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Tribunal de Justiça do Distrito Fedetal e dos Territórios CARLOS COSSIO E A TEORIA EGOLÓGICA DO DIREITO Marília de Ávila e Silva Sampaio(*) I - INTRODUÇÃO O presente trabalho busca apresentar, em linhas gerais, as idéias filosóficas de Carlos Cossio, expressas na teoria por ele concebida, a qual denominou de Teoria Egológica do Direito. Seu principal conteúdo está concentrado no livro La teoria Ego lógica y el concepto jurídico de libertad, mas o próprio Autor reconhece que pontos importantes de sua teoria, tais como a questão da gnoseologia do erro ou a teoria da verdade jurídica estão tratados em compêndios separados. Aliás, segunda edição do livro acima mencionado trouxe diversas inovações em relação à primeira edição. O Autor partiu das idéias de Hans Kelsen e sofreu as influência do cri ti cismo de Kant, da fenomenologia de Husserl e da filosofia existencial de Heidegger, para concluir que o Direito é conduta, mas não uma conduta qualquer, mas uma conduta intersubjetiva, em que o fazer de um sujeito corresponde a um não fazer de outro sujeito, de modo que uma conduta impede a ocorrência da conduta do outro. Essa concepção inaugurou uma filosofia voltada para a ciência do direito, na medida em que o objeto de estudo do filósofo do direito é o mesmo objeto do cientista do direito. Para tanto Cossio desenvolveu suas idéias a partir de quatro pontos principais, quais sejam a ontologia jurídica, a lógica jurídica formal, a lógica jurídica transcendental e a axiologiajurídica, este aliás, um dos mais importantes capítulos da teoria, na medida em que explícita que todo ego ao desenvolver a conduta, necessariamente escolhe entre as possibilidades de atuação. E ao realizar tal escolha, valora. Assim, não se concebe uma conduta que não seja motivada pelo valor. Nesse ponto, Cassio discorda de Kelsen, para quem o direito é a norma e como esta é neutra, então o direito não se preocupa com o estudo dos valores, sendo o • dever ser' (objeto de estudo das ciências do espírito), um dever ser meramente lógico. Ao contrário, sustenta Cassio que o dever ser é axiológico e usa como argumento em abono a sua tese principalmente os conceitos elaborados por Husserl em sua fenomenologia. Segundo preleciona o Professor argentino, não há como se estudar o direito sem pensá-lo no dia-a-dia das pessoas, no mundo real de pessoas de carne e osso. Para ele o homem não é apenas uma categoria teórica, mas algo concreto que constrói sua realidade em co-participação com os demais homens. (*)Juíza de direito. Professora do UniCeub. Mestranda em Direito pela UNB. 22 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina Suas idéias influenciaram em grande medida os juristas de sua época, inclusive o próprio Kelsen, que após entrar em contato com as idéias de Cassio em um seminário de filosofia, realizado na Universidade de Buenos Aires, reformulou sua Teoria Pura do Direito, publicando uma segunda edição. A publicação do livro Radiografia de la teoría egológica dei derecho também deu-se a pedido de estudiosos do assunto, principalmente de professores e estudantes da Faculdade de Direito da Universidade do Ceará. É o próprio Cossio, no preambulo do referido livro quem conta que em 1961, os professores da mencionada faculdade decidiram encerrar o ano acadêmico com um debate, no qual os alunos, por votação, escolheriam, entre os autores estudados, os três que mais houvessem despertado sua inquietude e interesse. Após algumas votações, restaram 3 nomes com a maior votação, pela ordem: Carlos Cassio, Karl Marx e Hans Kelsen, sagrando-se vencedor do certame o aluno que defendeu as idéias de Cossio. Assim, animado pela homenagem e pela difusão de suas idéias por outros países, escreveu o referido livro e dedicou-o aos estudantes da Universidade do Ceará. O episódio narrado dá conta da importância da teoria de Carlos Cossio para a moderna filosofia do direito, na medida em que o mesmo aparece ao lado dos grandes nomes da ciência jurídica de todos os tempos. O trabalho foi desenvolvido em sete partes, além da introdução e da bibliografia, começando pela apresentação da vida e obra de Carlos Cossio, os antecedentes e influências da teoria, suas idéias filosóficas principais, com destaque de alguns pontos importantes da teoria, como a gnoseologia do erro e o direito no direito judicial, culminando com o resumo feito por Cossio das cinco teses principais da teoria egológica. O método utilizado foi o de pesquisa bibliográfica, não somente de bibliografia de referência, mas sobretudo dos próprios livros escritos por Carlos Cassio. 11- VIDA E OBRA DE CARLOS COSSIO: BREVE APRESENTAÇÃO O argentino Carlos Cossio, nascido em 1905, na lição de Sílvio de Macedo, foi um dos grandes pensadores jurídicos do mundo contemporâneo, professor da Uni- versidade de Buenos Aires. Sua Teoria Egológica do Direito foi expressa em sua rica obra, da qual se destacam La teoria Egologica dei Derecho, Su problema y sus Pro- blemas (1963); El problema de la coerción jurídica y su estado actual (1931); El concepto puro de revolución (1933); La plenitud deZ orden jurídico y la interpretacion judicial de la ley(1934); El substracto filosófico de los métodos de interpretacion (1940); La valoraciónjurídica y la ciencia dei derecho (1941); La teoria egologica y el concepto jurídico de libertad (1944) e Problemas escogidos de la teoria pura del R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 23 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios derecho- teoria egologica e teoria pura (1952). A teoria ego lógica tem por base a concepção culturalista do direito, segundo a qual o direito é um objeto cultural e não natural, porquanto não se apresenta como produto de métodos formais, aplicáveis às ciências físico-naturais, mas como realização do espírito humano, a partir de valores. Segundo Maria Helena Diniz, se o substrato do direito for um objeto físico, teremos um objeto cultural mundana! ou objetivo, "que corresponde ao 'espírito objetivo' de Hegel e à 'vida humana objetivada' de Ricaséns Siches, e a corrente culturalista que o estuda será a teoria cultural objetiva, de que são representantes, entre outros, Ortega y Gasset, Ricaséns Siches e Miguel Real e. Se seu substrato for a conduta humana, será um objeto egológico (de ego) ou subjetivo, estudado pela teoria egológica do direito, representada por Carlos Cossio, Aftalion e outros." 1 É de se ressaltar a grande repercussão do culturalismo na América Latina, sobretudo com a teoria tridimensional de Miguel Reale, a teoria raciovitalista de Ricaséns Siches e a teoria egológica de Carlos Cossio. III - ANTECEDENTES E INFLUÊNCIAS DA TEORIA EGOLÓGICA A Teoria Egológica foi desenvolvida por Carlos Cossio como uma tentativa de superação do puro logicismo jurídico imposto por Hans Kelsen à ciência do Direito, à medida que a teoria pura por ele desenvolvida não conseguiu tematizar o que é direito nem qual sua essência. As bases da referida teoria são principalmente o criticismo de Kant, a fenomenologia de Husserl e a filosofia existencial de Heidegger, com destaque para o conceito de liberdade metafísica, como dimensão fundamental do homem, desenvolvido por esta última. É o próprio Cossio, no prefácio da segunda edição de seu livro La Teoria egologica dei derecho y el concepto juridico de libertad, quem adverte que "corresponde a mi lealtad declarar que para /legar a la total inteligencia de la concepción egologica delDerecho creo necessario un adequado conocimiento de Kant,Husserl yHeidegger - además de Kelsen." 2 1 Maria Helena Diniz. Compêndio de Introducão à Ciência do Direito. lia ed. Saraiva. São Paulo. 1999. P4g. 132. 2 Carlos Cossio. Teoria EgoJoaica de! derecho y e! concepto jurídico de libertad. 2a ed. Abeledo- Perrot. Argentina 1964. Pág. 14. 