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ADEMAR BOGO_ O MST e a Cultura_2009_

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MST e a Cultura
Ademar Bogo
outubro 2000
Sumário
Apresentação............................................................................. 3
Introdução.......................................................................................5
1. O que é cultura e como se apresenta ...................................8
1.1. A formação de nosso povo..............................................10
1.2. A cultura dos rejeitados................................................15
1.3. A cultura dos sem terra..................................................22
1.3.1. Memória histórica .........................................27
1.3.2. As virtudes extraordinárias.................................30
1.3.3. A consciência estética..........................................36
2. A revolução cultural.............................................................47
2.1. O que é a revolução........................................................48
2.2. As possibilidades da revolução cultural.......................61
3. Pilares de nossa revolução cultural........................................72
4. Conclusão.................................................................92
Apresentação
A cultura é nossa vida
Estimados companheiros,
É com muita alegria que estamos apresentando a toda nossa
militância, mais esse caderno de formação. Agora, com um tema
que há muito tempo gostaríamos de ter tipo oportunidade de
publicar: a questão da cultura em nosso movimento, em nossos
assentamentos e comunidades rurais.
Em geral, temos uma falsa idéia ao identificarmos a questão
da cultura apenas como atividades culturais de nossa sociedade
relacionadas com nossa tradição musical, do teatro e da pintura.
Na verdade, a questão da cultura é muito mais abrangente, está
relacionada com todas as nossas atividades quotidianas; nossos
hábitos, nossos costumes, nossas tradições, nossas inovações. Está
relacionada com toda nossa vida.
As reflexões reunidas neste caderno pelo companheiro
Ademar Bogo, certamente nos ajudarão a discutir na base, tanto
a compreensão como o estímulo ao desenvolvimento das inú-
meras atividades relacionadas à cultura.Mas valorizar a questão
da cultura não é apenas valorizar os mais diferentes aspectos de
nossa vida. No contexto histórico atual se reveste de uma
importância ainda maior. Há uma hegemonia política ideológica
e (também) cultural, do modus vivendi burguês, do consumismo,
de valorização apenas das coisas que acontecem na cidade. Como
se a urbanização, como se as atividades que acontecem nas
metrópoles fossem as únicas importantes para nosso povo. Pior,
está em curso um modelo agrícola que marginaliza o meio rural
e inviabiliza a agricultura familiar e as comunidades rurais
esparramadas pelo nosso imenso território.
Nesse contexto, discutir então a questão da cultura adquire
um significado político e ideológico muito importante, pois a
resistência a essa ofensiva neoliberal está relacionada também à
cultura, aos nossos costumes e valores do meio rural e do MST
como movimento social.Como disse o Prof. Horacio Martins,
“mais do que nunca as comunidades do meio rural, os trabalha-
dores rurais precisam desenvolver uma cultura de resistência e de
valorização, de auto-estima, como trabalhadores rurais, para
poderem enfrentar a avalanche da ofensiva neoliberal”.
Por último, a reflexão de cultura está relacionada também
à prática de nossos valores enquanto indivíduos comprometidos
com o bem estar social de todos, comprometidos com os princí-
pios da Justiça, da igualdade e do bem comum. E relacionada
com os valores sociais, coletivos, que nosso movimento defende,
que precisa estimular e propagar no meio rural.
Certamente, este caderno de formação será muito útil para
entendermos, refletirmos e melhorarmos nossa prática cotidiana
de militantes sociais, por mudanças no meio rural.
São Paulo, outubro 2000
Coletivo Nacional do Setor de Cultura e Educação
55555O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Introdução
O MST, por sua natureza, é um movimento de massas.
Carrega em si uma enormidade de diferenças, hábitos, jeitos,
métodos e comportamentos que às vezes confundem os inimigos,
que por fazermos certas ações ousadas, acreditam que deixamos
de ser um Movimento forte e lutador.
É verdade que não é fácil relacionar e entender tudo o que
fazemos, por se tratar de coisas diferentes, mas que estão muito ligadas.
Acontece que as características do MST não admitem que se
faça uma coisa isolada da outra. Por isso é que dizemos que no
MST temos a cultura da organicidade, que nada mais é que a
ligação de uma parte, de uma atividade com outra.
Quando encanamos a água colocamos um cano mais grosso
ao pé da fonte ou da rede principal. Depois colocamos curvas
nos canos para fazer a água subir e descer. Aí colocamos um
cano mais fino, e para não desperdiçar água, colocamos na ponta
do cano uma torneira. Isso pode ser um exemplo de organicidade
onde a justeza de uma parte complementa a outra.
A luta vai criando hábitos e jeitos que dão identidade à
organização e aos poucos descobrimos que a cada passo
construímos nossa existência, que chamamos de MST. Assim
ocupamos terra, lutamos por créditos, educamos crianças,
construímos casas e escolas, participamos de disputas eleitorais,
gravamos CDs, protestamos contra as privatizações, fazemos
ações de solidariedade.
Tudo isso vai fazendo parte da vida da gente que luta no
MST. Será que isto tem algo a ver com cultura?
66666 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Tem muito a ver. Por que não podemos considerar cultura
somente aquilo que está ligado com a arte. A arte é a capacidade
que o ser humano tem de criar. Logo, temos capacidade de criar
músicas, mas também criamos as lutas, as escolas, os barracos,
as casas, o método de fazer reuniões, as marchas, etc. Significa
que tudo isso vai se transformando em cultura.
O que precisamos fazer é tornar esses gestos do cotidiano em
conscientes, para que analisemos tudo que fazemos, se contribui
ou não para o melhoramento da vida e da organização social.
Há hábitos que repetimos há dezenas de anos e não percebemos
que prejudicam nossa saúde. Há tipos de alimentos que ingerimos
que também não fazem bem à saúde. Às vezes o jeito de trabalhar,
andar, relacionar-se, perceber as coisas, solucionar problemas, etc.
não ajudam a melhorar a existência social, por isso dizemos que
precisamos fazer uma revolução cultural, que nada mais é que colocar
as coisas em outra ordem.
Nossa tarefa imediata é desenvolver a consciência nas
diferentes áreas da vida humana, para que se possa superar os
atrasos culturais que pairam sobre determinados aspectos.
Devemos corrigir desvios surgidos a partir da convivência social,
e possibilitar a formulação e a prática de novos valores culturais.
É fundamental avançar e consolidar a identidade nacional
através dos hábitos, costumes, práticas e valores. A isto
chamaremos de unidade em torno da expressão cultural que
dará maior qualidade à consciência.
Cada vez mais a cultura se tornará consciência, porque tudo
o que fazemos e sentimos constituirá a existência de nossa orga-
nização. Assim a educação, a religião, o trabalho, a mecanização,
a preservação da natureza, a agrovila, a agroindústria, a beleza
nos assentamentos, as músicas, a mística, enfim, tudo o que
77777O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
existe ou acontece no assentamento é a cultura dos trabalhadores
Sem Terra, que se manifesta e transforma-se em consciência social
na medida em que as pessoas passam a repetir tais manifestações
de forma consciente e se preocupam em desenvolver aspectos
para aperfeiçoar a construção da existência social nas áreas de
reforma agrária.
88888 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
1. O que é cultura
e como seapresenta
 A definição da palavra é importante e devemos tomá-la como
ponto de partida para iniciarmos nossa discussão. “Cultura, culto
e colonização derivam do mesmo verbo latino colo, cujo particípio
passado é cultus e o particípio futuro é culturus”. É o que nos diz
Alfredo Bosi, concluindo que “colo significou na língua de Roma,
eu moro, eu ocupo a terra, e, por extensão, eu trabalho, eu cultivo
o campo”1 .
Portanto, em sua origem, a cultura está vinculada ao cultivo
da terra e por decorrência, ao trabalho.
Verificando na história que a divisão social do trabalho se
deu justamente quando os seres humanos descobriram a
agricultura e passaram a cultivar sementes, da produção destas
sementes é que dependia a existência das comunidades primitivas.
Logo chegamos a uma conclusão muito simples, que cultura,
trabalho e existência estão interligados. Por isso definimos que
cultura é tudo o que fazemos para produzir nossa existência.
Se fazemos coisas, dependemos do emprego da força física
e, portanto, do trabalho. Mas nada podemos fazer sem aplicar
uma outra força que somente o ser humano tem: a capacidade
para criar. Logo, a cultura é também criatividade.
Mas ao fazermos as coisas também nos emocionamos,
sentimos alegria, projetamos sonhos. Logo, a existência é produ-
zida com emoção.
1 
Alfredo Bosi, Dialética da Colonização.
99999O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
Dizemos isto para confirmar que cultura para nós significa
tudo o que criamos, fazemos e sentimos ao produzir nossa
existência.
Karl Marx ao estudar a questão, encontrou justamente esses
elementos, em que o homem emprega para produzir um objeto,
ou seja, emprega “força física e espiritual”. “Uma aranha executa
operações semelhantes às do tecelão, a abelha supera mais que
um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o
pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura em sua mente
construção antes de transformá-la em realidade. No fim do pro-
cesso de trabalho aparece um resultado que já existia antes ideal-
mente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas
o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto
que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei
determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar
sua vontade. E esta subordinação não é um ato fortuito. Além
do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade
adequada que se manifesta através da atenção durante todo o
curso do trabalho. E isto é tanto mais necessário quanto menos
se sinta o trabalhador atraído pelo conteúdo e pelo método de
execução de sua tarefa, que lhe oferece menos possibilidade de
fruir da aplicação das suas forças físicas e espirituais”2 .
