. Antes que eu desse um tiro nela, ou ela em mim, veio a separação. Pensamos nas crianças, é claro. Cada um na sua casa, cada um com a ponta saindo como gosta. Ficamos até bons amigos. Fazemos o possível para não brigar mais. Mas eu não vou ao banheiro na casa dela – nem morto! – e ela não vai na minha. Na minha privada sento e mando eu! É o mínimo que um sujeito com a minha idade precisa para viver sozinho, feliz e sem problemas. Certo?
Fui para casa com o rolo na cabeça. Entro no banheiro, olho. Está saindo por cima, o danado! Coisa de mulher, me garantiu o Kadu. Pesquisa americana! Mudo, coloco por baixo. Vou dormir. Não consigo. Volto, coloco por cima. Fico olhando. Dou uma girada nele. Volto para o quarto. Pensando nele. Não consigo dormir. Volto ao banheiro. Tiro do lugar. Coloco em pé em cima do bidê e vou dormir em paz. Amanhã eu resolvo este problema. Afinal, ainda falta uma semana pra Renata voltar de férias.
Manual de desculpas esfarrapadas
Leo Cunha
 
Inventar desculpas pra um para-casa atrasado é especialidade de alunos de qualquer idade. Eu, que dou aula há alguns anos, já ouvi as histórias mais cabeludas, contadas com cara mais lavada do mundo. E, o que é pior, engoli a maioria.
Outro dia resolvi fazer uma enquete com meus colegas professores pra montar um manual com as desculpas mais esfarrapadas que já ouvimos. O leitor pode chiar e perguntar se nós, ilustríssimos professores universitários, não tínhamos nada mais útil pra fazer, mas sinto muito, aqui vai a lista.
1- A culpa é de São Pedro 
Esta é das desculpas mais tradicionais. A rua alagou e eu não consegui chegar na biblioteca. Ou eu esqueci a janela aberta e o trabalho ficou encharcado. Que pena, fessor, tava tão lindo!
2- A culpa é dos outros 
Outra desculpa clássica. Foi o Joãozinho que tinha que ter comprado a cartolina e não comprou, fessor! Foi a Joana que não fez a parte dela a tempo.
3- A culpa é do computador 
Quem nunca ouviu essa frase, vai ouvir logo. O computador deu pau, a impressora ficou sem tinta, o disquete não abriu, um vírus apagou tudo. Você sabe que computador é um bicho imprevisível né, fessor? Temperamental feito ele só!
4- A culpa é do excesso de trabalhos. 
Essa costuma irritar meus companheiros docentea. Não é por nada não, fessor, mas o senhor acha que a gente só tem a sua matéria? Tava assim de trabalho pra fazer, os outros eram mais urgentes.
5- Eu não sabia que era pra hoje. 
Uai, mas ninguém avisou que era pra hoje! Eu tava crente que era só pra semana que vem. Ô, fessor, você é tão legal, dá mais um prazinho pra eu poder terminar, o trabalho já tem bem adiantado, só falta digitar, só falta revisar, só falta grampear, só falta fazer a capa.
6- Eu não entendi direito o que era pra fazer. 
Essa é das mais descaradas, e geralmente vem acompanhada de uns dois parágrafos ilegíveis. Tá vendo, fessor, eu até comecei a fazer, mas não entendi o que o senhor tava querendo. Será que dava pra explicar de novo?
7- Minha avó morreu. 
Com todas as variantes possíveis. Afinal, avó são só duas, avô também. Pai, mãe e irmão é mais arriscado, porque fica fácil pro professor conferir se é verdade ou não. Se preciso, pode-se apelar para um tio distante (mas que morou com a gente muito tempo, fessor...) ou pro gatinho siamês que era quase da família (até dormia na minha cama, precisa ver que gracinha).
8- O super-colírio. 
Desculpa a ser usada apenas em casos extremos, quando as outras realmente não colam mais. Sabe o que é, fessor? Eu fui ao oculista, pinguei um colírio daqueles brabos e fiquei seis dias com a vista embaçada. Não teve jeito mesmo de fazer o trabalho, eu bem que tentei, mas estava tão cego que acabei escrevendo em cima da receita do médico.