24 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina Nada obstante, não era preocupação da referida teoriaa destruição de Kelsen senão a sua correta leitura, reconhecendo seu papel na ciência do direito, sobretudo no que tange à lógica jurídica. Depois de Ulpiano, que definiu o direito como sendo dar a cada um seu direito, credita-se a Kelsen o mérito de ter sido o jurista que mais desenvolveu a ciência jurídica, ao definir o direito como sendo a norma e esta como sendo um juízo hipotético. Tal conclusão foi estabelecida a partir da diferença entre o ser próprio da natureza e o dever ser característico da moral e do direito. Aliás, a contraposição temática entre o ser e o dever ser, é oportuno frisar, é de origem germânica, pois foi Kant quem a incorporou à linguagem filosófica com o intuito de firmar por princípio a autonomia do mundo moral frente a natureza mecânica. Ao contrãrio da lógica das ciências naturais, onde dado A é B, a lógica hipotética previa que dado A deve ser B. Entretanto, o dever ser Kelseniano possuía um caráter estritamente lógico, expresso por um juízo hipotético, ou seja, a expressão de uma hipótese de conduta anti jurídica, para a qual deve ser uma sanção determinada na mesma norma. O dever ser em Kelsen era sinônimo de obrigatoriedade, tendo uma sanção como conseqüência do descumprimento da norma, sendo, a princípio, considerado simplesmente um novo nexo gramatical da norma. Para Kelsen, a única lógica aplicável ao juízo hipotético era a aristotélica, analisando o direito somente como uma expressão normativa. Assim, afirma Cassio, Kelsen não era kelseniano, pois não atribuiu ao dever ser a categoria de uma lógica. Não atribuiu à nova lógica do dever ser um caráter axiológico, o que só se reconheceu posteriormente. Na visão de Cossio, Kelsen não estava fenomenologicamente preparado para entender toda a significação do dever ser descoberto, pois para o método fenomenológico do existencialismo a verdade está nas coisas como estas se apresentam na realidade e não no conceitos ideais ou juízos elaborados sobre elas. É um princípio básico da fenomenologia que "todo juízo diz algo acerca-de algo". Ora, se a norma é um juízo hipotético, na forma descrita por Kelsen, então deve dizer algo acerca de um segundo algo existencial, que está inexoravelmente na realidade. Assim, considerando o princípio acima exposto, o primeiro algo é um conceito, e o segundo algo, uma realidade existencial dada. Nessa perspectiva, o normativismo de Kelsen incorreu no vazio filosófico ao se ocupar somente das normas, isto é, dos conceitos, sem se ocupar das condutas dos homens de carne e osso que espelham a realidade da existência humana. Na visão egológica de Cassio, Kelsen estudou tão-somente o primeiro algo da enunciação existencial, legando à ciência do direito, indiscutivelmente, estruturas lógicas valiosas, como a pirâmide jurídica por exemplo. Entretanto, o mesmo relegou a conduta humana intersubjetiva desenvolvida no meio social a um papel fora da ciência do direito e R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 25 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios segundo ateoria egológica "una ciência jurídica deshumanizada es la negacion de si misma."3 A egologia estuda o direito como conduta, e isso faz fronteira com o existencialismo e a fenomenologia existencial, à medida que estuda o fazer do homem e com ele sua própria essência. 4 Isso porque, ao contrário da concepção kelseniana de que direito é só o direito positivo, a egologia tem claro que não se pode falar de seres e objetos sem filosofar e que o direito é a conduta humana. 111.1 A TEORIA EGOLÓGICA E A FENOMENOLOGIA Para a fenomenologia não tem mais lugar a visão de que o homem percebe o mundo como algo que é, pois o mundo natural é composto por coisas que são por si mesmas, não cabendo perguntar porque são ou se já foram. Esta corrente de pensamento, capitaneada por Edmund Husserl (1859-1938), aceita as coisas como algo dado, algo existente e, nessa perspectiva, o mundo inteiro, livre de questionamentos, resume-se a ser. Husserl sintetiza a tese do eu natural como "eu e meu mundo circundante." 5 É importante salientar que o pensamento de Husserl, em sua evolução, apresentou-se impregnado pelo conceito de subjetividade. Credita-se a Husserl o fato de ser o pensador contemporâneo que levou o pensamento de Descartes, o idealizador do conceito de subjetividade, o qual pode ser sintetizado na frase "penso,logo existo", às últimas conseqüências. Entretanto, em sua concepção, o conceito de subjetividade não foi devidamente explorado por seu descobridor, pois o método de duvidar de tudo, punha em dúvida até o próprio mundo. Assim, Husserl tendo como ponto de partida a subjetividade de Descartes e sua preocupação em encontrar um método que mostrasse o caminho para se chegar a um saber verdadeiro, prossegue em sua análise, resolvendo da seguinte forma o impasse Cartesiano: "a existência das coisas foi anulada 3 Daniel E. Herrendorf. Introducion a la fenomelogia egologica. In Radiografia de La Teoria Egologica de! Derecho. Depalma Buenos Aires. 1987. 4 Daniel E. Herrendorf, em sua introdução à fenomenologia egológica, já mencionada, assim se manifestou acerca dessa questão: "Si em e! hombre su essencia es su existencia (Heidegger, E! Ser y E! Tiempo, d 32), y su existencia está em lo que é! hiciere como hombre, su hacer como conduta desplegada sería ni mas ni menos que la expressión fenomenica de la persona. Entonces, cu ando la egologia estudia ai derecho como conduta, estudia justamente esa expresión fenomenica, e! hacer dei hombre, y com el, la essencia misma de! hombre." Op. Cit. Pág. 25. 5 Husserl define a tese do eu natural como sendo a atitude "em la cual nos hallamos espontáneamente cuando vi vimos. Delante de nosotros encontramos, sin ningún esfuerzo, ai mundo y la~ cosas de! mundo, y a los demás hombres diferenciados" Apud Carlos Cassio. Radiografia de la teoria egologica dei derecho .. Pág. 34. 26 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 ~:' Doutrina fora de mim, pois o ego jâ havia percebido tal existência e a incorporou como algo imanente. O ego absorveu o mundo e o leva com ele e assim o ego não serâ anulado, pois a existência imanente das coisas perdurará." Dessa forma, o ego desenvolve suas cogitações no sentido do mundo imanente e se os objetos são, é porque são para alguém. Era a preocupação de Husserl a estruturação de um "método filosófico apoiado na subjetividade do "ego" e suas puras cogitationes, como realidade indubitável, inclusive com a abstenção do mundo ("colocação do mundo entre parêntesis")."6 Este é o primeiro postulado da subjetividade pura. A concepção subjetivista de Husserl não coincide com a concepção de Kant de subjetividade transcendental. Este partindo desse conceito de "coisa em si", estudou a subjetividade transcendental, aceitando faculdades transcendentais, tais como a sensibilidade e o entendimento, como forma de organização de mundo. Entretanto, Kant baseou a fundamentação da subjetividade transcendental em positividades apriorísticas, aos moldes das ciências naturais com seus axiomas, hipóteses e definições, postura que na visão de Husserl é passível de críticas, pois toma como ponto de partida a idealidade apriorística das leis lógicas, sendo uma fundamentação inútil. Assim, Husserl supera o criticismo, à medida que não se limita a formas lógicas, mas segue caminho que vai da evidência da idealidade dessas formações lógicas, até a investigação de sua constituição subjetiva como problema universal. Husserl ressalta o papel da subjetividade, "estabelecendo a relação entre o eu natural (psicofísico) e o ego transcendental, diferenciando-os, mas reconhecendo que ambos têm o mesmo conteúdo, ou seja, formam ou constituem o mesmo "eu"7 , propondo duas teses para o estudo do subjetivismo: 1) "O mundo e'''- O eu é capaz de intuir o todo, a partir de uma percepção do mundo com base em evidências absolutas, mas tal percepção se limita a uma visão sempreparcial, pois é impossível chegar a uma experiência total dos objetos; 2) "Eu sou"- O ego percebe o mundo a partir da abstração dos elementos variáveis dos fenômenos psíquicos, das cogitações do próprio ego, reduzindo-as à sua essência, aos seus eidos, operando-se a redução eidética. O mundo não desaparece quando se tenta reduzir o objetivismo do eu, ou seja "a objetividade que caracteriza a lógica, no plano transcendental, é calcada na intersubjetividade, fundada, por sua vez e em última anâlise, numa subjetividade (ego transcendental)"8 • Ele passa a ser para a consciência um fenômeno, pois para esta o mundo e os objetos 6 Luiz Henrique Cascelli de Azevedo. As repercussões da fenomenologia de Husserl no direito. Notícia do direito brasileiro. N. 6 jul./dez. de 1998. Universidade de Brasília. Faculdade de Direito. 