Isto quer dizer que no processo de trabalho o ser humano
altera a natureza e ao mesmo tempo a sua própria natureza,
aperfeiçoando assim as qualidades humanas. Daí é que vem a
teoria materialista e diz que foi “o trabalho quem criou o homem”.
O ser humano na sua essência é o resultado do trabalho.
Além de o trabalho produzir o sustento humano, ele é respon-
2
 Karl Marx. O Capital, T.1, p. 202.
1010101010 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
sável pelo relacionamento, afetividade, convivência, desenvol-
vimento da consciência social, etc. Por isso é que se divide em
produtivo e improdutivo. O primeiro cria objetos materiais, o
segundo possibilita o surgimento do conhecimento, da organi-
zação social, formação e educação ideológica, etc. Isto tudo rela-
cionado formará a cultura.
Os costumes, comportamentos, valores, ensinamentos são
heranças culturais que recebemos de nossos antepassados como
se fossem objetos de uso, os utilizamos sempre que necessitamos
e às vezes sem nos dar conta. Por isso é que há culturas diferentes,
pois além de tudo ela é produzida em um certo lugar com
determinadas condições que não existem em todos os lugares.
Isto pode ser empregado para se analisar um povo ou
simplesmente uma organização social que vai modificando suas
características culturais com o passar do tempo.
1.1. A formação de nosso povo
Se as palavras “povo novo” ditas por Darcy Ribeiro, definem
as características do povo brasileiro organizado em sociedade,
que completa 500 anos de formação, o que dizer de nós que
temos menos de duas décadas de organização enquanto
trabalhadores Sem Terra?
As características desse “povo novo” brasileiro estão relacio-
nadas pela “confluência” de matrizes raciais diferentes, “tradições
culturais distintas”, que se encontrarão forçadamente para formar
uma nova estrutura de sociedade. E que embora imperial, terá
um novo modelo. “Novo porque surge como uma etnia nacional,
diferenciada culturalmente de suas matrizes formadoras,
fortemente mestiçada (...) porque vê a si mesmo e é visto como
1111111111O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
uma gente nova, um novo gênero humano diferente de quantos
existam”3 .
Do geral ao particular. Há uma seqüência idêntica ao processo
que ocorreu na história da constituição do povo brasileiro com o
surgimento da categoria social “sem-terra”, formada pela mistura
das raças, para tornar-se “povo organizado” Sem Terra, sujeitos da
produção da própria história.
Agora, para concluir a miscigenação racial, mistura-se etnias
com objetivos comuns, a serem alcançados através da luta pela
libertação da terra e do próprio ser humano, com suas cores,
raças, costumes, práticas e valores.
Para realizar tal façanha, viemos de todas as penumbras.
Trazemos conosco embrulhados em sacos e lonas, pedaços da
história de exclusão, fragmentada e marcada, como se tivesse
sido (e foi) composta aos pedaços que não se combinaram; por
isso percebe-se nesta imagem os desencontros das partes
rompidas e emendadas pelo vigor do tempo.
As marcas desse tempo aparecem como olhos rasgados em
forma de cicatrizes, abertos no corpo e na história de cada
retirante, por onde se vê os passos de uma dura trajetória na
linha do próprio destino, e no seu silêncio mostram a resistência,
denunciam a perda de valores, pelo simples fato de termos
acreditado demais e por muito tempo, em nossos dominadores.
Os mesmos preconceitos tingiram as consciências e
obscureceram o espírito crítico, ajudando assim para que os
pobres nem sempre ficassem do mesmo lado, por isso era preciso
que surgisse essa possibilidade na história, para dizer a todos
aqueles que estavam abaixo da linha da esperança, que não nos
3
 Darcy Ribeiro. O povo Brasileiro. 1995, p. 19.
1212121212 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
dividimos por raças, nem por credos religiosos, mas sim por
classes, onde uma pequena quantidade de abastados coloca-se
acima da linha divisória, imposta para diferenciar riqueza de
pobreza e a grande maioria fica abaixo dela, tentando com
pequenos saltos alcançar algumas pontas de privilégio, que
pendem como fios de algodão doce. Na tentativa de alcançá-los
e subir por eles, não suportam o peso de quem quer subir e
quebram, ficando as pontas dessa tentação cada vez mais longe
das mãos dos pobres.
Excluídos como seres sociais não tivemos história regular.
As circunstâncias sempre foram irregulares, oscilando sempre
entre os interesses e as vaidades da classe dominante. Sendo assim,
a vontade dos senhores sempre foi superior aos direitos dos
servos, e os primeiros determinam o destino dos segundos,
imaginando que a força sempre tem primazia sobre a fraqueza.
Desta forma, estruturaram a sociedade com seus hábitos,
costumes, tradições e valores e os impuseram sem escrúpulos, a
laço, ferro em brasa e baixos salários, determinando sempre a
produção da existência humana e social a seu modo, sem deixar
de lado os privilégios.
Na verdade, as circunstâncias que encontramos já ao nascer
são diversas e ao abrir os olhos, herdamos imagens fisionômicas
quase sempredeformadas pelo sofrimento, miséria e esforço
físico demasiado. Mas sentimos por outro lado, carinho, acon-
chego, gritos de felicitações de quase uma dezena de meninos
que circulam ao redor da cama ou do berço, comemorando o
aparecimento de mais um irmão ou de mais um brinquedo para
as meninas, que com 5 ou 6 anos de idade, aprendem a carregar,
enforquilhado na cintura, o “objeto” querendo tornar-se gente.
Estas circunstâncias moldam os pobres como as vidraças das
1313131313O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
janelas que só podem ser talhadas daquele tamanho. As mãos do
poder pressionam para que se enquadrem dentro da “ordem”, sejam
obedientes e esperem pelas recompensas que os anos vão engolindo
uma a uma; por fim, engolem também as esperanças, e deitados
nos levam para dormir o longo sono, cobrindo-nos com um lençol
úmido e macio de terra, deixando para trás muitos rastros, que
serão reconhecidos por algum tempo, pelos descendentes herdeiros
das mesmas circunstâncias, impostas e vigiadas para continuar a
história que como castigo não se consegue renegar.
Mas existe outro caminho, onde as circunstâncias podem
ser feitas pelo homem?
Sim. Mas é preciso querer. Podemos intervir no rumo
da história, e através do esforço coletivo, acrescentar a ela
também nossos interesses e fazer o presente nascer de outros
sulcos abertos pelo arado da luta, plantando ali os sonhos,
de início pequenos, mas vigorosos, em busca de produzir a
existência através dos próprios passos em outras circunstân-
cias. “A formação do sem-terra, pois, não se dá pela assimila-
ção de discursos, mas, fundamentalmente, pela vivência
pessoal em ações de luta social, cuja força educativa costuma
ser proporcional ao grau de ruptura que estabelece com
padrões anteriores de existência social destes trabalhadores e
destas trabalhadoras da terra, exatamente porque isto exige a
elaboração de novas sínteses culturais”4 .
Então poderemos chamar tais passos de cultura consciente,
que faz e que se deixa fazer pelos carinhos sinceros que nada
prometem, apenas estimulam para que se continue caminhando.
4
 Caldart, Roseli Salete. Pedagogia do Movimento Sem Terra. Ed. Vozes, 2000, p. 106.
1414141414 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Vivemos, portanto, para produzir nossa existência e coexistência
com todos os demais tipos de vida e para preparar as condições da
produção da existência das futuras gerações. É como se as futuras
gerações apenas nos emprestassem a terra e o tempo para vivermos
nosso pedaço de existência, entregando-lhes como pagamento tudo
o que conseguirmos produzir materialmente e espiritualmente em
nossa curta existência. Receberão elas em quaisquer circunstâncias
nossa herança cultural.
Essa herança cultural, produzida e repassada aos seres
individuais e sociais, não se limita apenas às descobertas e
invenções, nem tampouco as futuras gerações se acomodarão
em torno do que as antigas gerações descobriram. Haverá altera-
ções permanentes. Cada geração acrescenta nesta interligação
de gerações, suas próprias características, formando sua
identidade, sempre com a responsabilidade de preparar o
ambiente onde viverão as gerações posteriores.
A cultura, portanto, representa a produção material e
espiritual da existência, a produção da consciência e a formulação
de objetivos que poderão ser alcançados pela sucessão de várias
gerações. Assim se sucedem os inventos, as descobertas científicas,
as formulações metodológicas, as práticas e teorias organizativas
com seus princípios e valores. Assim forjam-se os arquitetos da
existência, os poetas e seresteiros, que buscam apaixonadamente
subir os mais altos degraus na escada que leva à felicidade.
Assim brincam os cantadores com as cordas, arrancando
delas melodias. Jogam futebol os atletas como se fossem deuses
rolando para o gol o universo que cabe sobre o pé. Sonham as
crianças com estórias ouvidas antes de dormir. Assim plantamos
e colhemos gerações que imprimem à história suas características
reconhecidas, reproduzidas ou renegadas, dependendo de sua
1515151515O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
importância e serventia.
De certa forma as gerações seguintes sempre nascem e se
forjam com o esforço das gerações passadas, tendo que levar
consigo como castigo ou como recompensa as impressões digitais
das mãos que moldaram a realidade.
