Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
INGRESSANTES Sociologia Módulo 5 - Meios de comunicação e Indústria cultural Henri Lefebvre – A sociedade burocrática de consumo dirigido Para compreender o processo pelo qual “o mundo [que] se torna mundial” determina o cotidiano de uma sociedade cada vez mais marcada pelo predomínio “da coisa sobre o homem”, o filósofo francês, Henri Lefebvre, propôs-se a definir essa sociedade que se configurava no final da década de 1960. A trajetória de seu pensamento sobre essa questão - abordada em suas últimas obras, dentre as quais tomamos aqui La vida cotidiana en el mundo moderno (1968) - inicia refletindo que a denominação de “sociedade burguesa” ou “capitalista” já não detém o mesmo alcance explicativo, nessa época de significativas transformações técnicas e tecnológicas, políticas, econômicas e sociais; do mesmo modo que a designação de “sociedade industrial” – a despeito do acelerado crescimento da produção industrial nos países do mundo moderno e do intenso processo de industrialização da agricultura – igualmente não satisfaz, visto não ser possível afirmar que a “mundialização da indústria e a industrialização mundial” caminham para uma homogeneidade racional. Em outros termos, significa dizer que mesmo não sendo uma expressão em si falsa, ela reporta a uma totalidade - a sociedade industrial -, que nos leva a desconsiderar as várias sociedades industriais existentes. Além disso, a referida denominação subentende a ênfase no crescimento econômico, sem levar em conta o desenvolvimento social, e fato de que a sociedade industrial só adquire sentido ao produzir a vida urbana em sua plenitude - de objetos a relações sociais, pressupondo, portanto, “a produção pelo ser humano de sua própria vida”, e, consequentemente, a ideia de cultura (cf. op. cit., p. 45) -, já que, do contrário, ela significaria meramente “produzir por produzir”. Por outro lado, Lefebvre argumenta que a enorme importância da técnica, na sociedade dita industrial, também não justifica chamá-la de “sociedade técnica”, pois esta seria uma verdade parcial, já que, além do “meio técnico”, a técnica necessita do “meio urbano” para se constituir e se propagar, compondo, assim, a vida social não só de produtos materiais, mas também de ideologias, valores e signos; sem contar, ainda, a ressalva de que a técnica não é um fator autônomo, tanto economicamente, como socialmente, na medida em que ela também necessita de uma “camada” social para se difundir, isto é, os tecnocratas. No entanto, o filósofo Módulo 5 - Meios de comunicação e Indústria cultural Sociologia INGRESSANTES enfatiza que a derivação de “sociedade técnica” para “sociedade tecnocrática” igualmente não se justifica, uma vez que tanto quanto a técnica, também a tecnocracia não é autônoma, já que a competência dos tecnocratas depende de uma técnica que não se aplica à totalidade da vida social. Esse quadro leva à reflexão sobre outra forma de denominação da sociedade daquele período histórico, e que encontrou eco junto aos ideólogos americanos, que é a de “sociedade da abundância”, baseada na ideia de que a produção industrial associada à “tecnicidade” focada na automatização das atividades produtivas levaria a uma produtividade ilimitada. Entretanto, Lefebvre, além de apontar que tal combinação é contraditória com o capitalismo - ao anular a premissa do valor de troca, com a probabilidade de se obter a gratuidade dos produtos industriais tornados abundantes -, argumenta que tal denominação levaria a novamente ignorar que os países altamente desenvolvidos não são homogêneos, mas, ao contrário, neles coexistem não só traços de uma “antiga pobreza” baseada na “miséria material”, como também de uma “nova pobreza” que se origina da escassez para satisfazer as novas necessidades culturais e sociais - que incluem as necessidades de espaço, de tempo, de Festa (em oposição ao mundo do trabalho), e, até mesmo, de desejo dessas necessidades -, e que “se instaura, se generaliza, proletariza camadas sociais novas (os „colarinhos brancos‟, os empregados, uma boa parte dos técnicos e das „profissões liberais‟ etc.)” (ibidem, p. 