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C opyright © 2005, Livraria M artins Fontes Editora Ltda.. São P aulo, para a presente edição. 1- edição 2002 (Editora LZN) 3â edição 2004 (Editora Vox) 4- edição revista e ampliada 2005 Acompanhamento editorial H elena Guimarães Bittencourt Preparação do original Ana M aria de O. M . Barbosa Revisões gráficas M aria Luiza Favret lv an i A parecida M artins Cazarim D inarte Z orzanelli da Silva Produção gráfica Geraldo A lves Paginaçâo/Fotolitos Studio 3 D esenvolvim ento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Rodríguez, Víctor Gabriel A rgum entação ju ríd ica : técnicas de persu asão e lógica in- form al / V íctor G abriel Rodríguez. - 4* ed. - São Paulo : M artins Fontes, 2005. - (Justiça e direito) ISBN 85-336-2194-9 1. A rgum entação forense 2. Lógica 3. Persuasão (Retórica) I. Título. 05-6235 C D U -34:16 índices para catálogo sistemático: 1. A rgum entação jurídica 34:16 Todos os direitos desta edição reservados à Livraria Martins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ram alho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 e-mail: m fo@m artinsfontes.com .br http:llwwio.martinsfontes.com .br Capítulo I A argumentação existente Estudar argumentação não significa, hoje, rever discur- sos empolados. Mas não resta dúvida de que, em sistema ju - rídico aberto, essa disciplina alcança campo de estudo muito maior que o para ela reservado alguns anos atrás. Por quê? "Terias preferido limpar os estábulos de Áugias"1, afir- mou o imperador Cláudio a Hércules, querendo provar que o herói teria preferido fazer a limpeza daqueles estábulos, o que representara um de seus doze trabalhos, a administrar a justiça e ouvir a argumentação dos advogados. Realmen- te, fica a impressão de que a argumentação, para quem a faz ou a escuta, seja algo enfadonho, ligado aos discursos lon- gos, empolados e capciosos de advogados e políticos, que muito falam e pouco dizem. E, a julgar pela antiguidade da citação, essa impressão não é nova. Mas será que toda argumentação é enfadonha? Quando se pretende tornar um tema qualquer aplicável a determinada realidade, não se pode afastar dela. Assim, se aqui se tem o anseio de, como já apresentado na Introdu- ção, rever algumas técnicas argumentativas para colaborar com o operador do Direito na construção de seu discurso persuasivo, ou seja, na forma de tomar mais convincentes suas teses, precisamos, a princípio, saber se existe realmen- te compatibilidade entre a teoria e a prática, se o mundo real demanda ou ao menos aceita as técnicas argumentativas a serem desenvolvidas. 1. "Maluisses cloacas Augeae purgare". In: TOSI, Renzo. Dicionário de sen- tenças latinas e gregas, p. 747. 2 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Em outras palavras, para dar continuidade à questão anterior, procuremos apresentar a resposta a esta pergun- ta: para o operador do Direito atual é importante bem ar- gumentar? A resposta não é imediata. A experiência na atividade forense não raro tem mostrado a toda classe de operadores do Direito algo como a massificação da atividade: os advo- gados, com demandas em excesso, algumas delas financei- ramente pouco promissoras, utilizam-se dos recursos tec- nológicos para reproduzir argumentações copiadas de tex- tos já existentes, nem sempre com propriedade. Juizes, dian- te da obrigatoriedade de dar célere desfecho às lides sob sua presidência, proferem julgados cujo relatório mal per- mite ao leitor depreender que seu autor tenha sequer to- mado conhecimento da extensão e dos limites do processo. Na fundamentação das decisões judiciais a praxe não al- cança caminho diverso: a pressa em proferir a decisão e a repetição das teses levadas a juízo justificam, ao menos na aparência, discursos progressivamente sucintos ou padro- nizados, com remissões a outros julgados como prova de legitimidade do posicionamento adotado, quando não se furtando a responder a argumentos pertinentes de ambas as partes demandantes, que merecem, na exposição do ra- ciocínio do julgador, a demonstração do devido provimen- to jurisdicional. Mas esse problema não é exclusivo do discurso jurídi- co e pode ser encontrado em todo o contexto social, que ousamos rapidamente invadir. A linguagem se dinamiza, e, à medida que a velocidade de transporte de informações aumenta, diminui - ao menos é o que parece - o espaço para a construção do raciocínio argumentativo. Isto é observável em nosso cotidiano: su- portes eletrônicos armazenam