2000. Pág. 180. 7 Idem. 8 Ibidem. Pág.l83. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 27 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios são entes intencionais. Ou seja, o mundo é a intencionalidade de alguém e os atos nos quais consiste a vida do ego, pois " o mundo é, porque é para alguém". O mundo é o correlato intencional do eu e isso é o que significa a chamada redução transcendentaP Segundo a concepção egológica, todo estudo de direito que não tiver por base as concepções fenomenológicas, baseando-se tão somente no estudo das normas jurídicas, corre o risco de impor ao estudioso uma dupla frustração, a primeira frustração, de caráter científico, diz respeito ao fato de que as normas não têm o condão de resolver todos os casos concretos que se apresentam a análise, pois surgem da ação de homens de carne e osso e que desenvolvem sua conduta com plena liberdade. O estudioso que se detiver somente no estudo das normas não estará estudando o direito propriamente e sim os conceitos escritos e formais que o mencionam. Essa frustração científica, no que tange às concepções positivistas do direito, foi assim resumida por Daniel E. Herrendorf " el abogado, el juez, deben ser capaces de uma percepción inteligible de cualquier tramo deZ universo. Pero el universo entero y sus posibilidades humanas não cabem em la piramide de Kelsen." 10 Já a segunda frustração, de caráter existencial, diz respeito ao fato de que se o trabalho é uma dimensão espiritual do homem, frustrar-se profissionalmente, a partir da frustração científica mencionada anteriormente, é frustrar-se existencialmente, pois o que se frustra é o projeto de existência humana. Se o trabalho do estudioso do direito ficasse simplesmente adstrito à mera repetição de normas, certamente tal tarefa poderia ser substituída, com mais eficiência, por um computador. Essa frustração existencial não é menos importante do que frustração científica e atinge não só os advogados, mas também os juízes, pois quando estes se vêem compelidos a dobrar seus princípios e crenças para sentenciar de acordo com a norma escrita, experimentam essa frustração biográfica, pois é justamente dos juízes que se espera a realização de justiça, e as leis não são a justiça. 111.2 A TEORIA EGOLÓGICA E A FILOSOFIA EXISTENCIALISTA Segundo Martín Heidegger (1889-1976), o "homem-está-sendo-no-mundo". Tal afirmação significa que o homem só é em uma situação mundana e só nela. Assim 9 Segundo Luiz Henrique Azevedo, no desenvolvimento de sua teoria Husserl "crê que a verdade, acessível pela lógica, está nas próprias coisas (intencionalidade). Contudo, elas não seriam exteriores â consciência (aliás, esta era tida como fonte primordial da evidência requerida pelo conhecimento verdadeiro). Prossegue atingindo as chamadas essências (nível eidético) para, ato contínuo, alcançar o nível transcendental. Reunido todo esse percurso, a fenomenologia seria um processo de continuação da realidade ou um método de sua evidenciação num patamar transcendental (neste prevalece o mundo interior imanente). Op. Cit. Pág. 184. 10 Daniel E. Herrendorf. Op. Cit. Pág. 50. 28 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina o homem é definido a partir de duas dimensões: o homem situado e o homem situacionado. Situado porque sempre é em uma situação existencial determinada. Não é no vazio. Situacionado, porque por sua vez essa situação na qual o homem é o determina e limita de algum modo, oferecendo limitadas oportunidades de vida , dentro de determinadas situações que vive. O homem, ao viver, desenvolve uma conduta e até mesmo a omissão constitui uma conduta e, como viver é conviver, pois ninguém vive isolado, então a conduta do homem deve compatibilizar-se com a dos demais homens, e isso significa que haverá uma interferência intersubjetiva de condutas. Como existem várias possibilidades de conduta, comportar-se, desenvolver conduta significa valorar, tomar posição acerca da melhor conduta a ser realizada. Assim, viver significa considerar axiologicamente. Tais conceitos influenciam diretamente a teoria egológica, pois norma e juízo de valor são inseparáveis e a norma egológica é a realidade existencial tal qual ela é, pois aí se situa o direito. Daniel Herrendorf traz à colação, em abono a essa tese, o fato de que mesmo antes do primeiro Código de Hamurabi, já existiam homens e mulheres convivendo e valorando condutas. Havia, pois, o direito, muito embora não existissem normas escritas. Dentro dessa perspectiva, a conduta é a expressão fenomênica da pessoa, comportando-se em sua realidade vivente e a teoria egológica se apresenta como uma teoria da conduta, na medida em que representa a pessoa que age e assume sua conduta. O direito é definido como uma ciência da experiência e não como uma ciência das normas simplesmente. O direito se manifesta a partir do protagonista de uma conduta, que se comporta de acordo com possibilidades axiológicas completas, dentro de uma situação existencial. Primeiro há uma valoração da conduta por parte do indivíduo, as normas e sua violação vêm depois. Tanto que quando um criminoso comete um crime, valora de forma positiva sua conduta, sob a perspectiva de sua liberdade existencial, ao passo que a sociedade a valora negativamente. O valor da egologia se justifica como filosofia a partir de sua investigação sobre a subjetividade, sobre o ego, daí o nome da teoria "egológica". Em resumo, para a teoria egológica "e/ Derecho es ciencia de realidades, porque es ciencia de conducta humana; el Derecho es, como objeto, esa conducta humana viviente que es llevada a cabo por el ego, es decir: el Derecho es um objeto egologico." 11 11 Daniel Herrendorf complementa tal assertiva, afirmando que "assumir que e! Derecho es conducta y que, por lo tanto, es una ciencia de experiencia humana, es assumir e! criterio más elemental que pudiera caber en este orden. Como se v e, no es la filosofia que anda por las nubes." Op. Cit. Pág. 61. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 29 ? Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios IV • IDÉIAS FILOSÓFICAS DE CARLOS COSSIO Segundo Cossio, existe uma impossibilidade de se pensar a liberdade com a lógica do ser, mas o fato de tal conclusão jamais ter sido explorada pelos juristas levou à crença de que o objeto do direito fossem as normas, e não a conduta. Assim, a teoria egológica inaugura a tentativa de conhecer a conduta mesmo, pensando-a como um dado da liberdade. Para a escola egológica não há como se estudar uma filosofia do direito dissociada da ciência jurídica, pois o mesmo direito estudado pela filosofia é o direito estudado pelo jurista. Na lição de Cossio "e/ derecho que estudia la teoria egologica es el mismo derecho que estudia el jurista, el objeto que investiga la ciencia dei derecho. Esta estabelece una vinculación inquebrantable entre la teoria egológica y la ciencia positiva dei derecho. La egologia no cree en una filosofia dei derecho a secas desvinculada de la cienciajuridica. Una filosofia semejante se colocaria en el dilema"de repetir lo que las ciencias dicem ... o de negar las conclusiones de aquéllas, sellando com esta su propria muerte."12 Segundo a egologia, a filosofia, bem como a ciência empírica, deve indagar quatro grandes problemas principais, que serão a seguir analisados, quais sejam: 1) A ontologia jurídica. 