O que fica das gerações que passam é a cultura em suas
diferentes dimensões, mesmo que seja perversa e desestruturante,
ainda é o resultado da existência de um grupo social. O fator
mais belo e interessante desta interligação é que temos o direito
de acrescentar ou retirar aspectos que não queremos carregar,
embora muitas vezes fiquem cicatrizes que jamais se apagarão da
face de nossa história. Por isso vale a pena viver através de gestos
conscientes, que contribuam para que a humanidade siga sua
trajetória na busca da utópica perfeição.
1.2. A cultura dos rejeitados
A perda de parte da identidade individual e grupal não é
suficiente para jogar para a indigência a existência já produzida.
Podemos perder os documentos, mas com eles não perdemos a
identidade. Mudamos de categoria social, mas continuamos na
classe dos explorados. Desta forma, quem classifica um ser hu-
mano de indigente é porque deseja identificá-lo pelos registros e
não aprendeu a ler em sua face as marcas da construção histórica.
Esse corpo esquálido e refugado migra em busca do que
fazer, empurrado mais pelos conselhos que pela determinação,
poderá recompor e reiniciar a produção da existência com raízes
culturais sólidas?
Muitas são as dúvidas e interrogações voltadas para a
reconstrução da cultura da população migrante. “A cultura
1616161616 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
dominada perde os meios materiais de expressar sua originalidade.
(...) Como pensar em cultura popular num país de migrantes?”
Isto porque, “o migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas,
as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas,
a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de
louvar a seu Deus. Suas múltiplas raízes se partem. Na cidade, a
sua fala é chamada “código restrito” pelos lingüistas; seu jeito
de viver, “carência cultural”, sua religião, crendice ou folclore.
Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos
de desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já
foram arrancadas, mas procurar o que pode renascer nessa terra
de erosão” 5 .
Apesar da imagem real do migrante na cidade onde deverá
“renascer na erosão” urbana, não devemos desprezar a possibilidade
do retorno para onde ficaram pedaços das raízes, isto porque, a
terra tem o poder de conservá-las vivas por muito tempo. É o que
denominamos caminho de volta para compensar o êxodo criminoso
que ocorreu no Brasil a partir da década de 60.
Embora sabendo que as circunstâncias mudam e que é
muito difícil recolocar a mesma cepa sobre o resto da raiz cortada
nessa fresta de tempo, acreditamos na força da terra e das pessoas
quando buscamos nas periferias das cidades, gente que ainda
tem condições de religar suas raízes, pois há terra que ainda é
possível cultivar com conhecimentos guardados na memória,
antes que a erosão do tempo também descaracterize a sabedoria
deitada na consciência desses caminheiros.
Poderíamos dizer que quando renegamos às coisas
conscientemente, estas se perdem rapidamente nos arquivos
5
Ecléa Bosi. Cultura e Desenraizamento; in Cultura Brasileira: temas e Situações, p. 17.
1717171717O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
sentimentais da cultura popular. Ao contrário de quando somos
forçados a separar-nos delas, as mantemos vivas através da saudade,
e por mais que o tempo passe ou que sejamos obrigadosa viver
diferentemente daquela situação antiga, propositadamente as
mantemos vivas como feridas no coração. Mesmo doendo, não
queremos que sarem. As recordações são ainda o que de bom nos
anima e faz-nos respirar a utopia.
Imaginemos que um camponês demitido do trabalho agrícola,
da monocultura do cacau, eucalipto, café, etc busca emprego na
pecuária extensiva. Ao mudar de lugar social mudará também as
relações de produção e sentirá imediatamente a diferença no falar,
no vestir, divertir, comercializar, etc. O vaqueiro é um ser “solitário”,
fala pouco, e seu vocabulário gira em torno de datas, números, ida-
des, nomes de remédios, sementes de capim e outras informações
relacionadas com a pecuária.
As festas e diversões mudam as características, são rodeios,
vaquejadas ou exposições que os patrões organizam e obrigam seus
peões a vestirem-se a rigor para encontrarem-se com os animais,
figuras simbólicas e místicas centrais dos eventos.
Mas o jeito de produzir a existência desse peão esconderá
superficialmente as marcas deixadas pela produção da existência
passada, quando era camponês ou empregado em outra atividade
agrícola. Muitas coisas são trazidas do passado que cabem nessa
nova situação e que ajudará na formação da identidade do peão,
feitas de hábitos e valores como a lealdade, sinceridade, fran-
queza, solidariedade, mas não poderá expor costumes, gostos e
outras características que ficarão adormecidas, para um dia, se
tiverem oportunidade, despertarem em uma nova realidade.
Portanto, embora “desenraizados”, os refugados do capital
mantêm vivas determinadas características que, forjadas na
1818181818 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
produção da existência individual e coletiva, em outras circuns-
tâncias, e que em novas condições poderão renascer possivelmente
de forma conservadora, podem servir como ponto de partida para
a produção de um novo pedaço de existência. A reforma agrária é
por excelência a possibilidade de religamento das raízes cortadas
por diversos fatores no passado, por ser um resgate coletivo e
comunitário delas. Por uma ou outra razão, ou por uma energia
invisível mas sentida, tais raízes permanecem verdes à espera do
pedaço que foi embora como o toco do jequitibá que fica ali,
imaginando que um dia o tronco possa voltar a assentar-se sobre
ele, por não ter aprendido a viver em outro lugar. Assim é o
sertanejo, “às vezes, até ganhando dinheiro, mas sempre lutando
contra a nostalgia da roça, um banzo peculiar, que fez com que o
povo saído do interior jamais se adaptasse inteiramente à vida na
cidade grande”6.
O afastamento do camponês da atividade produtiva ocasiona
num período histórico de descobrimentos tecnológicos, funda-
mentalmente na mecânica e na genética, um certo descompasso
entre o conhecimento empírico e o científico, mas não necessaria-
mente o conhecimento empírico ou experiencial seja descartável,
fundamentalmente na agricultura de subsistência.
Por mais tecnologias modernas que inventem, não há outra
forma de produzir alimentos a não ser primeiramente enterrando
sementes! Isto pode ser feito com moderníssimas máquinas de
plantar, como também com o dedo indicador da mão direita. O
que muda é a rapidez, mas a quantidade pode chegar a ser a
6 
Nepomuceno Rosa. Música Caipira: Da Roça ao Rodeio, 1999, p. 19.
1919191919O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mesma. Há no Brasil essa disparidade tecnológica entre as dife-
rentes regiões, onde em determinados lugares ignora-se a plan-
tadeira mecânica usando-se a enxada para abrir covas e enterrar
sementes, com a participação tríplice dos membros da família. O
pai usa a enxada, a criança o adubo e a mãe joga em quantidade
exata, em cada cova as sementes. Com o pé cobre-as para que
germinem. Assim, todos trabalham e não há desemprego da mão-
de-obra.
Desenvolve-se por outro lado, juntamente com a “cultura”
da existência, a cultura da resistência, de não entregar-se
totalmente aos embalos do cantarolar do consumismo
capitalista.
Pelas iniciativas de resistência, podemos identificar sinais de
vida na existência da população refugada e desprezada pelas forças
produtivas capitalistas. Podemos dizer mais, que a vontade de
viver faz surgir novas categorias profissionais, como os catadores
de papelão que a cada cinqüenta quilos recolhidos salvam uma
árvore. Catadores de latas, vendedores ambulantes, etc.
No campo da arte surgem grupos que mantêm a tradição
basicamente caipira, com suas músicas e rituais religiosos. Mesmo
vivendo fora do ambiente camponês, estas sobrevivem na
memória e nas recordações por muitos anos.
Se permanecer no campo, significa resistência ainda maior, e
não se desorganiza facilmente como diz Martins: “nessas condições,
a institucionalização das relações de comercialização do excedente
faz-se de forma que o mundo caipira não se desorganize
necessariamente nem quando há uma crise econômica no conjunto
da sociedade (como em 1929 e suas conseqüências durante quase
toda a década de 30) nem quando há uma conjuntura favorável no
mercado de produtos agropecuários, pois os setores propriamente
2020202020 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
urbanos absorvem a renda diferencial aí surgida”7.
Se no setor produtivo, onde se engendram relações de
trabalho, é praticamente impossível crises abalarem esse
intercâmbio de excedentes, muito mais difícil será arrancar as
experiências e aprendizados históricos, que se fixam no
conhecimento humano como sinais que não se apagam, nem
mesmo com a eliminação do corpo físico específico. Os conheci–
mentos permanecerão por muito tempo na memória dos
descendentes. A cultura, portanto, é algo concreto que se move
como uma força invisível no ambiente onde se produz a existência
de um determinado grupo social e influi profundamente em seu
comportamento.
Desta maneira o ser humano buscará formas de adaptar-se
aos ambientes, produzindo instrumentos e meios para garantir a
sobrevivência. Os animais, por sua vez, ao longo dos tempos são
obrigados a modificarem características físicas e inclusive
desenvolverem órgãos para buscar garantir a sobrevivência. A
cultura é o meio de adaptação8 dos seres ao meio ecológico,
possibilitando a aproximação ou o afastamento de grupos sociais.
A cultura do caipira no momento em que se desloca para a
cidade, expulso do campo, não se extingue com a mudança do
ambiente físico, pelo contrário, permanece por certo tempo
puramente caipira e é com ela que se defenderá no mundo
desconhecido. Há reserva no falar, não faz inimigos e por outro
lado, cultiva valores como a fidelidade, o compromisso, a
solidariedade entre os amigos e assim por diante. Essa cultura
7
 José de Souza Martins. Capitalismo e Tradicionalismo, 1975, p. 106.