quantidade inimaginável de texto, um disco de leitura de computador consegue guardar mais jurisprudência que, quiçá, uma biblioteca inteira; mais que isso, todo esse teor de informações pode ser transporta- do virtualmente pela internet, em questão de fração de se- gundos, para o ponto mais distante do globo. A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 3 Ter à disposição um número excessivo de informações, a exemplo do mundo virtual levado a efeito pela internet, não significa, porém, maior possibilidade de construção de raciocínio. De forma paradoxal, parece que o efeito é total- mente inverso: uma geração criada com as inúmeras infor- mações da televisão e da internet parece - ao menos parece - cada vez menos capaz de uma construção argumentati- va competente, de elaboração de teses e raciocínios con- vincentes. Isto porque, nesse excesso de informações, dispensa- mos cada vez menos atenção aos raciocínios mais comple- xos. O fluxo informativo é tão caudaloso que qualquer com- binação entre enunciados mais intrincados, ao menos nas matérias humanas, parece ser de menor importância, dis- pensável. Não há tempo de compreendê-lo, quanto mais de elaborá-lo. A velocidade de produção e absorção de in- formações não permite reflexão aprofundada. Tomemos por exemplo um jornal impresso qualquer, desses de grande circulação nacional. Um periódico mo- derno tem várias seções: empregos, internacional, cultura, informática, imóveis, tecnologia, caderno rural, cada qual com sua miríade de informações, produzidas por agências de notícias espalhadas pelo mundo. São tantas as informa- ções disponíveis ao alcance da redação do jornal que fica difícil selecionar o que irá ser publicado. Nesse contexto, as notícias, porque várias, assumem tamanhos menores, sen- do raras as reflexões, as opiniões aprofundadas a respeito de cada uma delas, salvo em uma ou outra página de edito- rial ou em um destaque especial. O periódico que trouxer notícias muito longas, procurando conduzir seus leitores a uma reflexão mais aprofundada, pode ver surgir contra si um efeito deletério: dispondo de pouco tempo para absorver in- formações, os leitores elegem o jornal concorrente, que lhes fornece conteúdo parecido, exigindo menor leitura. Pior ainda ocorre com um jornal televisivo, que conta com minutos e segundos cronometrados para apresentar um denso, ou melhor, um extenso conteúdo informativo: suas 4 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA notícias serão compactadas ao extremo, e procurar-se-á asi- lo nas imagens para complementar a linguagem telegráfica que o compõe. Tudo isso não é novidade, apenas ilustração: queremos velocidade na comunicação porque temos pouco tempo dis- ponível para qualquer atividade, principalmente as secun- dárias. Maximizar produção, otimizar o tempo, aplicar a reengenharia das atividades são máximas do discurso da Administração de Empresas, que convergem para um úni- co ponto: a necessidade de cortar excessos, de concentrar informações, de não se estender em raciocínios que não se- jam, antes de tudo, produtivos. Daí, no contexto empresarial, a comunicação sempre direta, as mensagens curtas, as reu- niões céleres, a tecnologia fazendo por si só tudo quanto lhe for possível. Quando voltamos à área jurídica - percebe-se - a reali- dade não é em nada diversa, seguindo essa mesma tendên- cia: as petições são feitas com forçosa rapidez, muitas vezes recheadas de julgados de pertinência discutível, masa que se tem fácil acesso. O trabalho argumentativo afigura-se menos compensador porque surte resultados progressiva- mente menores: na medida em que os juizes não se persua- dem com a leitura, o tempo de redação de um texto suasório ou o tempo de preparação de um discurso para convenci- mento, na reengenharia moderna, pode ser mais bem utili- zado na realização de uma audiência, na apreciação de ou- tro processo, em outra reunião em que se cuide de maior valor econômico etc. É aí que a argumentação parece perder espaço na ativi- dade do advogado e, conseqüentemente, dos demais ope- radores do Direito. A produção exige fins e não meios, e a re- tórica do advogado aparece como exemplo mais corriqueiro de um meio pouco adequado ao fim perseguido, o resultado interessante ao cliente. Será possível, realmente, encarar hoje a argumentação dessa maneira? Para se falar bem claro, é possível crer que, para o advogado de hoje, é necessário mais o conhecimen- A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 5 to jurídico