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As palavras e as coisas

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APÊNDICE C: PALAVRAS E COISAS 
[A seção final do artigo de Freud sobre ‘O Inconsciente’ parece ter raízes em sua antiga monografia sobre afasia (1891b). Por conseguinte, talvez seja de interesse reproduzir aqui um trecho daquele trabalho que, embora não particularmente fácil de acompanhar, lança luz sobre as suposições subjacentes a alguns dos conceitos ulteriores de Freud. O trecho possui ainda o interesse incidental de apresentar Freud na posição bastante inusitada de se expressar na linguagem técnica da psicologia ‘acadêmica’ do fim do século XIX. A passagem aqui reproduzida vem depois de uma sucessão de argumentos anatômicos e fisiológicos destrutivos e construtivos, a qual conduziu Freud a um esquema hipotético a respeito do funcionamento neurológico por ele descrito como o ‘aparelho da fala’. Deve-se observar, contudo, que há uma diferença importante, e talvez perturbadora, entre a terminologia que Freud emprega aqui e a que emprega em ‘O Inconsciente’. Aqui, o que ele denomina de ‘apresentação do objeto’ é o que em ‘O Inconsciente’, chama de ‘apresentação da coisa’; ao passo que o que em ‘O Inconsciente’ ele denomina de a ‘apresentação do objeto’denota um complexo formado pela ‘apresentação da coisa’ e pela ‘apresentação do objeto’ combinadas - um complexo que não recebeu nome algum no trecho da Afasia. A tradução foi feita especialmente para esta ocasião, já que, por motivos de terminologia, a que foi publicada não se adapta inteiramente à finalidade presente. Da mesma forma que na última seção de ‘O Inconsciente’, aqui empregamos sempre a palavra ‘apresentação’ para traduzir o alemão ‘Vorstellung‘, enquanto ‘imagem’ traduz o alemão ‘Bild‘. O trecho vai da pág. 74 à pág. 81 da edição alemã original.] 
Proponho agora considerar quais as hipóteses necessárias para explicar as perturbações da fala à base de um aparelho fonador construído dessa maneira - em outras palavras, considerar o que o estudo da perturbação da fala nos ensina sobre a função desse aparelho. Ao fazê-lo, manterei os aspectos psicológico e anatômico da questão tão isolados quanto possível. Do ponto de vista da psicologia, a unidade da função da fala é a “palavra”, uma apresentação complexa, que vem a ser uma combinação de elementos auditivos, visuais e cinestésicos. Devemos nosso conhecimento dessa combinação à patologia, que nos mostra que, nas lesões orgânicas do aparelho da fala, ocorre uma desintegração da fala nos moldes em que a combinação é feita. Esperamos assim verificar que a ausência de um desses elementos da apresentação da palavra venha a ser a indicação mais importante para que cheguemos a uma localização da doença. Distinguem-se, em geral, quatro componentes da apresentação da palavra: a ‘imagem sonora’, a ‘imagem visual da letra’, a ‘imagem motora da fala’ e a ‘imagem motora da escrita’. Essa combinação, porém, se torna mais complicada quando se entra no processo provável da associação que se verifica em cada uma das várias atividades da fala: - (1) Aprendemos a falar associando uma ‘imagem sonora de uma palavra’ com um ‘sentido da inervação de uma palavra’. Após termos falado, ficamos também de posse de uma ‘apresentação motora da fala’ (sensações centrípetas provenientes dos órgãos da fala); de modo que, sob um aspecto motor, a ‘palavra’ é duplamente determinada para nós. Dos dois elementos determinantes, o primeiro - a apresentação da palavra inervatória - parece ter menor valor do ponto de vista psicológico; na realidade, seu aparecimento, se é que ele ocorre, como fator psíquico pode ser contestado. Além disso, depois de falarmos, recebemos uma ‘imagem sonora’ da palavra falada. Enquanto não tivermos desenvolvido muito nossa capacidade de fala, essa segunda imagem sonora não precisa ser a mesma que a primeira, mas apenas associada a ela. Nessa fase do desenvolvimento da fala - a da primeira infância -, usamos uma linguagem que nós mesmos construímos. Comportamo-nos como os afásicos motores, pois associamos diversos sons verbais exteriores a um único som produzido por nós mesmos. (2) Aprendemos a falar a língua de outras pessoas esforçando-nos por tornar a imagem sonora produzida por nós tão igual quanto possível à que deu lugar à