A lista poderia continuar por muitas linhas, mas essas aí são as mais comuns. E, pra falar a verdade, de vez em quando a gente até se diverte vendo a aflição do aluno, admirando sua coragem, na hora de inventar as desculpas mais cara-dura do mundo. Afinal de contas, sabemos sabe que eles ainda estão aprendendo, não têm plena noção de suas responsabilidades, não são casos perdidos.
Duro mesmo é ter que ouvir tantos políticos por aí – do alto de seus cargos e votos – soltando as mesmas desculpas esfarrapadas que a meninada fala em sala de aula: a culpa é dos outros, eu não sabia que era urgente, não é possível fazer tudo etc e tal... Basta olhar o jornal, qualquer um, pra gente ver que a maioria dos políticos não merece a reeleição. Merece, isso sim, é a repetência!
De Homem Para Homem
Fernando Sabino
Você talvez não se lembre: devia ter naquela época uns quatorze ou quinze anos. Eu tinha sete. Sei disso, porque naquele ano havia entrado para o grupo escolar. E foi no grupo que ganhei meu bodoque.
Trata-se, portanto, de um bodoque - também chamado de atiradeira ou estilingue. Nós chamávamos de bodoque: uma forquilhinha, em geral de goiabeira, raspada a canivete, da qual partiam duas tiras finas de borracha de câmara de ar de bicicleta, bem amarradas (era preciso esticar bem para amarrar, do contrário se soltavam)e juntas na outra extremidade por um pedaço de couro de língua de sapato velho. Assim eram os bodoques, e não serviam só para matar passarinho, como você insinuou, serviam para tudo: para quebrar vidraça, para derrubar manga, para tiro ao alvo, para guerrear contra os outros meninos. Deus é testemunha de que nunca consegui matar nem um passarinho com bodoque ou sem ele, era péssima a minha pontaria - esse pecado não carrego comigo, foi uma injustiça de sua parte. E honra me seja feita: o único passarinho morto que me caiu nas mãos, achado no quintal já meio comido de formigas, enterrei com todo o respeito, depois de abrir com o canivete, para ver como ele era por dentro. Isso os médicos estão cansados de fazer com gente de verdade nos hospitais, não é pecado nenhum.
Que foi que aconteceu com meu bodoque? Você não se lembra, certamente, nem chegou sequer a saber como ele veio parar nas minhas mãos. Pois lhe conto agora: eu tinha uma colação de marcas de cigarro que troquei com Evandro por uma coleção de pedras preciosas de vidro; vendi as pedras por quatrocentos réis dos grandes e com eles, e mais um pião, e mais uns selos da Tasmânia que tinha ganho numa aposta, e mais - não tenho certeza - duas ou três bolas de gude, comprei afinal o bodoque de um menino que já não lembro mais quem era. Faz diferença eu não me lembrar mais quem era?
Pois bem: e que foi que aconteceu? Aconteceu que naquele mesmo dia eu fui procurar Newton e Toninho para mostrar o meu bodoque, muito melhor do que os deles, não encontrei nem um, nem outro. E olhe que Newton sabia fazer bodoque! as forquilhas dos bodoques dele sendo tão fechadinhas que era preciso esticar muito para não pegar no dedo, a pedra passava por cima. Encontrei foi você, na porta da casa do Armando e do Quico, ali na Rua da Bahia. Eu trazia o bodoque enrolado no bolso da calça e queria fazer uma surpresa, se não para o Newton e o Toninho, pelo menos para o Quico, que não tinha bodoque nenhum ainda. Você já era meio compridão feito hoje, me lembro que me olhou de cima para baixo com esses olhos meio caídos que tem até hoje e me disse: "Aonde é que você vai aí todo satisfeito?" Eu disse que ia mostrar ao Quico o meu bodoque, você então perguntou: "Bodoque?" E me pediu para ver, com ar fingido de quem já é velho demais para ficar pensando em bodoque. Então caí na asneira de enfiar a mão no fundo do bolso da calça, tirar o bodoque e mostrar. E você, o que foi que fez? Pegou no bodoque como se quisesse mesmo ver, mas logo abriu o paletó e me mostrou a fivela do cinto, falando: "Olha aí" E guardou meu bodoque no bolso. Era uma fivela dourada de cinto de escoteiro e nela estava escrito "Sempre Alerta" debaixo de uma flor de lis. Mas era só o cinto, você não estava fardado de escoteiro, estava até de calça comprida, que você já usava. Armando, que também era mais velho, veio chegando e viu, perguntou o que era, então você explicou para ele: "Sou escoteiro, tomei o bodoque dele".