propriamente dito e menos a retórica, a argu- mentação? E a teoria da argumentação seria algo do passa- do, daqueles advogados antigos que gostavam de discursos longos e monótonos, que seriam totalmente inadequados ao ritmo da advocacia moderna? A argumentação é coisa do passado? Manuel Atienza, na introdução de seu trabalho As ra- zões do direito2, traz como premissa a seguinte afirmação: Ninguém duvida que prática do Direito consista, fun- damentalmente, em argumentar, e todos costumamos con- vir em que a qualidade que melhor define o que se entende por um "bom jurista" talvez seja a sua capacidade de cons- truir argumentos e m anejá-los com facilidade. A premissa é agradável e precisa a todos os estudiosos, mas nossa humilde experiência em sala de aula tem de- monstrado que a idéia de capacidade argumentativa como qualidade principal do jurista não tem sido aceita de forma tão unânime como observa o autor. Visões imediatistas ou reducionistas do Direito, observadas do prisma mercadoló- gico, por vezes trazem a ilusão de que a argumentação seja atividade de menor importância para o advogado, como es- tudo, por assim dizer, antiprodutivo. Daí a necessidade des- tas informações iniciais, dando conta de que a argumenta- ção é trabalho importante de todo operador do Direito, por mais grave que seja sua demanda por produção. Vamos responder negativamente. A argumentação é tão imprescindível ao operador do Direito quanto o conhe- cimento jurídico. Como atividade provinda do raciocínio humano, o Direito não se articula por si só, daí porque so- mente pode ser aplicado através de argumentos. São os ar- gumentos os caminhos, os trilhos da articulação e da apli- cação do Direito. No Direito, nada se faz sem explicação. Não se formu- la um pedido a um juiz sem que se explique o porquê dele, 2. As razões do direito, p. 19. 6 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA caso contrário diz-se que o pedido é desarrazoado. Da mes- ma forma, nenhum juiz pode proferir uma decisão sem ex- plicar os motivos dela, e para isso constrói raciocínio argu- mentativo. Sem argumentação, o Direito é inerte e inoperante, pois fica paralisado nas letras da lei, no papel. A partir do momento em que se exercita o Direito - e é essa a função de todo profissional que nessa área atua - , a argumentação passa a ser imprescindível. Ela surge de várias fontes: da doutrina dos professores que interpretam e analisam o or- denamento jurídico, das peças dos advogados que articu- lam teses para adequar seu caso concreto a um ou a outro cânone da lei, da decisão dos juizes que justificam a adoção de determinado resultado para um caso concreto. Argumentação é instrumento de trabalho do próprio Direito, e então é objeto de previsão legal. Quando a Cons- tituição fala em fundamentos da decisão legal, evidentemen- te está se referindo aos argumentos formulados pelo Poder Judiciário (embora ainda façamos alguma distinção entre fundamentação e argumentação propriamente dita, mas com princípios muito próximos). Quando determinado re- curso cuida a respeito das razões, pede os argumentos que o sustentam, caso contrário será inoperante. Os argumentos são também a própria essência do ra- ciocínio jurídico. A teoria do Direito somente é aceita na me- dida em que bons argumentos a sustentem, e também só pode ser aplicada a um caso concreto se outros argumentos demonstrarem a coerência entre estes e a teoria. Nesse contexto, quem mais argumenta, melhor opera o Direito, melhor o aplica. O conhecimento jurídico propriamente dito represen- ta, então, uma série de informações que se encontram à dis- posição do argumentante, mas elas por si mesmas não ga- rantem a capacidade de persuasão. Informações puras não se combinam, não fazem ninguém chegar a conclusão al- guma, a não ser que sejam intencionalmente dirigidas, arti- culadas para convencer alguém a respeito de algo. A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 7 Por exemplo: uma folha de antecedentes criminais do réu juntada aos autos de um processo constitui uma infor- mação, assim como um livro de doutrina jurídica representa também um conteúdo informativo denso em relação a um caso concreto que se pretenda defender. Eles não têm fun- ção autônoma para alterar o resultado de um processo judi- cial qualquer, a não ser que sejam invocados como razão, intencionalmente, por um trabalho de raciocínio: a folha de antecedentes, revelando primariedade do acusado, pode convencer um juiz a aplicar-lhe uma pena no mínimo legal, assim