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DIREITO PENAL – ILICITUDE E CULPABILIDADE DR. RAFAEL DA COSTA E SILVA - PROFESSOR 1. ILICITUDE 1.1. Conceito: ilicitude é a contrariedade entre o fato típico praticado por alguém e o ordenamento jurídico, capaz de lesionar ou expor a perigo bens jurídicos tutelados. - Esse juízo de valor depende do juízo de tipicidade, de modo que todo fato ilícito é típico. - Presente uma causa excludente de ilicitude estará excluída a infração penal, pois um fato pode ser típico, porém não contrário ao direito. - As causas de exclusão de ilicitude também podem ser chamadas de causas de justificação, justificativas, descriminantes, tipos penais permissivos e eximentes. - Para identificação das causas de exclusão de ilicitude o Código Penal usa o termo “não há crime” (art. 23 do CP). Já para as excludentes de culpabilidade o legislador usa os termos “não é punível” e “é isento de pena”. Essa regra pode ser alterada na parte especial do CP, como no artigo 128 e 142, onde usa a expressão “isento de pena”, para fazer menção à exclusão de crime. 1.2. Causas de Exclusão de Ilicitude: podem ser causas genéricas ou causas específicas de exclusão de ilicitude. 1.2.1. Causas genéricas ou gerais: são as previstas na parte geral do CP, aplicando-se a qualquer espécie de infração penal. Encontram-se no artigo 23 e seus incisos: Estado de Necessidade, Legítima Defesa, Estrito Cumprimento do Dever Legal e Exercício Regular do Direito. 1.2.2. Causas Específicas ou especiais: são aquelas previstas na parte especial do CP e na legislação especial, com aplicação unicamente aos determinados crimes a que se referem. Ex: art. 128 (aborto), 142 (injúria e difamação), 146, §3º, I e II (constrangimento ilegal), 150, §3º, I e II (violação de domicílio). 1.3. Causas de Exclusão de Ilicitude e Aspectos Processuais: - Estando presente uma causa de excludente de ilicitude o Ministério Público deve requerer o arquivamento dos autos do inquérito policial. Se assim não fizer, o juiz poderá rejeitar a denúncia, com fundamento no artigo 395, II do CPP. - Se a denúncia tiver sido recebida o juiz poderá após a apresentação da resposta escrita, absolver sumariamente o acusado, em face da existência da causa excludente de ilicitude, nos moldes do artigo 397, I do CPP. - Se ainda assim tiver dúvidas quanto à causa excludente de ilicitude, poderá, por ocasião da sentença, absolver o acusado com fundamento no artigo 386, VI do CPP. 1.4. Causas Supralegais de Exclusão de Ilicitude - Para quem defende essa teoria, as causas de exclusão de ilicitude não podem ser somente aquelas que estão na lei, mas aquelas que se relacionam com o direito em vigor. É causa supralegal de exclusão de ilicitude o consentimento do ofendido. - O consentimento do ofendido como tipo penal permissivo tem aplicabilidade somente nos delitos em que o titular do bem jurídico pode livremente dele dispor. Esses delitos podem ser criados em quatro grupos distintos: a) delitos contra os bens patrimoniais, não havendo violência ou grave ameaça; b) delitos contra a integridade física, nos casos em que a lei exija representação; c) delitos contra a honra; d) delitos contra a liberdade individual. Todos bens jurídicos disponíveis. 1.4.1. Requisitos do consentimento do ofendido: para ser eficaz esse consentimento, deve ser: a) expresso, pouco importando sua forma, ou seja, oral ou por escrito, solene ou não; b) não pode ter sido concedido em razão de coação ou ameaça; c) é necessário ser moral e respeitar os bons costumes; d) deve ser manifestado previamente à consumação da infração penal, pois a anuência posterior não afasta a ilicitude; e) o ofendido deve ser plenamente capaz para consentir, ou seja, deve ter completado 18 anos de idade e mentalmente capaz. - O consentimento do ofendido também pode ser aplicado nos casos de crimes culposos desde que seja bem disponível. Lembrando que o consentimento não se refere ao resultado naturalístico involuntário, mas à conduta do agente imprudente, negligente ou imperito. Ex: lesão corporal culposa na direção de veículo automotor no caso em que a vítima aquiesce ao excesso de velocidade do motorista, resultando acidente e ferimentos. - Não produz efeitos o consentimento prestado pelo representante legal de um menor de idade ou incapaz. 2 – ESTADO DE NECESSIDADE - O artigo 24 do CP diz que considera em estado de necessidade quem: a) pratica o fato para salvar perigo atual; b) que não provocou por sua vontade; c) não podia de outro modo evitar; d) direito próprio ou alheio; e) cujo sacrifício nas circunstâncias não era razoável exigir-se. - Não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. - Embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de 1 a 2/3. 