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RESUMO DE AULA A POSSE "No tocante à posse, tudo é difícil e suscetível de controvérsias." (Darcy Bessone) "Sua história é obscura, seu conceito provoca acirrados debates e sua natureza jurídica extrema os espíritos." (Anderson Schreiber) A noção de posse no direito contemporâneo rende-se a teorias construídas com a finalidade de desvendar o sentido e o papel da posse no direito romano. Mais recentemente, o reconhecimento da função social da posse tem contribuído para a afirmação da autonomia do instituto, oferecendo novos caminhos para o seu desenvolvimento. Para compreender tais caminhos em sua plenitude, faz-se necessário, todavia, partir das duas célebres teorias da posse que influenciaram e continuam a influenciar seu estudo no direito vigente. TEORIAS 1. Teoria Subjetiva (Clássica) de Savigny P = C + A C – controle material, poder físico sobre a coisa A – elemento volitivo: intenção de exercer o direito como proprietário da coisa Obs: atuar sem o animus domini, somente com affectio tendendi – mera detenção Savigny procurou reconstruir sistematicamente o tratamento do tema no direito romano, sustentando que a posse resulta da conjunção de dois elementos: (a) o corpus, elemento material que se traduz na possibilidade real e imediata de dispor fisicamente da coisa e de defendê-la das agressões de terceiros, e (b) o animus, elemento intencional, que corresponde à vontade do possuidor de ter a coisa como sua. A teoria de Savigny, como outras que a antecederam, centrava-se sobre o elemento anímico, mas lhe atribuía especial caráter, na medida em que não se contentava como a chamada affectio tenendi (consciência de ter a coisa consigo), mas exigia a intenção de ser dono (animus domini ou animus rem sibi habendi). Assim, a diferença entre a posse e a mera detenção residia, segundo a construção savigniana, na especial intenção que tem o possuidor de ser dono, intenção que falta ao detentor. Não se fazia necessário, para Savigny, que o possuidor tivesse a convicção de ser proprietário (opinio suo cogitatio domini), mas precisava estar dotado da vontade de ter a coisa como sua. Quanto à natureza jurídica da posse, Savigny afirma que a posse em si mesma considerada deve ser tida como um fato, mas, considerada em seus efeitos, configurava- se em direito, na medida em que da relação material com a coisa, caracterizada pelo animus domini, derivavam direitos como a usucapião (posse ad usucapionem) e os interditos possessórios (posse ad interdicta), direitos que independem do direito de título dominial ou direito de propriedade. 2. Teoria Objetiva de Ihering P = C P – mero exercício da propriedade - exteriorização C – visibilidade do domínio, destinação econômica – o elemento subjetivo está implícito no poder de fato exercido sobre a coisa (affectio tenendi) Obs1: O possuidor deve agir como agiria o proprietário, concedendo destinação econômica ao bem de acordo com finalidade deste, tenha ou não animus domini. Obs2: Extensão da condição de possuidores a locatários, arrendatários, etc. Obs3: Coexistência das posses direta e indireta. Obs4: Detentores – opção de política legislativa– posse desqualificada pelo sistema jurídico. Para Ihering, o animus domini, tal qual compreendido por Savigny, afigurava-se irrelevante para a caracterização da posse, pois frequentemente é difícil ou mesmo impossível distinguir entre a vontade de possuir em nome alheio (affectio tenendi) e a vontade de possuir como dono ou para ser dono. Basta, assim, para Ihering que haja a exteriorização do domínio, que pode se verificar mesmo em relação a quem não tem a intenção de ser dono: seriam possuidores, nesse sentido, o locatário, o depositário e tantos outros que utilizam coisas alheias por força de mero contrato. Ihering entendia que a detenção e a posse não se distinguiam ontologicamente, exprimindo ambas uma aparência de propriedade. Sua distinção advinha da causa possessionis, isto é, do título de que resultava a posse. Ihering compreendia o animus como uma vontade abstrata, típica, a que a lei vinculava o título da posse, independentemente da