como a citação de um trecho do livro de doutrina ju- rídica pode convencer a respeito de determinada tese, expli- cada e defendida por uma reconhecida autoridade no cam- po do Direito. Em ambos os casos, à informação foi aplica- do um raciocínio argumentativo, e somente a partir disso ela passou a surtir um efeito prático. Assim, a argumentação é a própria prática do Direito, é como ele se opera, principalmente nas lides forenses. En- gana-se quem pensa que apenas o conhecimento jurídico interessa ao operador do Direito, pois este representa con- teúdo essencialmente informativo. Por isso, voltando à nossa primeira questão formulada, pode-se dizer que nem toda argumentação é enfadonha, pois assim o próprio Direito o seria. A argumentação é a prática e a dinâmica da operação do Direito, o que nele há de mais ágil e concreto. E vale estudá-la como meio de aprimoramento da atividade jurídica como um todo. Toda- via, quem pensa em construção argumentativa como aque- le discurso retórico complexo, gongórico, e no estudo da argumentação com reiterada referência a escolas clássicas, pode-se supreender com o estilo deste livro. O que faremos será constituir um estudo com método que efetivamente contribua para a atividade do operador do Direito, de for- ma que enriqueça sua enunciação argumentativa e tenha parâmetros e exemplos suficientes para conhecer a boa ar- gumentação e assim poder aplicá-la ao conjugar-se com seu conhecimento jurídico em busca de um resultado pretendi- do. Basta conhecer os métodos. 8 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA Um mínimo escorço histórico O estudo da argumentação data de antes de Cristo, e sua evolução na Antiguidade pode merecer análise apro- fundada para aquele que aprecie a matéria. Porém aqui pre- ferimos não nos prolongar nesse percurso histórico, apenas naquilo que se faz essencial para realçar a importância do estudo desta nossa matéria no Direito atual. É porque recentemente passaram a existir trabalhos pioneiros de inserção da disciplina de argumentação nas faculdades de Direito brasileiras e, sem falsa modéstia, te- mos atualmente a honra de participar e dirigir tal matéria em instituições que se preocupam muito com a formação aca- dêmica integral de seus alunos, que ora nos ocupamos em demonstrar como o estudo dessa disciplina bem se aplica ao Direito. Mas foi no início de 1970 que um filósofo do Di- reito, e também lingüista, Chaím Perelman (autor, dentre outras obras, do Tratado da argumentação: a nova retórica,já com edição brasileira pela Martins Fontes, 1996) inseriu o curso de argumentação na Universidade de Bruxelas. Por isso, recorremos a ele para discorrer uns poucos parágrafos a respeito da pertinência deste estudo, e desta disciplina, na visão atual que se tem do Direito, ainda que incorramos em certo reducionismo, ou seja, na falta de consideração de alguns fatores muito importantes no assunto. O autor nota que, durante séculos, o papel da argu- mentação no Direito era secundário porque as decisões ju - diciais não necessitavam ser fundamentadas. O juiz, que deveria buscar antes de tudo o "justo", tinha fontes do Di- reito não muito claras e não raro confundia - porque assim o era - os preceitos jurídicos com critérios morais e religio- sos. O Direito restringia-se quase à atribuição de certos ór- gãos para legislar e outros para aplicar a lei. Sem a necessi- dade de fundamentação específica dos julgados, de persua- são racional, era natural que o papel da argumentação e de seu estudo fosse alijado a segundo plano, ainda que valores e maior subjetividade fossem elastério para a aplicação de A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 9 elementos de persuasão. Pense-se, por exemplo, no abso- lutismo monárquico, em que o rei intervinha nas decisões judiciais e raramente se encontravam sentenças com gran- des fundamentos, somente uma sucinta exposição de con- texto probatório. Por isso Perelman elege a Revolução Francesa como marco importante para a diferenciação de todo esse con- texto. De fato, o advento da separação de poderes, as leis es- critas e a obrigatoriedade de fundamentação das decisões judiciais trouxeram à tona a necessidade da construção do discurso, dos processos escritos, da racionalização do pro- cesso de construção do Direito. Depois de muito tempo de arbitrariedade, a Revolução Francesa marca como maior va- lor jurídico a segurança e a igualdade, ali entendidos como conformidade da decisão com a lei prévia. O juiz submete- se à letra