nossa inervação da fala. Aprendemos dessa forma a ‘repetir’ - ‘dizer à imitação de’ outra pessoa. Quando justapomos as palavras no discurso encadeado, retemos a inervação da palavra seguinte até que a imagem sonora ou a apresentação motora da fala (ou ambas) da palavra precedente nos tenha alcançado. A segurança de nossa fala é assim superdeterminada, podendo facilmente suportar a perda de um ou outro dos fatores determinantes. Por outro lado, uma perda da correção exercida pela segunda imagem sonora e pela imagem motora da fala explica algumas das peculiaridades, tanto fisiológicas como patológicas, da parafasia. (3) Aprendemos a soletrar ligando as imagens visuais das letras a novas imagens sonoras, as quais, por seu lado, devem nos lembrar os sons verbais que já conhecemos. Imediatamente ‘repetimos’ a imagem sonora que denota a letra, de modo que também se observa que as letras são determinadas por duas imagens sonoras que coincidem, e duas apresentações motoras que se correspondem. (4) Aprendemos a ler ligando, de acordo com certas regras, a sucessão de apresentações inervatórias e motoras da palavra que recebemos quando enunciamos letras isoladas, de modo a fazer surgir novas apresentações motoras da palavra. Assim que dizemos em voz alta essas novas apresentações da palavra, descobrimos por suas imagens sonoras que as duas imagens motoras e imagens sonoras que recebemos dessa forma, de há muito nos são familiares e idênticas às imagens empregadas no falar. Associamos então o significado ligado aos sons verbais primários às imagens sonoras adquiridas pela soletração. Agora lemos com compreensão. Se o que foi falado primariamente foi um dialeto e não uma língua literária, as imagens motoras e sonoras das palavras adquiridas pela soletração têm de ser superassociadas às imagens antigas; assim, temos de aprender uma nova língua - tarefa facilitada pela semelhança entre o dialeto e a língua literária. Ver-se-á, por essa descrição da aprendizagem da leitura, que se trata de um processo muito complicado, no qual o curso das associações deve repetidamente mover-se para frente e para trás. Estaremos também preparados para verificar que perturbações da leitura na afasia tendem a ocorrer numa grande variedade de formas. A única coisa que decisivamente indica uma lesão no elemento visual da leitura é uma perturbação na leitura de letras separadas. A combinação de letras numa palavra ocorre durante a transmissão ao trato da palavra e conseqüentemente será abolida na afasia motora. Só se chega a uma compreensão do que é lido por intermédio das imagens sonoras produzidas pelas palavras que foram enunciadas, ou através das imagens motoras de palavras que surgiram ao falarmos. Vê-se, portanto, que se trata de uma função que é extinta não somente onde há lesões motoras, mas também onde há lesões acústicas. Verifica-se, ainda, que compreender o que é lido é uma função independente do desempenho da leitura. Qualquer um pode descobrir pela auto-observação que existem várias espécies de leitura, em algumas das quais não chegamos a compreender o que é lido. Quando estou lendo provas com a intenção de prestar atenção especial às imagens visuais das letras e de outros sinais tipográficos, o sentido do que leio me escapa tão inteiramente, que tenho de ler todas as provas novamente de maneira especial, se quiser corrigir o estilo. Quando, por outro lado, leio um livro que me interessa, um romance, por exemplo, desprezo todos os erros de impressão; e pode acontecer que os nomes das personagens deixem apenas uma impressão confusa em minha mente - uma recordação, talvez, de que são longos ou curtos, ou contêm alguma letra inusitada, como um ‘x’ ou um ‘z’. Quando tenho de ler em voz alta, e tenho de prestar particular atenção às imagens sonoras de minhas palavras e aos intervalos entre elas mais umavez corro o perigo de me preocupar muito pouco com o significado das palavras e logo que me fatigo leio de tal maneira que, embora outras pessoas ainda possam compreender o que estou lendo, eu próprio não sei mais o que leio. Esses são fenômenos de atenção dividida, que surgem precisamente aqui porque uma compreensão do que é lido só ocorre de forma muito indireta. Se o processo da própria leitura oferece dificuldades, não há mais dúvida quanto à compreensão. Isso fica claro pela analogia