vontade concreta do possuidor. Nessa linha, a detenção não era nada mais que a posse degradada pela lei: a falta de posse pelo detentor não derivava da sua falta de vontade de ser dono (animus domini), mas da lei que negava àquela detenção o caráter de posse. Por essas razões, Ihering denominou sua própria construção de teoria objetiva da posse, em oposição a todas as teorias subjetivas que o antecederam e que se baseavam, de um modo ou de outro, sobre o elemento anímico do possuidor. O próprio Ihering tenta traduzir algebricamente a diferença entre sua teoria e a de Savigny, por meio das seguintes fórmulas: Para Savigny: P = C + A + a D = C + A Para Ihering: P= C + A D= C + A – n em que “P” é posse, “D” é detenção, “C” é corpus, “A” é affectio tenendi, “a” é animus domini e “n” é a norma que degrada a posse em detenção. A distinção entre posse e detenção é essencial para diferenciar as teorias de Savigny e Ihering. Savigny não admite o desdobramento da posse em posse direta e indireta, o que deriva do seu próprio conceito de corpus como poder físico sobre a coisa. O corpus, na construção de Ihering, consubstancia-se na relação de fato entre a pessoa e a coisa de acordo com sua destinação econômica. Para Ihering, o que se afigura relevante é proceder o possuidor tal como procederia o proprietário. A tutela da posse é, para Ihering, um corolário da proteção da propriedade e, portanto, um direito. Também divergem Ihering e Savigny quanto ao fundamento da proteção jurídica da posse. Para Savigny, tal fundamento assentava sobre a tutela da vontade ou da própria pessoa, destinando-se a evitar violência contra o possuidor, tudo em consonância com a sua construção subjetivista. Para Ihering, em contrapartida, o fundamento da proteção jurídica da posse é o direito de propriedade. A proteção possessória seria complemento da proteção da propriedade, necessário a lhe assegurar o exercício. Todo o estudo contemporâneo da posse é guiado pela contraposição entre os pensamentos dessas duas personalidades. Nosso Código Civil tem sido considerado, nesse sentido, um diploma eclético, no sentido de que nele se encontram soluções inspiradas tanto na teoria subjetiva de Savigny quanto na teoria objetiva de Ihering. 3. Teorias Sociológicas da Posse Autonomia da posse em relação à propriedade. Ênfase ao caráter econômico e à função social da posse, permitindo que, em alguns casos, venha a preponderar sobre o direito de propriedade. Ex: art.183 e 191, CR e 1.228, p.4, CC/02 CC/02 – filiação à Teoria Objetiva de Ihering; concessão à Teoria Subjetiva de Savigny no que se refere à usucapião como modo aquisitivo da propriedade que demanda o animus domini. Conceito: Art. 1.196 – possuidor é quem, em seu próprio nome, exterioriza alguma das faculdades da propriedade, seja ele proprietário ou não. (com exclusão dos detentores) Superação das teorias de Savigny e Ihering à luz de uma teoria materialdos direitos fundamentais, posto que elaboradas em momento histórico em que o fundamental era a apropriação de bens. Tratamento sistemático no CC/02 com manifestações no sentido de dotar a posse de autonomia com relação ao direito de propriedade. O Código Civil brasileiro trata da posse antes da propriedade, orientação que reforça a autonomia da posse em relação à propriedade. Não chega a definir a posse, mas define o possuidor como “todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade” (art. 1.196). Autonomia da posse: A despeito, pois, de título dominial, o exercício de fato de qualquer das faculdades inerentes ao domínio já configuraposse, a suscitar proteção autônoma, como direito dotado de ações próprias. A posse, portanto, não se identifica com o exercício do direito de propriedade, pois, de modo autônomo, independentemente do domínio ou até mesmo em detrimento deste, vem tutelada como meio de efetivo aproveitamento econômico dos bens. Sendo a posse um direito que pode ser exercido mesmo por quem não é dono da coisa e até mesmo contra este. Por isso, a noção de posse vem normalmente associada à noção de propriedade, mas a proteção da primeira independe da segunda. As aparências são