da lei, e é isso o que mais há de relevante em sua atividade: a racionalização como fuga ao subjetivismo e aos privilégios. E em todo esse contexto misturam-se as idéias de Dar- win, determinando uma origem genética para a raça huma- na em evolução de espécies, Freud dizendo que pode inter- pretar sonhos e descobrir a origem para as personalidades, seguidores de enciclopedistas opondo-se à fé e recontando a história, e assim a cultura como um todo aproxima-se do auge do empirismo, da impressão de que, grosso modo, to- dos os fenômenos podem ser explicados no laboratório. E enquanto o mundo vive o fascínio, como ilustra o persona- gem Brás Cubas, da "pura fé dos olhos pretos e das consti- tuições escritas", quando passa "fazendo romantismo prá- tico e liberalismo teórico", no campo das ciências humanas floresce o positivismo de Comte, refratado no Direito por pensadores como Duguit e Hans Kelsen. O Direito afasta- se definitivamente do jusnaturalismo, da crença de que exis- tam valores superiores às leis postas e, assim, procura siste- matizar sua atividade com o raciocínio e o cálculo quase cartesiano em sua aplicação. Evolução louvável, mas que parece trazer à argumentação, à linguagem natural e às téc- 10 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA nicas de persuasão menor valor, porque afastados da exati- dão que demandava o raciocínio jurídico àquele tempo, im- pregnado de concepções naturalistas. Porém a crença nos valores exatos e deterministas che- ga a tal ponto que um tirano calcula que consegue desen- volver empiricamente uma raça naturalmente superior no mundo, a ariana. Tal superioridade física justificaria, de for- ma empírica, a dominação e o possível extermínio das raças inferiores. Assim, a Segunda Grande Guerra chegou a ex- tremos de quase conduzir a humanidade à extinção. Ao mesmo tempo, o ser humano observa a matemática e a en- genharia, que construiu máquinas absolutamente moder- nas, que tanto eram admiradas, incrementar o instrumental bélico e transformar-se em potencial de morte e extermí- nio. Mais ou menos por esse percurso é que Perelman ele- ge o processo de Nuremberg como marco de uma nova vi- são na filosofia do Direito, quando demonstrou que um Es- tado poderia ser criminoso. Em outras palavras, ainda que juridicamente posto, o Estado poderia ser tremendamente injusto. E cruel. Entre a Revolução Francesa e o processo de Nuremberg o que se viu foi a valorização do aspecto absolutamente for- mal e sistemático do raciocínio judiciário, embora atualmente este entendimento seja tido como parcialmente superado. É que se percebe que trabalhar com valores sociais, com ex- pectativas e com conceitos mais amplos, ou confusos, como justiça e igualdade, também é tarefa do Direito como maté- ria humana. Nas palavras de Perelman, "faz algumas déca- das que assistimos a uma reação que, sem chegar a ser um retorno ao Direito natural, ao modo próprio dos séculos XVII e XVIII, ainda assim confia ao juiz a missão de buscar, para cada litígio particular, uma solução eqüitativa e razoável, pe- dindo-lhe ao mesmo tempo que permaneça, para consegui- lo, dentro dos limites autorizados por seu sistema de Direito". O Direito como processo absolutamente empírico e na- turalista está superado. As mais diversas áreas de seu estu- do estão progredindo cada vez mais para acrescentar valo- A ARGUMENTAÇÃO EXISTENTE 11 res e possibilidade de argumentação em cada processo e até mesmo conceito da ciência jurídica. Os conceitos têm-se flexibilizado para poder trabalhar paradigmas humanos e acrescentar carga valorativa a seu processo de aplicação. Nesse sentido, o ordenamento jurídico não mais signi- fica verdade absoluta de um sistema fechado, até porque, como veremos, algumas características suas, indeclináveis, impedem-no de contar com essa exatidão. Encarar o Direi- to como sistema aberto, que permite a analogia, a compa- ração, a absorção de características próprias da sociedade cultural implica dar maior relevo à atividade argumentati- va, que demonstra, entre as várias soluções possíveis para uma lide, uma mais razoável. Assim, o ordenamento jurídi- co não é posto de lado, mas encarado como fator orienta- dor e limitador de uma atividade argumentativa que se ini- cia com aquele que pleiteia a aplicação da norma e termi- na com aquele que a decide, todos em um grande processo comunicativo. E a tendência à abertura da hermenêutica do sistema jurídico tem feito desta matéria, a argumentação, algo acei- to e cada vez mais