2) A lógica jurídica formal; 3) A lógica jurídica transcendental e 4) A axiologia Jurídica. IV.l ONTOLOGIA JURÍDICA A primeira questão que se põe à análise é a indagação essencial acerca do objeto que o jurista deve conhecer. Forte na lição de Cassio, "si la ciencia dei Derecho es conocimiento-de-un-objeto el primer presupuesto filosofico que nos toca examinar concierne a los problemas de este objeto como tal, es decir, dei Derecho mismo como objeto."13 Assim, a ontologia jurídica se depara com dois problemas essenciais: o primeiro deles diz respeito a indagar-se a qual gênero supremo está submetido o Direito e o segundo consiste na determinação do Direito como objeto egológico. 12 Carlos Cossio. Panorama de la teoria egologica de! derecho. Revista de la facultad de Derecho y Ciencias sociales. Buenos Aires, 1949, ano IV, num. 13. Apud Enrique R. Aftalión et alii, Introdución ai Derecho. 9a ed. Buenos Aires. 1972. Pág. 963. . 13 Carlos Cossio. La teoria egologica dei Derecho y e! concepto jurídico de la libertad. Op. Cit. Pág. 284. 30 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina Quanto ao primeiro problema, concluiu Cossio que o Direito é cultura, partindo da oposição existente entre os objetos culturais e os objetos naturais. O Direito é, pois, um objeto cultural, pois não é produto de métodos formais e sim do espírito humano, tendo por base valores. Quanto ao segundo problema, ou seja, da determinação do direito como objeto egológico, ensina Cossio que "el más sencillo ejemplo de la vida diaria nos confirma en nuestra pesquisa , mostrando, en forma incontrovertible, que ai Derecho se lo intuye em la conducta y no em ninguna outra parte: al ver a un hombre que arroja de una casa a outro hombre poniendo en la acera su cama y sus enseres, tenemos, com toda propiedad, la vivenda de una injusticia o de una justicia sobre la que se edifica el correspondiente juicio dei hombre vulgar y também del jurista. "14 Depreende-se do exemplo que todos os juízos do jurista se originam do ato empírico da conduta e nelà buscam seu juízo de verificação intuitiva. A conduta, objeto do direito, é uma totalidade sucessiva sobre uma determinada proteção existencial. Assim, não pode ser fragmentada indefinidamente em ações menores, pois chegará o ponto em que existirá somente o fragmento de uma dessas totalidades, mas não uma totalidade sucessiva. Ainda analisando a ação humana, Cassio afirma que, onticamente considerada, a mesma consta de dois componentes, um físico, que é a atividade tempo- espacial de nosso corpo e outro psíquico que, como decisão de vontade, inclui também os conteúdos emocional e intelectual com que se projeta nossa consciência. Na lição do Professor argentino, ambos os componentes não estão numa relação de sucessão, mas numa relação de compenetração e é por isso que Del Vechio pode afirmar exatamente que a ação é um fato da natureza, que ao mesmo tempo é um ato de vontade, afastando de vez a possibilidade da existência de ações puramente internas, por falta de componente físico e, em contrapartida, a existência de ações puramente externas, por falta do componente psíquico. Mesmo a omissão é uma conduta, pois a ação em geral " es, precisamente, el modo de presentarse la conducta en cada una de sus totalidades sucessivas. " 15 A ação humana é dividida em três componentes: 1) O eu atuante; 2) O fazer do eu; 3) O resultado do fazer, o que foi representado por Cossio no seguinte gráfico: Meio Fim ............. . 14 Idem. Pâg. 285. 15 Ibdem. Pâg. 288. Valor do fim R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 31 )( Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios A AÇÃO COMO UMA TOTALIDADE SUCESSIVA O objeto egológico não está no meio, nem nos fins, nem no valor do fim, mas na ação como totalidade sucessiva. Entretanto, essa análise se refere à conduta em si mesma, numa dimensão existencial, ou melhor, numa interferência subjetiva, mas não se aferiu sua dimensão coexistencial, ou sua interferência intersubjetiva. Nesse ponto, antes de prosseguir na definição da conduta como objeto do direito, Cassio esclarece que a interferência será subjetiva quando a liberdade de agir aparece conjugada com uma omissão da mesma pessoa titular do comportamento. Essa omissão do mesmo agente se apresenta como sendo a intuição intelectual essencial à moral, que também é conduta. Já quando a liberdade de fazer de um agente aparece conjugada com o impedimento de agir de outro agente, ai se apresenta a interferência intersubjetiva caracterizadora do ser jurídico, ou seja, a percepção jurídica se define pelo impedimento de atuação de um sujeito por outro e por isso mesmo, o Direito, como fenômeno, resulta de uma interferência intersubjetiva de ações possíveis. O ser jurídico é uma conduta compartida. Cossio, entretanto, adverte que essas interferências não são categorias de conhecimento do próprio comportamento, mas sim duas faces da mesma realidade, pois não dependem da perspectiva do sujeito cognoscente em relação à conduta. Isso porque esta conduta pode ser definida como a liberdade de um fazer referente a um ego titular, mas pode também ser definida como a liberdade existente em uma conduta compartida, pois o ser humano é um ser social, vive em sociedade. Assim, a liberdade de cada sujeito ao integrar a ação compartida, consiste numa permissão ou impedimento para o que fizerem os outros ou para o que fizerem todos em conjunto. Dessa maneira, tanto o permitir quanto o impedir a conduta do outro se apresentam como liberdade compartida e " la conducta humana em su inerferencia intersubjetiva de acciones posibles, que hemos definido recurriendo a la oposición complementaria dei permitir o impedir, nos hace ver a su turno cómo y por que el Derecho se constituye con la intuición de la libertad."16 IV.2 LÓGICA JURÍDICA FORMAL A ontologia jurídica e a lógica jurídica formal gravitam sobre a ciência do direito, partindo de horizontes opostos, pois na ontologia jurídica, o dado são as ações, 16 Carlos Cassio. La teoria egologica dei derecho y el conceoto jurídico de libertad. Op. Cit. Pág. 308. 32 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina a conduta. Jâ para a lógica em geral, o dados são os conceitos, o logos. Mas os conceitos podem ser estudados sob dois ângulos: como pensamento, do qual se ocupa a lógica formal e como conhecimento, estudado pela lógica transcendental. A lógica jurídica formal é o estudo da validade do direito como compatibilidade do pensamento jurídico ou da concordância desse pensamento consigo mesmo. Partindo da pureza metodológica de Kelsen, para quem a cópula normativa da teoria pura traz um dever ser neutro de toda valoração, a norma seria uma simples imputação de um antecedente a um conseqüente. Assim, a norma jurídica tem uma estrutura de juízo hipotético. A lógica, na visão kelseniana, a ser aplicada ao dever ser é uma lógica aristotélica, ou seja, não era diferente da lógica do ser, sendo o dever ser por ele apresentado meramente lógico e não axiológico. Tanto para a teoria pura do direito como para a teoria egológica a norma jurídica possui a estrutura de um juízo disjuntivo, sintetizado na fórmula " dado A dever ser B. Dado não B deve ser S." É o que preleciona Cassio ao afirmar que "la teoria egologica, com su doctrina de la norma jurídica como um juízo disjuntivo, garantiza ampliamente el carater cientifico dei conocimiento."11 Entretanto, a teoria kelseniana é analítica e resolve de forma ilusória a questão das lacunas do Direito. Isso porque o mero juízo analítico pode fazer crer que tanto aafirmação lógica de que "tudo o que não está proibido, estâ juridicamente permitido", quanto a afirmação de que "tudo o que não estâ permitido está juridicamente proibido" possuem a mesma significação. Tal conclusão, contudo, principalmente a que afirma que "tudo o que não está permitido, estâ juridicamente proibido", apresenta-se como uma impossibilidade lógica e existencial, à medida que afronta a liberdade inerente a toda conduta humana. Tal conclusão poderia levar a uma paralisação absurda da vida a qual pertence o Direito. Assim, para a teoria egológica o axioma que estabelece que "tudo o que não estâ proibido, estâ permitido" foi imposto onticamente pela liberdade, na qual a conduta consiste num juízo sintético apriorístico e não num mero juízo analítico. IV.3 LÓGICA JURÍDICA TRANSCENDENTAL Não basta que o pensamento jurídico seja válido e que suas diversas partes sejam compatíveis entre si, análise obtida a partir da aplicação da lógica jurídica formal. 