70). Dentre essas novas necessidades, adquire cada vez maior importância, no mundo observado por Lefebvre, a necessidade do ócio, que modifica as necessidades já existentes, ao contrapor o novo “centro de preocupações” do homem moderno – representado no culto à diversão e às férias - à “fadiga da vida moderna”, simbolizada no ritmo acelerado do tempo da atividade de trabalho (idem, p. 71). Desse modo, portanto, verifica-se a substituição da nomenclatura “sociedade da abundância” pela nova denominação de “sociedade do ócio”, já que a grande possibilidade de transformação da vida social residiria mais na passagem do “trabalho ao ócio”, do que na de “escassez à abundância”. Entretanto, Lefebvre objeta que somente “uma automatização integral da produção permitiria a sociedade do ócio” (p. 71), pressupondo, para tanto, a necessidade de uma exploração desenfreada da força de trabalho de ao menos duas gerações de trabalhadores. Por isso, o filósofo conclui que o ócio continua sendo, na sociedade moderna, apenas a INGRESSANTES Sociologia Módulo 5 - Meios de comunicação e Indústria cultural possibilidade de ruptura momentânea do mundo do trabalho, pela diversão proporcionada pela televisão, pelo cinema, pelas viagens de férias, pelo consumo do lúdico, enfim. Com o foco da reflexão teórica incidindo sobre uma sociedade cada vez mais caracterizada, nos países industrializados, pelo consumo de bens materiais e culturais, tem origem sua nova denominação como “sociedade de consumo”. Nesse momento, anos 1960, a publicidade se torna “o primeiro dos bens consumíveis” (p. 74), ao constituir a mediação entre produtores e consumidores; ela produz, simultaneamente, as necessidades assim como o desejo de satisfação dessas necessidades, e, por isso, ela passa a ser, segundo Lefebvre, a própria “retórica” dessa sociedade. Mas, a despeito de instaurar uma nova cultura baseada na abundância das necessidades e da produção, e no consumo alimentado pela ideologia do consumo como “razão de felicidade”, essa “sociedade” ainda não pode ser denominada como “de consumo”, segundo Lefebvre, uma vez que nela o importante não é o consumidor e tampouco o objeto que é consumido, mas sim, “a representação do consumidor e do ato de consumir” (p. 74), com a substituição do “homem ativo” e produtivo pela imagem do “homem consumidor”. Após questionar todas as nomenclaturas aqui apresentadas, não por serem falsas, mas por não contemplarem a totalidade da realidade social, Lefebvre propõe uma denominação que enfatiza e reúne as características fundamentais nelas encontradas, definindo, então, a sociedade observada no final da década de 1960, como “sociedade burocrática de consumo dirigido” (p. 79). Ou seja, uma sociedade norteada por uma racionalidade técnica, que é limitada, por ser burocrática (isto é, planificada e organizada em níveis hierarquizados), e que se organiza com base no consumo (em detrimento da produção) voltado ao plano do cotidiano (entendido como a relação entre o trabalho, a vida familiar, e o lazer, estabelecida a partir de uma precisa organização do emprego do tempo). O objetivo primeiro e último dessa sociedade é a “satisfação”. Esta consiste em uma “saturação” - ou seja, a necessidade constitui um vazio, devidamente delimitado, que ao ser preenchido, já engendra uma nova necessidade, de tal modo que “as necessidades oscilam entre a satisfação e a insatisfação” (p. 102). Gera-se, Módulo 5 - Meios de comunicação e Indústria cultural Sociologia INGRESSANTES assim, um “malestar”, uma vez que a satisfação do vazio do objeto explicita o vazio de sentido desse objeto e também de sua satisfação. Por isso, Lefebvre diz que o malestar que caracterizaessa sociedade acaba constituindo um fato social e cultural. Nessa sociedade, culturalmente pautada pela ideologia de consumo, a permanente necessidade de satisfação das necessidades se soma à “obsolescência da necessidade”, pois não só os objetos têm prazo de validade, como também as motivações e os desejos para consumi-los. Isso significa dizer que os objetos precisam se tornar efêmeros, para que as necessidades se tornem velhas e possam, assim, ser rapidamente