aprofundado nas faculdades de Direito, o que é bastante proveitoso. Capítulo II O argumento Para compreender a argumentação deve-se abandonar o conceito binário de certo/errado. No Direito concorrem te- ses diferentes, e não necessariamente existe uma verdadeira e outra falsa. O que existe é, no momento da decisão, uma tese mais convincente que as demais. Vimos que a argumentação é necessária àquele que tra- balha com o Direito, pois o conhecimento jurídico desen- volve-se por meio de argumentos. Mas o que são os argumentos? Sem nenhuma dúvida, definir o argumento de um modo bastante simples terá para nós efeito prático. Acompanhemos, então, essa definição. Os três tipos de discurso Argumentar é a arte de procurar, em situação comuni- cativa, os meios de persuasão disponíveis. A argumentação processa-se por meio do discurso, ou seja, por palavras que se encadeiam, formando um todo coeso e cheio de sentido, que produz um efeito racional no ouvinte. Quanto mais coeso e coerente for o discurso, maior será sua capacidade de adesão à mente do ouvinte, por- quanto este o absorverá com facilidade, deixando transpa- recer menores lacunas. Desde Aristóteles, adota-se uma divisão tripartite en- tre os tipos de discurso. O critério de diferenciação entre eles é o auditório a que se dirige, ou seja, quem são os destinatá- rios finais das mensagens transmitidas pelo discurso. Para cada tipo de auditório, uma maneira distinta de compor o texto que lhe será levado a conhecimento. ARGUMENTAÇÃOJURÍDICA Pode-se citar Aristóteles: São três os gêneros da retórica, do mesmo modo que três são as categorias de ouvintes dos discursos. Com efeito, um discurso comporta três elementos: a pessoa que fala, o assunto de que se fala e a pessoa a quem se fala. O fim do discurso refere-se a esta última, que eu chamo o ouvinte. O ouvinte é, necessariamente, um espectador ou um juiz. Se exerce a função de juiz, terá de se pronunciar ou sobre o pas- sado ou sobre o futuro. Aquele que tem de decidir sobre o futuro é, por exemplo, o membro da assembléia. O que tem de se pronunciar sobre o passado é, por exemplo, o juiz pro- priamente dito. Aquele que só tem que se pronunciar sobre a faculdade oratória é o espectador.1 São os tipos de discurso em Aristóteles: a) O discurso deliberativo é aquele cujo auditório é uma assembléia tal qual um senado - atual ou da Grécia antiga. A assembléia é chamada a decidir questões futuras: um projeto, uma lei que deverá ser aplicada, o direcionamento de um ou outro plano para se atin- gir uma meta. Enfim, questões políticas, em que se discute o que é útil, conveniente ou adequado. b) O discurso judiciário é aquele que se dirige a um juiz ou a um tribunal. Nele decidem-se questões que di- zem respeito ao tempo pretérito. Tudo o que está do- cumentado em um processo qualquer são, evidente- mente, questões do passado, ainda que possam tra- zer como resultado eventos futuros. Tais fatos pas- sam por um esclarecimento, para que se comprove sua ocorrência de determinada forma, e depois vão a julgamento, quando são atingidos por um juízo de valor, para que se lhes aplique determinada con- seqüência. Para Aristóteles, o discurso judiciário pode ser a acusação ou a defesa. E esse o tipo de discurso que 1. Arte rctórica. Capítulo III. O ARGUMENTO 15 aqui mais nos interessa, na medida em que nos pro- pomos a tratar da argumentação jurídica, c) O discurso epidíctico ou demonstrativo é aquele co- locado a uma platéia para louvar ou censurar deter- minada pessoa ou fato, não se interagindo com o ou- vinte a ponto de este necessitar tomar posição sobre o que lhe é relatado. Esse é o tipo de discurso, por exemplo, dos comícios políticos atuais, a que com- parecem apenas os eleitores daquele a quem cabe a fala principal, diante de uma enorme platéia, enalte- cendo seus próprios predicados. Mesmo no discurso demonstrativo, em que não existe contraditório, está presente a arte retórica, de valorizar os pontos favoráveis àquele que fala. Por exemplo, é porque em um comício político um candidato não encontra, em número relevante, opositores a quem discursar que sua fala pode deixar de trilhar um caminho argumentativo que leve à adesão de seus ouvintes às idéias que são momentanea- mente proferidas. Veja-se que curioso o trecho de Arte retórica, de Aristó- teles, intitulado "Habilidade em louvar o que não merece louvor": Convém igualmente utilizar os traços vizinhos daque- les que realmente existem num indivíduo, a fim de os con- fundir de algum modo, tendo em mira o elogio ou a censura; por exemplo, do homem cauteloso, dir-se-á que é reservado e calculista; do insensato, que é honrado; daquele que não reage a coisa alguma, que é de caráter fácil [...]