17 Carlos Cossio. La teoria egologica de! derecho y e! concepto jurídico de libertad. Op. Cit. Pág. 338. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 33 ~ Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios É necessário que além de válido, o pensamento jurídico seja verdadeiro. A plenitude da verdade será obtida a partir dos dados empíricos que constituem o objeto do pensamento jurídico. Assim, no que se refere ao pensamento jurídico, em relação às verdades universais e necessárias, o estudo não se limita ao aspecto puramente formal de compatibilidade das diversas partes do pensamento entre si, mas do exame das estruturas de pensamento destinadas ao conhecimento do objeto, destacando-se aquelas inconvenientes ao objeto em estudo. Segundo a teoria tradicional, o conhecimento jurídico se dá a partir da interpretação da lei. Já a teoria egológica sustenta que, em sendo o Direito conduta, não se interpreta a norma e sim a conduta, mediante a lei. Outro aspecto importante para a lógica transcendental é que o tempo da experiência jurídica não é o tempo convencional e sim o tempo existencial, íntimo, integrado por três datas: um antes, um agora e um depois. A lógica jurídica transcendental se ocupa, segundo a teoria egológica, de estabelecer qual a relação existente entre a norma e a conduta. IV.4. AXIOLOGIA JURÍDICA A axiologia positiva indaga dos valores reais dados em uma comunidade, em um lugar e tempo determinados e forma parte da ciência jurídica. Já a axiologia pura indaga os valores verdadeiros ou valores puros e integra a filosofia do direito. A ciência jurídica estuda os valores reais incorporados à conduta, dotando-lhes de sentido. Já a filosofia jurídica estuda o valor puro, desvinculado de concreção em qualquer instituição, lugar ou tempo, em pura referência ao Direito em geral. Para o Professor Cossio, os valores se dividem em dois grupos: 1) valores de autonomia, descritos como aqueles que põem a pessoa que desenvolve a conduta como centro, caracterizando a atuação do ego. São unidirecionais e se situam na existência individual e 2) valores de heteronomia, descritos como aqueles que se expressam a partir do elemento coexistencial, ou seja, do contato entre as pessoas da comunidade. São bidirecionais e situam-se na vida associada, na medida em que são impostos pela comunidade, segundo suas estimativas, com vigência plural. Assim, para a egologia, os valores são valores de bilateralidade ou de alteridade, na medida em que toda conduta se desenvolve valorando, com a presença do Direito, a partir da intersubjetividade de condutas. Todos os valores de bilateralidade são valores jurídicos. Para Cossio, a justiça é o principal valor, o valor fundante da filosofia e que encabeça o que ele denominou de plexo axiológico do Direito. A justiça é considerada o valor supremo, pois é a melhor possibilidade contida em uma situação éoexistencial dada, isso porque qualquer dos valores do plexo axiológico estão subsumidos à justiça. 34 . R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina Assim, a cooperação é uma forma de justiça, a paz também é justiça, tanto quanto são justiça a solidariedade e a ordem. E assim explica o Professor Argentino a axiologia jurídica para a escola ego lógica: "la teoria egológica , al mostrar que los valores de conducta son inmanentes a la libertad, puede estabelecer que son valores jurídicos todos los que tienen estructura de alteridad, de acuerdo com la idea aristotélica. Sólo que además de la justicia, corresponde incorporar el orden, la seguridad, e! poder, la paz, la cooperación y la solidariedad. Pero, en tal caso, de acuerdo ahora com la ide a platónica de la totalidad, la justicia da el equilibrio y proporción reciprocas de aquellos otros valores.(. .. ) Mientras el pensamento tradicional pone, al reves, la noción platónica dentro de la noción aristotelica, al esclarecer que la justicia desempena en el seno dei plexo jurídico um papel similar al que le atribuía Platón frente a los valores morales."18 A teoria egológica concilia, pois, a idéia platônica de justiça como virtude totalizadora e harmonizante, com a idéia aristotélica da alteridade, forte na lição de Enrique R. Aftalión. Sob a influência de Heidegger, Cassio estudou a valoração juridica a partir de três planos coexistenciais diferentes: 1) El mundo de cada qual- Plano da mundificação- apresenta a situação existencial de cada um. É o homem que está-sendo-no-mundo, em uma situação determinada. 2) Las personas como individualidades jurídicas- Plano da personalização - apresenta o eu em oposição ao tu, ou seja o ego se personaliza e assume a si mesmo como eu e aos demais como tu, caracterizando-se como pessoas diferenciadas. 3) La comunidad como sociedad que nos contiene- Plano da socialização- o homem toma consciência de uma vida plural e se socializa. A partir de cada plano coexistencial (coexistência como mundo, coexistência como pessoa e coexistência como sociedade), obtêm-se os seis valores positivos puros, os quais completam o plexo axiológico e se apresentam dispostos em pares e são, a saber: 1) No plano de mundificação aparecem a segurança e a ordem; 2) No plano de personalização aparecem a paz e o poder e 3) No plano da socialização aparecem a solidariedade e a cooperação. 18 Luis Recasens Siches. Panorama Del Pensamiento Jurídico em e! siglo XX. Primer tomo. Editorial Porrua S/ A. México. 1963. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios Assim, para a axiologiajurídica os valores que integram o plexo axiológico são emparelhados em duplas e a cada valor fundante, corresponde um desvalor extrínseco, por defeito, pois representa a sua degradação, e um desvalor intrínseco, por excesso, que representa sua hipertrofia . Desta forma, o valor de heteronomia ordem (plano de mundificação), tem como sua degradação a desordem e como hipertrofia o ritualismo. No plano da personificação, o valor de heteronomia é o poder. Sua degradação é a impotência e sua hipertrofia, a opressão. Por fim, no plano da socialização, o valor de heteronomia é a cooperação e seu desvalor é a minoração e sua hipertrofia a massificação. V. A VERDADE E A GNOSEOLOGIA DO ERRO Questão de grande importância para a egologia diz respeito ao conceito de verdade jurídica e sua repercussão tanto na dogmática jurídica, quanto na filosofia do direito. A ciência dogmática, como ponto de partida da reflexão filosófica, define-se como produto histórico da livre criação cultural. Nesse sentido, essa noção de historicidade não é um problema do objeto da ciência, qual seja, o direito, mas um problema que afeta a ciência como tal. Uma verdade sobre a natureza, por ser neutra, pode ser expressa independentemente do sujeito, sem encerrar juízos de valores, ao passo que uma verdade cultural, por ter uma substância axiológica, não se expressa independentemente do sujeitoque a