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MST e a Cultura
Ademar Bogo
outubro 2000
Sumário
Apresentação............................................................................. 3
Introdução.......................................................................................5
1. O que é cultura e como se apresenta ...................................8
1.1. A formação de nosso povo..............................................10
1.2. A cultura dos rejeitados................................................15
1.3. A cultura dos sem terra..................................................22
1.3.1. Memória histórica .........................................27
1.3.2. As virtudes extraordinárias.................................30
1.3.3. A consciência estética..........................................36
2. A revolução cultural.............................................................47
2.1. O que é a revolução........................................................48
2.2. As possibilidades da revolução cultural.......................61
3. Pilares de nossa revolução cultural........................................72
4. Conclusão.................................................................92
Apresentação
A cultura é nossa vida
Estimados companheiros,
É com muita alegria que estamos apresentando a toda nossa
militância, mais esse caderno de formação. Agora, com um tema
que há muito tempo gostaríamos de ter tipo oportunidade de
publicar: a questão da cultura em nosso movimento, em nossos
assentamentos e comunidades rurais.
Em geral, temos uma falsa idéia ao identificarmos a questão
da cultura apenas como atividades culturais de nossa sociedade
relacionadas com nossa tradição musical, do teatro e da pintura.
Na verdade, a questão da cultura é muito mais abrangente, está
relacionada com todas as nossas atividades quotidianas; nossos
hábitos, nossos costumes, nossas tradições, nossas inovações. Está
relacionada com toda nossa vida.
As reflexões reunidas neste caderno pelo companheiro
Ademar Bogo, certamente nos ajudarão a discutir na base, tanto
a compreensão como o estímulo ao desenvolvimento das inú-
meras atividades relacionadas à cultura.Mas valorizar a questão
da cultura não é apenas valorizar os mais diferentes aspectos de
nossa vida. No contexto histórico atual se reveste de uma
importância ainda maior. Há uma hegemonia política ideológica
e (também) cultural, do modus vivendi burguês, do consumismo,
de valorização apenas das coisas que acontecem na cidade. Como
se a urbanização, como se as atividades que acontecem nas
metrópoles fossem as únicas importantes para nosso povo. Pior,
está em curso um modelo agrícola que marginaliza o meio rural
e inviabiliza a agricultura familiar e as comunidades rurais
esparramadas pelo nosso imenso território.
Nesse contexto, discutir então a questão da cultura adquire
um significado político e ideológico muito importante, pois a
resistência a essa ofensiva neoliberal está relacionada também à
cultura, aos nossos costumes e valores do meio rural e do MST
como movimento social.Como disse o Prof. Horacio Martins,
“mais do que nunca as comunidades do meio rural, os trabalha-
dores rurais precisam desenvolver uma cultura de resistência e de
valorização, de auto-estima, como trabalhadores rurais, para
poderem enfrentar a avalanche da ofensiva neoliberal”.
Por último, a reflexão de cultura está relacionada também
à prática de nossos valores enquanto indivíduos comprometidos
com o bem estar social de todos, comprometidos com os princí-
pios da Justiça, da igualdade e do bem comum. E relacionada
com os valores sociais, coletivos, que nosso movimento defende,
que precisa estimular e propagar no meio rural.
Certamente, este caderno de formação será muito útil para
entendermos, refletirmos e melhorarmos nossa prática cotidiana
de militantes sociais, por mudanças no meio rural.
São Paulo, outubro 2000
Coletivo Nacional do Setor de Cultura e Educação
55555O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Introdução
O MST, por sua natureza, é um movimento de massas.
Carrega em si uma enormidade de diferenças, hábitos, jeitos,
métodos e comportamentos que às vezes confundem os inimigos,
que por fazermos certas ações ousadas, acreditam que deixamos
de ser um Movimento forte e lutador.
É verdade que não é fácil relacionar e entender tudo o que
fazemos, por se tratar de coisas diferentes, mas que estão muito ligadas.
Acontece que as características do MST não admitem que se
faça uma coisa isolada da outra. Por isso é que dizemos que no
MST temos a cultura da organicidade, que nada mais é que a
ligação de uma parte, de uma atividade com outra.
Quando encanamos a água colocamos um cano mais grosso
ao pé da fonte ou da rede principal. Depois colocamos curvas
nos canos para fazer a água subir e descer. Aí colocamos um
cano mais fino, e para não desperdiçar água, colocamos na ponta
do cano uma torneira. Isso pode ser um exemplo de organicidade
onde a justeza de uma parte complementa a outra.
A luta vai criando hábitos e jeitos que dão identidade à
organização e aos poucos descobrimos que a cada passo
construímos nossa existência, que chamamos de MST. Assim
ocupamos terra, lutamos por créditos, educamos crianças,
construímos casas e escolas, participamos de disputas eleitorais,
gravamos CDs, protestamos contra as privatizações, fazemos
ações de solidariedade.
Tudo isso vai fazendo parte da vida da gente que luta no
MST. Será que isto tem algo a ver com cultura?
66666 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Tem muito a ver. Por que não podemos considerar cultura
somente aquilo que está ligado com a arte. A arte é a capacidade
que o ser humano tem de criar. Logo, temos capacidade de criar
músicas, mas também criamos as lutas, as escolas, os barracos,
as casas, o método de fazer reuniões, as marchas, etc. Significa
que tudo isso vai se transformando em cultura.
O que precisamos fazer é tornar esses gestos do cotidiano em
conscientes, para que analisemos tudo que fazemos, se contribui
ou não para o melhoramento da vida e da organização social.
Há hábitos que repetimos há dezenas de anos e não percebemos
que prejudicam nossa saúde. Há tipos de alimentos que ingerimos
que também não fazem bem à saúde. Às vezes o jeito de trabalhar,
andar, relacionar-se, perceber as coisas, solucionar problemas, etc.
não ajudam a melhorar a existência social, por isso dizemos que
precisamos fazer uma revolução cultural, que nada mais é que colocar
as coisas em outra ordem.
Nossa tarefa imediata é desenvolver a consciência nas
diferentes áreas da vida humana, para que se possa superar os
atrasos culturais que pairam sobre determinados aspectos.
Devemos corrigir desvios surgidos a partir da convivência social,
e possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais.
É fundamental avançar e consolidar a identidade nacional
através dos hábitos, costumes, práticas e valores. A isto
chamaremos de unidade em torno da expressão cultural que
dará maior qualidade à consciência.
Cada vez mais a cultura se tornará consciência, porque tudo
o que fazemos e sentimos constituirá a existência de nossa orga-
nização. Assim a educação, a religião, o trabalho, a mecanização,
a preservação da natureza, a agrovila, a agroindústria, a beleza
nos assentamentos, as músicas, a mística, enfim, tudo o que
77777O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
existe ou acontece no assentamento é a cultura dos trabalhadores
Sem Terra, que se manifesta e transforma-se em consciência social
na medida em que as pessoas passam a repetir tais manifestações
de forma consciente e se preocupam em desenvolver aspectos
para aperfeiçoar a construção da existência social nas áreas de
reforma agrária.
88888 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
1. O que é cultura
e como seapresenta
 A definição da palavra é importante e devemos tomá-la como
ponto de partida para iniciarmos nossa discussão. “Cultura, culto
e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio
passado é cultus e o particípio futuro é culturus”. É o que nos diz
Alfredo Bosi, concluindo que “colo significou na língua de Roma,
eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo
o campo”1 .
Portanto, em sua origem, a cultura está vinculada ao cultivo
da terra e por decorrência, ao trabalho.
Verificando na história que a divisão social do trabalho se
deu justamente quando os seres humanos descobriram a
agricultura e passaram a cultivar sementes, da produção destas
sementes é que dependia a existência das comunidades primitivas.
Logo chegamos a uma conclusão muito simples, que cultura,
trabalho e existência estão interligados. Por isso definimos que
cultura é tudo o que fazemos para produzir nossa existência.
Se fazemos coisas, dependemos do emprego da força física
e, portanto, do trabalho. Mas nada podemos fazer sem aplicar
uma outra força que somente o ser humano tem: a capacidade
para criar. Logo, a cultura é também criatividade.
Mas ao fazermos as coisas também nos emocionamos,
sentimos alegria, projetamos sonhos. Logo, a existência é produ-
zida com emoção.
1 
Alfredo Bosi, Dialética da Colonização.
99999O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Dizemos isto para confirmar que cultura para nós significa
tudo o que criamos, fazemos e sentimos ao produzir nossa
existência.
Karl Marx ao estudar a questão, encontrou justamente esses
elementos, em que o homem emprega para produzir um objeto,
ou seja, emprega “força física e espiritual”. “Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, a abelha supera mais que
um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o
pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura em sua mente
construção antes de transformá-la em realidade. No fim do pro-
cesso de trabalho aparece um resultado que já existia antes ideal-
mente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas
o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto
que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei
determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar
sua vontade. E esta subordinação não é um ato fortuito. Além
do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade
adequada que se manifesta através da atenção durante todo o
curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos
se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de
execução de sua tarefa, que lhe oferece menos possibilidade de
fruir da aplicação das suas forças físicas e espirituais”2 .
Isto quer dizer que no processo de trabalho o ser humano
altera a natureza e ao mesmo tempo a sua própria natureza,
aperfeiçoando assim as qualidades humanas. Daí é que vem a
teoria materialista e diz que foi “o trabalho quem criou o homem”.
O ser humano na sua essência é o resultado do trabalho.
Além de o trabalho produzir o sustento humano, ele é respon-
2
 Karl Marx. O Capital, T.1, p. 202.
1010101010 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
sável pelo relacionamento, afetividade, convivência, desenvol-
vimento da consciência social, etc. Por isso é que se divide em
produtivo e improdutivo. O primeiro cria objetos materiais, o
segundo possibilita o surgimento do conhecimento, da organi-
zação social, formação e educação ideológica, etc. Isto tudo rela-
cionado formará a cultura.
Os costumes, comportamentos, valores, ensinamentos são
heranças culturais que recebemos de nossos antepassados como
se fossem objetos de uso, os utilizamos sempre que necessitamos
e às vezes sem nos dar conta. Por isso é que há culturas diferentes,
pois além de tudo ela é produzida em um certo lugar com
determinadas condições que não existem em todos os lugares.
Isto pode ser empregado para se analisar um povo ou
simplesmente uma organização social que vai modificando suas
características culturais com o passar do tempo.
1.1. A formação de nosso povo
Se as palavras “povo novo” ditas por Darcy Ribeiro, definem
as características do povo brasileiro organizado em sociedade,
que completa 500 anos de formação, o que dizer de nós que
temos menos de duas décadas de organização enquanto
trabalhadores Sem Terra?
As características desse “povo novo” brasileiro estão relacio-
nadas pela “confluência” de matrizes raciais diferentes, “tradições
culturais distintas”, que se encontrarão forçadamente para formar
uma nova estrutura de sociedade. E que embora imperial, terá
um novo modelo. “Novo porque surge como uma etnia nacional,
diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,
fortemente mestiçada (...) porque vê a si mesmo e é visto como
1111111111O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos
existam”3 .
Do geral ao particular. Há uma seqüência idêntica ao processo
que ocorreu na história da constituição do povo brasileiro com o
surgimento da categoria social “sem-terra”, formada pela mistura
das raças, para tornar-se “povo organizado” Sem Terra, sujeitos da
produção da própria história.
Agora, para concluir a miscigenação racial, mistura-se etnias
com objetivos comuns, a serem alcançados através da luta pela
libertação da terra e do próprio ser humano, com suas cores,
raças, costumes, práticas e valores.
Para realizar tal façanha, viemos de todas as penumbras.
Trazemos conosco embrulhados em sacos e lonas, pedaços da
história de exclusão, fragmentada e marcada, como se tivesse
sido (e foi) composta aos pedaços que não se combinaram; por
isso percebe-se nesta imagem os desencontros das partes
rompidas e emendadas pelo vigor do tempo.
As marcas desse tempo aparecem como olhos rasgados em
forma de cicatrizes, abertos no corpo e na história de cada
retirante, por onde se vê os passos de uma dura trajetória na
linha do próprio destino, e no seu silêncio mostram a resistência,
denunciam a perda de valores, pelo simples fato de termos
acreditado demais e por muito tempo, em nossos dominadores.
Os mesmos preconceitos tingiram as consciências e
obscureceram o espírito crítico, ajudando assim para que os
pobres nem sempre ficassem do mesmo lado, por isso era preciso
que surgisse essa possibilidade na história, para dizer a todos
aqueles que estavam abaixo da linha da esperança, que não nos
3
 Darcy Ribeiro. O povo Brasileiro. 1995, p. 19.
1212121212 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
dividimos por raças, nem por credos religiosos, mas sim por
classes, onde uma pequena quantidade de abastados coloca-se
acima da linha divisória, imposta para diferenciar riqueza de
pobreza e a grande maioria fica abaixo dela, tentando com
pequenos saltos alcançar algumas pontas de privilégio, que
pendem como fios de algodão doce. Na tentativa de alcançá-los
e subir por eles, não suportam o peso de quem quer subir e
quebram, ficando as pontas dessa tentação cada vez mais longe
das mãos dos pobres.
Excluídos como seres sociais não tivemos história regular.
As circunstâncias sempre foram irregulares, oscilando sempre
entre os interesses e as vaidades da classe dominante. Sendo assim,
a vontade dos senhores sempre foi superior aos direitos dos
servos, e os primeiros determinam o destino dos segundos,
imaginando que a força sempre tem primazia sobre a fraqueza.
Desta forma, estruturaram a sociedade com seus hábitos,
costumes, tradições e valores e os impuseram sem escrúpulos, a
laço, ferro em brasa e baixos salários, determinando sempre a
produção da existência humana e social a seu modo, sem deixar
de lado os privilégios.
Na verdade, as circunstâncias que encontramos já ao nascer
são diversas e ao abrir os olhos, herdamos imagens fisionômicas
quase sempredeformadas pelo sofrimento, miséria e esforço
físico demasiado. Mas sentimos por outro lado, carinho, acon-
chego, gritos de felicitações de quase uma dezena de meninos
que circulam ao redor da cama ou do berço, comemorando o
aparecimento de mais um irmão ou de mais um brinquedo para
as meninas, que com 5 ou 6 anos de idade, aprendem a carregar,
enforquilhado na cintura, o “objeto” querendo tornar-se gente.
Estas circunstâncias moldam os pobres como as vidraças das
1313131313O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
janelas que só podem ser talhadas daquele tamanho. As mãos do
poder pressionam para que se enquadrem dentro da “ordem”, sejam
obedientes e esperem pelas recompensas que os anos vão engolindo
uma a uma; por fim, engolem também as esperanças, e deitados
nos levam para dormir o longo sono, cobrindo-nos com um lençol
úmido e macio de terra, deixando para trás muitos rastros, que
serão reconhecidos por algum tempo, pelos descendentes herdeiros
das mesmas circunstâncias, impostas e vigiadas para continuar a
história que como castigo não se consegue renegar.
Mas existe outro caminho, onde as circunstâncias podem
ser feitas pelo homem?
Sim. Mas é preciso querer. Podemos intervir no rumo
da história, e através do esforço coletivo, acrescentar a ela
também nossos interesses e fazer o presente nascer de outros
sulcos abertos pelo arado da luta, plantando ali os sonhos,
de início pequenos, mas vigorosos, em busca de produzir a
existência através dos próprios passos em outras circunstân-
cias. “A formação do sem-terra, pois, não se dá pela assimila-
ção de discursos, mas, fundamentalmente, pela vivência
pessoal em ações de luta social, cuja força educativa costuma
ser proporcional ao grau de ruptura que estabelece com
padrões anteriores de existência social destes trabalhadores e
destas trabalhadoras da terra, exatamente porque isto exige a
elaboração de novas sínteses culturais”4 .
Então poderemos chamar tais passos de cultura consciente,
que faz e que se deixa fazer pelos carinhos sinceros que nada
prometem, apenas estimulam para que se continue caminhando.
4
 Caldart, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Ed. Vozes, 2000, p. 106.
1414141414 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Vivemos, portanto, para produzir nossa existência e coexistência
com todos os demais tipos de vida e para preparar as condições da
produção da existência das futuras gerações. É como se as futuras
gerações apenas nos emprestassem a terra e o tempo para vivermos
nosso pedaço de existência, entregando-lhes como pagamento tudo
o que conseguirmos produzir materialmente e espiritualmente em
nossa curta existência. Receberão elas em quaisquer circunstâncias
nossa herança cultural.
Essa herança cultural, produzida e repassada aos seres
individuais e sociais, não se limita apenas às descobertas e
invenções, nem tampouco as futuras gerações se acomodarão
em torno do que as antigas gerações descobriram. Haverá altera-
ções permanentes. Cada geração acrescenta nesta interligação
de gerações, suas próprias características, formando sua
identidade, sempre com a responsabilidade de preparar o
ambiente onde viverão as gerações posteriores.
A cultura, portanto, representa a produção material e
espiritual da existência, a produção da consciência e a formulação
de objetivos que poderão ser alcançados pela sucessão de várias
gerações. Assim se sucedem os inventos, as descobertas científicas,
as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativas
com seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos da
existência, os poetas e seresteiros, que buscam apaixonadamente
subir os mais altos degraus na escada que leva à felicidade.
Assim brincam os cantadores com as cordas, arrancando
delas melodias. Jogam futebol os atletas como se fossem deuses
rolando para o gol o universo que cabe sobre o pé. Sonham as
crianças com estórias ouvidas antes de dormir. Assim plantamos
e colhemos gerações que imprimem à história suas características
reconhecidas, reproduzidas ou renegadas, dependendo de sua
1515151515O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
importância e serventia.
De certa forma as gerações seguintes sempre nascem e se
forjam com o esforço das gerações passadas, tendo que levar
consigo como castigo ou como recompensa as impressões digitais
das mãos que moldaram a realidade.
O que fica das gerações que passam é a cultura em suas
diferentes dimensões, mesmo que seja perversa e desestruturante,
ainda é o resultado da existência de um grupo social. O fator
mais belo e interessante desta interligação é que temos o direito
de acrescentar ou retirar aspectos que não queremos carregar,
embora muitas vezes fiquem cicatrizes que jamais se apagarão da
face de nossa história. Por isso vale a pena viver através de gestos
conscientes, que contribuam para que a humanidade siga sua
trajetória na busca da utópica perfeição.
1.2. A cultura dos rejeitados
A perda de parte da identidade individual e grupal não é
suficiente para jogar para a indigência a existência já produzida.