. Importa igualmente ter em conta as pessoas diante das quais se faz o elogio, pois, como diz Sócrates, não custa louvar os atenien- ses na presença de atenienses.2 O que têm em comum os três tipos de discurso vistos? A resposta é simples: todos procuram convencer. Ainda no 2. Idem, p. 63. 16 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA discurso demonstrativo, cuja única finalidade é enaltecer ou criticar determinada pessoa ou atitude, procura-se conven- cer os ouvintes a respeito daquilo que se fala: que determi- nada pessoa é importante, que só tem qualidades etc. Mas a platéia que temos, quando nos voltamos à ativi- dade principal do operador do Direito, é o juiz ou tribunal, e, se o Poder Judiciário existe para pacificar contendas, tem- se duas partes debatendo. Quando se argumenta nas ativida- des forenses, na acusação ou na defesa, não se tem como fim principal a deliberação ou o elogio, mas sim a vitória em uma controvérsia. E a idéia de controvérsia nos conduz a alguns outros comentários um tanto pertinentes. Como a disputa é con- dição do discurso judiciário, este reveste-se de qualidades que lhe são peculiares, que vale compreender. A disputa entre dois certos Participar do discurso judiciário é envolver-se em uma demanda, em uma disputa entre partes. Cada uma das par- tes, como bem se sabe, procura obter para si o melhor re- sultado: a sentença e o acórdão favorável. Para isso, têm de fazer vingar uma tese, que envolve questões relativas à pro- va dos fatos alegados e à incidência de determinado insti- tuto ou conseqüência previstos por lei, para que se aplique o Direito ao efetivo caso concreto. Por isso as partes se di- gladiam, afinal, seria desnecessário um juiz se não houves- se controvérsia: poderia ser fechado um acordo de vontades, tal qual ocorre na assinatura de um contrato. Mas não é as- sim, naturalmente: cada uma das partes, quando se socorre do Poder Judiciário, entende estar com a razão, às vezes lançando sobre a realidade um olhar por demais compro- metido com seus próprios interesses. Na justiça criminal assim também ocorre, pois, ainda que um réu venha a re- conhecer seu erro pelo cometimento de um delito, sempre entenderá merecer reprimenda mais leve que a que seu per- secutor lhe deseja. O ARGUMENTO 17 No Direito, quando se fala em disputa havida por meio da argumentação, surge, primariamente, sempre a idéia do justo. Se duas partes debatem, é natural que se entenda que ao menos uma delas não deva estar com a razão, não seja acobertada pelo Direito, pois não é possível que duas idéias contrárias estejam certas. Sob tal ótica, a argumentação ou a retórica seriam um instrumento de fazer com que aquele que não tem razão se valha de artifícios formais para enganar o julgador3. Quem nunca viu um advogado ser chamado de velhaco porque disfarça a verdade através de truques, de falácias em seu discurso? Essa idéia não é rara, mas bastante tragicômica. Em um evidente prejulgamento, entende-se a argumentação como um debate entre um certo e um errado. Ora, se duas teses são conflitantes, uma é correta, outra não, e a disputa da argu- mentação somente viria a revelar quem é essa parte que procura fazer uma comprovação impossível. Assim, o de- bate argumentativo poderia ser comparado àquelas ima- gens dos desenhos animados: a personalidade do protago- nista divide-se em dois pólos diferentes: à esquerda, sua imagem travestida de demônio o tenta a uma atitude eviden- temente má, enquanto a mesma figura, travestida de anjo, tenta dissuadi-lo, mostrando-lhe o caminho do bem. Fácil sa- ber quem tem a razão, qual o melhor caminho, apenas de- cidindo-se procurar a forma angelical. Alguns tentam ver as lides processuais com a mesma obviedade que o jocoso discurso entre o anjo e o demônio, afirmando fazer uso do conceito de justiça. A disputa argu- mentativa seria uma lide em que se daria a oportunidade de retirar o véu que encobre a divisão entre o justo e o in- justo: aquele que tem o direito e a justiça a seu lado reforça sua razão, mostrando, por meio de argumentos, que seu ra- ciocínio é o único correto porque decorre de premissas vá- 3. "Fada, non verba" - Fatos, não palavras! Frase latina que indica que a argumentação é dispensável porque visa turbar a realidade.
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