enuncia. O valor é sempre um valor para alguém, pois é da essência do valor a referência a um sujeito. A gnoseologia fenomenológica repousa sobre a teoria dos atos atualmente objetivantes, com que Husserl agrupa, por seu denominador comum, todas as vivências que interessam ao problema do conhecimento, definindo os atos atualmente objetivantes como sendo a intuição (perceptiva, rememorativa ou imaginativa) e a significação (normativa ou enunciativa). O conhecimento, dentro da concepção de Husserl, se dá quando uma significação concorda com uma intuição. No que conceme à conceituação de verdade, esta fenomenologicamente, se define como a adequação entre o conceito do objeto e a intuição do mesmo. No fenômeno social a objetividade, que é intersubjetiva, está presente duas vezes: 1) No próprio fenômeno de conhecer, que é a cultura; 2) Na ciência jurídica que trata de conhecer o direito. Assim, como todo juízo traz em si a pretensão da verdade, também toda verdade traz em si a pretensão de objetividade. Entretanto, como se afirmou anteriormente, a objetividade é intersubjetiva, ou seja, exige uma atitude dos demais sujeitos. Por erro, afirmou-se qué nas ciências naturais a objetividade e a verdade são a mesma coisa, pelo fato de que a atitude dos 36. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina demais seria somente passiva, bastando a divulgação do enunciado. Jã em relação às verdades jurídicas o processo de objetividade e verdade se apresenta apartado, pois o sujeito que enuncia algo contribui para a compreensão do que foi dito, de tal forma que não se pode separar sujeito de enunciado. Assim, não basta a coincidência entre conceito e intuição, pois o fato social hã que ser objetivo, ou seja, hã que receber valoração coincidente com os demais. Na verdade jurídica, não basta o processo individual da verdade de concordância entre conceito e intuição, pois hã que haver um papel ativo dos demais. Nessa perspectiva, o aspecto histórico das ciências culturais aparece inolvidãvel e muito mais intenso do que se apresenta nas ciências naturais. Na concepção egológica, um erro para as ciências culturais não pode ser reconhecido da mesma forma como um erro para as ciências naturais. Isto porque, para as ciências naturais, o erro é simplesmente rechaçado, pois significa o descumprimento de um enunciado, ao passo que para as ciências culturais, se apresenta como uma negação articulada do enunciado proposto. Dessa forma, as afirmações de determinado jurista não podem ser reconhecidas como erros metodológicos , pois as afirmações foram vividas como verdades jurídicas na época em que foram concebidas. Assim, a gnoseologia do erro para a escola egológica se apresenta como a história da ciência dogmática, na medida em que assume a verdade jurídica como parte de erros que jã foram superados. Assim, afirma Cossio que "la verdadjurídica se hace de un hecho institucional y, además, de un error, cuando tal es hecho historico de los juristas como cientificas" 19 , o que mistura a história da ciência do direito com a verdade jurídica, mas como gnoseologia do erro. VI . O DIREITO NO DIREITO JUDICIAL O ponto de partida dos estudos de Cossio, em seu livro La teoria ego lógica del derecho y el concepto jurídico de libertad, foi justamente a fenomenologia da sentença judicial, tema que serve de introdução a toda uma filosofia da ciência do direito. O professor argentino justifica tal postura ao afirmar que a perspectiva adotada teve em mira os problemas dos juristas que estudam filosofia e não dos filósofos que estudam a ciência jurídica. Não obstante, essa postura deixa antever a importância do tema ora abordado para a teoria egológica. Sob a ótica egológica, aplicar a lei é enfocar uma conduta desde o ângulo da lei, ou seja, é atribuir um sentido axiológico à conduta que se considera, mas também 19 Apud Luis Recasens Siches. Op. Cit. Pág. 407. R. Dout. Jurisp., Brasflia, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 37 ~/ Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios é, ao mesmo tempo, extrair um sentido axiológico da conduta que se considera. Assim, o juiz aplica a lei a uma conduta e extrai da conduta elementos para a escolha e aplicação da lei. Há uma imanência material do juiz no direito, pois é no juiz que se conceituam, como realidade, os sentidos jurídicos de justiça ou de ordem, que tem que ser evidenciados quando se aplicam as leis. Segundo Cossio, o juiz deve interpretar a lei de acordo com sua ciência e sua consciência e quem extrai da norma legal sua razão jurídica é o juiz ao compreender o sentido de justiça ou solidariedade ou de ordem contido nos fatos. Cossio advertiu para o fato de que a teoria dos métodos interpretativos tem querido suprimir a consciência do juiz no processo de aplicação da lei, pondo em seu lugar uma receita que, ao ser aplicada sobre a lei, deixaria a lei interpretada e serviria para resolver todos os casos concretos. Tal pretensão tomou por base a concepção de que direito é a lei e que o objeto do conhecimento do jurista é somente a lei, crendo, ainda, que o juiz é um ser externo ao direito. Na visão ego lógica, tal posicionamento é passível de crítica, pois o direito não se resume à lei e o juiz é imanente ao ordenamento jurídico, ao ponto de poder afirmar-se que o direito é, em parte, o próprio ato do juiz. Aliás, a necessidade de julgar do juiz deriva da própria estrutura lógica do dever ser, pois ao nos colocarmos na esfera do direito vale para nossa conduta uma estrutura constitutiva que não é construção nossa nem do legislador, mas pertence ao direito enquanto objeto. Assim afirma Cossio: "Ya hemos dicho que ser Juez quiere decir administrar justicia; em este sentido el Juez debe de juzgar siempre, no porque y cuando el Legislador quiera, sino porque es Juez, es decir porque esa es su ontología jurídica. El Legislador, ciertamente, puede indicar cómo se llena el cargo de Juez y cómo éste há de cumplir sufundon; pera el Legislador no inventa ni crea la propia funciónjudicial porque ésta es inherente e inmanente al concepto deZ Derecho." (grifo nosso )20 Esta concepção, é oportuno frisar, tem profundas consequências na análise do postulado de plenitude do ordenamento jurídico, pois se para a doutrina tradicional o ordenamento jurídico é pleno, porquanto é a soma de todas as normas e, como as normas contemplam todos os casos, dando a noção de completude do sistema, para Cossio a interpretação judicial é imanente à noção de ordenamento jurídico e apriorístico a este, uma vez que se reconhece que a função judicial integra o conceito totalitário de ordenamento jurídico. 20 Carlos Cossio. La olenitud de! oreden juridico y la internretación juducial de la !ey Editorial Lousada S/ A. Buenos Aires. Págs. 54155. 38 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina Na lição de Ricasens Siches, Cossio resumiu três classes de juízos lógicos presentes na sentença: 1) Conceitos fundados na forma empírica-dialética- aqueles juízos nos quais o juiz, precisando decidir e não havendo dados suficientes para tanto, escolhe certas circunstâncias do caso e, dentro da lei, o fundamento dajuridicidade da própria decisão; 2) Alguns juízos fundados em forma dedutiva, porém apodítica - juízos que emanam da lógica jurídica pura, ou seja, "juízos que não só são assim, mas que não podem deixar de ser assim" e 3) Juízos dedutivos, mas assertivos- juízos com valor puramente de fato, fundados na existência da lei. A partir da aplicação dessas três classes de juízos, concluiu Cossio que o ordenamento jurídico constitui-se numa plenitude hermética, fundado no axioma ontológico de "tudo o que não está proibido está juridicamente permitido". O Direito não é, pois, uma mera possibilidade e sim uma realidade humana, que é da forma como sai das mãos do juiz. VII. AS CINCO TESES DA TEORIA EGO LÓGICA Cossio resumiu a teoria egológica em cinco teses fundamentais,que foram apresentadas em 1963 e retomadas em seu livro Radiografia de la teoría egológica del Derecho de 1987. 