8
 Laraia Roque de Barros. Cultura um conceito Antropológico, 1986, p. 49.
2121212121O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
com aroma de sertão, com o decorrer do tempo mistura-se ao
aroma produzido neste novo ambiente e se mantém, no imagi–
nário, à procura de novos horizontes.
Porque isso acontece? Simplesmente porque a cultura
popular usa a simbologia, os sentimentos e a palavra falada vin–
culada com a ação concreta. Relaciona-se com signos para
materializar-se em conhecimentos históricos. A cultura na sua
definição antropológica nos diz que é “o conjunto de modos de
ser, viver, pensar, falar de uma dada formação social”9 . Por isso
sua expansão se dá menos pela forma escrita e mais pela forma
oral, visual, sentimental, etc.; por isso acreditamos nesta
resistência da cultura dos refugados pelo capital, como fator
determinante para retomar a luta pela terra na busca do
“religamento” das raízes físicas e sentimentais. Estes dois pilares
nos fazem sentir atração, por exemplo, para conversar com
descendentes da luta de Canudos,onde Antônio Conselheiro
no sertão da Bahia desafiou todas as forças, inclusive as da
natureza e em meio à miséria e a seca construiu no final do
século XIX, a segunda maior cidade do Estado da Bahia. Ou
então com os descendentes do cangaço liderado por Lampião e
Maria Bonita, sempre no sentido de resgatar conhecimentos e
experiências.
Da mesma forma que lembramos dos heróis revolucio–
nários, recordamos nossos avós que viveram da produção, ligados
à terra e junto produziram conhecimentos que vamos passando
lentamente como um carro de boi que se arrasta à procura do
futuro.
9
 Alfredo Bosi. Dialética da Colonização, 1996, p. 319.
2222222222 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Não podemos deixar de lembrar que nosso país, embora
esteja completando quinhentos anos de exploração colonial e
imperial, tem menos de 50 anos de vida predominantemente
urbana. Antes disso a população majoritariamente vivia no
campo e produzia sua existência ligada à terra. Isto possibilita
falar da agricultura e tocar no imaginário ainda latente de conhe-
cimentos produzidos pelos avós deste povo, que mesmo
atualmente urbanizados, foram feitos de terra e carregam o cheiro
dela para onde forem.
1.3. A cultura dos sem terra
Sem Terra deixa de ser categoria social para tornar-se nome
próprio quando identifica um grupo social que decidiu ser sujeito
para mudar de condição social através da organização política,
forjando daí sua própria identidade, com ideologia e valores.
Há uma mistura profunda entre gente, terra e ideologia,
na medida em que a caminhada provoca o encontro do ser
homem com o ser terra. São dois corpos físicos materiais que
possuem características e identidades que agora irão resgatar
reciprocamente a história das duas existências.
Embora sejam corpos físicos, é preciso entender que não
são apenas matéria. Tanto o homem quanto a terra possuem
aspectos que vão além das aparências, isto porque, não podemos
considerar apenas as coisas visíveis e tocáveis como totalidade
das coisas materiais. Nelas e dentro delas, há coisas que podemos
tocar e coisas que não podemos tocar, mas existem.
“Cada um sabe, com efeito, que há na realidade coisas que
podemos ver, tocar, medir, são chamadas materiais. Por outro
lado, há coisas que não podemos ver, nem tocar, nem medir,
2323232323O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mas que, nem por isso, deixam de existir, como nossas idéias,
nossos sentimentos, nossos desejos, nossas lembranças etc.; para
exprimir que não são materiais diz-se que são ideais. Dividimos,
assim, tudo que existe, em dois domínios: o material e o ideal.
Pode-se, também dizer, de maneira dialética, que o real apresenta
um aspecto material e um aspecto ideal”10 .
Resta entender qual é a parte visível, que podemos tocar, e
qual é a parte invisível da terra que não podemos tocar, mas que
podemos sentir e que por isso mesmo existe. Assim também
devemos proceder com o ser humano.
A terra tem em sua origem, a energia que se transforma em
potencial de ser mãe e gerar a vida de todas as espécies, sem se
preocupar com a convivência entre ambas, mas oferecendo com
seu sopro alimento para todas elas sem distinção. Na medida em
que as espécies não compreendem os ciclos da própria existência
e se destroem, a culpa não é da terra mas dos desequilíbrios das
próprias espécies, por não saberem conviver no mesmo espaço.
As que conseguem locomover-se buscam alimentos, retirando-
se, andando por sobre a terra, à procura de um espaço diferente.
Para as espécies em deslocamento, poderá haver variação de clima,
solo e temperatura, para a terra não. Ela se estende como um
imenso tapete colocado dentro da casa do universo, que se compõe
de diferentes repartições. Os seres vivos que se deslocam é que
vão da sala para o quarto, ou da sala para a varanda deste universo,
mas todos os cômodos fazem parte da mesma casa.
As plantas e todos os tipos de vida têm sua trajetória exis-
tencial. Teriam sua história escrita se esta possibilidade estivesse
10
 Georges Polítzer. Princípios Fundamentais de Filosofia, p.108.
2424242424 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
no vocabulário destas espécies que convivem com a vida humana.
Como não aprendemos falar a língua das plantas e das minhocas,
e estas não usam nossa caligrafia, pensamos que elas nada têm de
importante a dizer sobre sua existência. Por isso derrubamos as
plantas, matamos as minhocas e secamos a terra.
O ser humano por sua vez parece disputar com os demais
tipos de vida, lugar para viver e se mover sobre a terra. Por isso,
por onde passa destrói o que precisa e o que não precisa para
viver no momento.
Nossa cultura ainda deve assimilar a linguagem das plantas,
dos animais e das águas para poder dialogar em pé de igualdade
com todas elas. Talvez tenhamos sido mal acostumados pela filosofia
idealista, que defendeu por muitos anos que a terra era o centro do
universo e por isso o “homem” deu-se a incumbência de tomar
conta dela. “Crescer e multiplicar-se”, colocando-se acima das demais
espécies. Considerando-se o senhor da natureza.
Essa visão equivocada fez com que os seres humanos se mul-
tiplicassem, mutilando as demais espécies, que também deve-
riam multiplicar-se. Nesta competição fratricida, enquanto os
seres humanos se multiplicaram progressivamente, muitas
espécies subtraíram-se indiscriminadamente.
 Talvez as duas espécies que mais evoluem no planeta sejam
a humana e a das bactérias, que de tempos em tempos causam
na espécie humana epidemias incontroláveis.
Por isso, quando os Sem Terra resgatam dentro de si a von-
tade de voltar a ser gente, buscam a terra, e num diálogo emo-
cionado, às vezes com lágrimas e sangue vertido por balas,
chegam a constatação que o esqueleto do homem se parece
com o esqueleto do latifúndio, onde a carne de ambos foi comida
pelo capital. Por isso, fome e latifúndio têm a mesma cara, a
2525252525O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
mesma origem e a mesma identidade. Não são sanguinários o
tempo todo. Preferem secar o corpo lentamente, até que o
esqueleto se entregue e nada mais possa produzir. Então deite
os ossos em algum lugar para que a terra os recolha e através de
sua saliva os dissolva.
Terra e homem têm a mesma história de desconstrução da
própria existência. O capital inaugurou a era do descartável.
Sobre a terra joga-se lixo, sobre os seres humanos joga-se o pre-
conceito e a desocupação, por isso desconstrói-se o planeta e o
cidadão. Desta maneira, parte da terra e parte dos seres humanos
são jogados no berço da exclusão para chorarem a dor da falta
de cuidado e de respeito.
Esta trajetória já se iniciou há 500 anos em nosso país.
Enquanto grupos poderosos nacionais e internacionais torturam
e diminuem os seres humanos deixando-os sem trabalho, estudo,
saúde e condições dignas de vida, a terra é despida de suas florestas,
envenenada pelos poros, intoxicando as espécies de micro-
organismos, que se debatem em seu ventre ou no leito seco dos
rios como as lágrimas da mãe, que seca cansada de chorar pela
dor e sofrimento que não tem mais solução.
É esse encontro dos diminuídos, no final do segundo
milênio, depois de 500 anos de torturas, que esqueletos hu-
manos, despidos de todos os recursos, decidem se abraçar à terra,
para extrair de seu corpo o perfume que move a dignidade de
um povo em marcha, na defesa da vida e do planeta.
Este encontro é conflitivo. Por um lado há os acostumados
a desmatar e matar, sem respeitar a dor da consciência da terra,
que vê o fogo queimar uma a uma as pernas das árvores, para
depois cobrir seu rosto com capim ou simplesmente nada plantar,
ficando esta imensa ferida e cortes profundos feitos pela erosão,
2626262626 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Cadernode Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
enquanto as florestas vão embora para serem desmanchadas pelos
dentes afiados das máquinas; e com isso as nuvens entristecidas se
retiram deixando que o sol quente endureça a crosta da machuca-
dura ressecada, impedindo aparecer vegetação alguma. Estes tristes
hábitos também compõem a cultura.
Estes velhos ensinamentos ainda permanecem em muitas
consciências de esqueletos agora assentados. Demoram a ser re-
conhecidos pela terra, pois na pressa de fazê-la gerar o alimento
ainda a maltratam. Buscam produzir a existência da mesma
forma com que os predadores fizeram no passado e por isso a
terra fecha os olhos para não ver as sementes deixarem sair caules
enfraquecidos e raquíticos que não alimentam e nem satisfazem
os anseios de quem as semearam, pois ainda desenvolvem a
cultura da mutilação.