Tomou o meu bodoque. Quando eu entendi que você me tinha tomado mesmo o bodoque por ser escoteiro e escoteiro não pode matar passarinho, perdi a cabeça e comecei a gritar: "Mas eu não sou! Me dá meu bodoque!" Acabei chorando de raiva e o próprio bodoque, digo, o próprio Armando insistia com você que não fizesse isso, deixe de coisa, dá o bodoque do menino. E você ali inabalável, até achando graça na minha raiva. Acabou dizendo que primeiro iria apurar se eu costumava matar passarinho com bodoque (juro que não, era para derrubar manga!) e no caso de não apurar nada, era possível que devolvesse. Saí dali meio perplexo, já nem chorando mais, esmagado pelo peso de sua autoridade de escoteiro.
Pois muito bem: foi isso que aconteceu. Depois daquele dia tive uma porção de bodoques, fui escoteiro também, nunca me aconteceu tomar bodoque de ninguém. Os anos passaram, eu cresci, muitas coisas aconteceram, e aqui estou. Você também cresceu, embora já fosse bem crescido, muitas coisas lhe aconteceram, você aí está. De vez em quando tenho notícias suas por amigos comuns, de vez em quando cruzamos na rua um com o outro, chegamos mesmo a trocar palavras de cordialidade, somos velhos conhecidos, nada temos um contra o outro.
A não ser o bodoque. Seu candidato venceu nas eleições, você veio para o Rio, foi nomeado para um alto cargo administrativo onde, dizem os jornais, tem revelado competência. Fico muito satisfeito com isso, você levando a sua vida e eu a minha, está tudo muito bem.
A não ser o bodoque. Seu nome, para mim, antes de mais nada, continua ligado ao bodoque que você me tomou e nunca mais me devolveu. Só porque era escoteiro. Ora, tenha paciência! Hoje não sou menino mais, você pode ser mais alto e mais velho do que eu, pode ser muito importante, diretor, ministro, ou lá o que seja, até presidente da República, não me espantaria, do jeito que as coisas vão - mas eu sou homem também. E se você quer que eu te considere um homem, antes de mais nada me devolve meu bodoque.
Eu quero meu bodoque.
O Desaparecido
Rubem Braga
Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria, e então eu sinto uma saudade muito grande, uma saudade de noivo, e penso em ti devagar, bem devagar, com um bem-querer tão certo e limpo, tão fundo e bom que parece que estou te embalando dentro de mim.
Ah, que vontade de escrever bobagens bem meigas, bobagens para todo mundo me achar ridículo e talvez alguém pensar que na verdade estou aproveitando uma crônica muito antiga num dia sem assunto, uma crônica de rapaz; e, entretanto, eu hoje não me sinto rapaz, apenas um menino, com o amor teimoso de um menino, o amor burro e comprido de um menino lírico. Olho-me no espelho e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichês sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão.
Sim, eu sou um desaparecido cuja esmaecida, inútil foto se publica num canto de uma página interior de jornal, eu sou o irreconhecível, irrecuperável desaparecido que não aparecerá mais nunca, mas só tu sabes que em alguma distante esquina de uma não lembrada cidade estará de pé um homem perplexo, pensando em ti, pensando teimosamente, docemente em ti, meu amor.
Sobre idiomas e idiotas
Leo Cunha
Não saber falar um idioma estrangeiro não faz de ninguém um idiota. Conheço pessoas brilhantes em suas áreas (seja a ciência, o futebol, a fotografia etc) que não conseguem aprender outra língua, por mais que se esforcem.
Meu pai é um desses. Estudioso, inteligente, engraçado, generoso, médico admirado por milhares de pacientes, colegas e alunos, o velho Arapa é um desastre quando se arrisca no inglês, no francês, no italiano.
Até o português de Portugal representa pra ele um desafio. Certa vez, indo de carro de Madrid para Lisboa, me confessou que percebeu estar em terras lusas quando passou a não entender mais nada do que ouvia.
Durante alguns anos, trazia sempre no carro uma coleção de Cds de aulas em francês, e os escutava diariamente no caminho pro hospital e pra casa, fascinado (aquele fascínio que a gente sente diante de algo impenetrável, tipo um "Ummagumma", do Pink Floyd, um "Estrada perdida", do David Lynch, ou uma escalação do Mano Menezes).