Podemos perder os documentos, mas com eles não perdemos a
identidade. Mudamos de categoria social, mas continuamos na
classe dos explorados. Desta forma, quem classifica um ser hu-
mano de indigente é porque deseja identificá-lo pelos registros e
não aprendeu a ler em sua face as marcas da construção histórica.
Esse corpo esquálido e refugado migra em busca do que
fazer, empurrado mais pelos conselhos que pela determinação,
poderá recompor e reiniciar a produção da existência com raízes
culturais sólidas?
Muitas são as dúvidas e interrogações voltadas para a
reconstrução da cultura da população migrante. “A cultura
1616161616 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade.
(...) Como pensar em cultura popular num país de migrantes?”
Isto porque, “o migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas,
as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas,
a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de
louvar a seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem. Na cidade, a
sua fala é chamada “código restrito” pelos lingüistas; seu jeito
de viver, “carência cultural”, sua religião, crendice ou folclore.
Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos
de desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já
foram arrancadas, mas procurar o que pode renascer nessa terra
de erosão” 5 .
Apesar da imagem real do migrante na cidade onde deverá
“renascer na erosão” urbana, não devemos desprezar a possibilidade
do retorno para onde ficaram pedaços das raízes, isto porque, a
terra tem o poder de conservá-las vivas por muito tempo. É o que
denominamos caminho de volta para compensar o êxodo criminoso
que ocorreu no Brasil a partir da década de 60.
Embora sabendo que as circunstâncias mudam e que é
muito difícil recolocar a mesma cepa sobre o resto da raiz cortada
nessa fresta de tempo, acreditamos na força da terra e das pessoas
quando buscamos nas periferias das cidades, gente que ainda
tem condições de religar suas raízes, pois há terra que ainda é
possível cultivar com conhecimentos guardados na memória,
antes que a erosão do tempo também descaracterize a sabedoria
deitada na consciência desses caminheiros.
Poderíamos dizer que quando renegamos às coisas
conscientemente, estas se perdem rapidamente nos arquivos
5
Ecléa Bosi. Cultura e Desenraizamento; in Cultura Brasileira: temas e Situações, p. 17.
1717171717O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
sentimentais da cultura popular. Ao contrário de quando somos
forçados a separar-nos delas, as mantemos vivas através da saudade,
e por mais que o tempo passe ou que sejamos obrigadosa viver
diferentemente daquela situação antiga, propositadamente as
mantemos vivas como feridas no coração. Mesmo doendo, não
queremos que sarem. As recordações são ainda o que de bom nos
anima e faz-nos respirar a utopia.
Imaginemos que um camponês demitido do trabalho agrícola,
da monocultura do cacau, eucalipto, café, etc busca emprego na
pecuária extensiva. Ao mudar de lugar social mudará também as
relações de produção e sentirá imediatamente a diferença no falar,
no vestir, divertir, comercializar, etc. O vaqueiro é um ser “solitário”,
fala pouco, e seu vocabulário gira em torno de datas, números, ida-
des, nomes de remédios, sementes de capim e outras informações
relacionadas com a pecuária.
As festas e diversões mudam as características, são rodeios,
vaquejadas ou exposições que os patrões organizam e obrigam seus
peões a vestirem-se a rigor para encontrarem-se com os animais,
figuras simbólicas e místicas centrais dos eventos.
Mas o jeito de produzir a existência desse peão esconderá
superficialmente as marcas deixadas pela produção da existência
passada, quando era camponês ou empregado em outra atividade
agrícola. Muitas coisas são trazidas do passado que cabem nessa
nova situação e que ajudará na formação da identidade do peão,
feitas de hábitos e valores como a lealdade, sinceridade, fran-
queza, solidariedade, mas não poderá expor costumes, gostos e
outras características que ficarão adormecidas, para um dia, se
tiverem oportunidade, despertarem em uma nova realidade.
Portanto, embora “desenraizados”, os refugados do capital
mantêm vivas determinadas características que, forjadas na
1818181818 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
produção da existência individual e coletiva, em outras circuns-
tâncias, e que em novas condições poderão renascer possivelmente
de forma conservadora, podem servir como ponto de partida para
a produção de um novo pedaço de existência. A reforma agrária é
por excelência a possibilidade de religamento das raízes cortadas
por diversos fatores no passado, por ser um resgate coletivo e
comunitário delas. Por uma ou outra razão, ou por uma energia
invisível mas sentida, tais raízes permanecem verdes à espera do
pedaço que foi embora como o toco do jequitibá que fica ali,
imaginando que um dia o tronco possa voltar a assentar-se sobre
ele, por não ter aprendido a viver em outro lugar. Assim é o
sertanejo, “às vezes, até ganhando dinheiro, mas sempre lutando
contra a nostalgia da roça, um banzo peculiar, que fez com que o
povo saído do interior jamais se adaptasse inteiramente à vida na
cidade grande”6.
O afastamento do camponês da atividade produtiva ocasiona
num período histórico de descobrimentos tecnológicos, funda-
mentalmente na mecânica e na genética, um certo descompasso
entre o conhecimento empírico e o científico, mas não necessaria-
mente o conhecimento empírico ou experiencial seja descartável,
fundamentalmente na agricultura de subsistência.
Por mais tecnologias modernas que inventem, não há outra
forma de produzir alimentos a não ser primeiramente enterrando
sementes! Isto pode ser feito com moderníssimas máquinas de
plantar, como também com o dedo indicador da mão direita. O
que muda é a rapidez, mas a quantidade pode chegar a ser a
6 
Nepomuceno Rosa. Música Caipira: Da Roça ao Rodeio, 1999, p. 19.
1919191919O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mesma. Há no Brasil essa disparidade tecnológica entre as dife-
rentes regiões, onde em determinados lugares ignora-se a plan-
tadeira mecânica usando-se a enxada para abrir covas e enterrar
sementes, com a participação tríplice dos membros da família. O
pai usa a enxada, a criança o adubo e a mãe joga em quantidade
exata, em cada cova as sementes. Com o pé cobre-as para que
germinem. Assim, todos trabalham e não há desemprego da mão-
de-obra.
Desenvolve-se por outro lado, juntamente com a “cultura”
da existência, a cultura da resistência, de não entregar-se
totalmente aos embalos do cantarolar do consumismo
capitalista.
Pelas iniciativas de resistência, podemos identificar sinais de
vida na existência da população refugada e desprezada pelas forças
produtivas capitalistas. Podemos dizer mais, que a vontade de
viver faz surgir novas categorias profissionais, como os catadores
de papelão que a cada cinqüenta quilos recolhidos salvam uma
árvore. Catadores de latas, vendedores ambulantes, etc.
No campo da arte surgem grupos que mantêm a tradição
basicamente caipira, com suas músicas e rituais religiosos. Mesmo
vivendo fora do ambiente camponês, estas sobrevivem na
memória e nas recordações por muitos anos.
Se permanecer no campo, significa resistência ainda maior, e
não se desorganiza facilmente como diz Martins: “nessas condições,
a institucionalização das relações de comercialização do excedente
faz-se de forma que o mundo caipira não se desorganize
necessariamente nem quando há uma crise econômica no conjunto
da sociedade (como em 1929 e suas conseqüências durante quase
toda a década de 30) nem quando há uma conjuntura favorável no
mercado de produtos agropecuários, pois os setores propriamente
2020202020 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
urbanos absorvem a renda diferencial aí surgida”7.
Se no setor produtivo, onde se engendram relações de
trabalho, é praticamente impossível crises abalarem esse
intercâmbio de excedentes, muito mais difícil será arrancar as
experiências e aprendizados históricos, que se fixam no
conhecimento humano como sinais que não se apagam, nem
mesmo com a eliminação do corpo físico específico. Os conheci–
mentos permanecerão por muito tempo na memória dos
descendentes. A cultura, portanto, é algo concreto que se move
como uma força invisível no ambiente onde se produz a existência
de um determinado grupo social e influi profundamente em seu
comportamento.
Desta maneira o ser humano buscará formas de adaptar-se
aos ambientes, produzindo instrumentos e meios para garantir a
sobrevivência. Os animais, por sua vez, ao longo dos tempos são
obrigados a modificarem características físicas e inclusive
desenvolverem órgãos para buscar garantir a sobrevivência. A
cultura é o meio de adaptação8 dos seres ao meio ecológico,
possibilitando a aproximação ou o afastamento de grupos sociais.
A cultura do caipira no momento em que se desloca para a
cidade, expulso do campo, não se extingue com a mudança do
ambiente físico, pelo contrário, permanece por certo tempo
puramente caipira e é com ela que se defenderá no mundo
desconhecido. Há reserva no falar, não faz inimigos e por outro
lado, cultiva valores como a fidelidade, o compromisso, a
solidariedade entre os amigos e assim por diante. Essa cultura
7
 José de Souza Martins. Capitalismo e Tradicionalismo, 1975, p. 106.
8
 Laraia Roque de Barros. Cultura um conceito Antropológico, 1986, p. 49.
2121212121O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
com aroma de sertão, com o decorrer do tempo mistura-se ao
aroma produzido neste novo ambiente e se mantém, no imagi–
nário, à procura de novos horizontes.
Porque isso acontece? Simplesmente porque a cultura
popular usa a simbologia, os sentimentos e a palavra falada vin–
culada com a ação concreta. Relaciona-se com signos para
materializar-se em conhecimentos históricos. A cultura na sua
definição antropológica nos diz que é “o conjunto de modos de
ser, viver, pensar, falar de uma dada formação social”9 . Por isso
sua expansão se dá menos pela forma escrita e mais pela forma
oral, visual, sentimental, etc.; por isso acreditamos nesta
resistência da cultura dos refugados pelo capital, como fator
determinante para retomar a luta pela terra na busca do
“religamento” das raízes físicas e sentimentais. Estes dois pilares
nos fazem sentir atração, por exemplo, para conversar com
descendentes da luta de Canudos,onde Antônio Conselheiro
no sertão da Bahia desafiou todas as forças, inclusive as da
natureza e em meio à miséria e a seca construiu no final do
século XIX, a segunda maior cidade do Estado da Bahia. Ou
então com os descendentes do cangaço liderado por Lampião e
Maria Bonita, sempre no sentido de resgatar conhecimentos e
experiências.
Da mesma forma que lembramos dos heróis revolucio–
nários, recordamos nossos avós que viveram da produção, ligados
à terra e junto produziram conhecimentos que vamos passando
lentamente como um carro de boi que se arrasta à procura do
futuro.
9
 Alfredo Bosi. Dialética da Colonização, 1996, p. 319.
2222222222 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Não podemos deixar de lembrar que nosso país, embora
esteja completando quinhentos anos de exploração colonial e
imperial, tem menos de 50 anos de vida predominantemente
urbana. Antes disso a população majoritariamente vivia no
campo e produzia sua existência ligada à terra. Isto possibilita
falar da agricultura e tocar no imaginário ainda latente de conhe-
cimentos produzidos pelos avós deste povo, que mesmo
atualmente urbanizados, foram feitos de terra e carregam o cheiro
dela para onde forem.
1.3. A cultura dos sem terra
Sem Terra deixa de ser categoria social para tornar-se nome
próprio quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeito
para mudar de condição social através da organização política,
forjando daí sua própria identidade, com ideologia e valores.
Há uma mistura profunda entre gente, terra e ideologia,
na medida em que a caminhada provoca o encontro do ser
homem com o ser terra. São dois corpos físicos materiais que
possuem características e identidades que agora irão resgatar
reciprocamente a história das duas existências.
Embora sejam corpos físicos, é preciso entender que não
são apenas matéria. Tanto o homem quanto a terra possuem
aspectos que vão além das aparências, isto porque, não podemos
considerar apenas as coisas visíveis e tocáveis como totalidade
das coisas materiais. Nelas e dentro delas, há coisas que podemos
tocar e coisas que não podemos tocar, mas existem.
“Cada um sabe, com efeito, que há na realidade coisas que
podemos ver, tocar, medir, são chamadas materiais. Por outro
lado, há coisas que não podemos ver, nem tocar, nem medir,
2323232323O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mas que, nem por isso, deixam de existir, como nossas idéias,
nossos sentimentos, nossos desejos, nossas lembranças etc.; para
exprimir que não são materiais diz-se que são ideais. Dividimos,
assim, tudo que existe, em dois domínios: o material e o ideal.
Pode-se, também dizer, de maneira dialética, que o real apresenta
um aspecto material e um aspecto ideal”10 .
Resta entender qual é a parte visível, que podemos tocar, e
qual é a parte invisível da terra que não podemos tocar, mas que
podemos sentir e que por isso mesmo existe. Assim também
devemos proceder com o ser humano.
A terra tem em sua origem, a energia que se transforma em
potencial de ser mãe e gerar a vida de todas as espécies, sem se
preocupar com a convivência entre ambas, mas oferecendo com
seu sopro alimento para todas elas sem distinção. Na medida em
que as espécies não compreendem os ciclos da própria existência
e se destroem, a culpa não é da terra mas dos desequilíbrios das
próprias espécies, por não saberem conviver no mesmo espaço.
As que conseguem locomover-se buscam alimentos, retirando-
se, andando por sobre a terra, à procura de um espaço diferente.
Para as espécies em deslocamento, poderá haver variação de clima,
solo e temperatura, para a terra não. Ela se estende como um
imenso tapete colocado dentro da casa do universo, que se compõe
de diferentes repartições. Os seres vivos que se deslocam é que
vão da sala para o quarto, ou da sala para a varanda deste universo,
mas todos os cômodos fazem parte da mesma casa.
As plantas e todos os tipos de vida têm sua trajetória exis-
tencial. Teriam sua história escrita se esta possibilidade estivesse
10
 Georges Polítzer. Princípios Fundamentais de Filosofia, p.108.
2424242424 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
no vocabulário destas espécies que convivem com a vida humana.
Como não aprendemos falar a língua das plantas e das minhocas,
e estas não usam nossa caligrafia, pensamos que elas nada têm de
importante a dizer sobre sua existência. Por isso derrubamos as
plantas, matamos as minhocas e secamos a terra.
O ser humano por sua vez parece disputar com os demais
tipos de vida, lugar para viver e se mover sobre a terra. Por isso,
por onde passa destrói o que precisa e o que não precisa para
viver no momento.
Nossa cultura ainda deve assimilar a linguagem das plantas,
dos animais e das águas para poder dialogar em pé de igualdade
com todas elas. Talvez tenhamos sido mal acostumados pela filosofia
idealista, que defendeu por muitos anos que a terra era o centro do
universo e por isso o “homem” deu-se a incumbência de tomar
conta dela. “Crescer e multiplicar-se”, colocando-se acima das demais
espécies. Considerando-se o senhor da natureza.
Essa visão equivocada fez com que os seres humanos se mul-
tiplicassem, mutilando as demais espécies, que também deve-
riam multiplicar-se. Nesta competição fratricida, enquanto os
seres humanos se multiplicaram progressivamente, muitas
espécies subtraíram-se indiscriminadamente.
 Talvez as duas espécies que mais evoluem no planeta sejam
a humana e a das bactérias, que de tempos em tempos causam
na espécie humana epidemias incontroláveis.
Por isso, quando os Sem Terra resgatam dentro de si a von-
tade de voltar a ser gente, buscam a terra, e num diálogo emo-
cionado, às vezes com lágrimas e sangue vertido por balas,
chegam a constatação que o esqueleto do homem se parece
com o esqueleto do latifúndio, onde a carne de ambos foi comida
pelo capital. Por isso, fome e latifúndio têm a mesma cara, a
2525252525O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mesma origem e a mesma identidade. Não são sanguinários o
tempo todo. Preferem secar o corpo lentamente, até que o
esqueleto se entregue e nada mais possa produzir. Então deite
os ossos em algum lugar para que a terra os recolha e através de
sua saliva os dissolva.
Terra e homem têm a mesma história de desconstrução da
própria existência. O capital inaugurou a era do descartável.
Sobre a terra joga-se lixo, sobre os seres humanos joga-se o pre-
conceito e a desocupação, por isso desconstrói-se o planeta e o
cidadão. Desta maneira, parte da terra e parte dos seres humanos
são jogados no berço da exclusão para chorarem a dor da falta
de cuidado e de respeito.
Esta trajetória já se iniciou há 500 anos em nosso país.
Enquanto grupos poderosos nacionais e internacionais torturam
e diminuem os seres humanos deixando-os sem trabalho, estudo,
saúde e condições dignas de vida, a terra é despida de suas florestas,
envenenada pelos poros, intoxicando as espécies de micro-
organismos, que se debatem em seu ventre ou no leito seco dos
rios como as lágrimas da mãe, que seca cansada de chorar pela
dor e sofrimento que não tem mais solução.
É esse encontro dos diminuídos, no final do segundo
milênio, depois de 500 anos de torturas, que esqueletos hu-
manos, despidos de todos os recursos, decidem se abraçar à terra,
para extrair de seu corpo o perfume que move a dignidade de
um povo em marcha, na defesa da vida e do planeta.
Este encontro é conflitivo. Por um lado há os acostumados
a desmatar e matar, sem respeitar a dor da consciência da terra,
que vê o fogo queimar uma a uma as pernas das árvores, para
depois cobrir seu rosto com capim ou simplesmente nada plantar,
ficando esta imensa ferida e cortes profundos feitos pela erosão,
2626262626 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Cadernode Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
enquanto as florestas vão embora para serem desmanchadas pelos
dentes afiados das máquinas; e com isso as nuvens entristecidas se
retiram deixando que o sol quente endureça a crosta da machuca-
dura ressecada, impedindo aparecer vegetação alguma. Estes tristes
hábitos também compõem a cultura.
Estes velhos ensinamentos ainda permanecem em muitas
consciências de esqueletos agora assentados. Demoram a ser re-
conhecidos pela terra, pois na pressa de fazê-la gerar o alimento
ainda a maltratam. Buscam produzir a existência da mesma
forma com que os predadores fizeram no passado e por isso a
terra fecha os olhos para não ver as sementes deixarem sair caules
enfraquecidos e raquíticos que não alimentam e nem satisfazem
os anseios de quem as semearam, pois ainda desenvolvem a
cultura da mutilação.
Os emissários do capital, assim que percebem o vento
tremular uma bandeira vermelha, entendem que há outro
território conquistado. Correm com a saliva entre os dentes,
pela ansiedade de vender máquinas possantes, insumos, venenos
e sementes para mover a indústria da destruição do solo e da
esperança de vermos nascer daí novos camponeses libertos de
todas as taras e vícios. Nestes casos a tentação ainda se sobrepõe
à consciência e à lei do menor esforço, levando a consumir tecno-
logias que não favorecem a recuperação da terra.