Os emissários do capital, assim que percebem o vento
tremular uma bandeira vermelha, entendem que há outro
território conquistado. Correm com a saliva entre os dentes,
pela ansiedade de vender máquinas possantes, insumos, venenos
e sementes para mover a indústria da destruição do solo e da
esperança de vermos nascer daí novos camponeses libertos de
todas as taras e vícios. Nestes casos a tentação ainda se sobrepõe
à consciência e à lei do menor esforço, levando a consumir tecno-
logias que não favorecem a recuperação da terra.
Há tecnologias que vêm para o bem da terra e do ser
humano, devem ser abraçadas e utilizadas para fazer companhia
ao desenvolvimento. Há as que vêm para destruir e prejudicar,
devem ser rejeitadas e impossibilitadas de seguir em frente. Nem
tudo o que se descobre e inventa está a favor da vida e do
desenvolvimento. A rigor, modernização tecnológica no campo
brasileiro não chegou a ser sinônimo de desenvolvimento, porque
2727272727O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
como quintal do colonizador norte-americano, aprendemos a
consumir pacotes e não utilizar nossos próprios conhecimentos.
Prova-se assim que, dependência, ao invés de desenvolvimento,
significa deformação da existência.
Mas há os que se rebelaram contra os que desrespeitam a
bondade da vida e a resistência sempre marca novas etapas, enten-
dendo-se que, para resgatar a dignidade do ser humano e da terra é
preciso cuidar de três aspectos fundamentais; memória histórica,
resgatar virtudes e desenvolver a consciência estética.
1.3.1. Memória histórica
Como ponto de partida podemos dizer que memória é a
existência já produzida com todas as suas dimensões. De outro
modo, poderíamos dizer que memória é a experiência feita por
determinado grupo social que se organizou para produzir
coletivamente sua existência. Talvez mais do que isto, a memória
represente a ponte que vem do passado e nos leva rumo a
construção do futuro. Memória é saber pertencer-se para poder
entregar-se.
Há sabedoria na memória, e é esta sabedoria que alimenta
as raízes existenciais de um povo. Sabedoria muitas vezes en-
terrada nas covas do esquecimento pelas mãos interesseiras
de grupos que não querem ver o povo se reconhecer nas entre-
linhas das páginas escritas, contando a história a partir da vi-
são do vencedor e não dos quase vencidos.
Dizemos, então, que há memória nos restos de raças que ainda
sobrevivem, e que lutaram em todas as gerações para manterem-se
vivas e que os livros de história não deixam ver para que não apareçam
nas cicatrizes do tempo, os nomes e os dizeres dos lutadores incan-
sáveis, pela igualdade entre os seres humanos.
2828282828 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Há memória para os camponeses nas fases da lua, em que
buscam plantar as sementes no período mais escuro para que
germinem e não apareçam carunchos na colheita. Mas as em-
presas poluidoras preferem fazer nossa juventude acreditar que
para cada tipo de inseto ou erva daninha, existe um tipo de
veneno que chamam carinhosamente de defensivos.
Há também memória no trabalho artesanal dos velhos
camponeses das gerações passadas, que obrigavam-se a
desenvolver os próprios instrumentos de trabalho antes da
indústria se apropriar deles, transformá-los, devolvê-los e
modernizá-los, porém com custo elevado e manutenção
insuportável.
Há memória na culinária das etnias, onde o conhecimento
passava-se afetivamente para as moças que se orgulhavam de
estar prontas para casar, pois já sabiam cozinhar. Atualmente a
indústria dos enlatados e temperados, roubou o gosto do paladar
familiar e as pessoas se envenenam comendo sem controle todo
o tipo de alimentos artificiais, fazendo com que vivamos a maior
contradição jamais vista na história em causas de morte. Temos
duas causas principais: morre-se de fome e morre-se de obesidade.
Uns morrem sem sangue ou porque este que usamos tem “pouca
tinta”11 ; e outros morrem por terem colesterol alto, devido ao
excesso de gordura no sangue.
Há memória nas fotografias em preto e branco onde
aparecem os jardins, os pomares das velhas casas de madeira ou
barro, onde enormes famílias reunidas até a quarta geração faziam
suas confraternizações. O tempo foi amarelando as fotografias,
levando os conhecimentos, deixando em seu lugar o vazio e a
11
 João Cabral de Melo Neto. Morte e Vida Severina, p. 71.
2929292929O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
falta de imaginação de como era naquele tempo.
Nos livros também há memória, contadas pelas mãos hábeis
de escritores verdadeiramente humanos, que se empenharam
em registrar detalhes daquilo que o pensamento não conseguiria
guardar, mas que o analfabetismo tira o direito de buscar nas
letras a identidade perdida.
Nas lembranças há memória. Nos contos, fábulas e lendas.
Na vida dos lutadores do povo entregue inteirinha na construção
de um sonho, mas que a classe dominante esconde, evitando
muitas vezes deixar sinais até onde esconderam seus ossos depois
de assassinados, porque temem que a voz do sentimento fale mais
alto que as palavras e que o povo se reconheça em seus heróis e
queira resgatar seus ideais de uma só vez.
Há memória na crença traduzida de geração em geração,
que os oportunistas usam da boa vontade e da fé das pessoas,
facilitando aos opressores enfiarem a espada da dominação na
consciência já sem cor, da classe trabalhadora e desempregada.
Há conhecimentos biológicos e farmacológicos, desen-
volvidos naturalmente pelas nossas gerações passadas e que
hoje as empresas multinacionais patenteiam os inventos como
se tivessem surgido do nada.
Enfim, nos menores detalhes há memórias que fizeram parte
da construção da existência de nossos antepassados e que dor-
mem em alguma dobra do embrulho que traz a história. Até
nossas mãos têm sabedoria e memória, mas cabe a nós ter cons-
ciência da importância deste passado para sabermos como olhar
corretamente para o futuro.
Quando vamos para a terra, esta memória nos acompanha
e é com ela que principiamos a organização de um novo mo-
mento histórico, procurando produzir uma nova existência.
3030303030 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
1.3.2. As virtudes extraordinárias
Virtude para nós é a capacidade que temos de fazer coisas
extraordinárias permanentemente. Somente desenvolve virtudes
aquele que tem capacidade de voltar-se para o bem.
Os poderosos temem as virtudes, porque elas têm o poder
de provocar a resistência contra a dominação e contagiar aqueles
que devem derrubar suas estruturas.
Se virtudes são capacidades extraordinárias, as conquistas
coletivas sempre são vitórias extraordinárias. É por isso que os
lutadores trazem o coração carregado de virtudes, onde o povo
em marcha procura encostar-se para buscar ali a energia que
lhes falta. O povo sente vontade de abraçar seus líderes por causa
das virtudes que estes possuem e porque sentem que estas
pertencem também a eles.
Muitas vezes na fraquezase manifestam virtudes que jamais
imaginávamos existir, e elas têm o poder de alastramento que
podem impulsionar grandes mudanças em poucos momentos.
Para ilustrar destacamos a história dos escravos romanos. Encon-
tramos nos registros históricos que no ano 71 a.C. houve uma
revolta de escravos na antiga Roma que durou cerca de dois
anos. Essa revolta foi comandada por Spartacus, um escravo que
despertou para o sonho de liberdade, a seu redor conseguiu arre-
banhar cerca de 20 mil escravos, um número pouco significativo se
formos olhar o poder do império romano na época comandado
por Caius Crassus. As sucessivas batalhas iam cada vez mais dando
moral e referência aos escravos, que atraíam outros escravos para a
luta, até o dia em que foram capturados e crucificados, pois o
instrumento da pena de morte da época era a cruz.
Durante o tempo que durou a revolta os poderosos tentavam
de todos os meios dizer que já haviam dominado os escravos e
3131313131O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
durante o dia, espalhavam notícias procurando convencer a
população desta mentira. Mas durante a noite o clarão das fo-
gueiras acesas denunciavam que os escravos ainda estavam lá,
resistindo, e este esplendor convidava os demais escravos a saírem
das mansões e dos palácios e somarem-se a eles. Portanto, não era
a força dos escravos que os poderosos temiam, mas sim as virtudes
que eles apresentavam, e as fogueiras eram fundamentais para
desenvolver esta representação.
De onde vinha esta força? Vinha da virtude da confiança.
“Não há uma definição clara para um homem que conduz outros
homens. O comando é uma coisa rara e intangível, sobretudo quan-
do não se apóia nem na força nem na glória.Qualquer homem
pode dar ordens, mas dá-las de maneira a que outros obedeçam
é uma qualidade, e esta qualidade Spartacus possuía”12 .
Na medida em que os trabalhadores Sem Terra decidem
abandonar a vida de “indigência”, despertam em si o sonho de
liberdade, e passam a desenvolver e apresentar virtudes que
intimidam os poderosos que mentem, usando agora a televisão
e os jornais, dizendo que derrotaram os lutadores da reforma
agrária. Mas à noite quando menos esperam, lá se vão legiões de
famílias empilhadas em caminhões ocupar fazendas abandonadas
e dando-lhes a possibilidade de renascer. Aos poucos, o vermelho
das bandeiras, como se fosse o esplendor de uma grande fogueira,
avisa que ali os escravos buscam a liberdade e convidam outros
tantos a forjarem juntos o próprio destino.