Como não podia deixar de ser, os casos divertidos se apinham nas viagens do Arapinha. Um dia, em Londres, ficou perplexo ao subir num trem pra Liverpool e achar que a guarda da estação o estava chamando pra briga ("Combat! Combat"), quando na verdade ela estava apenas avisando que ele tinha entrado no trem errado ("Come back! Come back!").
Em Nova York, o ticket agarrou na roleta do metrô e o Arapa ficou horrorizado quando um brasileiro sugeriu "Pule! Pule!". Claro que ele não pulou. E claro que não havia nenhum brasileiro, apenas um americano sugerindo que ele puxasse o ticket de volta ("Pull! Pull!").
O contraste com minhamãe poliglota não podia ser maior. Porém ela é tímida e ele tem uma insuperável cara de pau. Então adivinha quem resolve os pepinos e descobre os caminhos, nas viagens internacionais? Ele, é claro.
Uma vez, os dois entraram num hotel em Paris, à procura de vaga. Minha mãe morrendo de sem graça de perguntar na recepção. Lá foi meu pai:
- Madame, you have, per favore, um quarto à disposición?
Mamãe ficou vermelha da cabeça aos pés:
- Meu bem, você não falou nem uma palavra em francês!!!
- Como não? Madame! - ele respondeu, já pegando a chave do quarto 315.
Não se aperta, o Arapa! Pelo contrário, consegue se virar em qualquer lugar do mundo. Claro que ele jamais se meteria a dar uma consulta médica para um francês, ou dar aulas em italiano, ou trabalhar numa embaixada na Inglaterra. Nem seria preciso alguém alertar "Combat! Combat!".
Videntes (Leo Cunha)
Tem gente que lê o futuro nos astros, nas cartas, nos dados, no fogo, na água, na areia, nos búzios, nos peixes, nas mechas de cabelo, nas palmas das mãos, nas manchas da parede, nas borras de café, nas bolas de cristal, nas guimbas de cigarro, nas entranhas de animais. 
E, só pra impressionar, cada uma dessas variantes tem um nome mais pomposo que o outro, sempre terminado em “mancia”. Por exemplo: a pegomancia lê o futuro no movimento das águas das fontes. A enomancia lê na consistência e coloração dos vinhos, de preferência tintos. A nefelomancia adivinha o futuro com base na aparência das nuvens. A molibdomancia encontra as pistas no chumbo derretido. A alfitomancia prefere as farinhas e massas em geral. 
O leitor deve estar pensando: “é muita adivinhação pra um futuro só!” Mas tudo bem, não é de hoje que os videntes abundam pelo mundo. 
E tem gente que leva muito a sério essa abundância. Outro dia eu li na internet que um médium alemão, um tal Ulf Buck, lê o futuro sabe onde? Nas nádegas. Sério mesmo: assim como alguns videntes lêem as linhas das nossas mãos, o senhor Buck pede pro cliente arriar as calças e começa a ler o futuro que está escrito nas estrias, nas celulites e, principalmente, no formato das nádegas.
Segundo ele, um traseiro em forma de maçã indica que a pessoa é otimista e criativa. Já um bumbum em forma de pera pertence a pessoas fiéis e pacientes. Ah, eu me esqueci de mencionar um detalhe. O vidente alemão é cego desde os três anos.
 Quando li a notícia de herr Buck e sua bundomancia, fiquei fascinado por esse universo das adivinhações. É um mundo tão desconhecido (pelo menos para mim), que passei um dia inteiro viajando na internet, ou melhor, viajando na maionese, visitando uma infinidade de sites e descobrindo dezenas de definições. 
Não sei se é porque sou escritor, mas confesso que a “mancia” que eu mais gostei de descobrir foi a rapsodomancia. Segundo o dicionário, ela significa a arte de adivinhar o futuro por meio de trechos ao acaso das obras de um poeta. Adorei essa ideia!
Logo percebi que a rapsodomancia tem pelo menos duas grandes vantagens sobre todas as suas primas e irmãs. A primeira é que ela é uma adivinhação mais lírica, mais artística. Qualquer motivo é um bom motivo pra ler poesia, não é?
A segunda e maior vantagem é que a rapsodomancia dispensa o vidente, já que cada um pode fazer sua própria adivinhação. Você não precisa ligar para nenhuma Madame Fulana ou pro Grande Mestre Beltrano. Basta catar na prateleira um livro do seu poeta favorito e ler o futuro, em versos escolhidos ao acaso. Vamos testar?