idênticas, mas o direito não protege a posse por ser aparência de propriedade. Enunciado n. 492 na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, em que se lê: “A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela”. Função social da posse: Em perspectiva histórica, pode-se reconhecer no instituto da posse a origem da funcionalização do direito de propriedade. A tutela de um estado de fato correspondente ao exercício de faculdade do domínio exprime não apenas o intuito de evitar a prática da violência, mas também uma preferência pelo efetivo aproveitamento econômico dos bens. A atribuição de um caráter social a essa função – historicamente bem mais recente – vem desprender o concreto exercício do domínio do exclusivo interesse proprietário, subordinando-o à realização de interesses de toda a coletividade, em uma perspectiva que reserva ainda maior destaque à posse como situação jurídica autônoma. Também à posse, todavia, se atribui, recentemente, uma função social. Um proprietário que não exterioriza o seu domínio ou não exerce ostensivamente as faculdades de que dispõe não deve ser necessariamente desprestigiado pela ordem jurídica em favor do possuidor, como se pode verificar no caso dos imóveis privados que consituem reservas ambientais, nos quais o proprietário pode estar exercendo a função social da propriedade imobiliária por meio do seu não uso, enquanto o possuidor, ainda que a utilizando ostensivamente (por exemplo, para fins de exploração econômica por meio do desmatamento para plantio), pode não estar realizando a sua função social. Cumpre, portanto, verificar em cada caso concreto se o poder de fato que corresponde ao exercício de faculdades inerentes ao domínio (posse) atende ou não, em relação àquele bem, à sua função social. A justificativa da posse se encontra, portanto, diretamente na função social que desempenha o possuidor. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público em que o domínio deixa de ser visto como mecanismo de apropriação exclusiva e restrição de uso para uma noção de propriedade calcada no direito de acesso a todos os bens fundamentais. A posse cumpridora de sua função social goza de autonomia em relação ao direito de propriedade, podendo prevalecer mesmo contra o domínio. Natureza da Posse: Teoria Subjetiva: natureza dúplice – é um fato, pois sua Existência independe de regras de direito, e um direito, considerada nos efeitos que produz. Teoria Objetiva: é um direito subjetivo para servir à tutela do direito superior de propriedade. Outras correntes: a posse é um fato, pois não tem autonomia ou valor jurídico próprio. Conclusão: As normas que tutela a posse dirigem-se a ela. Portanto, é um direito subjetivo. Sendo direito subjetivo, tem natureza de direito real ou obrigacional? Para Ihering: é direito real, pois contem seus três elementos estruturais – uma coisa como objeto; sujeição direta e imediata do objeto ao seu titular; eficácia erga omnes. Darcy Bessone e outros: É direito obrigacional - inoponibilidade erga omnes; não foi elencada no rol numerus clausus do art.1.225 do CC/02; irregistrabilidade da posse no registro imobiliário; situação topográfica da posse no CC/02, etc. Para outros autores, a posse é direito especial, sui generis. Desdobramento da Posse: Ocorre quando o proprietário, por meio de uma relação jurídica negocial (real ou obrigacional) com terceiro, transfere-lhe o poder de fato sobre a coisa, desdobrando a posse plena. Consequência: posse direta (terceiro) e posse indireta (proprietário). Art.1.197, CC e En.76, CJF Ex: locação, comodato, usufruto. Obs: A posse direta sempre será una, mas a posse indireta pode se desdobrar. Ex: sublocação. Nesse caso, a posse indireta caberá tanto ao proprietário quanto ao locador. O Código Civil brasileiro admitiu expressamente o desdobramento da posse, no art. 1.197. A posse pode ser (a) direta ou (b) indireta. Posse indireta é a que o proprietário conserva quando cede, temporariamente, a outrem o exercício de uma ou mais faculdades inerentes ao domínio. Posse direta é a que tem o não proprietário a quem se atribui o exercício de uma ou mais faculdades