Desta maneira cria-se uma nova cultura em torno das
virtudes. Esquemas de organização são desenvolvidos e
12
 Fast Howard. Spartacus. Publicações Europa-América, 1974, p. 118.
3232323232 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
experimentados. Pais e mães de famílias, que até pouco tempo
eram apenas chamados pelos filhos, agora são anunciados ao
microfone para participarem de reuniões onde decidirão o futuro
de suas vidas. Passam a assumir responsabilidades, liderar pe-
quenos grupos e desenvolver tarefas que beneficiam a cole-
tividade. Acaba-se temporariamente o machismo e a dominação
de um sobre o outro, porque na estabilidade podemos ser
diferentes, mas no perigo somos todos iguais. A insegurança
transforma-se em desafio. A mãe outrora tímida e submissa,
abraçada aos filhos, coloca-se em frente aos pelotões sanguiná-
rios que se apresentam para manter a ordem apodrecida.
Permanecendo alguns dias já se vê nascer ali uma cidade,
neblinada pela solidariedade. Nascem cabanas que servem de
casas, escolas feitas de plástico e bancos de varas roliças, mas as
crianças aprendem o que tem de melhor na esfera da educação
infantil. Em poucos dias estão falando frases de Anton S. Ma-
karenko13 como a que diz que: “estou convencido de que o ob-
jetivo da nossa educação consiste não só em formar um indivíduo
criador, um indivíduo cidadão capaz de participar com a maior
eficiência na construção do Estado. Nós devemos formar uma
pessoa que sem falta seja feliz”14. Assim como Paulo Freire e
outros educadores importantes.
Através de comissões, busca-se resolver os problemas que a
própria convivência social produz, como é o caso do lixo. Nas
cidades costuma-se atribuir a tarefa da limpeza à administração
pública, e se o prefeito não tomar providências, a cidade fica
13
 Anton Makarenco, renomado pedagogo Russo que se dedicou à educação de crianças de
rua de 1920 a 1935.
14
 Anton Makarenco. Problemas da Educação Escolar, 1986, p. 29.
3333333333O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
insuportável pelo simples fato de que as pessoas pagam impostos.
Ora, os impostos não podem ter o direito de eliminar a solida-
riedade entre as pessoas e o cuidado com a preservação da vida!
Aqui surge uma virtude fundamental que é o da preocupação
com o zelo pelo que é nosso. Os conceitos de público e privado,
sem diminuir a responsabilidade de ninguém, são su-perados,
na medida em que o processo educativo reconstrói o ser humano
em outra direção, exigindo sua participação, e isto se torna
cultura.
Há dizeres e pensamentos produzidos que se transformam
em trincheiras ideológicas, buscando não só o melhoramento do
comportamento, mas a limpeza dos vícios que se acumularam
em cada consciência, como lixo de perversidades que endurecem
as relações e por isso precisamos combatê-los com doçura e ener-
gia. Vimos em uma escola esta criação ideológica: “Escola limpa
não é a que mais se limpa, mas a que menos se suja”. É um verda-
deiro chamado à responsabilidade com aquilo que é público.
Em poucos dias abrem-se cacimbas coletivas e inicia-se o
tratamento da água. Banheiros coletivos para homens e outros
para as mulheres. Estabelecem-se normas de convivência e assim
reorganiza-se em poucos dias a nova forma de produzir a exis-
tência humana, acordando as virtudes adormecidas no leito do
tempo, que passam a povoar os sentimentos e controlar as von-
tades que levam aos desequilíbrios na convivência social.
Os poderosos se espantam quando observam um enorme
aglomerado de pessoas, onde não se requisita força policial para
intimidar e manter a ordem. Mas os próprios Sem Terra orga-
nizam e tudo funciona sem prisões nem repressão.
Nas marchas organizam-se longas filas que causam inveja
aos que assistem a passagem e emocionados esperam o momento
3434343434 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
para lançarem-se sobre as pessoas para abraçar e derramar lágrimas
quentes nos ombros dos caminhantes, como bálsamo refrescante
que alivia as dores do caminho. Também nas marchas não se requi-
sita força policial para orientar o trânsito.
É a força da terra que desperta virtudes, onde o comando
não emite ordens, solicita e recomenda cuidado pelo simples
fato de saber que ali vão seres humanos, que não são números
nem tampouco indivíduos enfileirados, mas que possuem senti-
mentos e levam no coração saudades dos filhos que ficaram nos
acampamentos, cuidados por outros pais que não puderam seguir
a marcha.
Se a saudade na distância é forte, a vontade de chegar é
maior. Com os olhos fixos no vazio do horizonte que se coloca
à frente, cada um quer saber o que se esconde após o topo da
ladeira. Assim vivem as utopias. A cada topo alcançado, novo
topo se deve alcançar, mas valeu a pena ter caminhado. Sem es-
ta persistência a história não tem sentido.
Este é o caminho que leva à reconstrução e coloca a revo-
lução em marcha. Não é fácil reconstruir-se quando já nos
tiraram o material mais precioso que é a dignidade de ser gente.
Um ser humano reconstrói-se na medida em que acredita que
dentro de si há material importante para colocar e tapar os vazios
que o tempo de dominação provocou. Não é fácil ser livre
quando ainda não aprendemos pronunciar a palavra liberdade.
Caminhamos ocupando espaços que outrora temíamos
ocupar. Marcharé mais do que viajar, é caminhar em busca de
surpresas. A cada passo uma emoção, um gesto de carinho, uma
mão estendida que parece querer esculpir em nós o novo homem
ou mulher que pretendemos ser, e como estátuas inacabadas,
abraçamos os escultores, como a pedir ajuda para que encham
3535353535O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
os espaços vazios que descobrimos dentro de nós, pe-los
opressores nos terem feito acreditar no passado, que nada mais
éramos e nada mais poderíamos ser.
É caminhando que descobrimos o espaço vazio do anal-
fabetismo que viaja conosco e nos provoca a perguntar ao
caminhante ao lado o que dizem as letras em cada placa à beira da
estrada. Ou quando alguém nos entrega um panfleto de soli-
dariedade e envergonhados, o dobramos e o colocamos com respeito
no bolso da mochila, que vai molhada sobre nossos ombros.
É caminhando que vemos o vazio do latifúndio, protegido
por cercas e a fome rondando as cidades.
É caminhando que vemos o medo nos olhos das janelas das
casas, escondidas atrás de grades, temendo que os pobres queiram
fazer justiça pelos longos anos de violência aplicada para acu-
mular riquezas.
É caminhando que vamos descobrindo e esculpindo em
nós uma nova consciência, porque os olhos parecem ver não o
que está ocupado, mas sim os espaços que se deve ocupar.
Há muitos espaços vazios que ao esculpir, vamos des-
cobrindo. O latifúndio, em 500 anos de história do Brasil, não
destruiu apenas a terra, mas também a consciência dos pobres e
trabalhadores, por isso milhões deles andam como se estivessem
cegos. Há um latifúndio em cada cabeça que não deixa produzir
virtudes e valores, que embrutece as relações sociais e humanas,
que abre profundos rasgos de erosão na memória, fazendo-nos
acreditar que a história começou com nosso nascimento indi-
vidual, antes disso “nada” de importante existiu. É a cultura do
vazio e do esquecimento.
Descobrimos também neste caminhar a importância da mão
amiga que nos arrasta para o futuro, e neste espaço vamos tran-
3636363636 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
çando experiências, conhecimentos, comportamentos, idéias,
virtudes, enfim, vamos construindo uma verdadeira interação.
“A existência do espaço interativo é fundamental para o processo
de construção do conhecimento, na formação dos sujeitos, e
para o avanço da organização do movimento social. Pois é tam-
bém nesse espaço, onde se desenvolvem as relações, articulações
e alianças”15 .
Estas descobertas e vivências misturam-se às ansiedades e
convidam para que produzamos nossa nova existência.
1.3.3. A consciência estética
A estética no seu sentido amplo deve significar a capacidade
que o ser humano tem de marcar sua existência no mundo,
produzindo objetos úteis e belos para sua sobrevivência, dando
a eles um sentido de continuidade da própria existência. O belo
se eterniza na permanência dos objetos criados. Neste sentido,
emanamos beleza que plenificam gestos e razões como identidade
de um povo.
Na origem da palavra estética está o sentir. Ela vem do grego
aisthesis que significa a faculdade de sentir. Logo, a estética se
torna importante para a vida humana, pois ela está ligada ao
desenvolvimento da criatividade e da capacidade de sentir, estes
elementos formarão as características da consciência estética.
Como a produção da existência consciente exige elevada
capacidade de criatividade, pois mesmo nos pequenos detalhes
usamos o intelecto e as mãos para produzi-las e colocá-las em
ordem, podemos considerar todo e qualquer ser humano artista
e arquiteto de sua própria história, para isto se torna fundamental
15
 Bernardo Mançano Fernandes. MST: Formação e Territorialização, 1996, p. 223.
3737373737O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
a criação da consciência estética. Esta consciência estética se
configura na qualidade de gostar. Desenvolve-se desta forma a
pedagogia do bom gosto. Este sentido acrescenta-se em nós da
mesma forma como qualquer outro, e deve ser exercitado dia-
riamente, caso contrário atrofia e desaparece.