Peguei o livro “Aprendiz de Feiticeiro”, do meu querido poeta gaúcho Mário Quintana. O título pareceu muitíssimo adequado à minha aventura divinatória. Perguntei ao livro: “como será a minha morte?” e o Quintana respondeu: “Vendendo súbitos espanadores de todas as cores!”
Uau! Belo começo. Empolgado, perguntei ao poeta como será o futuro do meu filho André, que tem hoje dois anos de idade. Resposta do livro: “Como pequenina moeda de prata perdida para sempre na floresta noturna.” Lindo, lindo! E um pouco arrepiante, também. Mas o mais legal é que essa previsão poética pode significar tanta coisa, só o André mesmo é quem vai ser capaz de decifrar, no futuro. Não posso me esquecer de contar isso pra ele, daqui a alguns anos.
Pra terminar, fiz uma pergunta mais frívola e mesquinha: “o meu time vai ser campeão?” E o Aprendiz de Feiticeiro decretou: “Cantam os violoncelos... A noite sobe como um balão”. Ahn? Como é que é, Quintana? Violoncelos? Balão? Como assim? Por acaso você entende alguma coisa de futebol? Vou te dar mais uma chance, poeta. Preste bem atenção na pergunta: “o meu time vai ser campeão?” 
Dessa vez, a resposta veio enfezada: “E eis que naquele dia a folhinha marcava uma data em caracteres desconhecidos”. Ai, ai, ai, acho que posso desistir desse campeonato!
 
Karina de Belô Mario Prata (O Estado de São Paulo, 1999)
Aquelas doidas e maravilhosas adolescentes, que fizeram uma home page minha, com a maior intimidade colocaram lá, no mês passado: o Pratinha faz aniversário este mês. Clique aqui para mandar parabéns para ele. Vários desocupados e desocupadas clicaram e a Manuela me mandou as mensagens. Respondi a todas, agradecendo o carinho e o etecétera.
Mas foi aí que surgiu a Karina. Me respondeu dizendo que as colegas dela na faculdade de jornalismo não acreditaram que eu tivesse escrito para ela: "Imagine se o Mario Prata ia escrever para você!" Será que as colegas dela acham que eu não sei escrever?
E mais, dizia a Karina: estava fazendo um trabalho sobre cronistas, centrado em mim e queria saber qual a maneira que eu poderia ajudá-la. Uma entrevista, uma palestra lá?
Respondi que estava havendo um pequeno engano. Meu nome era Mario Prata, mas eu não era o escritor. Era até parente. Sou dentista aposentado, fui logo informando. Mas, para sair do marasmo que era a minha vida, agradecia o convite para palestrar e poderia ir até Belô fazer uma palestra sobre molares aninos (que nascem no ânus). Disse ainda que tinha slides e precisava de uma cadeira de rodas para me pegar no Aeroporto da Pampulha, pois era paraplégico. E mais, informei: era solteirão e virgem, promessa feita no leito de morte da minha mãe, jurando de joelhos juntos que só me casaria com moça mineira, cujo nome começasse com K. Mamãe, em vida, foi apaixonada pelo Kubitschek.
A Karina adorou a idéia da palestra sobre os molares aninos. Achei meio esquisito tal atitude. Foi quando eu parei e achei que estava indo longe demais. E o pior: na última carta, ela pedia para eu parar de chamá-la de menina, porque, o fato de ela estudar jornalismo não significava que era uma jovenzinha. Muito pelo contrário. E me contou a sua vida. Tinha 67 anos, viúva, filhos criados, resolveu estudar. Fez bem, pensei: escreve certo como gente grande, dominando as vírgulas e as respirações como uma Clarice Lispector. Parei de novo. Percebi que a dona Karina estava se empolgando com o doutor Mario, dentista. Essa coroa vai pegar no meu (dele) pé, pensei. E agora?
Mandei mais uma, que começava assim: "Agora sei por que o meu marido, o Mario, não queria que eu aprendesse computação. Era para não descobrir essas sem vergonhices dele" e, como esposa de mim mesmo, arrasava com a dona Karina.
Ela mandou outra carta para o dentista dizendo estar decepcionada com o fato de eu mentir sobre minha condição de solteiro, virgem e paraplégico. Estava decepcionada comigo. Ela, que estava até pensando em fazer um acróstico do dentista solitário.