do domínio. A classificação da posse em direta e indireta é consequência do desdobramento da relação possessória, ficção jurídica que se considera necessária para reconhecer a existência de posses paralelas de um mesmo bem, evitando-se que o proprietário perca a posse e, com isso, a tutela possessória. Assim, constituindo-se um direito real limitado, como o usufruto, o usufrutuário passa a ser possuidor direto e o nu-proprietário, possuidor indireto. O mesmo se passa em certas relações obrigacionais, como na locação: o locador conserva a posse indireta, enquanto a posse direta é atribuída ao locatário. Além de limitada no tempo, a posse direta encontra-se vinculada, sempre, ao título causal do qual é derivada. Registre-se, por sua elevada importância prática, que é admissível o desdobramento da posse em graus sucessivos. O locatário-sublocador é possuidor direto em relação ao proprietário do bem e indireto em relação ao sublocatário. O possuidor direto tem tutela possessória contra o proprietário do bem. Exsurge aí, em toda a sua autonomia, a natureza da posse como direito, a ser defendido independentemente e até contra a propriedade. Composse: Posse comum de mais de uma pessoa sobre a mesma coisa, que se encontra em estado de indivisão. Comunhão da situação fática da posse. (art.1.199, CC) Pressupostos: pluralidade de sujeitos + coisa indivisa ou em estado de indivisão Ex: Vários possuidores que ocupam imóvel abandonado; todos ocupando a área total, sem discriminação de partes reservadas para atuação fática individual. Cada possuidor tem uma fração ideal sobre a posse, que lhe concede a fruição indistinta de todas as suas partes, sem que possa ser excluído pelos demais. Consequência: Possibilidade de invocar isoladamente a proteção possessória da área comum. Obs: Diferente de desdobramento da posse, que pressupõe posses paralelas, em graus diferenciados; aqui trata-se de posse no mesmo plano. O direito brasileiro admite a composse, também chamada posse comum, que se distingue da posse exclusiva. Diferencia-se a composse do desdobramento da posse, em que os graus da posse são diversos, pois um dos possuidores fica privado da utilização imediata da coisa. Na composse, todos podem utilizá-la diretamente, desde que uns não excluam os outros. Também a nossa jurisprudência já reconheceu que “em se tratando de composse, os copossuidores devem exercer seus direitos sem qualquer prejuízo aos demais”. Objeto da Posse: Doutrina e jurisprudência dominantes: apenas bens corpóreos – coisas, pois apenas se pode exteriorizar um poder fático sobre bens que tenham materialidade. Conceito sugerido: Poder de fato que se manifesta por atos de uso e fruição sobre a coisa, servindo-se o possuidor de suas utilidades econômicas, sem que isto implique qualquer conexão com o direitode propriedade. “Justamente pelo fato de o Código Civil excluir da incidência das ações possessórias todo exercício de direitos que não implique poder de fato sobre a coisa, a proteção a estes bens é encontrada nas Leis n. 9.279/96 (patentes), n.9.610/98 (Direitos Autorais) e n. 9.609/90 (Software), que conferem outros meios processuais de amparo ao titular de abstrações e bens intangíveis. Se as criações do espírito não podem ser objeto de posse, é possível, a outro turno, estender a posse aos bens perceptíveis por nossos sentidos, como a matéria em estado gasoso e a energia elétrica, gás e vapor, bens reputados como semi-corpóreos. Não haverá posse ainda sobre as coisas postas fora do comércio, que nem ao menos podem ser objeto de propriedade particular, eis que insuscetíveis de apropriação, como os bens públicos de uso comum do povo e de uso especial, afetados em prol da coletividade ou do exercício de alguma atividade pública (art.100, do CC). Nada obstante, é factível a posse de bens públicos dominicais ou patrimoniais, posto que desafetados, assim como bens públicos de outra categoria quando objeto de concessão em prol de particular, que então atuará como possuidor direto na vigência da relação jurídica.” Nelson Rosenvald e Cristiano Chaves de Farias
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