Há tecnologias que vêm para o bem da terra e do ser
humano, devem ser abraçadas e utilizadas para fazer companhia
ao desenvolvimento. Há as que vêm para destruir e prejudicar,
devem ser rejeitadas e impossibilitadas de seguir em frente. Nem
tudo o que se descobre e inventa está a favor da vida e do
desenvolvimento. A rigor, modernização tecnológica no campo
brasileiro não chegou a ser sinônimo de desenvolvimento, porque
2727272727O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
como quintal do colonizador norte-americano, aprendemos a
consumir pacotes e não utilizar nossos próprios conhecimentos.
Prova-se assim que, dependência, ao invés de desenvolvimento,
significa deformação da existência.
Mas há os que se rebelaram contra os que desrespeitam a
bondade da vida e a resistência sempre marca novas etapas, enten-
dendo-se que, para resgatar a dignidade do ser humano e da terra é
preciso cuidar de três aspectos fundamentais; memória histórica,
resgatar virtudes e desenvolver a consciência estética.
1.3.1. Memória histórica
Como ponto de partida podemos dizer que memória é a
existência já produzida com todas as suas dimensões. De outro
modo, poderíamos dizer que memória é a experiência feita por
determinado grupo social que se organizou para produzir
coletivamente sua existência. Talvez mais do que isto, a memória
represente a ponte que vem do passado e nos leva rumo a
construção do futuro. Memória é saber pertencer-se para poder
entregar-se.
Há sabedoria na memória, e é esta sabedoria que alimenta
as raízes existenciais de um povo. Sabedoria muitas vezes en-
terrada nas covas do esquecimento pelas mãos interesseiras
de grupos que não querem ver o povo se reconhecer nas entre-
linhas das páginas escritas, contando a história a partir da vi-
são do vencedor e não dos quase vencidos.
Dizemos, então, que há memória nos restos de raças que ainda
sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-se
vivas e que os livros de história não deixam ver para que não apareçam
nas cicatrizes do tempo, os nomes e os dizeres dos lutadores incan-
sáveis, pela igualdade entre os seres humanos.
2828282828 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Há memória para os camponeses nas fases da lua, em que
buscam plantar as sementes no período mais escuro para que
germinem e não apareçam carunchos na colheita. Mas as em-
presas poluidoras preferem fazer nossa juventude acreditar que
para cada tipo de inseto ou erva daninha, existe um tipo de
veneno que chamam carinhosamente de defensivos.
Há também memória no trabalho artesanal dos velhos
camponeses das gerações passadas, que obrigavam-se a
desenvolver os próprios instrumentos de trabalho antes da
indústria se apropriar deles, transformá-los, devolvê-los e
modernizá-los, porém com custo elevado e manutenção
insuportável.
Há memória na culinária das etnias, onde o conhecimento
passava-se afetivamente para as moças que se orgulhavam de
estar prontas para casar, pois já sabiam cozinhar. Atualmente a
indústria dos enlatados e temperados, roubou o gosto do paladar
familiar e as pessoas se envenenam comendo sem controle todo
o tipo de alimentos artificiais, fazendo com que vivamos a maior
contradição jamais vista na história em causas de morte. Temos
duas causas principais: morre-se de fome e morre-se de obesidade.
Uns morrem sem sangue ou porque este que usamos tem “pouca
tinta”11 ; e outros morrem por terem colesterol alto, devido ao
excesso de gordura no sangue.
Há memória nas fotografias em preto e branco onde
aparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou
barro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziam
suas confraternizações. O tempo foi amarelando as fotografias,
levando os conhecimentos, deixando em seu lugar o vazio e a
11
 João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina, p. 71.
2929292929O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
falta de imaginação de como era naquele tempo.
Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis
de escritores verdadeiramente humanos, que se empenharam
em registrar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria
guardar, mas que o analfabetismo tira o direito de buscar nas
letras a identidade perdida.
Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas e lendas.
Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção
de um sonho, mas que a classe dominante esconde, evitando
muitas vezes deixar sinais até onde esconderam seus ossos depois
de assassinados, porque temem que a voz do sentimento fale mais
alto que as palavras e que o povo se reconheça em seus heróis e
queira resgatar seus ideais de uma só vez.
Há memória na crença traduzida de geração em geração,
que os oportunistas usam da boa vontade e da fé das pessoas,
facilitando aos opressores enfiarem a espada da dominação na
consciência já sem cor, da classe trabalhadora e desempregada.
Há conhecimentos biológicos e farmacológicos, desen-
volvidos naturalmente pelas nossas gerações passadas e que
hoje as empresas multinacionais patenteiam os inventos como
se tivessem surgido do nada.
Enfim, nos menores detalhes há memórias que fizeram parte
da construção da existência de nossos antepassados e que dor-
mem em alguma dobra do embrulho que traz a história. Até
nossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter cons-
ciência da importância deste passado para sabermos como olhar
corretamente para o futuro.
Quando vamos para a terra, esta memória nos acompanha
e é com ela que principiamos a organização de um novo mo-
mento histórico, procurando produzir uma nova existência.
3030303030 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
1.3.2. As virtudes extraordinárias
Virtude para nós é a capacidade que temos de fazer coisas
extraordinárias permanentemente. Somente desenvolve virtudes
aquele que tem capacidade de voltar-se para o bem.
Os poderosos temem as virtudes, porque elas têm o poder
de provocar a resistência contra a dominação e contagiar aqueles
que devem derrubar suas estruturas.
Se virtudes são capacidades extraordinárias, as conquistas
coletivas sempre são vitórias extraordinárias. É por isso que os
lutadores trazem o coração carregado de virtudes, onde o povo
em marcha procura encostar-se para buscar ali a energia que
lhes falta. O povo sente vontade de abraçar seus líderes por causa
das virtudes que estes possuem e porque sentem que estas
pertencem também a eles.
Muitas vezes na fraquezase manifestam virtudes que jamais
imaginávamos existir, e elas têm o poder de alastramento que
podem impulsionar grandes mudanças em poucos momentos.
Para ilustrar destacamos a história dos escravos romanos. Encon-
tramos nos registros históricos que no ano 71 a.C. houve uma
revolta de escravos na antiga Roma que durou cerca de dois
anos. Essa revolta foi comandada por Spartacus, um escravo que
despertou para o sonho de liberdade, a seu redor conseguiu arre-
banhar cerca de 20 mil escravos, um número pouco significativo se
formos olhar o poder do império romano na época comandado
por Caius Crassus. As sucessivas batalhas iam cada vez mais dando
moral e referência aos escravos, que atraíam outros escravos para a
luta, até o dia em que foram capturados e crucificados, pois o
instrumento da pena de morte da época era a cruz.
Durante o tempo que durou a revolta os poderosos tentavam
de todos os meios dizer que já haviam dominado os escravos e
3131313131O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
durante o dia, espalhavam notícias procurando convencer a
população desta mentira. Mas durante a noite o clarão das fo-
gueiras acesas denunciavam que os escravos ainda estavam lá,
resistindo, e este esplendor convidava os demais escravos a saírem
das mansões e dos palácios e somarem-se a eles. Portanto, não era
a força dos escravos que os poderosos temiam, mas sim as virtudes
que eles apresentavam, e as fogueiras eram fundamentais para
desenvolver esta representação.
De onde vinha esta força? Vinha da virtude da confiança.
“Não há uma definição clara para um homem que conduz outros
homens. O comando é uma coisa rara e intangível, sobretudo quan-
do não se apóia nem na força nem na glória.Qualquer homem
pode dar ordens, mas dá-las de maneira a que outros obedeçam
é uma qualidade, e esta qualidade Spartacus possuía”12 .
Na medida em que os trabalhadores Sem Terra decidem
abandonar a vida de “indigência”, despertam em si o sonho de
liberdade, e passam a desenvolver e apresentar virtudes que
intimidam os poderosos que mentem, usando agora a televisão
e os jornais, dizendo que derrotaram os lutadores da reforma
agrária. Mas à noite quando menos esperam, lá se vão legiões de
famílias empilhadas em caminhões ocupar fazendas abandonadas
e dando-lhes a possibilidade de renascer. Aos poucos, o vermelho
das bandeiras, como se fosse o esplendor de uma grande fogueira,
avisa que ali os escravos buscam a liberdade e convidam outros
tantos a forjarem juntos o próprio destino.
Desta maneira cria-se uma nova cultura em torno das
virtudes. Esquemas de organização são desenvolvidos e
12
 Fast Howard. Spartacus. Publicações Europa-América, 1974, p. 118.
3232323232 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
experimentados. Pais e mães de famílias, que até pouco tempo
eram apenas chamados pelos filhos, agora são anunciados ao
microfone para participarem de reuniões onde decidirão o futuro
de suas vidas. Passam a assumir responsabilidades, liderar pe-
quenos grupos e desenvolver tarefas que beneficiam a cole-
tividade. Acaba-se temporariamente o machismo e a dominação
de um sobre o outro, porque na estabilidade podemos ser
diferentes, mas no perigo somos todos iguais. A insegurança
transforma-se em desafio. A mãe outrora tímida e submissa,
abraçada aos filhos, coloca-se em frente aos pelotões sanguiná-
rios que se apresentam para manter a ordem apodrecida.
Permanecendo alguns dias já se vê nascer ali uma cidade,
neblinada pela solidariedade. Nascem cabanas que servem de
casas, escolas feitas de plástico e bancos de varas roliças, mas as
crianças aprendem o que tem de melhor na esfera da educação
infantil. Em poucos dias estão falando frases de Anton S. Ma-
karenko13 como a que diz que: “estou convencido de que o ob-
jetivo da nossa educação consiste não só em formar um indivíduo
criador, um indivíduo cidadão capaz de participar com a maior
eficiência na construção do Estado. Nós devemos formar uma
pessoa que sem falta seja feliz”14. Assim como Paulo Freire e
outros educadores importantes.
Através de comissões, busca-se resolver os problemas que a
própria convivência social produz, como é o caso do lixo. Nas
cidades costuma-se atribuir a tarefa da limpeza à administração
pública, e se o prefeito não tomar providências, a cidade fica
13
 Anton Makarenco, renomado pedagogo Russo que se dedicou à educação de crianças de
rua de 1920 a 1935.
14
 Anton Makarenco. Problemas da Educação Escolar, 1986, p. 29.
3333333333O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
insuportável pelo simples fato de que as pessoas pagam impostos.
Ora, os impostos não podem ter o direito de eliminar a solida-
riedade entre as pessoas e o cuidado com a preservação da vida!
Aqui surge uma virtude fundamental que é o da preocupação
com o zelo pelo que é nosso. Os conceitos de público e privado,
sem diminuir a responsabilidade de ninguém, são su-perados,
na medida em que o processo educativo reconstrói o ser humano
em outra direção, exigindo sua participação, e isto se torna
cultura.
Há dizeres e pensamentos produzidos que se transformam
em trincheiras ideológicas, buscando não só o melhoramento do
comportamento, mas a limpeza dos vícios que se acumularam
em cada consciência, como lixo de perversidades que endurecem
as relações e por isso precisamos combatê-los com doçura e ener-
gia. Vimos em uma escola esta criação ideológica: “Escola limpa
não é a que mais se limpa, mas a que menos se suja”. É um verda-
deiro chamado à responsabilidade com aquilo que é público.
Em poucos dias abrem-se cacimbas coletivas e inicia-se o
tratamento da água. Banheiros coletivos para homens e outros
para as mulheres. Estabelecem-se normas de convivência e assim
reorganiza-se em poucos dias a nova forma de produzir a exis-
tência humana, acordando as virtudes adormecidas no leito do
tempo, que passam a povoar os sentimentos e controlar as von-
tades que levam aos desequilíbrios na convivência social.
Os poderosos se espantam quando observam um enorme
aglomerado de pessoas, onde não se requisita força policial para
intimidar e manter a ordem. Mas os próprios Sem Terra orga-
nizam e tudo funciona sem prisões nem repressão.
Nas marchas organizam-se longas filas que causam inveja
aos que assistem a passagem e emocionados esperam o momento
3434343434 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
para lançarem-se sobre as pessoas para abraçar e derramar lágrimas
quentes nos ombros dos caminhantes, como bálsamo refrescante
que alivia as dores do caminho. Também nas marchas não se requi-
sita força policial para orientar o trânsito.
É a força da terra que desperta virtudes, onde o comando
não emite ordens, solicita e recomenda cuidado pelo simples
fato de saber que ali vão seres humanos, que não são números
nem tampouco indivíduos enfileirados, mas que possuem senti-
mentos e levam no coração saudades dos filhos que ficaram nos
acampamentos, cuidados por outros pais que não puderam seguir
a marcha.
Se a saudade na distância é forte, a vontade de chegar é
maior. Com os olhos fixos no vazio do horizonte que se coloca
à frente, cada um quer saber o que se esconde após o topo da
ladeira. Assim vivem as utopias. A cada topo alcançado, novo
topo se deve alcançar, mas valeu a pena ter caminhado. Sem es-
ta persistência a história não tem sentido.
Este é o caminho que leva à reconstrução e coloca a revo-
lução em marcha. Não é fácil reconstruir-se quando já nos
tiraram o material mais precioso que é a dignidade de ser gente.
Um ser humano reconstrói-se na medida em que acredita que
dentro de si há material importante para colocar e tapar os vazios
que o tempo de dominação provocou. Não é fácil ser livre
quando ainda não aprendemos pronunciar a palavra liberdade.
Caminhamos ocupando espaços que outrora temíamos
ocupar. Marcharé mais do que viajar, é caminhar em busca de
surpresas. A cada passo uma emoção, um gesto de carinho, uma
mão estendida que parece querer esculpir em nós o novo homem
ou mulher que pretendemos ser, e como estátuas inacabadas,
abraçamos os escultores, como a pedir ajuda para que encham
3535353535O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
os espaços vazios que descobrimos dentro de nós, pe-los
opressores nos terem feito acreditar no passado, que nada mais
éramos e nada mais poderíamos ser.
É caminhando que descobrimos o espaço vazio do anal-
fabetismo que viaja conosco e nos provoca a perguntar ao
caminhante ao lado o que dizem as letras em cada placa à beira da
estrada. Ou quando alguém nos entrega um panfleto de soli-
dariedade e envergonhados, o dobramos e o colocamos com respeito
no bolso da mochila, que vai molhada sobre nossos ombros.
É caminhando que vemos o vazio do latifúndio, protegido
por cercas e a fome rondando as cidades.
É caminhando que vemos o medo nos olhos das janelas das
casas, escondidas atrás de grades, temendo que os pobres queiram
fazer justiça pelos longos anos de violência aplicada para acu-
mular riquezas.
É caminhando que vamos descobrindo e esculpindo em
nós uma nova consciência, porque os olhos parecem ver não o
que está ocupado, mas sim os espaços que se deve ocupar.
Há muitos espaços vazios que ao esculpir, vamos des-
cobrindo. O latifúndio, em 500 anos de história do Brasil, não
destruiu apenas a terra, mas também a consciência dos pobres e
trabalhadores, por isso milhões deles andam como se estivessem
cegos. Há um latifúndio em cada cabeça que não deixa produzir
virtudes e valores, que embrutece as relações sociais e humanas,
que abre profundos rasgos de erosão na memória, fazendo-nos
acreditar que a história começou com nosso nascimento indi-
vidual, antes disso “nada” de importante existiu. É a cultura do
vazio e do esquecimento.
Descobrimos também neste caminhar a importância da mão
amiga que nos arrasta para o futuro, e neste espaço vamos tran-
3636363636 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
çando experiências, conhecimentos, comportamentos, idéias,
virtudes, enfim, vamos construindo uma verdadeira interação.
“A existência do espaço interativo é fundamental para o processo
de construção do conhecimento, na formação dos sujeitos, e
para o avanço da organização do movimento social. Pois é tam-
bém nesse espaço, onde se desenvolvem as relações, articulações
e alianças”15 .
Estas descobertas e vivências misturam-se às ansiedades e
convidam para que produzamos nossa nova existência.
1.3.3. A consciência estética
A estética no seu sentido amplo deve significar a capacidade
que o ser humano tem de marcar sua existência no mundo,
produzindo objetos úteis e belos para sua sobrevivência, dando
a eles um sentido de continuidade da própria existência. O belo
se eterniza na permanência dos objetos criados. Neste sentido,
emanamos beleza que plenificam gestos e razões como identidade
de um povo.
Na origem da palavra estética está o sentir. Ela vem do grego
aisthesis que significa a faculdade de sentir. Logo, a estética se
torna importante para a vida humana, pois ela está ligada ao
desenvolvimento da criatividade e da capacidade de sentir, estes
elementos formarão as características da consciência estética.
Como a produção da existência consciente exige elevada
capacidade de criatividade, pois mesmo nos pequenos detalhes
usamos o intelecto e as mãos para produzi-las e colocá-las em
ordem, podemos considerar todo e qualquer ser humano artista
e arquiteto de sua própria história, para isto se torna fundamental
15
 Bernardo Mançano Fernandes. MST: Formação e Territorialização, 1996, p. 223.
3737373737O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
a criação da consciência estética. Esta consciência estética se
configura na qualidade de gostar. Desenvolve-se desta forma a
pedagogia do bom gosto. Este sentido acrescenta-se em nós da
mesma forma como qualquer outro, e deve ser exercitado dia-
riamente, caso contrário atrofia e desaparece.
É a busca da beleza que nos faz pentear os cabelos todos o
dias, a cortá-los quando vemos que tiram a beleza dos traços da
face, como se a moldura estivesse deformando-se.
A obra de arte de um camponês Sem Terra não se encontra
em paisagens pintadas ou em escritos filosóficos que se tornam
obras, mas na paisagem real que se torna poesia. Aquilo que é
novidade na natureza para alguns, para um Sem Terra não é ou
pode ter outro significado. O pôr-do-sol para muitos pode repre-
sentar um fenômeno artístico, pintado pelas mãos invisíveis do
criador da natureza, para o camponês pode representar apenas
fadiga de um dia duramente trabalhado, onde agora, ambos
“vermelhos” de cansaço, no colo da noite adormecerão, para
renascerem no dia seguinte e dispostos, acordarem o amanhecer.
Nossa preocupação está então em saber valorizar o que de
belo há na natureza e o que podemos tornar mais belo, usando
as próprias forças da natureza, para fazer mais bela a vida
cotidiana a partir desta fonte de beleza que é a natureza.