substituídas por novas necessidades, que reproduzirão o consumo. Trata-se, portanto, da “estratégia do desejo”, que define, conforme Lefebvre, o “monopólio de uma classe social” que dita a moda e o gosto, e impõe o culto do efêmero como “estratégia de classe” (cf. p. 105 e 106). Por sua vez, a essa efemeridade se contrapõe a necessidade de “programar o cotidiano”, mas a partir de uma prática determinada pelo imaginário social, pois, como bem o exemplifica a imprensa, o sentido da vida cotidiana acaba sendo orientado pelos horóscopos; do mesmo modo que, na imprensa feminina, prescrevem-se fórmulas e indicações exatas para se obter qualquer objeto do desejo, desde roupas a móveis e casas, estruturando, assim, a maneira de viver e de ser das leitoras, ao permitir-lhes “sonhar com o que se vê, e ver o que se sonha” (p. 110). Em outras palavras, os problemas da vida cotidiana passam a ser resolvidos por “soluções fictícias” que se sobrepõem às “soluções reais”, sempre quando estas últimas são ou parecem ser “impossíveis”. Ao enfatizar, portanto, que o consumo constitui tanto um “ato imaginário”, fictício, como um “ato real” - uma vez que não há separação entre o consumo de objetos e o consumo de signos, imagens, representações; ou entre o consumo real e o consumo imaginário/e/consumo do imaginário – Lefebvre analisa não só a relação de alguns segmentos sociais (mulheres; jovens; intelectuais), como também das classes sociais com o consumo e a ideologia do consumo. Em relação às mulheres, o filósofo diz que elas são tanto consumidoras, como também são consumidas - ao serem elas próprias “mercadorias” e “símbolos da mercadoria” ofertada nos veículos de publicidade que recorrem a diferentes INGRESSANTES Sociologia Módulo 5 - Meios de comunicação e Indústria cultural formas de linguagem para apregoar o consumo da nudez e do sorriso femininos -, além de também serem alvos do consumo representado na indústria da moda, e da beleza. Já no que se refere aos jovens, Lefebvre argumenta que sobre eles pode recair a “mitologia da idade adulta”, e, consequentemente, a “resignação” ao modelo cultural de paternidade e de maternidade; ou, então, pode ocorrer a recusa veemente à sociedade do malestar, sob diferentes formas: a vagabundagem, o recurso às drogas, ou ainda, por meio da solidariedade e da cumplicidade. E, por fim, no que diz respeito aos intelectuais, Lefebvre diz que embora eles estejam dentro do cotidiano, eles se pensam e se vêem fora dele, encontrando no imaginário a possibilidade de evasão de sua vida real plena de limitações e coerções, tornando- se, então, escritores e jornalistas reconhecidos, ou técnicos a serviço das autoridades etc. (cf. p. 96, 117 e 118). Já no que se refere às classes médias, Lefebvre aponta a busca permanente pela satisfação, em sua vida cotidiana marcada pela ausência de estilo, com apenas “migalhas de riqueza, [e] nem uma parcela de poder, nem de prestígio” (p. 119); ou seja, a não ser pelo fato de terem um pouco mais de recursos e de entradas, sua vida não difere substancialmente da do proletariado. Em contrapartida, o filósofo chama a grande burguesia de “os moradores do Olimpo”, já que eles representam, no imaginário social, o sonho e o “possível”; mas, embora a publicidade os apresente como tendo uma vida cotidiana superior, eles sequer têm residência fixa, pois vivem temporariamente em diferentes cidades ou países, habitando diferentes formas de moradia, que vão de iates a castelos. Por fim, no que concerne à classe operária, Lefebvre diz que por viver entre os “signos do consumo” e o “consumo dos signos”, ela, que já não percebia a exploração de que era vítima nas relações de produção, percebe menos ainda, graças à ideologia do consumo, a sua submissão no plano do consumo, embora se dê conta de sua frustração - pois, como diz Lefebvre, “todos [nós] pedimos a cada dia (ou cada semana) nossa ração do imaginário [...], [embora ele] tenha a função de mascarar o predomínio das coações, a escassa capacidade de apropriação, a agudeza dos conflitos e dos problemas „reais‟ [...]” (p. 115). Texto escrito especialmente para este módulo com base em Lefebvre.
Compartilhar