1) PRIMEIRA TESE· O DIREITO COMO CONDUTA HUMANA A tese de que o direito como objeto é conduta não constrói uma coerência, mas encontra uma necessidade ontológica. Afastam-se as idéias de que o direito seja a norma ou a vontade do legislador, de que seja um precedente ou ainda o pensamento de um deus, de que seja um a transposição de interesses humanos para um plano de interesse coletivo o social ou que seja uma conformidade racional com a natureza humana, pois cada uma dessas hipóteses consiste, por definição ou generalização, em uma afirmação referente à experiência jurídica que não deriva necessariamente dessa experiência, mas é imanente a ela. Para a escola egológica, jamais nenhum legislador vai criar o direito, podendo somente criar a sua modificação. Isso porque o legislador já encontra um direito dado com anterioridade na experiência e isso ainda que o legislador assuma suas funções como originário. Ao legislador não é dado começar sobre o nada jurídico, partindo, pois da modüicação de um dado da realidade. Esse direito preexistente já se encontra na conduta das pessoas e o direito é ele mesmo conduta, sendo essa a necessidade ontológica a que alude o início da tese. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 39 I ~ Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios À medida em que com o direito desenvolve-se uma experiência de realidades e que estas realidades ou advém da mecânica da natureza ou estão na liberdade do homem, forçoso é concluir que o direito está na conduta, uma vez que não é conseqüência da mecânica da natureza. Mas o direito não só está na conduta como ele próprio é conduta, um dever fazer, promovido pela liberdade. 2) SEGUNDA TESE - A CONDUTA JURÍDICA É PERCEPTÍVEL A conduta humana que interessa ao direito é a conduta humana em sua interferência intersubjetiva ou compartilhada. A conduta é intuível para a sensibilidade, pois os fenômenos de conduta se percebem naquilo que conceme à exteriorização da própria conduta. Mas ao jurista interessa não a intuição dinâmica da conduta em sua pertinência à natureza, mas uma intuição biográfica da existência humana como fenômeno de conduta, precisamente a intuição do ego como alterego na presença somática do próximo, forte nos ensinamentos de Husserl. Importa observar que a percepção jurídica é diferente da percepção moral, pois esta se caracteriza como a percepção do que alguém faz em contraposição ao que ele mesmo omite. Já a percepção jurídica se caracteriza não pela omissão, mas pelo impedimento de atuação de um sujeito por outro sujeito e, por isso mesmo é que o direito, como fenômeno, resulta de uma interferência intersubjetiva de ações possíveis. O conhecimento do direito se faz a partir desse perfil coexistencial do comportamento que se apreende onticamente, na medida em que qualquer ato humano deixa antever a dimensão jurídica da vida humana, pois as pessoas podem fazer aquilo que não lhes é proibido. Somente pelo fato de que a conduta coexistencial impede algo ou não a alguém é que em alguns casos pode-se instituir o permitido como potestativo ou às vezes como obrigatório. E esta alternância de sujeitos na conduta é que faz com que os atos jurídicos, como por exemplo a compra e venda ou os testamentos, se realizem. Esses atos são perceptíveis aos nossos órgãos sensoriais e é aqui onde a inteligência do jurista vê diretamente a impedibilidade como essência, ao perceber com seus olhos quais das possibilidades que realizam a conduta interferente, impedindo ou não algo na conduta interferida. 3) TERCEIRA TESE- A CONDUTA JURÍDICA É JUSTIFICÁVEL Cossio afirma que uma conduta sem valor ontologicamente não pode ser. Ortega y Gasset afirmaram que o homem, para resolver-se a fazer isto ou aquilo tem, 40 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina querendo ou não, que justificar para si mesmo a eleição feita, ou seja, tem que descobrir qual de suas ações possíveis naquele instante é a que mais dá realidade a sua vida, a que possui mais sentido. "E! hombre no puede dar un solo passo sin justificar/o ante su propio íntimo tribuna/."21 E os valores constituem a última palavra em torno dessa justificação, definindo-se os valores próprios da conduta jurídica como valores de bilateralidade, não só no sentido de que são bipessoais, mas em seu sentido mais sutil, correspondente a uma unicidade da conduta conjunta resultante de um valor de justiça. Segundo a filosofia existencial, se os valores jurídicos são valores coexistenciais da conduta em si mesma considerada, então o próximo é uma parte do mundo circundante (qualificado por sua liberdade). É também uma pessoa em sua individualidade (um tu contraposto a um eu) e, na conduta existencial de alguém, o próximo é um par do outro como membro de uma integração superior (um tu complementar do eu entre nós). A questão relativa aos valores dentro da teoria egológica já foi analisada ao tratarmos da axiologia jurídica. Entretanto, Cossio adverte que a justiça, como qualquer valor, é um "existenciário de futuridade". Por conseguinte, se situa no ego e no próprio tempo da situação, atento à validade da afirmação de Ortega y Gasset de que "yo, soy yo y mi circunstancia" como expressão do "estar-sendo-no mundo" heideggeriano. Com isso a dicotomia axiológica de objetivismo e subjetivismo resta superada pois a situação é objetiva, na medida em que é comum para todos. E a subjetividade do ego , para ser situacional, tem que subsistir como vocação e tem de compartilhar-se como opinião pública, ainda que a opinião seja contrária ou indiferente. Se a justiça consistir em dar a cada um o que é seu, então justiça deve conhecer o que é o seu de cada um, sob pena de estar incorrendo no vazio. Não obstante, é evidente que o seu de cada um depende das circunstâncias concretas que cada um integra e essa circunstância se modifica a todo momento. Assim a justiça não é algo indeterminado ou vazio. É, ao contrário, concreta e cheia como a vida que está a justificar-se, pois a justiça é a melhor ordem possível, é a melhor segurança que nos protege, é a melhor do poder que nos hierarquiza, a melhor paz que nos une, a melhor cooperação que nos harmoniza e a melhor solidariedade que nos acolhe, conforme ensina Cossio. 4) QUARTA TESE - A CONDUTA JURÍDICA É PROJETÁ VEL A conduta humana foi definida pela egologia como sendo um dever ser existencial. Assim, a conduta se integra com a emoção de si mesma, com o impulso de 21 Apud Carlos Cossio. Radiografia de la teoria egológica. Op. Cit._Pág. 162. R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios si mesma, com a decisão de si mesma, com o propósito de si mesma e com os valores de si mesma. Isto se toma óbvio a partir da percepção de que sua 'omissibilidade' e sua 'impeditibilidade' correspondem ao ego e ao alter ego. E o ego se define, entre outras coisas, por ser pensante. A questão é saber qual a natureza desse pensamento de si mesma com a conduta que a integra. A natureza é previsível, na medida em que é repetitiva. Já a conduta é previsível porque é projetável, pois a conduta, sendo irrepetível como é, seria imprevisível, se não fosse projetável. E ser projetável quer dizer que nós temos a conduta como um projeto, antes de tê-la como realidade, ou seja, ser projetável é ter a conduta no pensamento. Entretanto, a conduta não é algo independente do pensamento. Com efeito, a conduta já começa a realizar-se ao antecipar-se como projeto. E Cossio resumiu o presente raciocínio da seguinte forma: "la conducta es predicible porque es projetable; y es proyetable porque uno de sus ingredientes es pensamiento. Podemos projetar la conducta porque ella tiene un pensamiento intrínseco. El proyecto en cuestión es este pensamiento y nadamás."22 Por fim Cossio relaciona a conduta como um dever ser existencial que é com um dever ser lógico, expresso na cópula normativa enunciada por Kelsen. 