A estética representada pela arte no mundo do capital se
transforma em mercadoria, que se utiliza como elemento de
poder para dominação e alienação das pessoas. A beleza em
nossos assentamentos não é para ser comercializada, mas sim
para demonstrar que caminhamos rumo à reconstrução da vida
com o perfume das flores cultivadas, com o único objetivo de
perfumar o caminho neste quadro de arte pintado pelas mãos
de um desconhecido, que usou a enxada e os dedos como
3838383838 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
instrumentos básicos da edificação desta grande obra. Assim, a
cor marrom está na própria terra e o verde está contido na pró-
pria muda da flor, que se deita sobre o leito macio preparado
para a fecundação. Assim irá fazer parte da paisagem.
Nossa pintura tem mais sensibilidade por ser real, porque
respira e exala perfume, sensibilizando também nossa consciência
estética.
Essa pintura é real. Acima de tudo porque o pintor não
pode imaginar-se fora. Está dentro, e sem ele a paisagem não
terá a mesma beleza. Este ser social, transformado em pintor,
existe na realidade objetiva e subjetiva. Ocupa um lugar de des-
taque, movimentando-se de um lugar para outro, para assumir
um posto de melhor ângulo e continuar sua obra. Esta pintura
é bela porque está em permanente movimento. Somente se pode
olhar uma vez e fixar a imagem, no momento seguinte já não é
a mesma paisagem porque muitos elementos mudaram de lugar,
as nuvens foram para longe, os pássaros voaram em busca de
outros galhos e o homem abraçou-se à mulher para emergirem
em uma nova relação de igualdade e prazer.
O contato com esta beleza natural educa os demais sentidos,
como amar, gostar, admirar, sorrir e cantar. Desperta interesse
coletivo de reproduzir esta obra de arte. A classe dominante
quando vai aos leilões de arte, compra por altos preços obras de
arte e as leva para casa, trancando-as em cofres, tirando a liber-
dade da beleza poder tocar os sentimentos das pessoas e fazê-las
sentirem-se mais humanas. Escondem as pinturas devido ao
egoísmo que os amarra e porque são incapazes de reproduzi-las.
Nessa insegurança oprimem-nas através da escuridão das paredes
de aço, não deixando que falem e nem digam com seus traços,
que para ser verdadeiramente gente, é preciso criar. Os
3939393939O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
dominadores não são puramente humanos, se assemelham às
máquinas, sem sentimentos, sem alegria e sem imaginação.
Criam os mundos de fantasias onde o capital lhes dá as ordens
para cada movimento que devem fazer. Eles não sabem construir
uma paisagem livre e bela. Quando necessitam criar, chamam
um trabalhador para desenhar-lhesalgo que possam exibir aos
seus colegas. É a cultura da frieza e da dominação.
Porque então damos flores de presente? É errado fazer
isto? Não. Damos flores de presente porque somos incapazes
de explicar com palavras o que sentimos. Precisamos das
pétalas e do perfume para que as mãos possam externar nossos
sentimentos. Mas mesmo assim as flores murcham! Elas mur-
cham para dizer que a beleza não está em um gesto isolado.
É preciso continuar sensibilizando nossa consciência para que
ela não se acomode e crie sem limites novos gestos de carinho
e afeição.
Nós somos mais criativos porque somos mais livres, e criamos
nossas paisagens sem medo que alguém as roube, pois sua grandeza
física e estética, torna impossível de transportar. Quando conseguem
fazer isto, apenas levam pedaços e a beleza suporta poucos dias a ar-
rogância humana e desaparece. Talvez seja por isso também que as
flores murcham, porque não aceitam conviver com a insensibilidade,
que ao retirá-las dos jardins para levá-las e colocá-las sobre as mesas,
deixam para trás as raízes que lhes deram a vida. A beleza somente
sobrevive quando estiver ligada às suas raízes.
Se somos nós que fazemos a história, significa dizer que
nela ficam nossas impressões digitais. Seremos reconhecidos por
elas quando nossos descendentes forem recordar do pedaço de
existência que nos coube viver e produzir.
As obras de “arte” estarão presentes em tudo, porque tudo
4040404040 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
foi feito com a imaginação, força física e a habilidade de nossas
mãos, no espaço aberto da natureza.
Desta forma a estética está presente em tudo o que fazemos.
Ela é a intermediação que existe entre o querer e o fazer, entre o
servir e o sentir. Isto nos leva a aproveitar pedaços da grande paisa-
gem já pronta, para apenas acrescentarmos aquilo que o imaginário
humano consegue inventar. Então plantamos entre as árvores, casas
com chaminés fumegantes. Espalhamos animais domésticos por
entre as árvores, aproximamos as flores das casas e semeamos
alimentos por uma outra extensão; no fundo, o rio corre man-
samente, e ao pé da montanha limpamos um lugar para banhar-
nos, deixando que as águas levem embora nossas canseiras e mágoas.
Compõe-se assim as paisagens reais. Cada lote é um quadro
pintado pela capacidade de cada família de pintores.
Há desequilíbrios. São acidentes provocados por pintores
descuidados que, na pressa de fazer sua paisagem, derramam mais
tinta do que o necessário, borrando parte da tela com venenos,
queimadas e lixo, trazidos nas compras do supermercado.
Levam-se anos e às vezes várias gerações para se aprender a
pintar a obra imaginada por nossos sonhos, exatamente porque
o sonho não se realiza sem a recriação do homem e da natureza.
Ao mesmo tempo em que criamos, nos recriamos. Pintar é
também se pintar nesta paisagem viva. A consciência estética é
lenta para se desenvolver, mas sem ela é impossível reconstruir a
paisagem florida onde deverá multiplicar-se a vida humana e
assim tornar-se existência.
Quando a estética se torna cultura?
Quando os seres humanos descobrem que a beleza é parte
integrante do ambiente onde vivem, até o dia da partida e passá-
lo para outros seres mais jovens.
4141414141O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
 Quando o tempo determinar que não quer mais nos ver
andando sobre a terra, pede para nos retirarmos e nos deitarmos
de barriga para cima, onde a terra num diálogo silencioso nos trans-
formará e nos distribuirá para que as demais espécies possam sugar
nossa energia e fortalecer sua existência, misturada a nossa nova
forma de existir. Desta maneira é que a terra não é só terra nem a
árvore é somente árvore, assim como o indivíduo não é somente
indivíduo. As células e os átomos que compõem a matéria se
deslocam em um movimento vivo, e introjetam-se, entrelaçando-
se para formar uma “nova’ matéria. Há momentos em que pisamos
sobre a terra e comemos as plantas. No momento seguinte entramos
na terra e as plantas nos comem com suas raízes e nos transformam
em plantas. Este morrer e viver permanentemente é que possibilitou
nosso planeta estabelecer esta harmonia em milhões de anos de
existência.
Esta íntima relação não está nas conseqüências, mas na causa
que originou a intimidade entre terra e homem. Esta origem
está no húmus. “Daí que homem vem de húmus”16. Somos esta
mistura de pó e água com características novas, nos locomo-
vendo, sonhamos, pensamos, acreditamos e caminhamos em
direção à construção da utopia. Somos em resumo, esta terra
boa em movimento.
Somos este húmus Sem Terra, andarilho, que se rebela por
ser violentamente afastado da terra, onde pode ter utilidade
somente voltando a ela; pela morte ou pela luta. Em ambas as
situações há a retomada da terra, para tornar-se terra ou para tirar
dela o sustento e manter este húmus humano em movimento.
16
Leonardo Boff. Saber Cuidar, 1999, p. 72.
4242424242 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Por esta razão é que nossa consciência ecológica se revolta
quando há desrespeito com a natureza, porque na seiva das árvo-
res há sinais de sangue de nossos antepassados que foram absor-
vidos pelas raízes das plantas.
Na medida em que conquistamos a terra, há um desafio
enorme de reconstituição da história desses locais. Nos sentimos
chamados a reconstruir as florestas através do plantio de árvores,
a edificar pomares e jardins, mesmo ao redor dos barracos de
lona crescem flores coloridas, plantadas pela simples vontade
de tornar o local mais bonito e atraente.
Em uma ocupação, quando se finda o período de acampa-
mento e a terra foi liberada, ficam resquícios de guerra, lonas
rasgadas, varas enfileiradas que serviam de esteios para as casas,
fogões de barro abandonados, restos de potes quebrados, sandálias
desgastadas, esquecidas e tantos outros objetos que ajudaram na
resistência física e sentimental. Mas nesta dispersão de coisas,
aparecem árvores e flores plantadas no desespero da ameaça do
despejo, que psicologicamente ajudaram a imaginar que nas raízes
das árvores e das flores, estava a simbologia da resistência e da
ligação à terra, que os encarregados pelo despejo e pela violação
dos lares, teriam que fazer força para arrancar-nos dali, e se passasse
um tempo significativo, não nos arrancariam mais.
A consciência ecológica e estética nos diz que devemos co-
locar ordem nos destroços e ao mesmo tempo em que partimos
para a construção das novas casas, o terreno que serviu de tapete
para instalarmos nossos sonhos e preocupações, deverá ficar
limpo e organizado. No solo pisado e endurecido limpa-se para
plantar árvores e fazer renascer a vida, junto com a libertação da
terra e das pessoas que acreditaram e venceram.
Chega o dia em que a luta vence a opressão. Chega o tempo
4343434343O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
de construir as casas em meio a um choque de interesses. O go-
verno aposta que uma casa de 42 metros quadrados é suficiente
para uma família morar, e para impossibilitar sugestões, impõe
uma planta comum para todos. Na vontade de possuir a casa,
cada família aceita a imposição, mas assim que passa a habitar
nela, percebe que não satisfaz as necessidades, pois possui apenas
quatro cômodos e às vezes o casal tem oito filhos e a vida fica
incômoda. A necessidade desafia a criatividade, e lá se vão todos
se empenharem na construção de varanda para aumentar a
cozinha e os dormitórios, agora de forma rústica. Pode-se perder
em beleza, mas ganha-se em criatividade, iniciativa e comodi-
dade. É o anseio de se ter uma casa com condições de abrigar as
pessoas da família com todo conforto possível que nos faz
desenvolver a criatividade.
Segue-se em frente, e percebe-se que o poder do criador
agora é humano. Animais são bem tratados e enfeitados,princi-
palmente os cavalos que ganham novos apetrechos e ferraduras.
Os pomares florescem. A bandeira do MST é pintada nas pa-
redes dos galpões, casas e escolas. Não há uma praça de assen-
tamento que não esteja lá uma bandeira dançado ao sopro do
vento, contrastando com o verde da vegetação em terra. Os
animais domésticos passeiam entre as crianças de ventres livres,
que correm em direção aos seus próprios brinquedos. As
mulheres recolhem dos varais as roupas secas e macias, já sem
remendos, após uma jornada de trabalho gratificante na coope-
ração comunitária. As portas das casas se abrem uma a uma
lentamente, como se quisessem dizer boa noite aos jovens que
saem para ver a lua nascendo. Não há muros em frente às casas,
as grades do medo e da exclusão ficaram em alguma dobra do
passado. E na linha da reconstrução e do desenvolvimento
4444444444 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
humano, vem os cuidados estéticos com o próprio ser humano.
É a razão maior de produzir cada obra de arte em cada
área conquistada e em cada ser humano, buscando refletir sobre
cada ruga estampada na face da existência, que distingue e
que nos dá identidade. Desta forma melhora-se a aparência.
Reconstituem-se dentaduras, melhora-se o vestuário, troca-se
os móveis da casa, adquire-se eletrodomésticos novos, enfim
toma-se consciência da importância da aparência física como
filhos da terra, recriados por ela em busca da manutenção da
dignidade.
O trabalho é desde o início o fator de produção do próprio
ser humano. No decorrer da história da humanidade o trabalho
foi se tornando algo punitivo e pouco prazeroso, devido a escra-
vidão e a exploração do capital no desenvolvimento das forças
produtivas.
No resgate do ser humano, resgata-se o sentido do trabalho
que possa reconstruir de forma voluntária o ser deformado.
Também resgata-se o sentido das técnicas que mantenham a
estética do corpo. Isto irá despertar o interesse pela beleza como
método pedagógico na retificação da conduta. “O instrumento
principal da influência pedagógica deve ser o método intuitivo
demonstrativo da beleza na arte, no trabalho e no comporta-
mento dos homens”17. Essa criação antecipada como referência,
influi para que os demais seres sociais Sem Terra, sintam influên-
cia deste meio, e adquiram caraterísticas complementares, reti-
ficando seus hábitos.
Pela urgência de produzir, muitas pessoas lançam mão de
instrumentos e insumos que prejudicam, mutilam e deformam
o corpo humano, fruto de um método demonstrativo do
trabalho depredador. Carrega-se água na cabeça enquanto há
4545454545O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
múltiplas formas de fazer a água chegar sem esforço em cada
casa, e usa-se defensivos, “ofensivos” agrícolas, quando há deze-
nas de formas de combater as pragas e doenças; fruto do
desconhecimento e alienação por parte das empresas de venenos,
que estabelecem as bases de seus lucros sobre a depredação e
destruição do ser humano e da natureza.
As tentações do passado às vezes nos obrigam a virar a cabeça
para ver o que não queremos mudar; é como se uma força mis-
teriosa nos empurrasse para o lado de um coordenador e entregás-
semos a ele o poder das ordens e ficássemos aguardando o
momento de agir. Se não há ordens não haverá ação. Aí nasce a
centralização do poder e a vontade de ser superior aos demais
seres humanos. Essa apatia se transforma em conformismo e
assim morre a indignação.
O gosto pelo belo está em todos os aspectos da vida e da
organização social e política, por isso é que a estética está em
todos os sentidos orientando-nos que um simples gesto tem sua
beleza. A forma de falar, de sorrir e dizer tem sua beleza. Há
pessoas que falam muito e não cansam seus ouvintes, quando
terminam de falar parece ouvir-se um ruído de pena por ter
terminado. Há beleza na forma de organizar e dirigir. Muitos
líderes tem a perspicácia de indicar o caminho e sem muitas
explicações convencem seus companheiros e companheiras.
Assim tornamos a estética parte de nossa existência, mas parte
agradável que dá qualidade aos segundos que respiramos e
desenvolvemos em nós, o gosto de viver e desenvolver a beleza.
É fundamental acreditar que desenvolvemos nossa existência
17
 Verb, M. A . La Educación Estética de Los escolares. In Teoría y Metodología de La
Educación Comunista em La Escuela, p. 217 e 218.
4646464646 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
num cenário como se fosse uma tela de pintura, onde cada movi-
mento nosso significa um traço na montagem desta paisagem. A
alegria significa as cores alegres, a tristeza e o mau humor as cores
escuras e tristes. Revisando nossa história podemos perceber
claramente como está pintado o quadro da história particular de
cada um. Se foi bela, o quadro estará perfeitamente pintado com
cores alegres, se foi uma vida atribulada será um quadro triste, onde
predominam as cores escuras. Importante é que não tenhamos medo
de expor na galeria de arte da história este quadro, e ter consciência
de que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência da
importância de nossa existência.
Sobre as cores tristes é possível colocar cores alegres e fazer
o cenário de nossa história mudar. Por isso é preciso acreditar
em nossa capacidade de pintores, adormecida em nossa cons-
ciência. Dormem dentro de nós poetas, escritores, contadores
de fábulas, músicos e humoristas que somente nossa auto-estima
pode acordar.
Temos nossos ideais políticos, organizativos, econômicos,
etc. Precisamos estabelecer também ideais estéticos que pos-
sibilitem nossa intervenção no cenário histórico para transformá-
lo, a fim de que vivamos em harmonia com todos os tipos de
vida e socialmente felizes, bebendo nesta fonte limpa da beleza.
4747474747O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
2. A revolução cultural
Assunto delicado, em se tratando dos vários fatores que se
interligam no tratado da revolução, principalmente quando há
diferentes conceitos que desgastam a própria palavra, tendo em
vista que com o decorrer do tempo, qualquer mudança signifi-
cativa, em qualquer dimensão científica ou da vida social, recebe
a marca desse conceito.
Há também muitos desanimados que também desencami-
nham as perspectivas e dificultam discutir o assunto.
Falar em revolução em uma época em que parece haver
uma hegemonia absoluta do imperialismo norte-americano é
atrever-se demais. Por outro lado, há uma acentuação muito
grande sobre determinadas questões que procuram descara-
cterizar a luta de classes e destacar como pontos fundamentais,
as questões de gênero, ecológicas, das minorias e tantas outras.
Aceitamos que, as contradições antagônicas estão locali-
zadas no mesmo lugar, entre forças produtivas e relações sociais
de produção, onde uns produzem, outros se apropriam, uns
concentram renda e riqueza, outros miséria e pobreza. É nesse
sentido que devemos voltar nosso olhar e colocar as questões
importantes sobre a situação de dominação, degeneração e
destruição de tudo. Dentre todos os elementos que compõem o
universo e que estão sendo destruídos, o ser humano é o prin-
cipal deles, por ter a condição de poder desenvolver a consciência
e ser ele o principal instrumento de resistência, é com ele que
devemos lutar e buscar a solução dos problemas.
Mas resgatar o ser humano não significa deixar as árvores e
4848484848 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
as águas desaparecerem. Uma nova relação entre os diferentes
atores no universo, deverá surgir e constituir as futuras relações
de produção, humanas e culturais.
A revolução estrutural da sociedade é o objetivo principal
daqueles que querem ver um país liberto de todas as torturas e
desequilíbrios. “Arevolução constitui uma realidade histórica;
a contra-revolução é sempre o seu contrário (não apenas a
revolução pelo avesso: é aquilo que impede ou adultera a revo-
lução)”18. A luta entre as duas tendências, a favor e contra, consti-
tuem um conflito permanente, entre classes antagônicas, mas
também dentro das próprias classes.
Devemos ter consciência de que essa revolução não depende
apenas da vontade humana, mas também das circunstâncias que
formam e tornam este ambiente fecundo.
É nesta velha sociedade que se desenvolve o embrião de
novas relações de produção, de trabalho e de cooperação. O
embrião de novas condutas, com mudanças de hábitos e valores,
elevando-se assim o nível da consciência humana em relação ao
universo. A partir de nossa intervenção, estamos edificando ma-
terialmente nossas intenções de construir uma nova sociedade,
mas levaremos uma carga bastante pesada do lixo capitalista,
que será transformado depois da tomada do poder.
2.1. O que é a revolução
Se tudo o que é feito de interessante passa a ser conhecido
como revolução, nada mais poderemos fazer, pois o conceito foi
18
 Fernandes Florestan. O que é Revolução, 1984, p. 9.