Foi a vez de uma das minhas (do dentista) sete filhas, a Magdala, entrar na história e comunicar à mineira que ela era a causa da discórdia, da lascívia e do cabritismo que se instaurara (Magdala estuda Letras na PUC) no nosso lar, desde que ela "a escroque rampeira das Alterosas" havia surgido. Que, pelo amor de Deus, deixasse a nossa família em paz, no aconchego do até então feliz lar.
O bate-boca continuou até que a minha mulher tentou o suicídio e as minhas filhas estavam dispostas a ir até Belo Horizonte matar a dona Karina. Mas parece que a viúva não se tocava e estava mesmo a fim de mim - dentista, paraplégico ounão, virgem ou pai de sete filhas. E eu - dentista, especialista em molares aninos, devo confessar, comecei a gostar da viúva, futura colega do primo Mario jornalista.
Foi quando ela mandou um último e definitivo e-mail: "Mario (escritor): obrigada por ter me ajudado. Fizemos (eu e você) um trabalho maravilhoso. Ficou bem melhor do que eu poderia imaginar. Tenho 21 anos e estou mandando uma foto minha."
Meu Deus! A foto da viúva de 21 anos! Me desejando, num balão de história em quadrinhos, feliz Páscoa.
E eu fico por aqui, completamente apaixonado. Não sei se é o dentista pela viúva ou o escritor pela futura jornalista. Sei que um de nós convidou-a para passar a Páscoa com ele.
É, Karina, quando baixa um dentista aposentado e apaixonado dentro da gente, querendo mostrar slides de molares aninos, deve significar que o cronista anda sozinho, muito sozinho, sentado numa cadeira de rodas, ouvindo Elvis Presley e Arnaldo Antunes na mesma faixa, como se fosse um adolescente com dor de dentes.
A outra senhora
Carlos Drummond de Andrade
A garotinha fez esta redação no ginásio:
“Mammy, hoje é dia das Mães e eu desejo-lhe milhões de felicidades e tudo mais que a Sra. sabe. Sendo hoje o dia das Mães, data sublime conforme a professora explicou o sacrifício de ser Mãe que a gente não está na idade de entender mas um dia estaremos, resolvi lhe oferecer um presente bem bacaninha e fui ver as vitrinas e li as revistas. Pensei em dar à Sra. o radiofono Hi-Fi de som estereofônico e caixa acústica de 2 alto-falantes amplificador e transformador mas fiquei na dúvida se não era preferível uma TV legal de cinescópio multirreacionário som frontal, antena telescópica embutida, mas o nosso apartamento é um ovo de tico-tico, talvez a Sra. adorasse o transistor de 3 faixas de ondas e 4 pilhas de lanterna bem simplesinho, levava para a cozinha e se divertia enquanto faz comida. Mas a Sra. se queixa tanto de barulho e dor de cabeça, desisti desse projeto musical, é uma pena, enfim trata-se de um modesto sacrifício de sua filhinha em intenção da melhor Mãe do Brasil. 
Falei de cozinha, estive quase te escolhendo o grill automático de 6 utilidades porta de vidro refratário e completo controle visual, só não comprei-o porque diz que esses negócios eletrodomésticos dão prazer uma semana, chateação o resto do mês, depois encosta-se eles no armário da copa. Como a gente não tem armário da copa nem copa, me lembrei de dar um, serve de copa, despensa e bar, chapeado de aço tecnicamente subdesenvolvido. Tinha também um conjunto para cozinha de pintura porcelanizada fecho magnético ultra-silencioso puxador de alumínio anodizado, um amoreco. Fiquei na dúvida e depois tem o refrigerador de 17 pés cúbicos integralmente utilizáveis, congelador cabendo um leitão ou peru inteiro, esse eu vi que não cabe lá em casa, sai dessa!
Me virei para a máquina de lavar roupa sistema de tambor rotativo mas a Sra. podia ficar ofendida deu querer acabar com a sua roupa lavada no tanque, alvinha que nem pomba branca, Mammy esfrega e bate com tanto capricho enquanto eu estou no cinema ou tomo sorvete com a turma. Quase entrei na loja para comprar o aparelho de ar condicionado de 3 capacidades, nosso apartamentinho de fundo embaixo do terraço é um forno, mas a Sra. vive espirrando, o melhor é não inventar moda. 
Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liqüidificador de 3 velocidades, sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo para Mammy! gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é desses luxos, e a poltrona anatômica me tentou, é um estouro, mas eu sabia que a minha Mãezinha nunca tem tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de plástico perolado, par de meias, etc. Acabei achando tudo meio chato, tanta coisa para uma garotinha só comprar e uma pessoa só usar, mesmo sendo a Mãe mais bonita e merecedora do Universo. E depois, Mammy, eu não tinha nem 20 cruzeiros, eu pensava que na véspera deste Dia a gente recebesse não sei como uma carteira cheia de notas amarelas, não recebi nada e te ofereço este beijo bem beijado e carinhosão de tua filhinha Isabel.”
Sotaque mineiro: é ilegal, imoral ou engorda? (TRECHOS)
Felipe Peixoto Braga Netto
Cadê os lingüistas deste país? Sinto falta de um tratado geral das sotaques brasileiros. Não há nada que me fascine mais. Como é que as montanhas, matas ou mares influem tanto, e determinam a cadência e a sonoridade das palavras? (...)
O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar. Porque, se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar, sensual e lindo (das mineiras) ficou de fora?
Porque, Deus, que sotaque! Mineira devia nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.
Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Certa vez quase propus casamento a uma menina que me ligou por engano, só pelo sotaque.
Mas, se o sotaque desarma, as expressões são um capítulo à parte. Não vou exagerar, dizendo que a gente não se entende... Mas que é algo delicioso descobrir, aos poucos, as expressões daqui, ah isso é...
Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas. Preferem, sabe-se lá por que, abandoná-las no meio do caminho (não dizem: pode parar, dizem: 'pó parar'. Não dizem: onde eu estou?, dizem: 'ôndôtô?'). Parece que as palavras, para os mineiros, são como aqueles chatos que pedem carona. Quando você percebe a roubada, prefere deixá-los no caminho.
Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem — lingüisticamente falando — apenas de uais, trens e sôs. Digo-lhes que não.
Mineiro não fala que o sujeito é competente em tal ou qual atividade. Fala que ele é bom de serviço. Pouco importa que seja um juiz, um jogador de futebol ou um ator de filme pornô. Se der no couro — metaforicamente falando, claro — ele é bom de serviço. Faz sentido...
Mineiras não usam o famosíssimo tudo bem. Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra: 'cê tá boa?' Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa, é como perguntar a um peixe se ele sabe nadar. Desnecessário.
Há outras. Vamos supor que você esteja tendo um caso com uma mulher casada. Um amigo seu, se for mineiro, vai chegar e dizer: — Mexe com isso não, sô (leia-se: sai dessa, é fria, etc).
O verbo 'mexer', para os mineiros, tem os mais amplos significados. Quer dizer, por exemplo, trabalhar. Se lhe perguntarem com o que você mexe, não fique ofendido. Querem saber o seu ofício.
Os mineiros também não gostam do verbo conseguir. Aqui ninguém consegue nada. Você não dá conta. Sôcê (se você) acha que não vai chegar a tempo, você liga e diz:
— Aqui, não vou dar conta de chegar na hora, não, sô.
Esse 'aqui' é outro que só tem aqui. É antecedente obrigatório, sob pena de punição pública, de qualquer frase. É mais usada, no entanto, quando você quer falar e não estão lhe dando muita atenção: é uma forma de dizer, olá, me escutem, por favor. É a última instância antes de jogar um pão de queijo na cabeça do interlocutor.
Mineiras não dizem 'apaixonado por'. Dizem, sabe-se lá por que, 'apaixonado com'. Soa engraçado aos ouvidos forasteiros. Ouve-se a toda hora: 'Ah, eu apaixonei com ele...'. Ou: 'sou doida com ele' (ele, no caso, pode ser você, um carro, um cachorro). Elas vivem apaixonadas com alguma coisa.
Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe. É um tal de bonitim, fechadim, e por aí vai. Já me acostumei a ouvir: 'E aí, vão?'. Traduzo: 'E aí, vamos?'. Não caia na besteira de esperar um 'vamos' completo de uma mineira. Não ouvirá nunca.
Na verdade, o mineiro é o baiano lingüístico. A preguiça chegou aqui e armou rede. O mineiro não pronuncia uma palavra completa nem com uma

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