5) QUINTA TESE- O ERRO DOUTRINÁRIO, COMO INADEQUAÇÃO DA CONDUTA JURÍDICA, TEM A NATUREZA DE UM OBSTÁCULO SOCIAL. A quinta tese da teoria egológica guarda relação com os conflitos ideológicos do poder político com a ciência em geral, principalmente no campo das ciências do homem, já que em relação a elas, diferentemente do que ocorre com as ciências naturais, os poderes laicos possuem sua própria 'verdade oficial'. Dessa forma, para as ciências históricas e sociais é grande a possibilidade de conflito ideológico com o poder político. Nessa perspectiva, a teoria egológica conclui que também na ciência jurídica e não só na experiência do direito, um erro, além do desajuste entre intuição e conceito, apresentado no plano teorético, é um obstáculo social. Assim, surge a tarefa de desmascarar aos juristas que atuam como ideólogos a serviço de determinada classe social. Na visão de Cossio, nos últimos duzentos anos de história ocidental é possível identificar a perturbação e a deformação causadas pelo capitalismo, no esforço de tratar com propriedade de uma verdade jurídica. Nesse lapso de tempo, podem ser assinaladas seis grandes escolas jurídicas, quais sejam: 1) A doutrina do Direito Natural; 22 Carlos Cossio. Radiografia de la teoria egológica dei derecho. Op. Cit. Pág. 172. 42 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13·59,mai.-ago. 2001 Doutrina 2) O Racionalismo dogmático dos alemães, para os quais direito é somente a norma; 3) O empirismo exegético dos franceses, para quem o direito é a vontade do legislador; 4) O historicismo casuístico dos ingleses, para os quais o direito é o precedente judicial; 5) O sociologismo eclético dos norte-americanos, para quem o direito emergeria de uma transposição pragmática dos interesses humanos a uma perspectiva de interesse coletivo ou social e 6) A egologia existencial, que considera o direito como conduta humana intersubjetiva e a norma jurídica, o projeto que a antecipa e integra. As posições pré-egológicas apresentam-se, na lição do referido Professor, impregnadas pela ideologia capitalista, à medida em que o pensamento doutrinário coincide com o interesse econômico que promove as valorações inerentes a cada escola. E o fato de o jurista silenciar acerca do móvel econômico de sua doutrina, não a toma mais neutra. O pensamento doutrinariamente normativo é ele mesmo ideológico, pois é promovido pela classe dominante, mas é mascarado com outra roupagem no campo do pensamento. A investigação ideológica, que na obra de Cossio se dá como gnoseologia do erro, afeta a concepção do capitalismo, enquanto concepção imperante da vida e tende a explicar porque subsistem nos tribunais e nos livros certas noções e concepções jurídicas, cujo erro está suficientemente denunciado na doutrina. VIII . CONCLUSÃO A partir do estudo da teoria egológica de Carlos Cossio, verificou-se que a mesma concentrou os problemas do conhecimento e da ação em tomo da conduta humana. As normas se referem a condutas, os juízes julgam condutas e os indivíduos se comportam no mundo. Superou-se a idéia de que o direito seria definido como sendo as normas, pois estas são um simples juízo acerca de algo que necessariamente se encontra na realidade. Tão lógico é o raciocínio que muito antes de haver direito escrito e de serem positivadas as regras de conduta, as comunidades já conheciam formas de organização e de composição de seus conflitos, ou seja, já conheciam direito. Ademais, aceitar a idéia de que o direito se resuma às normas seria aceitar, da mesma forma que Kelsen, que o enunciado lógico de "que tudo o que não está proibido, está juridicamente permitido" é tão verdadeiro quanto o que afirma "que tudo o que não está permitido, está juridicamente proibido". Há uma impossibilidade lógica nesse segundo enunciado, pois a regra básica de convívio é a liberdade. Ainda que o legislador quisesse, não teria como prever todas as possibilidades de atuação humana e normatizar todas a situações da vida. Aliás, mesmo quando age em desconformidade com o preceito legal, o homem valora seu comportamento e é livre para escolher sua forma de atuação. Tanto lícito, quanto ilícito, são possibilidades de R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 43 / Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios atuação livre, sendo que nesta última hipótese, sofre o indivíduo as conseqüências previstas na norma. Mas o centro do estudo não é a norma e sim a conduta do indivíduo. A mera repetição de normas, adverte Cassio, pode levar o estudioso do direito a uma dupla frustração, uma científica, na medida em que não é possível encontrar-se na norma todas as soluções para as situações reais e cotidianas e outra de ordem existencial, pois na medida em que não consegue apresentar soluções para as questões da vida, tomando-se um mero repetidor de fórmulas, o profissional do direito frustra seu próprio projeto existencial; conforme demonstrado no decorrer do trabalho. No que diz respeito à atuação judicial, Cassio demonstrou que o ato do juiz é parte do ordenamento jurídico, pois é onde o valor supremo do direito aparece com mais intensidade: a justiça para o caso concreto. Assim, admite Cossio a plenitude do sistema jurídico, mas não pelos mesmos fundamentos lançados por Kelsen, de que o direito é o conjunto de normas e que estas não contém lacunas, mas no sentido de que o ordenamento é um sistema hermético, assentado na premissa lógica de que "tudo o que não está proibido, está juridicamente permitido". Assim, a liberdade é um dos pontos fundamentais no conceito de conduta. Não obstante, a ênfase com que é tratada a atuação judicial frente ao sistema jurídico, pode ensejar erroneamente a interpretação de que o direito, na concepção de Cassio se resume à decisão judicial. Na perspectiva egológica, a lei é o ponto de partida para a atuação judicial, mas o direito não se resume a ela. Em contraposição ao que afirmava Kelsen, aplicar a lei é enfocar a conduta sob seu ângulo, atribuindo-lhe um sentido axiológico. Assim, o juiz deve aplicar a lei a uma conduta e dela extrair os elementos para a escolha de sua aplicação. Ainda à guisa de conclusão, é importante registrar algumas dificuldades no que diz respeito ao acesso a determinados dados da vida de Cassio, mas como restou explicitado no livro Radiografia de la teoría ego lógica del derecho, "por muitos motivos, Cossio es uno de los proscritos universitarios argentinos. Ya sea por su sostenida oposición al dogmatismo ecleisástico, por haber introducido el estudio de Karl Marx por la primeira vez en la Argentina, o por denunciar ai positivismo como la más servical de las ideologías dei capitalismo, Cossio se vio obligado, manu militare, a abandonar su catedra." Assim, a despeito da falta de dados pessoais sobre o Autor, o estudo de sua vasta obra deixa antever uma das grandes contribuições, não só para a ciência do direito, mas para a filosofia em geral, contribuindo, de certa forma, para o resgate da perspectiva existencial do ser humano como objeto de estudo (no caso da sua conduta) e não apenas como um conceito abstrato, contido num juízo da realidade. O homem é enquanto ser no mundo e não enquanto objeto de uma norma. E é justamente este resgate da dimensão real do homem de 'carne e osso', que interage com seu semelhante e com o mundo, a maior contribuição de Cassio. 44 R. Dout. Jurisp., Brasília, (66): 13-59,mai.-ago. 2001 Doutrina IX- BIBLIOGRAFIA AFfALION, Enrique R. et alii. lntrodución ai Derecho. Cooperadora de Derecho y Ciencias Sociales. Buenos Aires. 1972. AZEVEDO, Luiz Henrique Cascelli de. As repercussões da fenomenologia de Husserl no direito. Notícia do Direito Brasileiro. Organizada por Ronaldo Rebello de Britto Poletti. 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