4949494949O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
deturpado. Precisamos então resgatar o entendimento e unificá-lo
entre os trabalhadores para que nos ajude a compreender a revolução
cultural que procuramos desencadear internamente no MST.
Florestan Fernandes vai mais além na sua designação,
alertando para a importância inclusive dos termos para se fazer
uma revolução. Diz ele, “se a massa dos trabalhadores quiser
desempenhar tarefas práticas específicas e criadoras, ela tem de
se apossar primeiro de certas palavras-chaves (que não podem
ser compartilhadas com outras classes, que não estão empenha-
das ou que não podem realizar aquelas tarefas sem se destruírem
ou sem se prejudicarem irremediavelmente). Em seguida, deve
calibrá-las cuidadosamente, porque o sentido daquelas palavras
terá de confundir-se, inexoravelmente, com o sentido das ações
coletivas envolvidas pelas mencionadas tarefas históricas”.19
Logo, a primeira tarefa que nos é delegada é resgatar o verdadeiro
sentido do termo em que tenha um só entendimento, contraria-
mente do que pensa a classe dominante.
Fundamentalmente, essa definição nos municia com bons
argumentos, porque a revolução é uma postura criativa e autô-
noma de uma parte da sociedade que pretende operar profundas
mudanças na realidade.
Conseqüentemente não se pode resgatar o conceito e mantê-
lo apenas no campo da teoria. As palavras somente adquirem
força e alcançam os objetivos teóricos quando se transformam
em ação. Para tanto é preciso acreditar na força de uma orga-
nização política. “A organização é a chave que permite agarrar
as iniciativas lançadas pelos líderes da revolução (...) Se não existir
19
 Idem, p. 9 e 10.
5050505050 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
a organização, as idéias depois do primeiro momento de im-
pulso, vão perdendo eficácia, vão caindo no conformismo e
acabam por ser apenas uma recordação”20. Somente a organiza-
ção da classe trabalhadora para lutar pelos seus objetivos pode
dar sentido às idéias e mantê-las em evidência. É isto que faz a
sociedade avançar e realizar profundas transformações. É isto
que nos diz o Manifesto Comunista, escrito a mais de 150 anos.
“A história de todas as sociedades que já existiram é a história da
luta de classes”21. É ali, portanto, na luta revolucionária onde a
palavra revolução irá adquirir seu conceito mais afinado com
sua própria origem: a luta de classes.
Portanto, a revolução se realiza para resolver as diferenças
entre as classes e reverter seu padrão de funcionamento. No
fundo, é fazer a maioria voltar-se contra a minoria para buscar
atender as necessidades de todos, sem privilégios. Sendo assim,
o conceito de revolução está ligado à revolta, indignação; é con-
trária a idéia de passividade, de espera, de conformismo. É um
esforço coletivo para desestabilizar a ordem, para elevá-la a uma
nova categoria, agora a ordem da maioria organizada através da
ditadura da maioria, fazendo nascer a verdadeira democracia.
Há porém uma longa marcha a ser feita para se chegar a
essa revolução, que coloque a classe trabalhadora no poder e
possa edificar as transformações sonhadas; isto desencadeará um
verdadeiro processo de agitação da poeira da opressão, que se
acumulou nos parapeitos das janelas da história e que agora os
espanadores revolucionários deverão removê-la para começar a
pôr a casa em ordem.
20
 Che Guevara In Textos Políticos, SP 1986 p. 49.
21
 Karl Marx e FriedricEngels. O Manifesto Comunista, RJ 1998, p. 9.
5151515151O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Paulo Freire, na ansiedade de contribuir com tal reflexão,
já há várias décadas, destaca que neste processo deve-se ter
coerência entre o discurso e a prática, e acima de tudo “adequar
sua ação às condições históricas, realizando o possível de hoje
para que possam viabilizar amanhã o impossível de hoje”22 .
É essa dinâmica que marca um processo revolucionário,
onde seus condutores devem saber colocar frente a frente o pos-
sível e o impossível e buscar as condições de alcançar a ambos
dentro do tempo estabelecido.
Essa revolução contra a ordem, somente se legitima e con-
firma seus objetivos se for levada até o final. Não é revolução
quando em determinado ponto do caminho, as ações passam a
preservar o que deve ser destruído. Por exemplo, a força con-
trária. Toda força contra-revolucionária preservada será uma ame-
aça à trajetória da revolução. Mas somente irão até o fim com a
revolução aqueles que precisam dela. Aqueles que não precisam
dela, teimam em ir até onde serão satisfeitos seus anseios, neste
caso estão dispostos a fazer reformas e não revolução.
O processo revolucionário pode ser longo e traz essa contra-
dição dentro de si; onde ao mesmo tempo em que aspira transfor-
mações, obriga-se a lutar por reformas como: distribuir terra,
aumentar salários, buscar avanços nos direitos sociais, etc. Caso
contrário a população não se mobiliza. O problema dessa tese
está em que, muitos líderes e organizações comecem a gostar
mais das reformas e percam o objetivo da revolução.
Entendemos por revolução, no sentido estrito do termo
que “significa o processo histórico assinalado por reformas e
modificações econômicas, sociais e políticas sucessivas que, con-
22
 Paulo Freire. Ação cultural para a Liberdade, SP 1982, p. 80.
5252525252 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
centradas em período histórico relativamente curto, vão dar em
transformações estruturais da sociedade e em especial das relações
econômicas e do equilíbrio recíproco das diferentes classes e
categorias sociais”23. Há os que preferem as reformas definitiva-
mente (mesmo sendo conflitantes) e confundem-se com as
pequenas conquistas, por isso são incapazes de levar o processo
até o fim.
Por esta razão é que muitos processos revolucionários desen-
cadeados em determinados lugares, através de lutas por reformas,
passam a ser reformistas; e isto não se deve simplesmente pela
amplitude das alianças feitas, mas sim pelos vacilos que cometem
a força principal e sua vanguarda.
Isto tudo não se pode perceber e nem julgar sem luta. Nesse
caminhar para a frente é que aos poucos aparecem os que não
querem ir até o fim, e entram em choque com aqueles que que-
rem ir em busca dos objetivos estratégicos.
Portanto, tudo depende do ponto de partida e das intenções
que alimentam a vanguarda neste processo. Por exemplo, não se
pode construir um carro de Fórmula 1 com os moldes de peças
de uma motocicleta! De acordo com a estrutura que se tem e os
objetivos que se estabelece para serem alcançados é que se pode
vislumbrar até onde irá a organizaçãoe até quando sustentará
seus interesses de classe.
Antigamente quando se lutava por democracia era o mesmo
que lutar por revolução, porque o conceito de democracia queria
dizer revolucionar todos os meios de produção e a estrutura de
dominação da sociedade e realmente democratizá-los tendo aces-
so a todos os benefícios e direitos sociais. Por isso é que demo-
23 
Caio Prado Júnior. A Revolução Brasileira, 1987, p. 11.
5353535353O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
cracia não pode ser entendida apenas como o processo de
participação no processo eleitoral. Ela deve estar enraizada em
todas as dimensões da vida da sociedade. De que vale votar nas
eleições se não conseguimos empregar nossa força de trabalho?
Significa que “há democracia” na política eleitoral, mas não na
economia e na política social. Não há democracia na educação
nem no sistema de saúde, nem na liberdade de expressão, porque
a mídia não ouve aqueles que estão fora do mundo da minoria
incluída no seu projeto de dominação.
Nas últimas décadas em nosso país, lutar por democracia
transformou-se em luta por algumas reformas ou menos do que
isso garantir uma fatia deficiente no parlamento que significa
apenas, onde se abre espaço parcial na participação do funciona-
mento da estrutura administrativa do estado, e isto satisfaz muita
gente, que deixou de lutar pela revolução e acomodou-se no
campo das reformas jurídicas e institucionais.
A revolução deve acontecer como “um nascimento”. Uma
verdadeira revolução popular “é um processo incrivelmente
complicado e doloroso, de morte da velha ordem social e nasci-
mento da nova ordem social, do estilo de vida de dezenas de
milhões de homens. A revolução é a luta de classes e a guerra
civil mais agudas, mais furiosas, mais encarniçadas. Não teve
lugar na história nem uma só grande revolução sem guerra
civil”24. Ao produzirmos a organização da nova sociedade vamos
produzindo também a nova existência dos seres humanos, cuja
obrigação é renascer para fazer acontecer a nova ordem.
Desencadeia-se uma revolução quando se consegue unir a
24
 Oziel Gomes. Lenin e a Revolução Russa. SP 1999, p. 59.
5454545454 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
maioria da população em luta para garantir suas reivindicações.
Isto somente será possível se essa população encontrar diante de
si uma organização que lhe inspire confiança, caso contrário
ocorre o que diz Lenin “a classe revolucionária órfã de condução
carece de vontade única” ou seja, esta não consegue sequer uni-
ficar sua vontade, que representa o elemento fundamental da
subjetividade política. Não se faz guerra sem exército, por isso
cada classe terá o seu em permanente confronto. Do lado que a
população pender se definirá a vitória dentro da criação das
condições adequadas.
Mas quais são as “transformações subjetivas” e “condições
objetivas” que possibilitam unir a população e desencadear o
processo revolucionário?
Supostamente a passagem das reivindicações econômicas
para as reivindicações políticas, levaria a uma transformação na
visão, no comportamento e na consciência da população, cara-
cterizando-se como transformação subjetiva. Mas somente essa
subjetividade não basta, pois ela não se reduz à elevação do nível
de consciência ou da motivação da população em participar. É
preciso despertar a autoconfiança nas massas e estas sentirem
satisfação em participar e permanecer na luta. As pessoas devem
sentir que são importantes nesse processo e que delas depende o
avanço da história. Para isto é preciso compreender claramente
de que lado estão, e isto somente se consegue através da ligação
íntima com as massas num trabalho de base permanente. Porque
“não basta dizer que a vida é dura e incitar a revolta; isto qualquer
vociferador pode fazer, mas não serve para grande coisa. É preciso
25
 V. Lenin. Aliança Operária Camponesa. Moscovo, 1983, p. 47.
5555555555O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
que o povo trabalhador compreenda claramente porque é que está
na miséria e com quem se unir na luta para se libertar dessa miséria”25.
Esse exército do povo deverá ser o impulsionador das mobilizações
e o criador da consciência de que estamos do mesmo lado,
buscando coisas parecidas: reformas e revolução, e no percorrer
do caminho, busca-se motivações para a maioria do povo ir até
o fim.
Dizemos então que essa revolução desencadeada é um pro-
cesso consciente para uma parte da população, conduzido por
uma vanguarda consciente e altamente qualificada; em perfeita
sintonia com a participação da maioria do povo de um país, por
saber combinar reivindicações por reformas e por transforma-
ções profundas nesta mesma sociedade, utilizando todas as for-
mas de lutas e meios possíveis.
Mas não é somente o “exército” ou a vanguarda que deve estar
organizada. As pessoas da sociedade embora não façam parte
oficialmente da organização desta força dirigente, devem ter suas
referências organizativas ao alcance da mão. Por isso deve-se multi-
plicar em milhares as organizações de base, que reúna as pessoas
para lutar em seu espaço territorial para fazer as reformas imediatas
que pretende. Essas lutas desencadeadas em cada local, ao mesmo
tempo, tornam-se lutas nacionais, por saúde, educação, moradia,
etc., e a elas vão se incorporando as reivindicações políticas contra
o Estado, a classe dominante e o imperialismo, que jamais serão
atendidas sem que aconteça a revolução e os retire do poder.
Para que “estoure” a revolução é necessário que a população
explorada não queira mais ser explorada e por outro lado, que os
opressores não consigam conter a fúria do povo através da repressão
e das falsas promessas. Acontece então que a classe dominante se
torna incapaz de “controlar o aparelho do Estado, de modo a
5656565656 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
continuar governando como haviam feito até então”26.
Há também que haver causas externas que possibilitem uma
crise internacional, onde fundamentalmente as grandes potências
imperialistas tenham que empenhar seus esforços para resolverem
questões entre si, como é o caso de guerras por disputas de domínio
de um território, crise econômica grave e paralelamente, o aumento
da solidariedade de classe entre os trabalhadores. Não podemos
esquecer que as duas revoluções mais significativas no mundo
aconteceram, a primeira na Rússia em 1917 dentro da Primeira
Guerra Mundial; e a segunda, a chinesa, quatro anos após a Se-
gunda Guerra ter terminado. Ou seja, nas crises internacionais,
os inimigos, as potências aliadas se dividem, e com isso perdem o
controle sobre os países dominados.
Esse processo atualmente no Brasil está ameaçado pela
incapacidade das forças de esquerda de formular um projeto
que combine com o momento histórico e o torne organicamente
viável, e que se constitua numa força de vanguarda, tirando a
classe trabalhadora da apatia.
O imperialismo através da globalização, ao mesmo tempo
em que desestruturou a economia trouxe também uma crise
política nas esquerdas, que interrompeu o processo de lutas,
levando à desorganização total dos trabalhadores. “A esquerda
latino-americana ficou desconcertada e sem projeto alternativo;
está vivendo uma profunda crise que abrange três terrenos: o
teórico, o programático e o orgânico”27. As entidades de classe
perderam suas forças de convocação e os movimentos populares
26 
 Marta Harnecker. A Revolução Social, SP p.77.
27
 Marta Harnecker. Tornar Possível o Impossível. SP p. 317.
5757575757O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
se encontram em um momento de “onda baixa”, devido também
a esta paralisia que tomou conta das organizações históricas.
Houve mudanças na estrutura da economia, no caráter de
dominação e na estrutura de composiçãodas categorias sociais;
mas não houve mudança de conteúdo dos programas, dos
métodos e das formulações estratégicas dos partidos e entidades
classistas, chegando inclusive a negação de princípios e valores
fundamentais, como a solidariedade e a vinculação com as mas-
sas. Por isso é que chegaram ao seu esgotamento, e muitas de-
las perderam a credibilidade. Há espaço para o novo, mas
depende da criatividade que recoloque o trem da luta de classes
em movimento, para que se retome a ofensiva e se crie mo-
mentos revolucionários através das lutas de massas. Depende-se
apenas de uma faísca para incendiar a palha seca, neste caso
feita de miséria e exclusão.
Os momentos revolucionários darão qualidade a esta parti-
cipação, elevando o nível de consciência das massas e forjará
militantes e dirigentes de novo tipo.
É importante compreender e separar a participação inicial
das massas pela reivindicação econômica, lutando por reformas
portanto, com a qualidade da participação seguinte, quando
aparecem reivindicações políticas, onde as massas passam a se
sentir donas do processo. Sentem-se bem, tocadas pela sensibi-
lidade coletiva e unificadas em torno de objetivos, idéias e
símbolos.
Esta transformação subjetiva determinará a razão de parti-
cipar e de preparar o corpo e a mente para fazerem-se presentes
nas ações que empurram a revolução para frente. Não participar
é um incômodo, uma “gastura” que parece corroer a consciência
e os sentimentos. A isto iremos chamar de mística militante,
5858585858 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
que empurra as pessoas a participar por conta própria, inclusive
com a fabricação de seus próprios instrumentos de defesa e
ataque, sem esperar toda hora pelo chamado da vanguarda, nem
reclamando da estrutura e condições de trabalho prático, conver-
tendo tudo isso em disciplina consciente.
É desta forma que a subjetividade vai adquirindo importância
e se desenvolvendo como a vontade, indignação, organização e a
consciência, de acordo com as condições objetivas encontradas
na realidade como a exploração, fome, miséria e crises. Sem criati-
vidade não há revolução. Neste momento, as duas condições tanto
subjetivas quanto objetivas, se unem em uma só objetividade, ou
seja, tudo tem que tornar-se objetivo, estar em condições de
realização. É neste momento que matéria e espírito, ou matéria e
energia, ou matéria e idéias, ou vice versa, se ligam para possibilitar
o “nascimento” do novo. Como se o escultor concebes-se e inicias-
se a construção de uma estátua. Deverá empenhar ali “faculdades
físicas e espirituais” como diz Marx: “no fim do processo de
trabalho aparece um resultado que já existia antes, idealmente na
imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material
sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha
conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do
seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade”28 .
O projeto de sociedade a ser construído deve nascer antes
da revolução acontecer em sua totalidade, e ir sendo construído
já na luta concreta pela transformação total. Esta concepção
antecipada que em sentido figurado se assemelha a uma estátua
a ser esculpida, é que motivará os revolucionários a irem até o
28
 Karl Marx. O Capital, Livro 1, Vol. 1, 1996 p. 202.
5959595959O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
fim, para verem a imagem concebida estampada na própria
realidade da sociedade, em parte já construída.
Ao analisar o massacre de 9 de janeiro de 1905 na Rússia,
quando as forças repressoras atiraram contra a população indefesa
que desejava entregar ao governo do czar um manifesto contra a
fome e a miséria, Lenin nos dirá que “o governo impulsionou a
revolução para frente” e que “a classe operária recebeu uma
lição de guerra civil; a educação revolucionária do proletariado
tem avançado em um dia como não pudera fazer a meses e anos
de vida monótona, cotidiana, de opressão”29. Despertou,
portanto, através de uma ação brusca, a criatividade e a
imaginação da necessidade da construção de um projeto re-al-
mente consciente.
Esta análise levará Lenin mais adiante a afirmar que “o
amadurecimento das condições econômicas apenas não pro-
duzem de forma automática uma situação revolucionária. Para
que a revolução seja possível é requerida a presença de “mil fatores
a mais”30. São estes “mil fatores” que dão identidade às revo-
luções específicas e que depende de seus forjadores para que
não deixem para trás aspectos importantes, tanto da subje-
tividade, quanto dos aspectos objetivos que contribuem para
que a revolução seja vitoriosa.
Temos uma análise muito madura sobre estas circunstâncias,
e a existência do MST. Somos uma força política importante e
ao mesmo tempo limitada. Nosso objetivo é lutar pela reforma
agrária, embora saibamos que ela somente se realizará na
totalidade em um sistema socialista, mas nem por isso, como
29
 V. Lenin. Obras Completas, Progresso, T. 9 p. 205.
30
 Marta Harnecker. A Revolução Social, p. 55.
6060606060 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
movimento social, temos a pretensão de impulsionar sozinhos a
construção desta grande obra, a revolução política, pois demanda
de muito mais força e muito mais representatividade. Mas, o
importante não é reconhecer a fraqueza mas descobrir como
ampliar as forças.