com o nosso comportamento quando estamos aprendendo a ler; devemos ter o cuidado de não considerar a ausência de compreensão como prova de interrupção de um trato. A leitura em voz alta não deve ser considerada como um processo de algum modo diferente da leitura silenciosa, a não ser pelo fato de que ela ajuda a atenção da parte sensorial do processo de leitura. (5) Aprendemos a escrever reproduzindo as imagens visuais das letras por meio de imagens inervatórias da mão, até que essas mesmas imagens visuais ou outras semelhantes apareçam. Em geral, as imagens da escrita são apenas semelhantes às imagens da leitura e superassociadas a elas, visto que o que aprendemos a ler é impresso e o que aprendemos a escrever é manuscrito. Escrever vem a ser um processo comparativamente simples e que não está tão sujeito à perturbação quanto a leitura. (6) É de se presumir que posteriormente também realizemos essas diferentes funções da fala nos mesmos moldes associativos em que as aprendemos. Nessa fase ulterior, podem ocorrer abreviaturas e substituições, mas nem sempre é fácil dizer qual a sua natureza. Sua importância é diminuída pela consideração de que em casos de lesão orgânica o aparelho da fala provavelmente será, até certo ponto, danificado em seu todo e compelido a voltar às modalidades de associação primárias, bem estabelecidas e mais extensas. Quanto à leitura, a ‘imagem visual da palavra’ indubitavelmente faz sentir sua influência em leitores dotados de prática, de modo que as palavras individuais (particularmente os nomes próprios) podem ser lidas sem que sejam soletradas. Uma palavra é, portanto, uma apresentação complexa que consiste nas imagens acima enumeradas; ou, dizendo-o de outra forma, corresponde à palavra um complicado processo associativo no qual se reúnem os elementos de origem visual, acústica e cenestésica enumerados acima. Uma palavra, contudo, adquire seu significado ligando-se a uma ‘apresentação do objeto’, pelo menos se nos restringirmos a uma consideração de substantivos. A própria apresentação do objeto é, mais uma vez, um complexo de associações formado por uma grande variedade de apresentações visuais, acústicas, táteis, cenestésicas e outras. A filosofia nos diz que uma apresentação do objeto consiste simplesmente nisso - que a aparência de haver uma ‘coisa’ de cujos vários ‘atributos’ essas impressões dos sentidos dão testemunho, deve-se meramente ao fato de que, ao enumerarmos as impressões sensoriais que recebemos de um objeto, pressupomos a possibilidade de haver grande número de outras impressões na mesma cadeia de associações (J.S. Mill). Assim, a apresentação do objeto é vista como uma apresentação que não é fechada e quase como uma que não pode ser fechada, enquanto que a apresentação da palavra é vista como algo fechado, muito embora capaz de extensão. A patologia das perturbações da fala leva-nos a asseverar que a apresentação da palavra está ligada em sua extremidade sensorial (por suas imagens sonoras) à apresentação do objeto. Chegamos, assim, a duas espécies de perturbação da fala: (1) uma afasia de primeira ordem, afasia verbal, na qual somente são perturbadas as associações entre os elementos separados da apresentação da palavra; e (2) uma afasia de segunda ordem, afasia assimbólica, na qual é perturbada a associação entre a apresentação da palavra e a apresentação do objeto. Emprego o termo ‘assimbolia’ num sentido diverso do que lhe tem sido comumente atribuído desde Finkelnburg, porque me parece que a relação entre a [apresentação da] palavra e a apresentação do objeto merece muito mais ser descrita como ‘simbólica’ do que a relação entre o objeto e a apresentação do objeto. Para as perturbações no reconhecimento de objetos que Finkelnburg classifica como assimbolia, gostaria de propor o termo ‘agnosia’. É possível que perturbações ‘agnósticas’ (que só podem ocorrer em casos de lesões corticais bilaterais e extensas) possam também acarretar uma perturbação da fala, visto que todos os incitamentos ao falar espontâneo provêm do campo das associações de objeto. Eu chamaria essas perturbações da fala de afasias de terceira ordem ou afasias agnósticas. A observação clínica trouxe de fato ao nosso conhecimento alguns casos que devem ser encarados dessa forma…

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