É a busca da beleza que nos faz pentear os cabelos todos o
dias, a cortá-los quando vemos que tiram a beleza dos traços da
face, como se a moldura estivesse deformando-se.
A obra de arte de um camponês Sem Terra não se encontra
em paisagens pintadas ou em escritos filosóficos que se tornam
obras, mas na paisagem real que se torna poesia. Aquilo que é
novidade na natureza para alguns, para um Sem Terra não é ou
pode ter outro significado. O pôr-do-sol para muitos pode repre-
sentar um fenômeno artístico, pintado pelas mãos invisíveis do
criador da natureza, para o camponês pode representar apenas
fadiga de um dia duramente trabalhado, onde agora, ambos
“vermelhos” de cansaço, no colo da noite adormecerão, para
renascerem no dia seguinte e dispostos, acordarem o amanhecer.
Nossa preocupação está então em saber valorizar o que de
belo há na natureza e o que podemos tornar mais belo, usando
as próprias forças da natureza, para fazer mais bela a vida
cotidiana a partir desta fonte de beleza que é a natureza.
A estética representada pela arte no mundo do capital se
transforma em mercadoria, que se utiliza como elemento de
poder para dominação e alienação das pessoas. A beleza em
nossos assentamentos não é para ser comercializada, mas sim
para demonstrar que caminhamos rumo à reconstrução da vida
com o perfume das flores cultivadas, com o único objetivo de
perfumar o caminho neste quadro de arte pintado pelas mãos
de um desconhecido, que usou a enxada e os dedos como
3838383838 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
instrumentos básicos da edificação desta grande obra. Assim, a
cor marrom está na própria terra e o verde está contido na pró-
pria muda da flor, que se deita sobre o leito macio preparado
para a fecundação. Assim irá fazer parte da paisagem.
Nossa pintura tem mais sensibilidade por ser real, porque
respira e exala perfume, sensibilizando também nossa consciência
estética.
Essa pintura é real. Acima de tudo porque o pintor não
pode imaginar-se fora. Está dentro, e sem ele a paisagem não
terá a mesma beleza. Este ser social, transformado em pintor,
existe na realidade objetiva e subjetiva. Ocupa um lugar de des-
taque, movimentando-se de um lugar para outro, para assumir
um posto de melhor ângulo e continuar sua obra. Esta pintura
é bela porque está em permanente movimento. Somente se pode
olhar uma vez e fixar a imagem, no momento seguinte já não é
a mesma paisagem porque muitos elementos mudaram de lugar,
as nuvens foram para longe, os pássaros voaram em busca de
outros galhos e o homem abraçou-se à mulher para emergirem
em uma nova relação de igualdade e prazer.
O contato com esta beleza natural educa os demais sentidos,
como amar, gostar, admirar, sorrir e cantar. Desperta interesse
coletivo de reproduzir esta obra de arte. A classe dominante
quando vai aos leilões de arte, compra por altos preços obras de
arte e as leva para casa, trancando-as em cofres, tirando a liber-
dade da beleza poder tocar os sentimentos das pessoas e fazê-las
sentirem-se mais humanas. Escondem as pinturas devido ao
egoísmo que os amarra e porque são incapazes de reproduzi-las.
Nessa insegurança oprimem-nas através da escuridão das paredes
de aço, não deixando que falem e nem digam com seus traços,
que para ser verdadeiramente gente, é preciso criar. Os
3939393939O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
dominadores não são puramente humanos, se assemelham às
máquinas, sem sentimentos, sem alegria e sem imaginação.
Criam os mundos de fantasias onde o capital lhes dá as ordens
para cada movimento que devem fazer. Eles não sabem construir
uma paisagem livre e bela. Quando necessitam criar, chamam
um trabalhador para desenhar-lhesalgo que possam exibir aos
seus colegas. É a cultura da frieza e da dominação.
Porque então damos flores de presente? É errado fazer
isto? Não. Damos flores de presente porque somos incapazes
de explicar com palavras o que sentimos. Precisamos das
pétalas e do perfume para que as mãos possam externar nossos
sentimentos. Mas mesmo assim as flores murcham! Elas mur-
cham para dizer que a beleza não está em um gesto isolado.
É preciso continuar sensibilizando nossa consciência para que
ela não se acomode e crie sem limites novos gestos de carinho
e afeição.
Nós somos mais criativos porque somos mais livres, e criamos
nossas paisagens sem medo que alguém as roube, pois sua grandeza
física e estética, torna impossível de transportar. Quando conseguem
fazer isto, apenas levam pedaços e a beleza suporta poucos dias a ar-
rogância humana e desaparece. Talvez seja por isso também que as
flores murcham, porque não aceitam conviver com a insensibilidade,
que ao retirá-las dos jardins para levá-las e colocá-las sobre as mesas,
deixam para trás as raízes que lhes deram a vida. A beleza somente
sobrevive quando estiver ligada às suas raízes.
Se somos nós que fazemos a história, significa dizer que
nela ficam nossas impressões digitais. Seremos reconhecidos por
elas quando nossos descendentes forem recordar do pedaço de
existência que nos coube viver e produzir.
As obras de “arte” estarão presentes em tudo, porque tudo
4040404040 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
foi feito com a imaginação, força física e a habilidade de nossas
mãos, no espaço aberto da natureza.
Desta forma a estética está presente em tudo o que fazemos.
Ela é a intermediação que existe entre o querer e o fazer, entre o
servir e o sentir. Isto nos leva a aproveitar pedaços da grande paisa-
gem já pronta, para apenas acrescentarmos aquilo que o imaginário
humano consegue inventar. Então plantamos entre as árvores, casas
com chaminés fumegantes. Espalhamos animais domésticos por
entre as árvores, aproximamos as flores das casas e semeamos
alimentos por uma outra extensão; no fundo, o rio corre man-
samente, e ao pé da montanha limpamos um lugar para banhar-
nos, deixando que as águas levem embora nossas canseiras e mágoas.
Compõe-se assim as paisagens reais. Cada lote é um quadro
pintado pela capacidade de cada família de pintores.
Há desequilíbrios. São acidentes provocados por pintores
descuidados que, na pressa de fazer sua paisagem, derramam mais
tinta do que o necessário, borrando parte da tela com venenos,
queimadas e lixo, trazidos nas compras do supermercado.
Levam-se anos e às vezes várias gerações para se aprender a
pintar a obra imaginada por nossos sonhos, exatamente porque
o sonho não se realiza sem a recriação do homem e da natureza.
Ao mesmo tempo em que criamos, nos recriamos. Pintar é
também se pintar nesta paisagem viva. A consciência estética é
lenta para se desenvolver, mas sem ela é impossível reconstruir a
paisagem florida onde deverá multiplicar-se a vida humana e
assim tornar-se existência.
Quando a estética se torna cultura?
Quando os seres humanos descobrem que a beleza é parte
integrante do ambiente onde vivem, até o dia da partida e passá-
lo para outros seres mais jovens.
4141414141O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
 Quando o tempo determinar que não quer mais nos ver
andando sobre a terra, pede para nos retirarmos e nos deitarmos
de barriga para cima, onde a terra num diálogo silencioso nos trans-
formará e nos distribuirá para que as demais espécies possam sugar
nossa energia e fortalecer sua existência, misturada a nossa nova
forma de existir. Desta maneira é que a terra não é só terra nem a
árvore é somente árvore, assim como o indivíduo não é somente
indivíduo. As células e os átomos que compõem a matéria se
deslocam em um movimento vivo, e introjetam-se, entrelaçando-
se para formar uma “nova’ matéria. Há momentos em que pisamos
sobre a terra e comemos as plantas. No momento seguinte entramos
na terra e as plantas nos comem com suas raízes e nos transformam
em plantas. Este morrer e viver permanentemente é que possibilitou
nosso planeta estabelecer esta harmonia em milhões de anos de
existência.
Esta íntima relação não está nas conseqüências, mas na causa
que originou a intimidade entre terra e homem. Esta origem
está no húmus. “Daí que homem vem de húmus”16. Somos esta
mistura de pó e água com características novas, nos locomo-
vendo, sonhamos, pensamos, acreditamos e caminhamos em
direção à construção da utopia. Somos em resumo, esta terra
boa em movimento.
Somos este húmus Sem Terra, andarilho, que se rebela por
ser violentamente afastado da terra, onde pode ter utilidade
somente voltando a ela; pela morte ou pela luta. Em ambas as
situações há a retomada da terra, para tornar-se terra ou para tirar
dela o sustento e manter este húmus humano em movimento.
16
Leonardo Boff. Saber Cuidar, 1999, p. 72.
4242424242 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
Por esta razão é que nossa consciência ecológica se revolta
quando há desrespeito com a natureza, porque na seiva das árvo-
res há sinais de sangue de nossos antepassados que foram absor-
vidos pelas raízes das plantas.
Na medida em que conquistamos a terra, há um desafio
enorme de reconstituição da história desses locais. Nos sentimos
chamados a reconstruir as florestas através do plantio de árvores,
a edificar pomares e jardins, mesmo ao redor dos barracos de
lona crescem flores coloridas, plantadas pela simples vontade
de tornar o local mais bonito e atraente.