Este entendimento aliás é uma das teses fundamentais do
marxismo. “Os elementos materiais de uma subversão total são,
de um lado, as forças produtivas existentes e, de outro, a formação
de uma massa revolucionária que se revolte, não só contra as
condições particulares da sociedade existente até então, mas
também contra a própria “produção da vida” vigente, contra a
“atividade total” sobre a qual se baseia”31. Sem essa revolta gene-
ralizada, a idéia de revolução não se fortalece e não é possível
concretizá-la.
Podemos dizer que, por duas razões a reforma agrária está
ligada à revolução. A primeira por ela estar no campo das “re-
formas” onde obrigatoriamente deve impulsionar a revolução para
frente através da luta pelas necessidades imediatas dos trabalhadores
Sem Terra e da sociedade. A segunda razão está vinculada a este
concebimento antecipado da sociedade socialista que pretendemos
construir, onde a propriedade privada sofrerá mudanças profundas
na forma de sua existência. Por isso é preciso iniciar a sua
reformulação agora já na conquista da terra, para que o novo
modelo de reforma agrária sirva para preparar as bases de um
novo modelo de propriedade e de agricultura na sociedade
emergente. É neste sentido que a reforma adquire um caráter
ideológico, reforça e aguça as contradições do capitalismo.
31
 Marx K, Engels F. A Ideologia Alemã, 1986, p. 57.
6161616161O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
O momento histórico que vivemos se caracteriza como pré-
revolucionário e pode permanecer assim por muito tempo, como
também pode rapidamente tornar-se revolucionário, esses são
os dois períodos clássicos possíveis, onde a “humanidade
abandona a marcha de carro de boi, para avançar na velocidade
de uma locomotiva”32 .
Nesse período em que estamos indo a passos de “carro de
boi” qual deve ser nossa preocupação? A de forjar lutas e novas
consciências. Dar a partir disso, novo conteúdo aos valores que
formam a conduta social. Empreender uma nova forma de pro-
duzir a existência dos trabalhadores Sem Terra e acumular for-
ças e experiências, através das lutas por reformas, para o mo-
mento seguinte. Internamente, nas fileiras do MST, chamaremos
de revolução cultural, porque temos fisicamente, historicamente,
organicamente, moralmente e ideologicamente esta oportu-
nidade e condições objetivas preparadas.
2.2. As possibilidades da revolução cultural
Teoricamente a revolução culturalsomente seria possível e
teria viabilidade após a tomada do poder pela classe trabalhadora,
para assim retificar determinadas deformações adquiridas antes
ou durante o processo revolucionário, visando a implantação do
socialismo.
Paulo Freire a quem todos os revolucionários devem prestar
homenagens, ao aprofundar esse assunto fez uma diferenciação
muito clara entre “ação cultural” e “revolução cultural”33. Segundo
32
 Marta Harnecher. Obra cit p. 71
33
 Paulo Freire. Ação Cultural Para a Liberdade, 1982, p. 80.
6262626262 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
ele, a ação cultural está ligada ao “anúncio do projeto histórico
a ser concretizado pelas classes dominadas em cujo processo
a consciência semi-intransitiva como a ingênua são sobre
passadas pela consciência crítica – “máximo de consciência
possível”34. Isto é, o anúncio do projeto histórico que se trans-
forma em consciência crítica ao mesmo tempo que se prepara
a sua realização, realizando o próprio anúncio através da ação.
Segue dizendo que “assim, a ação cultural para a libertação,
que caracterizou o movimento que lutou pela realização do
anúncio deve transformar-se em revolução cultural”.
Esta consciência crítica se formará no fazer refletido. Ação
e reflexão são os elementos geradores desta consciência crítica.
A ação oferece os elementos da reflexão e não as informações
recebidas passivamente.
E aí nos deparamos com um suposto complicador, pois
afirma Freire que “a ação cultural para a libertação se realiza em
oposição às classes dominantes, enquanto que a revolução cultu-
ral se faz com a revolução já no poder”35. O que poderíamos
dizer que a revolução cultural é a revolução dentro da revolução.
Logo, nossa política deveria ser traçada em torno da idéia da
“ação cultural” e não da “revolução cultural”, já que ainda não
estamos com o poder hegemônico em nossas mãos.
Mesmo considerando isto, é sabido que nossa organização
cresceu fazendo “ações culturais” pela realização da reforma agrária,
que é pela origem, uma reivindicação conflitante, mas reformista,
por sua realização depender do interesse do Estado burguês, “dentro
da ordem”. Não há, portanto, quebra da ordem nesta política de
34
 Idem, p. 82.
35
 Idem, p. 84.
6363636363O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
desconcentração da terra, a não ser no momento da ocupação através
da contestação pública do direito de propriedade que não cumpre
função social. Portanto, deveríamos classificar esta “ação cultural”
contra a classe latifundiária e o Estado brasileiro, de reforma e não
de revolução. Mas há uma elevação significativa do nível de
consciência das massas através desta ação, e o processo de
continuidade organizativa após a conquista da terra, que se diferencia
de uma ação ou da ligação entre algumas ações contra a classe
dominante por uma reivindicação temporária.
Mesmo dentro dos limites da reforma, esta ação de tomada do
latifúndio, é desencadeada contra, e não a favor da ordem, por ser
dirigida contra a concentração da propriedade da terra e o estado,
que mantém este direito para um grupo muito reduzido36 há quase
500 anos, desde a criação das capitanias hereditárias que evoluíram
para sesmarias e posteriormente para latifúndio. Os ideais são
revolucionários e como disse Florestan Fernandes: “os que
combatem a ordem não podem substituir seus ideais revolucionários
pela salvação da ordem”. Somos, desta forma, lutadores contra a
ordem do latifúndio e consequentemente contra a ordem da
propriedade privada da terra.
Ocorre também, que segundo a teoria marxista, como vimos
acima, temos dois períodos distintos na revolução, o pré-revolu-
cionário (mais lento) “onde as massas seguem a passos de carro de
boi” e o revolucionário (mais rápido), “onde as massas abandonam
o carro de boi e seguem de locomotiva”. Desta forma podemos
afirmar que, a nossa “reforma” não é a mesma reforma da classe
36
 Estima-se hoje que apenas 40 mil proprietários concentram cerca de 400 milhões de
hectares de terra, que significa a soma de 10 mil hectares em média para cada um. Ver
Stédile, O latifúndio, In 7 Pecados do Capital, Record, RJ.
6464646464 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
dominante, ela tem outros ideais e já se configura (embora a passos
lentos) em uma revolução, ainda dentro do momento pré-revolu-
cionário, enraizado nas lutas econômicas. Por isso se torna difícil
classificar o que é e o que não é revolucionário nesse estágio de
luta. Mas, de qualquer forma, não é o caráter da ação que diz se o
processo é ou não revolucionário, mas sim a direção para onde
está apontando.
Se tomarmos como referência o conceito de acúmulo de for-
ças e acrescer a ele, como exemplo, um elemento da arte militar,
diríamos que um assentamento é um quartel de preparação de
tropas para novas ações a serem desencadeadas, até se conseguir
atender todas as questões que compreendem a realização da
reforma agrária, que vai além da distribuição da terra, e segue
daí para a esfera política, com a elevação do nível de consciência.
Por isso, aqui reside a fundamentação de nossa proposta.
Entendemos que já temos mais de 15 anos de idade enquanto
organização, e muitas conquistas e experiências acumuladas. Há
um poder instituído em determinadas regiões do país, através
da conquista de territórios e da influência social.
Nesta trajetória, assistimos a muitas quedas, não só de
muros, mas também de referências organizativas que perderam
seu brilho, e nos deparamos com um momento histórico, onde
os recuos ideológicos e políticos fazem ondas e podem nos atingir
e descaracterizar nossos objetivos e nosso comportamento.
A nossa reforma, portanto, tem elementos de revolução e
de preparação das forças para os passos seguintes, pois é uma
exigência imposta ao estado que não tem interesse em fazer a
reforma agrária, por seus objetivos agropecuários “serem
atingidos” com outros métodos.
A terra passa a ser, neste momento, disputa e acúmulo de
6565656565O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
poder em três sentidos: o primeiro, é que ao conquistarmos a
terra, derrotamos a classe latifundiária que durante 500 anos, desde
a instalação das capitanias, onde o Estado através da Coroa
portuguesa oficializou o latifúndio, vem controlando grande fatia
da esfera do poder político no país, mas que começa a ficar
enfraquecido pelo avanço da conquista da terra por parte dos
trabalhadores. O segundo, porque o Estado brasileiro se verga
perante os desvalidos produzidos pela exclusão do capital e obriga-
se a legitimar a organização deste contingente populacional que
“unifica sua vontade” em torno da identidade de contestação e luta,
e obriga-se a dividir o poder da solução de um problema estrutural
do país contra as orientações de seu modelo econômico. E terceiro,
porque ao conquistarmos a terra, a organização dos Sem Terra,
passa a ser uma referência política e social com condições de con-
trolar o espaço geográfico, onde a conquista da terra e também o
espaço social interno e ao redor de sua instalação comunitária.
Há portanto, uma estruturação permanente onde se repro-
duzirá relações específicas, tanto sociais quanto de produção em
novas bases, neste momento em quase 20 milhões de hectares de
terra conquistados pela luta direta. Por isso podemos dizer que há
um poder territorial instituído através da conquista da terra, que
apresenta características revolucionárias, porque os agentes desta
conquista tendem a ligar a luta pela terra com o socialismo, ele-
vando assim a qualidade da consciência.
Essa estrutura em formação no assentamento não deveria
ser desmanchada com o alvorecer do socialismo, já é o embrião
se constituindo através de novas relações e, portanto, de um
novo jeito de fazer acontecer a existência individual e social.
Não podemos,dentro da reforma, estabelecer uma política
de reformas simplesmente, pois estaríamos apenas nos propondo
6666666666 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
a permanecer dentro da ordem, colocando sobre as velhas relações
elementos das relações capitalistas atuais, simplesmente para não
sermos extintos enquanto produtores rurais. Seria o mesmo,
voltando para a imagem do quartel, o indivíduo entrar para ele e
continuar com o mesmo comportamento anterior. Ocupará
espaço diferente, mas não haverá mudança qualitativa. De nada
valerá aumentar a quantidade sem aumentar a qualidade.
De certa forma já fizemos essa reforma dentro da reforma,
no estágio da luta pela terra e em aspectos mais recentes, porque
as circunstâncias nos obrigavam a dar determinados passos. Embo-
ra isto tenha significado grandes avanços, mas não foi o suficiente
para impulsionarmos uma transformação consistente nas áreas
conquistadas. Senão vejamos: instituindo a legalização chegamos à
institucionalização através das cooperativas e estamos desenvolvendo
a cultura do legalismo, através do cooperativismo. Reformando
nosso comportamento através da reflexão sobre os valores, chegamos
ao trabalho “voluntário” esporádico no relacionamento com a
sociedade. Reformando nossa estética, chegamos até o “embele-
zamento” deficiente de nossas casas e vilas. Reformando nosso
conhecimento, chegamos até os cursos básicos das escolas e cursos
nacionais sem muita criatividade na base. Reformando nossas
relações humanas, chegamos à composição do setor de gênero.
Reformando nossa política de organicidade, chegamos até a
constituição dos núcleos de família, mas não aumentou a partici-
pação nas mobilizações, etc. Chegamos assim a um tipo de
organização forte mas natural, controlável e suportável pela ordem.
Pelo lado humano, forjamos um tipo de camponês adaptável ao
meio regional que sofre junto com a destruição da natureza, e na
sua passividade, não é um elemento aglutinador novo, a partir do
território que ocupa e controla. De certa forma, podemos destacar,
6767676767O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
tomando como referência a história da águia e as galinhas,37 onde
os Sem Terra foram águias no momento do vôo para a ocupação,
os que ficaram para trás foram as galinhas, mas aos poucos no meio
em que estamos, voltamos a ser galinhas, pois paramos em um
lugar fixo para “ciscar” em torno de nossos interesses e não dos
interesses da revolução. Desta forma, construímos nossa nova
existência com elementos da velha cultura, que nos faz perder o
caráter extraordinário do primeiro momento.
A revolução cultural deverá ser esse “nascimento” ou renas-
cimento doloroso, para ao mesmo tempo, em que resistimos ao
capitalismo, instalarmos uma nova ordem territorial, com
elementos que não mudem apenas as aparências, mas também
a essência do modo de produzir a existência pessoal e social das
comunidades camponesas. É preciso despontar com alternativas
inovadoras e contestadoras, que se configurem em um novo
padrão de comportamento.
É preciso porém reconhecer que em determinados aspectos
já avançamos muito independentemente da vontade do Estado
burguês, e especificamente contra a ordem, porque não é fácil
garantir educação para 200 mil crianças independente da política
estatal, com uma proposta pedagógica própria. Não é comum se
produzir sementes agroecológicas sem recorrer a agrotóxicos e
nem adubos químicos, também não é comum colocar em viagem
pelo mundo em média 60 camponeses por mês, para estabelecer
relações e trocar experiências com outros povos. Não contando
com a composição de redes de apoio como advogados, pedagogos,
médicos, etc. e a formação política e profissional de milhares de
37
 Ver Ademar Bogo. In Valores de Uma Prática Militante, Caderno de formação da Consulta
Popular, 2000.
6868686868 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
pessoas, ao mesmo tempo em que se produz literatura com funda-
mentação científica e revolucionária.
A preocupação atual é, portanto, despertar as contradições
para garantir o avanço do MST e sua sustentabilidade histórica
através da “ação cultural” organizada externamente e antecipar
a “revolução cultural” interna mesmo sem termos chegado ao
poder do país. Mas desta forma pretendemos contribuir com a
classe trabalhadora para chegarmos lá.
Afirmamos então ser possível realizar a revolução cultural
no campo, antes mesmo de conquistar o poder do Estado no
país, porque já estamos ou temos potencial de produzir nossa
existência de forma independente, dentro de nossos territórios
conquistados, fazendo ali não só plantações de árvores, mas uma
nova cultura com novas relações.
É possível estabelecer um novo tipo de propriedade da terra,
produzir sem prejudicar a natureza, preservando as florestas e cuidar
da vida das espécies; transformar os latifúndios em lugares agradáveis,
bonitos e recompor as florestas, devolvendo a água aos córregos
secos; estender para as comunidades próximas nossas conquistas;
avançar nas relações pessoais e no aperfeiçoamento da democracia
interna; iniciar a gestação de um novo tipo camponês com novos
homens, novas mulheres, jovens e crianças; desenvolver a solida-
riedade de classe; participar de todas as lutas contra a opressão;
ensaiar a convivência de valores com novos conteúdos; enfim,
estabelecer embriões do novo para que se antecipe as características
da sociedade socialista e quando lá chegar, não tenhamos que
desmanchar tudo por estar contaminado com o vírus do capitalismo
ou então nunca chegar, porque o peso dos vícios, desvios e interesses
pessoais, dobram nossas pernas impedindo que demos passos em
direção á libertação, sempre aperfeiçoando e diversificando as formas
6969696969O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
de luta. É isto que entendemos por revolução cultural e acreditamos
ser possível desencadeá-la para, de fato, não sermos apenas referência
de força, mas também de alternativas, valores, virtudes e ternura.
O agrário para nós deve se transformar em agrado, agradável,
para todas as espécies e para todos os seus descendentes.
Possivelmente seremos questionados por esse intento, mas
estamos justamente fazendo o possível de hoje para viabilizar as
condições da realização do impossível amanhã.
É neste período pré-revolucionário que buscamos, através
da terra, recriar os seres humanos e os sonhos de libertação. Então
sonhamos com o poder? Claro que sonhamos; como qualquer
ser político sonha. Ele é a única possibilidade de pôr fim à tirania
implantada em nosso país há cinco séculos.
Neste longo caminho de dominação fomos acumulando
heranças. Obrigatoriamente somos induzidos a recebê-las já ao
nascer. Mas assim como as recebemos também podemos renunciá-
las e devolvê-las a quem nos entregou.
Essa herança da miséria, do analfabetismo, da desnutrição, da
indigência, da exclusão social, da deformação do comportamento
e das relações sociais foi o que nos legaram os precursores do
capitalismo. Na medida em que nos conscientizamos, renunciamos
a elas e nos tornamos desobedientes, para buscarmos por conta
própria o remédio para tais males, e se assim o fizer, venceremos.
Temos recebido muitas influências que nos fizeram errar
neste processo de reconstrução da vida política, econômica e
social, e por isso ainda carregamos o peso da velha cultura da
sociedade burguesa que nos ensinou que se “pode vencer so-
zinhos”, por isso a cooperação e a solidariedade têm dificuldades
em desenvolver-se.
A busca da auto-estima é fundamental para reconstruir o
7070707070 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
ser humano que teima existir, embora as forças destruidoras, os
vícios e os hábitos oportunistas se manifestem a todo momento.Na vida política e organizativa também acumulamos defeitos
como a máquina de plainar que vai acumulando a seus pés toda a
maravilha esculpida da madeira que alisa. Ao mesmo tempo em
que embeleza e dá forma de objeto à madeira, acumula a seu
redor, lixo que deve ser eliminado para que a máquina não pare
asfixiada pela montanha de detritos que ela mesma produziu.
O desconhecimento da ciência, da filosofia e da arte nos dá
em certos momentos a sensação de que sabemos tudo e por isso às
vezes temos por um lado, receio dos intelectuais e por outro,
arrogância, porque empenhamos a força e acreditamos que através
dela tudo se resolve. Não se resolve. Há momentos em que a
inteligência tem mais poder que a força, por isso é preciso partir
dos conhecimentos elementares para posteriormente entrarmos no
estudo mais avançado das ciências, das técnicas, filosofia, política.
É fundamental eliminar a distância criada pelo capitalismo entre
trabalho intelectual e trabalho manual. Nossa revolução cultural é
pela diminuição das diferenças e pela eliminação dos preconceitos
e desigualdades. Aquele que julga não saber deve provar porque
não sabe. Neste momento estará buscando a saída para saber.
Como disseram nossos antigos mestres “falar em revolucionar
uma sociedade significa que, no bojo mesmo da velha sociedade,
formaram-se elementos da nova sociedade e que a queda de velhos
conceitos acompanham a queda das antigas condições de vida”38. É
esta relação que pretendemos estabelecer com a revolução cultural,
mexendo na subjetividade para ir eliminando aos poucos, junto
com o desenvolvimento das forças produtivas, os desvios criados
na produção da existência em todos os tempos por onde passou a
história da humanidade, sempre marcada pela luta de classes.