2.1. Conceito: o estado de necessidade caracteriza-se pelo conflito de interesses lícitos, ou seja, uma colisão de bens jurídicos pertencentes a pessoas diversas, sendo que o direito permite o sacrifício de um deles para preservação de outro. 2.2. Natureza Jurídica: Causa de exclusão de ilicitude. Portanto, não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade. 2.3. Teoria: o CP adotou a teoria unitária, onde o estado de necessidade é causa de exclusão de ilicitude, desde que o bem jurídico sacrificado seja de igual valor ou de valor inferior ao bem jurídico preservado, exigindo razoabilidade na conduta do agente. - Essa teoria admite somente o estado de necessidade justificante, quando o bem jurídico sacrificado apresenta valor igual ou inferior ao bem jurídico preservado. Se, contudo, o bem jurídico sacrificado reveste-se de valor superior ao bem jurídico preservado, não se caracteriza o estado de necessidade (há crime), admitindo-se a redução da pena, de um a dois terços. 2.4. Requisitos do Estado de Necessidade: devem ser cumulativos, sendo eles: 2.4.1. Perigo Atual: é a exposição do bem jurídico a uma situação de probabilidade de dano, pode ter como origem um fato da natureza (ex: inundação, terremoto, etc), de seres irracionais (ex: ataque de um cachorro) ou mesmo de uma atividade humana (ex: motorista que dirige em excesso de velocidade e atropela um transeunte, com o objetivo de chegar rapidamente a um hospital e socorrer o enfermo no interior do veículo). - Quanto ao perigo iminente há controvérsias, prevalecendo o entendimento de que equivale ao perigo atual, excluindo o crime. Há posições em sentido contrário, sob o fundamento de que se essa fosse a vontade da lei teria o feito de forma expressa, assim como fez na legítima defesa. - O perigo remoto ou futuro ou pretérito ou passado não caracterizam estado de necessidade. 2.4.2. Perigo não provocado voluntariamente pelo agente: a situação de perigo pode se originar de uma atividade humana lícita ou não. O estado de necessidade não cabe para aquele que provocou o perigo. A doutrina revela divergências quanto ao perigo causado por culpa, predominando o entendimento de que o Direito não pode ser piedoso com os incautos e imprudentes, autorizando o sacrifício de bens jurídicos alheios, por acobertar o manto da impunidade daqueles fatos típicos causados por quem deu causa a uma situação de perigo. Ou seja, quem cria a situação de perigo, dolosa ou culposamente, tem o dever jurídico de impedir o resultado, não podendo invocar causa de justificação. 2.4.3. Ameaça a Direito Próprio ou Alheio: o perigo deve ser direcionado a bem jurídico pertencente ao autor do fato ou ainda a terceira pessoa. Por isso, o estado de necessidade pode ser utilizado para defesa dos bens jurídicos pertencentes a pessoas desconhecidas, e, inclusive, de pessoas jurídicas, que também são titulares de direitos. 2.4.4. Ausência do dever legal de enfrentar o perigo: nos termos do artigo24,§1º do CP, não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo. Aquele que tem o dever de enfrentar o perigo não está autorizado a sacrificar bem jurídico de terceiro, ainda que para salvar outro bem jurídico, devendo suportar os riscos inerentes à sua função. Ex: não pode um bombeiro de posse de todo material contra incêndio destruir a casa da vizinha, quando possível fazê-lo de forma menos lesiva, ainda que mais arriscada à sua pessoa. Essa regra deve ser interpretada com bom senso, pois não se podem admitir situações extremas e heroicas como adentrar no mar com tsunami para salvar uma pessoa. 2.4.5. Fato necessitado: preenchidos os requisitos já abordados, o agente poderá praticar o fato necessitado, ou seja, a conduta lesiva a outro bem jurídico. Esse fato deve observar dois requisitos: a) inevitabilidade do perigo por outro modo; b) proporcionalidade. - Inevitabilidade do Perigo por outro modo: o fato necessitado deve ser absolutamente imprescindível para evitar lesão ao bem jurídico, ou seja, se for possível afastar o perigo de outro modo, a ser aferido com juízo do homem médio, por ele deve optar o agente. Ex: se para fugir ao ataque de um boi, pode o agente pular a cerca ao invés de matar o animal. Na análise do dano ao bem jurídico deve ser escolhido o menor dano possível. - Proporcionalidade: também conhecido como razoabilidade, refere-se ao cotejo dos valores, ou seja, a relação de importância entre o bem jurídico sacrificado e o bem jurídico preservado no caso contrato. Ex: vida humana vale mais que um patrimônio. O magistrado sempre vai decidir usando o juízo do homem médio. 