Em uma ocupação, quando se finda o período de acampa-
mento e a terra foi liberada, ficam resquícios de guerra, lonas
rasgadas, varas enfileiradas que serviam de esteios para as casas,
fogões de barro abandonados, restos de potes quebrados, sandálias
desgastadas, esquecidas e tantos outros objetos que ajudaram na
resistência física e sentimental. Mas nesta dispersão de coisas,
aparecem árvores e flores plantadas no desespero da ameaça do
despejo, que psicologicamente ajudaram a imaginar que nas raízes
das árvores e das flores, estava a simbologia da resistência e da
ligação à terra, que os encarregados pelo despejo e pela violação
dos lares, teriam que fazer força para arrancar-nos dali, e se passasse
um tempo significativo, não nos arrancariam mais.
A consciência ecológica e estética nos diz que devemos co-
locar ordem nos destroços e ao mesmo tempo em que partimos
para a construção das novas casas, o terreno que serviu de tapete
para instalarmos nossos sonhos e preocupações, deverá ficar
limpo e organizado. No solo pisado e endurecido limpa-se para
plantar árvores e fazer renascer a vida, junto com a libertação da
terra e das pessoas que acreditaram e venceram.
Chega o dia em que a luta vence a opressão. Chega o tempo
4343434343O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
de construir as casas em meio a um choque de interesses. O go-
verno aposta que uma casa de 42 metros quadrados é suficiente
para uma família morar, e para impossibilitar sugestões, impõe
uma planta comum para todos. Na vontade de possuir a casa,
cada família aceita a imposição, mas assim que passa a habitar
nela, percebe que não satisfaz as necessidades, pois possui apenas
quatro cômodos e às vezes o casal tem oito filhos e a vida fica
incômoda. A necessidade desafia a criatividade, e lá se vão todos
se empenharem na construção de varanda para aumentar a
cozinha e os dormitórios, agora de forma rústica. Pode-se perder
em beleza, mas ganha-se em criatividade, iniciativa e comodi-
dade. É o anseio de se ter uma casa com condições de abrigar as
pessoas da família com todo conforto possível que nos faz
desenvolver a criatividade.
Segue-se em frente, e percebe-se que o poder do criador
agora é humano. Animais são bem tratados e enfeitados,princi-
palmente os cavalos que ganham novos apetrechos e ferraduras.
Os pomares florescem. A bandeira do MST é pintada nas pa-
redes dos galpões, casas e escolas. Não há uma praça de assen-
tamento que não esteja lá uma bandeira dançado ao sopro do
vento, contrastando com o verde da vegetação em terra. Os
animais domésticos passeiam entre as crianças de ventres livres,
que correm em direção aos seus próprios brinquedos. As
mulheres recolhem dos varais as roupas secas e macias, já sem
remendos, após uma jornada de trabalho gratificante na coope-
ração comunitária. As portas das casas se abrem uma a uma
lentamente, como se quisessem dizer boa noite aos jovens que
saem para ver a lua nascendo. Não há muros em frente às casas,
as grades do medo e da exclusão ficaram em alguma dobra do
passado. E na linha da reconstrução e do desenvolvimento
4444444444 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
humano, vem os cuidados estéticos com o próprio ser humano.
É a razão maior de produzir cada obra de arte em cada
área conquistada e em cada ser humano, buscando refletir sobre
cada ruga estampada na face da existência, que distingue e
que nos dá identidade. Desta forma melhora-se a aparência.
Reconstituem-se dentaduras, melhora-se o vestuário, troca-se
os móveis da casa, adquire-se eletrodomésticos novos, enfim
toma-se consciência da importância da aparência física como
filhos da terra, recriados por ela em busca da manutenção da
dignidade.
O trabalho é desde o início o fator de produção do próprio
ser humano. No decorrer da história da humanidade o trabalho
foi se tornando algo punitivo e pouco prazeroso, devido a escra-
vidão e a exploração do capital no desenvolvimento das forças
produtivas.
No resgate do ser humano, resgata-se o sentido do trabalho
que possa reconstruir de forma voluntária o ser deformado.
Também resgata-se o sentido das técnicas que mantenham a
estética do corpo. Isto irá despertar o interesse pela beleza como
método pedagógico na retificação da conduta. “O instrumento
principal da influência pedagógica deve ser o método intuitivo
demonstrativo da beleza na arte, no trabalho e no comporta-
mento dos homens”17. Essa criação antecipada como referência,
influi para que os demais seres sociais Sem Terra, sintam influên-
cia deste meio, e adquiram caraterísticas complementares, reti-
ficando seus hábitos.
Pela urgência de produzir, muitas pessoas lançam mão de
instrumentos e insumos que prejudicam, mutilam e deformam
o corpo humano, fruto de um método demonstrativo do
trabalho depredador. Carrega-se água na cabeça enquanto há
4545454545O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
múltiplas formas de fazer a água chegar sem esforço em cada
casa, e usa-se defensivos, “ofensivos” agrícolas, quando há deze-
nas de formas de combater as pragas e doenças; fruto do
desconhecimento e alienação por parte das empresas de venenos,
que estabelecem as bases de seus lucros sobre a depredação e
destruição do ser humano e da natureza.
As tentações do passado às vezes nos obrigam a virar a cabeça
para ver o que não queremos mudar; é como se uma força mis-
teriosa nos empurrasse para o lado de um coordenador e entregás-
semos a ele o poder das ordens e ficássemos aguardando o
momento de agir. Se não há ordens não haverá ação. Aí nasce a
centralização do poder e a vontade de ser superior aos demais
seres humanos. Essa apatia se transforma em conformismo e
assim morre a indignação.
O gosto pelo belo está em todos os aspectos da vida e da
organização social e política, por isso é que a estética está em
todos os sentidos orientando-nos que um simples gesto tem sua
beleza. A forma de falar, de sorrir e dizer tem sua beleza. Há
pessoas que falam muito e não cansam seus ouvintes, quando
terminam de falar parece ouvir-se um ruído de pena por ter
terminado. Há beleza na forma de organizar e dirigir. Muitos
líderes tem a perspicácia de indicar o caminho e sem muitas
explicações convencem seus companheiros e companheiras.
Assim tornamos a estética parte de nossa existência, mas parte
agradável que dá qualidade aos segundos que respiramos e
desenvolvemos em nós, o gosto de viver e desenvolver a beleza.
É fundamental acreditar que desenvolvemos nossa existência
17
 Verb, M. A . La Educación Estética de Los escolares. In Teoría y Metodología de La
Educación Comunista em La Escuela, p. 217 e 218.
4646464646 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
num cenário como se fosse uma tela de pintura, onde cada movi-
mento nosso significa um traço na montagem desta paisagem. A
alegria significa as cores alegres, a tristeza e o mau humor as cores
escuras e tristes. Revisando nossa história podemos perceber
claramente como está pintado o quadro da história particular de
cada um. Se foi bela, o quadro estará perfeitamente pintado com
cores alegres, se foi uma vida atribulada será um quadro triste, onde
predominam as cores escuras. Importante é que não tenhamos medo
de expor na galeria de arte da história este quadro, e ter consciência
de que é possível melhorá-lo, agora que temos mais consciência da
importância de nossa existência.
Sobre as cores tristes é possível colocar cores alegres e fazer
o cenário de nossa história mudar. Por isso é preciso acreditar
em nossa capacidade de pintores, adormecida em nossa cons-
ciência. Dormem dentro de nós poetas, escritores, contadores
de fábulas, músicos e humoristas que somente nossa auto-estima
pode acordar.
Temos nossos ideais políticos, organizativos, econômicos,
etc. Precisamos estabelecer também ideais estéticos que pos-
sibilitem nossa intervenção no cenário histórico para transformá-
lo, a fim de que vivamos em harmonia com todos os tipos de
vida e socialmente felizes, bebendo nesta fonte limpa da beleza.
4747474747O MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a CulturaO MST e a Cultura
2. A revolução cultural
Assunto delicado, em se tratando dos vários fatores que se
interligam no tratado da revolução, principalmente quando há
diferentes conceitos que desgastam a própria palavra, tendo em
vista que com o decorrer do tempo, qualquer mudança signifi-
cativa, em qualquer dimensão científica ou da vida social, recebe
a marca desse conceito.
Há também muitos desanimados que também desencami-
nham as perspectivas e dificultam discutir o assunto.
Falar em revolução em uma época em que parece haver
uma hegemonia absoluta do imperialismo norte-americano é
atrever-se demais. Por outro lado, há uma acentuação muito
grande sobre determinadas questões que procuram descara-
cterizar a luta de classes e destacar como pontos fundamentais,
as questões de gênero, ecológicas, das minorias e tantas outras.
Aceitamos que, as contradições antagônicas estão locali-
zadas no mesmo lugar, entre forças produtivas e relações sociais
de produção, onde uns produzem, outros se apropriam, uns
concentram renda e riqueza, outros miséria e pobreza. É nesse
sentido que devemos voltar nosso olhar e colocar as questões
importantes sobre a situação de dominação, degeneração e
destruição de tudo. Dentre todos os elementos que compõem o
universo e que estão sendo destruídos, o ser humano é o prin-
cipal deles, por ter a condição de poder desenvolver a consciência
e ser ele o principal instrumento de resistência, é com ele que
devemos lutar e buscar a solução dos problemas.
Mas resgatar o ser humano não significa deixar as árvores e
4848484848 Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34Caderno de Formação nº 34
as águas desaparecerem. Uma nova relação entre os diferentes
atores no universo, deverá surgir e constituir as futuras relações
de produção, humanas e culturais.
A revolução estrutural da sociedade é o objetivo principal
daqueles que querem ver um país liberto de todas as torturas e
desequilíbrios. “A

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