38
 Marx, Engels. Manifesto do Partido Comunista, Global Editora, 1986, p. 34.
7171717171O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
3. Pilares de nossa
revolução cultural
Chamamos de pilares as referências básicas que funda-
mentam nossa revolução cultural em marcha. A partir de tais
referências se desdobram os métodos e as diretrizes que imple-
mentam o projeto da revolução cultural. Quais são estes pilares
básicos?
a) A autodeterminação
A autodeterminação é a condição fundamental para poder
construir e construir-se neste caminho na existência presente.
Temos, porém, uma dicotomia política interna, que se mate-
rializa na contradição, ação-passividade. Quando organizamos
uma ocupação de terra, estamos organizando para a ação, quando
organizamos um assentamento, estamos organizando para a
passividade; nesta passagem de um estágio para outro, diminui
nossa autodeterminação em relação ao projeto de reforma agrária
e regredimos na ação direta ao invés de progredir. Desta maneira
as pessoas vão perdendo a motivação, como um pássaro que
perde a autonomia de vôo, a radicalidade, e o envolvimento nas
soluções dos problemas.
É preciso considerar cada Sem Terra um guerreiro a qualquer
tempo, por ser este um ser social especial, forjado em novas
condições sociais e políticas. Quebrar as cercas das limitações que
impedem o assentamento de se desenvolver em todas as dimensões.
Influir por outro lado, nas comunidades vizinhas aos
assentamentos para que se possa ampliar o raio de abrangência de
nossa revolução cultural. Ela deve ser camponesa e não somente
7272727272 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Sem Terra. O campo precisa florescer de camponeses, e camponeses
são todos aqueles que sofrem com a exploração capitalista.
Através da recriação das relações sociais e de produção,
estaremos vislumbrando através das frestas do tempo, os seres
humanos que teremos no futuro como verdadeiros habitantes
da terra. Que na sua autodeterminação saibam respeitar os
direitos das demais espécies que também terão direito a perseguir
seus objetivos.
Sendo assim, não devemos temer em estender as conquistas
a outros camponeses que supostamente não fazem parte de nosso
universo de Sem Terra. Nossa obrigação é desenvolver o interior
do país e contribuir com os conhecimentos extraídos da
experiência histórica.
A autodeterminação também está relacionada com a auto-
sustentação. Quando as organizações populares não conseguem
caminhar com suas próprias pernas e escoram-se nos ombros de
ONGs, significa que pouca autonomia possuem e subordinam a
idéia de liberdade aos interesses das entidades, dos governos e do
imperialismo norte-americano. “De certo modo, as ONGs
assumiram as funções anteriormente cumpridas pelas agências
estatais, o que permitiu aos governos nacionais a redução da sua
responsabilidade pela promoção do bem-estar da população”39 .
De qualquer forma, grande parte delas são instrumentos de
submissão que modificaram seus aparatos, mas que não
modificaram a ideologia, embora utilizem métodos forjados na
organização da luta popular, agora para dominar o povo.
Autodeterminar significa, portanto, ter vontade e consciência
39
 James Petras. Neoliberalismo: América Latina, Estados Unidos e Europa, 1999 p. 72.
7373737373O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
de escolher o caminho que se queira trilhar para alcançar as
mudanças necessárias, para libertar da exploração milhares de
pessoas.
b) A inter-relação entre as espécies
Há uma relação muito íntima entre todos os elementos
que compõem nosso planeta. Estamos vivendo um momento
histórico importante e significativo para nossa geração. O motivo
é que para determinadas coisas é como se a humanidade tivesse
percorrido, até aqui, a metade exata do caminho da construção
e destruição do planeta terra.
Desde que se formou o planeta Terra, há milhões de anos,
até meados de 1950 a humanidade havia devastado metade das
florestas do mundo. Nos últimos 30 anos foram devastados só
no Brasil 600 mil km2 da floresta amazônica; isto é equivalente
a todo o território da Alemanha40. Significa que estamos fazendo,
em poucas décadas, o que a humanidade não conseguiu fazer
em milhões de anos: devastar o planeta matando as árvores.
Esta devastação e poluição produzem outros dois fatores, a
erosão e o aquecimento da terra. Nos últimos 100 anos a terra
esquentou 0,6o (zero virgula seis graus centígrados) e nos próxi-
mos 100 anos poderá esquentar até 5,5o C (cinco vírgula cinco
graus centígrados). Isto significa que haverá enormes catástrofes
porque com a destruição da camada de ozônio, não haverá mais
filtro solar, e os raios do sol que vinham beijar a terra, virão para
feri-la e queimar todas as espécies de vida.
Esses desequilíbrios estão levando a desertificação da terra.
Somente a partir de 1972 o surgimento de desertos cresceu ao
40
 Leonardo Boff. O Ecocídio e o Biocídio, In 7 Pecados do Capital. RJ 1999, p. 38.
7474747474 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
tamanho das terras agricultáveis da China e da Nigéria juntas, e
perderam-se 480 milhões de toneladas de solo fértil41 por causa
da erosão.
Com a secagem dos córregos e rios, a água doce também
diminui rapidamente e em algumas partes do planeta, já beira a
extinção. Os cientistas alertam que para o ano 2.025, haverá
crise de água doce e as próximas guerras poderão acontecer para
disputar a água e não mais o petróleo.
Com todos estes desequilíbrios, produção de lixo em excesso
que leva até 100 anos para se decompor – como é o caso de
alguns tipos de plásticos –, e no caso do lixo radioativo, que leva
até 100 mil anos para se deteriorar, sendo um atentado
permanente contra a vida das espécies, onde estima-se que 10
delas42 são extintas para sempre todos os dias.
A reforma agrária não pode ignorar esses desequilíbrios, e nossa
intervenção deve ser para contestar e inverter tal ordem, inaugurando
um novo tempo para agricultura com características revolucionárias,
despoluindo através de novos métodos de produzirdeixando de
envenenar os rios, a terra e o ar, refazendo as florestas, produzindo
assim um novo tipo de camponês, que saiba se relacionar com as
demais espécies de vida, respeitando seus direitos e coordenando
sua reprodução para evitar desequilíbrios. Dentre todos os tipos de
seres, os camponeses estão mais próximos da imagem e semelhança
do criador, porque lidam diretamente com a terra e a água de onde
provém a vida de todas as espécies. O que nos falta é saber como
comandar essa orquestra, para que a sinfonia da vida não desafine,
mas que dê satisfação aos ouvidos de todos os seres vivos.
41
 Idem, p.37.
42
 Ibidem, p. 37.
7575757575O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
c) A continuidade histórica
Há uma relação também íntima entre o presente e o passado,
deles depende a construção do futuro que ainda não existe mate-
rialmente, por isso sempre se apresentam através de idéias,
sonhos, esperanças e objetivos.
Todas as coisas e espécies possuem as matrizes que lhes deram
origem. A existência de todas as coisas tem memória registrada,
que revelam a trajetória de cada uma em particular. Memória que
revela sabedoria e foi forjada no fazer e no pensar, a qual chamamos
de história.
Nada pode surgir do nada. Portanto, o resgate da memória
serve para revelar a origem das coisas. Seu resgate possibilita nos
orientar para prosseguir ou desviar caminhos, e aperfeiçoar os
passos, caso entendamos que nossos antepassados já passaram
por essa experiência e ao viver, nos alertaram para não cair em
ciladas armadas pelas contradições concretas.
Esta existência produzida por outras mãos, que se trans-
formou em cultura, é que nos interessa para edificar nossa própria
existência, com características de uma nova cultura.
Somos portanto, continuadores e alimentadores de sonhos
de nossos antepassados. Nossa obrigação é entregá-los aos nossos
descendentes como herança, para o aperfeiçoamento da huma-
nidade. Quanto mais souber e fizer de bom, mais deixaremos de
herança. Quanto menos souber, menos virtudes conhecerão nossos
descendentes.
Há também coisas negativas na memória histórica, que as
gerações carregam sem perceber que este lixo de atitudes pesa
sobre as consciências mal formadas pela influência social. Máximo
Gorki relata de forma simples a herança deste lixo histórico que
carregamos. “Um domingo, quinze dias depois da morte do
7676767676 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
pai, Pavel Vlassov entrou bêbado em casa. Chegou cambaleando
ao canto dos ícones e, dando um soco na mesa, como o pai
fazia, gritou:
- O jantar!
A mãe aproximou-se, sentou-se ao lado dele e, abraçando-
o, aconchegou no peito a cabeça do filho. Este, apoiando uma
mão no ombro dela, afastou-a e gritou:
- Vamos, mãe, e despacha-te!...
- Tontinho! – disse ela numa voz triste e carinhosa,
quebrando a resistência de Pavel.
- E quero fumar! Dá-me o cachimbo do pai....
Era a primeira vez que se emborrachava. O álcool enfra-
quecera-lhe o corpo, mas não perdera a consciência das coisas”43.
Esta memória negativa é que nos faz reagir de determinadas
formas, às vezes incompreendidas, mas que a revolução cultural
terá que priorizar para que de fato se possa modificar a realidade
dos hábitos e comportamentos.
O que está na consciência social formada pela existência
social vivida anteriormente, deve ser analisado e na medida do
possível ultrapassado, colocando sobre este lixo de compor-
tamentos errados, gestos com novos conteúdos.
d) A arte de fazer o belo
A estética, como dissemos, é a área do conhecimento que
cuida da beleza. Isto quer dizer que nascemos para o belo e
precisamos descobri-lo para admirá-lo.
Mas a revolução cultural quer ir além de perceber o belo,
quer buscá-lo e recolocá-lo como parte integrante da vida social.
Encontrar o belo que existe dentro de cada pessoa, o belo que existe
43
 Máximo Gorki. A mãe, Moscovo, 1987, p. 10.
7777777777O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
na convivência social, o belo das flores do campo, da natureza livre,
o belo do modelo de nossas casas, dos quintais e dos jardins e funda-
mentalmente, o belo da existência de nossos sonhos.
Há utopia também no belo, pois jamais o alcançaremos na
totalidade. É preciso, portanto, despertar para sua importância
na luta de classes e na vida, para que renasça com a revolução
em circunstâncias agradáveis e sustentáveis.
O modelo adotado pela classe dominante, atualmente, não
é mau propriamente pelas características da globalização, isto já
estava previsto que ocorreria pelo desenvolvimento natural do
capital, que se move através do mercado. “A burguesia não pode
existir sem revolucionar, constantemente, os instrumentos de
produção e, desse modo, as relações de produção e, com elas,
todas as relações da sociedade. (...) A necessidade de um mercado
em expansão constante para seus produtos persegue a burguesia
por toda a superfície do globo. Precisa instalar-se em todos os
lugares, acomodar-se em todos os lugares, estabelecer conexões
em todos os lugares”44. A perversidade desse modelo vem da
inibição da capacidade de criar, por isso as pessoas passam a
acreditar que tudo já vem pronto, e perdemos a qualidade mais
profunda e digna do ser humano: sentir que somos criadores.
Cada um a seu modo somos todos artistas, pintores, poetas
escultores e fundamentalmente arquitetos de nossos sonhos, por
isso precisamos resgatar na juventude e em todas as pessoas esta
vontade de criar, para que aquilo que nossas mãos edificam tenha
beleza.
Este contato com a beleza ajuda a educar os demais sentimentos,
44
 Marx. K. Engels F. O Manifesto Comunista, 1998, p. 13 e 14.
7878787878 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
como contemplar a natureza por ser a fonte da vida e de “todos os
valores de uso”45 e que muda permanentemente nas várias estações
do ano. Somente os contemplativos conseguem perceber estas
mudanças de caraterísticas da beleza natural. Com isso, desperta
a capacidade da valorização das qualidades infinitas que há na
combinação da vida das espécies e também das pessoas na
sociedade.
Podemos dizer que a estética é um lugar imaginário onde se
cruzam e se chocam distintas valorizações, onde constantemente
há uma luta de idéias46. Para resolver estas contradições de idéias
a alternativa é formar “a consciência estética”.
Temos então a oportunidade de criar e sentir. A partir da
visualização fazemos juízos de valor de acordo com a capacidade
de agir e de analisar que temos, em contato com o belo. “Existem
capacidades artístico-executivas e artístico-criadoras. As
executivas dão possibilidades ao homem de reproduzir umas ou
outras linhas da beleza das obras artísticas e do mundo que nos
rodeia. Sobre a base das capacidades executivas se formam as
capacidades criativas, as quais ajudam o homem a produzir obras
originais ou dar a interpretação de outras obras de arte”.47 Estas
capacidades, efetivamente, se entranham na formação da
personalidade de cada ser humano e dela fará parte, atraindo a
simpatia e a admiração dos seres sociais que com ele convivem.
Nascemos para o belo quando descobrimos sua importância
para a vida humana. O gosto de fazer bem feito é apenas conse-
45
 Marx. K. Crítica al Programa de Gotha. Moscou, 1979 p. 10.
46
 M. A . Verb La Educacion Estética de Los Escolares. In Teoría Y Metodología de La
Educación. Comunista Em La Escuela. Editorial Pueblo y Educación. La Habana. 1978 p.
220.
47
 Idem, p. 225 e 226.
7979797979O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
qüência desta consciência estética formada a partir da experimen-
tação da beleza no fazer e no sentir quotidianamente.
Os artistas e poetas assumem nesta área, a condição de líderes
políticos, por isso a estética sendo a arte de desenvolvero belo,
está profundamente ligada à ideologia, não existe obra de arte
sem representação, por onde a mensagem passa desenhada,
esculpida ou musicada, dizendo algo que toca a profundidade da
consciência humana que sente prazer em poder chegar cada vez
mais próximo da beleza.
e) A linguagem
A linguagem está intimamente ligada à ideologia, isto porque
comunicar é transportar idéias de uma consciência para outra através
de algo que represente para os seres humanos as coisas e relações
que existem entre elas, expressando vontades, sentimentos, interesses
etc. No dizer das coisas entendemos o que devemos fazer contra ou
a seu favor.
“Tudo o que é ideológico possui um significado e remete a
algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo o que é
ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia”48.
A tese nos mostra que a ideologia não é algo abstrato, pelo
contrário, é concreta; e os signos – que são objetos materiais –,
também são instrumentos da linguagem. Por isso é que todo objeto
tem ideologia representada em si. A palavra passa a ser o elemento
fundamental, ela é o fenômeno ideológico por excelência,49 sendo
esta o elemento aglutinador nas relações sociais.
A terra, para nós que lutamos por conquistá-la, tem lingua-
gem e ideologia como objeto de disputa e é através dela que
48
 Mikhail Bakhtin. Marxismo e Filosofia da Linguagem, 1997, p. 31.
49
 Idem, p. 36
8080808080 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
impulsionamos a organização que se comunica através de pala-
vras e signos.
Assim também as árvores, as águas, as cores, as casas, escolas
e a vida têm um profundo sentido ideológico quando se tornam
motivo de luta. Marx e Engels interpretaram corretamente essa
questão ao dizer que: “a produção de idéias, de representações, da
consciência está, de início, diretamente entrelaçada com a atividade
material e com o intercâmbio material dos homens como lingua-
gem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual
dos homens, aparece aqui como emanação direta de seu compor-
tamento material”50. Esta linguagem em formação permanente
que se desenvolve através da produção de idéias e coisas, faz a
história seguir em frente.
Há uma onda de patenteamento dos inventos por países
ricos em países pobres que possuem matérias-primas muito mais
diversificadas que estes. Mesmo que aleguem o direito da
pesquisa científica para poderem avançar nas descobertas, não
podemos aceitar o patenteamento da vida que será controlada
pelos interesses do imperialismo que se instalará em nosso
quintal, para expropriar o que temos de bom e fazer as empresas
multinacionais enriquecerem ainda mais, com aquilo que
pertence a todo nosso povo. Além do mais, isto nos prejudica,
porque aos poucos perdemos a memória histórica de nossos pró-
prios inventos, descobertos pela força da experiência e momentos
de necessidade de nossa classe.
Estes interesses falam sua própria linguagem e estabelecem uma
relação de expropriação de algo que favorece o enriquecimento de
50
 K. Marx F . Engels. A Ideologia Alemã, SP, 1986, p. 36.
8181818181O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
grupos econômicos, através dos novos nomes que darão à matéria
prima transformada. Através de uma nova linguagem, ganham
muito dinheiro.
A linguagem ideologicamente definida adquire papel cada
vez mais importante, porque nos ajuda a perceber as coisas
que existem e a forma como existem. Além, é claro, de possi-
bilitar a instalação de um diálogo franco, sincero e democrático
com todos os tipos de vida. A voz do corpo é semelhante à voz
que sai da garganta. A voz dos pássaros é a mesma que a voz
dos poetas. A voz das árvores é a mesma que a voz das crianças.
A voz das cores é a mesma que a voz da luta, da resistência e da
transformação, quem pode confirmar isto é a consciência esté-
tica que desenvolvemos em nós. Todos os objetos se comunicam
entre si ou com o ser humano. Ocorre que na maioria das
vezes essa comunicação é autoritária e sem respeito.
Não existe a ideologia do silêncio. Existe a ideologia da
repressão que impõe o silêncio. Os revolucionários somente o
são porque escutam todos os ruídos e aprendem a comunicar-se
com todas as coisas, a partir de quando descobrem sua
importância para o fortalecimento da revolução.
Portanto, nossa revolução pretende libertar a linguagem para
que haja um franco diálogo entre todos os objetos, espécies e
cores nesta integração da vida com o planeta.
f ) O conhecimento
O conhecimento é a apropriação concreta dos elementos
que compõem a realidade com a qual nos relacionamos e
buscamos a partir de nossos interesses meios e formas de
transformá-la. Esta transformação da realidade concreta também
será uma autotransformação de quem a transforma.
A fragilidade humana obrigou, ao longo dos tempos, os
8282828282 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
seres humanos a organizarem-se em sociedade, essa descoberta
transformou-se em cultura que se desenvolve através do contato
físico, social e sentimental.
O conhecimento é algo construído através do esforço e da
reflexão humana que se acumula não somente no cérebro, mas
também nos demais órgãos do corpo que devem desenvolver
estrutura e habilidades para executarem os movimentos sugeridos
pelo cérebro.
O conhecimento embora tenha no cérebro seu ponto de
referência de desenvolvimento não pode ser entendido como
algo apenas racional. Coloca-se a vida em andamento para se
buscar conhecimento e a vida não é apenas força física e racio-
cínio, mas também emoções, prazer e muito mais.
A busca do conhecimento deve emocionar o ser humano
através das descobertas que faz e isto deve lhes dar prazer, tanto
no nível do dever cumprido quanto na sensação de bem estar
que faz do ser humano mais humano e o incentiva a seguir
procurando conhecimento.
A experiência individual e coletiva é a referência básica do
conhecimento. Sempre que surgem dúvidas, o cérebro automa-
ticamente liga-se ao passado, a tendência natural é comparar a
situação atual com outra situação já vivificada, para daí tomar
uma decisão.
Há o conhecimento que se desenvolve através dos sentidos
que não pertence apenas ao ser humano. Há indícios de que há
cerca de 250 milhões de anos o cérebro dos répteis era o que
havia de mais complexo,51 devido ao desenvolvimento da visão.
51
 Laerthe Abreu Junior. Conhecimento Transdisciplinar, 1996, p. 131.
8383838383O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Os mamíferos, da mesma forma, segundo a mesma fonte, foram
obrigados a usar a noite para escapar dos ataques e por isso
desenvolveram o sangue quente para poderem ficar acordados à
noite e assim desenvolveram a audição e o olfato, pela necessidade
de andar no escuro.
As necessidades históricas fizeram com que o ser humano
desenvolve se cada vez mais a habilidade dos sentidos. Quando
se sentiu limitado, passou a inventar instrumentos para aproveitá-
los ainda mais, como lentes de grau, microscópios etc.
Essas descobertas das ciências vão se acumulando como
patrimônio da humanidade, colocado à disposição das gerações
futuras.
Mas tal conhecimento não vem de dentro do cérebro mas
fora dele. Isto quer dizer que os pensamentos, a consciência, são
reflexos do mundo em que vivemos52. O cérebro tem a função
de registrar o que está fora de si, assim é que se forma a expe-
riência histórica. O ambiente que tivermos capacidade de edificar
se tornará conhecimento pelo simples fato de estar localizado
no espaço de nossa convivência.
Para nós o conhecimento deve ser um pilar fundamental
para desenvolver nossa revolução cultural, pois devemos resgatar
experiências positivas e compará-las com nossa realidade para
chegar a uma síntese exata do que devemos fazer, para evitar
influências de conhecimentos atuais que prejudicam o avanço
daorganização social e de produção no campo.
g) A imaginação
Nossa revolução cultural tem um pilar que é a imaginação.
52
 Lenin. V.I. Materialismo e Empiriocriticismo, Lisboa, 1982, p. 7.
8484848484 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
É necessário imaginar o futuro que queremos para poder iniciar
sua edificação no presente. As ciências nos ajudam a materializar
através dos planos aquilo que desenhamos com os pensamentos.
Não podemos acreditar que desenho animado desperta a
criatividade, muito pelo contrário “domestica” a consciência
infantil, como faz a “família de patos trajados de gente”, na
história em quadrinhos do Tio Patinhas. “Alojados na nossa
inteligência, esperam demarcar aí a posse ilícita do terreno em
que pretendem vegetar na continuidade do imobilismo em que
foram gerados e que constitui a razão de ser de sua existência”53.
Precisamos ensinar nossas crianças a animarem os próprios
desenhos reais que se transformam em brinquedos, dando-lhes
nomes após tê-los fabricado. As fantasias são benéficas quando
incentivam a transformar a realidade, quando inibem a ação
revolucionária, são maléficas e devem ser combatidas.
A fantasia deve aproximar-se do mundo real para que as
pessoas possam criar alternativas viáveis e sustentáveis. Por
exemplo, cada família assentada tem direito, além da terra para
trabalhar, a uma casa para morar. Esta casa não poderá ser
construída baseada em plantas dos palácios que aparecem na
televisão, mas tão pouco devem ser aceitas as que o governo
propõe que são de 42m2, independentemente do número de
pessoas que compõe a família, não contando que a planta de
uma casa, serve para todas.
Desta forma a consciência imaginativa perde seu potencial
de crescimento por não estar ligada a um projeto de criação
autônoma. Não se pode imaginar o que já está imaginado. Assim
53
 José de Souza Martins. Sobre o Modo Capitalista de Pensar, 1982, p. 3.
8585858585O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
é o mundo de fantasias do capital, tudo já está imaginado, não
sobra espaço para imaginar, tudo está pronto para consumir.
A revolução cultural que pregamos é justamente para inverter
tal ordem, que se estabeleceu autoritariamente na sociedade e nos
tornou vítimas dela. Queremos inverter esta ordem através da
mudança nas relações sociais e produtivas, que se sustentem pela
sua evolução e não pelo seu congelamento alienado.
A imaginação deve adquirir caráter “intuitivo” e se alimentar
da sensibilidade nas relações sociais e humanas, fazendo-nos
acreditar que cada revolucionário é um artista da revolução. “O
verdadeiro artista intui a forma organizadora dos objetos ou
eventos sobre os quais focaliza sua atenção. Ele vê, ou ouve, o
que está por trás da aparência exterior do mundo”54.
A imaginação deverá adquirir uma encarnação material, seja
como objeto físico, som, melodia, corpo humano, etc. Os
monumentos criados para resgatar a história e simbolizar a existência
de um período significativo da vida de pessoas que entregaram seu
esforço e sua vida para edificar as idéias imaginadas, cumprem um
papel altamente questionador da ordem e apontam para o futuro,
como sinal de que ainda há história para ser feita.
Imaginar, portanto, é querer encontrar-se no tempo histó-
rico construindo com as mãos o que dizem os sentimentos.
h) A utopia
A utopia é o pilar do combustível que alimenta o motor
desta revolução. Os passos dados emanam energia que incentivam
a seguir em frente. A razão desse caminho está na causa consciente
que se gestou coletivamente. Sendo assim, a energia como vontade
54
 Aranha, Maria e Martins, Maria. Filosofando: Introdução a Filosofia, 1996, p. 345 e 346.
8686868686 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
e satisfação vem da própria realização.
O fazer se torna ânimo, que estende sobre os construtores
da utopia seu manto de unidade e possibilita o entendimento e
a doação de mais esforço – ou até a vida se preciso for –, para
chegar ao local imaginado e desejado.
Com esse alimento, os construtores da causa utópica, que
jamais se realiza na totalidade, entendem-se a si próprios e buscam
na confiança mútua, acreditar também nos outros e na causa.
Peter McLaren ao nos explicar um conceito moderno,
“Selfético”, que quer dizer “fazer-se a si próprio pela ética”, como
forma de resistir à cultura pós-moderna diz: “os selves éticos,
diferentemente dos heróis, morrem pela dignidade de outros
seres humanos e pelo seu bem estar e, assim fazendo, não são
capazes de justificar qualquer outro sacrifício que não os seus”55.
Esta entrega consciente é a única possibilidade de justificar os
sacrifícios no silêncio sem buscar projeções ou fama de herói.
Somente a utopia coloca à frente como horizonte maior,
tendo a mística como energia real e imediata, consegue dar
sentido à coerência e mantê-la sem vacilos e titubeios, batendo-
se de frente com o oportunismo, a corrupção, econômica,
política, ideológica e moral que leva sempre e inevitavelmente à
cooptação pela direita.
Os revolucionários somente conseguem manter-se nesta
condição porque apesar de adormecerem com a consciência
tranqüila pelo dever cumprido, sabem que o sono é apenas um
intervalo para recompor as energias e retomar o caminho da
esperança que leva até a fonte da realização de todos os sonhos.
55
 Peter McLaren. Multiculturalismo Revolucionário, p. 281.
8787878787O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
No ponto mais alto de cada sonho está a liberdade, mas jamais
a alcançaremos por inteiro, sempre haverá imperfeições em
nosso comportamento que nos amarrarão e nos farão corar de
vergonha sempre que nos observar. Mas isto é a prova que
somos humanos e não deuses, por isso jamais realizaremos
nossos desejos na totalidade, mas o importante é sentir prazer
em buscar realizá-los.
Os revolucionários embora sintam satisfação em tudo que
fazem, sempre estão insatisfeitos e indignados por aquilo que ainda
devem fazer. É a dialética da plenitude e da insuficiência que se
debate em cada consciência. O tudo e o nada andam juntos,
significando que enquanto houver vida há espaço de crescimento.
i) O cuidado
O cuidado é um pilar fundamental descoberto e sistematizado
por nosso mestre Leonardo Boff, como um elemento central para
ser considerado na atualidade, isso se quiser não somente salvar o
planeta, mas todas as relações já estabelecidas, ele nos diz que
“sonhamos com um mundo ainda por vir, onde não vamos mais
precisar de aparelhos eletrônicos com seres virtuais para superar
nossa solidão e realizar nossa essência humana de cuidado e gentileza.
Sonhamos com uma sociedade mundializada, na grande casa
comum, a Terra, onde os valores estruturantes se construirão ao
redor do cuidado com as pessoas, sobretudo com os diferentes
culturalmente, com os penalizados pela natureza ou pela história,
cuidado com os espoliados e excluídos, as crianças, os velhos, os
moribundos, cuidado com as plantas, os animais, as paisagens
queridas, especialmente cuidado com a nossa grande e generosa
Mãe, a terra”56.
56 
 Leonardo Boff. Saber Cuidar: Ética do Humano – Compaixão pela Terra, 1999, p. 13 e 14.
8888888888 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Nossa revolução cultural se estruturará em torno dos cuidados
e os transformará em valores, que adquirirão novas categorias
teóricas a partir de nossa prática, buscando sempre a construção
de um mundo melhor através do funcionamento de uma nova
sociedade.
Nossos valores têm forma e conteúdo diferentes de apre-
sentarem-se que estes aos quais o capitalismo desenvolveu e
deformou.
Somente edificaremos novas relações se os valores que
diferenciam o bem do mal, estiverem desenhados como tatuagem
na consciência de cada serhumano que emergirá desta revolução.
Saber cuidar não se aprende fora da vida quotidiana, por isso é
que a revolução se inicia pela transformação de pequenas coisas.
Quando falarmos do cuidado da honestidade como valor,
não poderá significar apenas o cuidado das finanças coletivas,
mas também a honestidade nas relações; que possibilita a
contenção dos instintos que beneficiam a individualidade antes
da coletividade, e que em tudo possamos ser proximamente
iguais, seja nos direitos, seja nos deveres. De nada valerá termos
as finanças controladas se não controlarmos as relações com a
natureza, se os idosos e as crianças não participam da construção
deste novo sonho de libertação.
Na medida em que se desencadeia a revolução, o cuidado
como fundamento básico, vai se tornando mais consciente e
ampliando seu significado a partir do respeito pelos demais
sujeitos que compõem a vida de nosso planeta.
Não podemos intentar fazer uma revolução simplesmente
para buscarmos melhorias econômicas. Como vimos, nosso
planeta está comprometido; a vida está sendo dizimada em dez
espécies diárias, a água doce está indo embora, a camada de ozônio
8989898989O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
se diluindo, a terra esquentando, os seres humanos morrendo em
torno de 40 milhões de pessoas por ano no mundo, somente de
fome. Somente com valores diferentes poderemos compreender
a gravidade destes dados.
j) A luta de classes
Como vimos em O Manifesto Comunista, “a história de
todas as sociedades que já existiram é a história da luta de classes”;
devemos estar conscientes de que esta revolução não virá sem
esforços e sem conflitos.
É provável que Marx nunca tenha afirmado diretamente que
“a luta de classes é o motor da história” como afirma Thompson57,
mas tinha este muita clareza de que, do elemento da luta de classes
dependia a história para se desenvolver. De qualquer maneira no
livro a ‘Ideologia Alemã’ encontramos com outras palavras a
mesma profecia: “não é a crítica, mas a revolução a força motriz
da história”58. Ora, não há revolução sem luta de classes, por isso
ela é a força motriz e não as palavras. Por isso devemos acreditar
que esta revolução mesmo que seja no comportamento individual
e social, não virá sem esforço e sem conflitos.
Para aqueles que lutam, pouco importa se a afirmação não
foi feita por Marx, pois a experiência histórica nos mostra que
sem luta não se impõem mudanças sociais, isto porque a classe
que está no poder procura sempre limitar o crescimento das
organizações populares que lutam para garantir seus direitos.
Sendo assim, acreditamos que a luta de classes é o motor da
história, pois dela depende o nascimento da nova sociedade; é
preciso acreditar na possibilidade de ajudar esta roda girar através
57
 Thonpson. E. P. A miséria da Teoria. RJ. 1981, p. 113
58
 Marx, K. Engels. F. A Ideologia Alemã. SP 1986, p. 56.
9090909090 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
da força das massas exploradas em luta permanente.
Esta força motriz, ou este “motor” histórico, simbolicamente
transformado em impulsionador da história, leva a crer, que onde
não houver luta de classes não há verdadeiramente história, e a
organização de trabalhadores que não luta, já deixou de ser força
motriz e por isso perde as condições de seguir em frente.
Nosso dever é lutar pela retirada do poder daqueles que go-
vernam para os privilegiados, chegarmos ao poder e autogovernar.
Assim disse Gandhi: “aquele que não é capaz de governar a si
mesmo, não será capaz de governar os outros”59. É sem dúvida
um desafio inicial, começar pelo convencimento de que devemos
mudar individualmente e intervir sobre a realidade que conosco
coexiste para transformá-la e transformar-nos.
É necessário convencer-se de que tanto a revolução política
quanto a revolução cultural, nos obrigarão a desfazer-nos de
muitos caprichos, medos e comodidades. A luta deverá abrir
novas frentes de ataque e defesa. Precisamos estar preparados.
Ao mesmo tempo em que aprendemos, devemos ensinar a
lutar, sair das fronteiras de nossa categoria e buscar em outras forças
que também buscam a libertação. Desta forma é que a solidariedade
se transforma em ação e elemento de integração entre os
trabalhadores.
59
 Martim Claret. Gandhi: O Apóstolo da Não Violência, 1983, p. 83.
9191919191O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
4. Conclusão
Como conclusão é importante destacar aspectos que
resumem o conteúdo exposto sem diminuir-lhe a importância.
Podemos dizer então que:
- A cultura é tudo o que o ser humano imagina, sente
e faz para produzir sua existência em sintonia com as
demais espécies de vida.
- O desenvolvimento da cultura em uma organização
como o MST deve estar em sintonia com os objetivos
estratégicos para que, de fato, se consiga implementar
as mudanças estruturais que se pretende. Este esforço
deve transformar-se em valores permanentes
conformando comportamentos em novas condutas.
- O trabalho é considerado elemento central no desen-
volvimento da cultura e na construção de um novo
ser humano.
- A arte, a estética e demais expressões devem estar a
serviço da educação ideológica dos trabalhadores.
Cada vez mais devem ser incentivadas pelos militantes
e dirigentes.
- Devemos intensificar a preocupação em resgatar os
valores culturais e experiências históricas de gerações
passadas como exemplo de criação cultural, que
sirvam para educar as gerações atuais.
A produção da existência de forma consciente possibilita, em um
curto espaço de tempo, criar referências organizativas e aglutinar em
torno de si as pessoas que buscam a realização de objetivos comuns.
9292929292 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Elimina-se a discriminação deixando nascer um sentimento
de igualdade. Há respeito por tudo aquilo que as pessoas levam
consigo, sejam crenças, esperanças e sonhos.
Há, porém, muito lixo de cultura que vai se acumulando
na produção da existência histórica e que devemos renegar na
medida em que isto vai se tornando consciente. Temos como
exemplo as letras de muitas músicas que a classe dominante faz
questão em divulgar por nada conter de concreto e disfarçar a
questão ideológica. Há lixo no comportamento, no jeito de ver
as coisas, no hábito alimentar, na forma de vestir etc. Tudo isto
vai sendo parte da existência, mas não contribui para seu
melhoramento.
É impossível rumar para a construção de uma nova
sociedade levando conosco este amontoado de lixo cultural que
tenderá a ocupar grandes espaços na produção daquilo que
deveria ser a nova existência.
As novas relações devem iniciar agora para que no futuro
seja mais fácil implementar as mudanças que queremos. O novo
homem e a nova mulher nascerão destas velhas cepas retorcidas
pelo modo de produção atual, como quando se toma a cepa de
um limoeiro e enxerta-se nele o galho da laranjeira que se tornará
broto, crescerá e produzirá laranjas e não mais limão. Não há
outro caminho. A nova sociedade não pode surgir do nada, é
preciso querer forjá-la através dos seres humanos.
Sofremos uma dominação cultural muito grande há séculos
em nosso país, precisamos nos libertar dela se queremos ser livres.
Para isto precisamos produzir nossas próprias idéias, nossa
própria literatura, dar conteúdo próprio aos valores e ver o futuro
com nossos próprios olhos.
Disse José Martí sobre a dominação cultural estrangeira:
9393939393O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
60
 José Martí. Versos Singelos, p. 26.
“há vida nacional sem literatura própria? Há vida para a
inteligência pátria em uma cena sempre ocupada por débeis ou
repugnantes criações estrangeiras? Por que na terra nova ameri-
cana se há de viver a velha vida européia?”.
Esta invasão cada vez maior de nosso território pelainfluên-
cia ideológica do imperialismo faz com que percamos a iniciativa
de pensar, elaborar e de sonhar. O FMI pensa os planos
econômicos e impõe medidas que obrigam nosso país a descartar
aspectos fundamentais na produção da existência cultural de
nosso povo. Impõe o controle da natalidade, o valor do salário
mínimo, o que devemos consumir, o que devemos exportar, o
que devemos assistir e apreciar na mídia, o que devemos estudar
e conhecer nas escolas, o que devemos rezar nas igrejas. Enfim,
perdemos o direito de ser um verdadeiro povo.
Conclui conosco Martí: “ou a literatura é coisa vazia de sen-
tido ou é a expressão de um povo que a cria; os que se limitam a
copiar o espírito dos poetas de além mar, não vêem que com isso
reconhecem que não têm pátria, nem espírito próprio, nem que
não são mais que sombras de si mesmos, que vivem de esmolas
sobre a terra? Ah! É que para cada século que os povos arrastam
grilhões, tarda pelo menos outro para tirá-los de cima”60.
Que o século da tirada dos grilhões esteja no fim e que
possamos, de fato, dar novo destino a nossa cultura.
Expediente:
Projeto gráfico, diagramação e capa: Zenaide Busanello
Revisão: Rogério Chaves
Desenho da capa: Daniel Alves
Apoio: Pronera e Incra
3ª edição 2006
Tiragem: 3 mil exemplares
Edição:
ITERRA - Instituto Técnico de Capacitação e Pesquisa da Reforma Agrária
Estrada municipal, 1140 - Bairro Parateí
08900-000 - Guararema - SP

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