2.5. Causa de Diminuição de Pena: o artigo 24 §2º diz que embora razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. Aqui nesse caso o agente “sacrifica” bem de maior valor ao bem jurídico protegido. Não há exclusão do crime. Casos conhecidos como estado de necessidade exculpante. 2.6. Espécies de Estado de Necessidade: a divisão do estado de necessidade leva em conta diversos critérios: 2.6.1. Quanto ao bem sacrificado: a) justificante: o bem sacrificado é de igual valor igual ou inferior ao preservado, excluindo a ilicitude. b) exculpante: o bem sacrificado é de valor superior ao preservado. Causa diminuição de pena. Todavia, pode afastar a culpabilidade pela inexigibilidade de conduta diversa. 2.6.2. Quanto à titularidade do bem jurídico preservado: a) próprio: protege-se o bem jurídico pertencente ao autor do fato necessitado. b) de terceiro: o autor do fato necessitado tutela bem jurídico alheio. 2.6.3. Quanto à origem da situação de perigo: quem suporta o fato típico. a) agressivo: é aquele em que o agente, para preservar bem jurídico próprio ou de terceira pessoa, pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente a terceiro. Neste caso, o autor do fato necessitado, embora não seja o responsável pelo perigo, deve indenizar civilmente o dano suportado pelo terceiro, e ingressar com ação regressiva contra o causador do perigo (art. 929 e 930 do CC). b) defensivo: é aquele em que o agente, visando a proteção de bem jurídico próprio ou de terceiro, pratica o fato necessitado contra bem jurídico pertencente àquele que provocou o perigo. Obviamente, não há obrigação de indenizar. 2.6.3. Quanto ao aspecto subjetivo do agente: essa classificação diz respeito à ciência por parte do autor do fato necessitado. a) Real: a situação de perigo efetivamente existe, e dela o agente tem conhecimento, exclui a ilicitude. b) Putativo: não existe a situação de necessidade, mas o autor do fato típico a considera presente, por falsa percepção da realidade que o cerca, supõe situação de fato, que se existisse, tornaria a sua ação legítima. Seria então uma descriminante putativa por erro de tipo, se invencível ou escusável o erro, exclui-se o dolo e a culpa, acarretando na atipicidade do fato. Mas se for vencível ou inescusável o erro, afasta-se o dolo, substituindo a responsabilidade por crime culposo se previsto em lei. 2.7. Estado de Necessidade Recíproco: é quando duas ou mais pessoas estão em estado de necessidade ao mesmo tempo, umas contra as outras. O Estado não toma partido de nenhum dos indivíduos, cujos interesses são legítimos. Ex: o caso dos exploradores de cavernas. 2.8. Casos específicos de Estado de Necessidade: - Já falamos sobre as excludentes de ilicitude genéricas ou gerais, assim como nas excludentes específicas ou especiais. No artigo 128, I, do CP sobre o crime de aborto, considera-se aborto necessário ou terapêutico aquele utilizado para salvar a vida da gestante. - De igual modo o constrangimento ilegal, previsto no artigo 146, §3º, diz não configurar o tipo penal a intervenção cirúrgica sem consentimento do paciente ou representante legal, se iminente o perigo de vida. 2.9. Estado de Necessidade e Erro na Execução: - O estado de necessidade é compatível com a aberratio ictus (art. 73 do CP), na qual o agente por erro ou no uso dos meios de execução, atinge pessoa ou objeto diverso do desejado, com o propósito de afastar a situação de perigo a bem jurídico próprio ou de terceiro. Ex: momento em que vai ser atacado por um cão, efetua disparos e acaba acertando uma pessoa que passava pelo local. Não será responsabilizado pelas lesões produzidas, em face da excludente de ilicitude. 2.10. Estado de Necessidade e Dificuldades Econômicas - A dificuldade econômica é uma debilidade da capacidade aquisitiva, não sendo necessidade vital ou primária, podendo a carência ser satisfeita por meio de atividade lícita. No estado de necessidade o agente é compelido a praticar um fato típico para afastar situação de perigo atual ou iminente, involuntário e inevitável, capaz de afetar bem jurídico próprio ou de terceiro, cujo sacrifício é inexigível. A dificuldade econômica mesmo com miserabilidade não configura estado de necessidade. - Obs: em casos excepcionais admite-se a prática de um fato típico previsto como medida inevitável, para satisfação de necessidade estritamente vital, que mesmo com o esforço, a pessoa não conseguiu superara de forma lícita, a exemplo do furto famélico, em que o agente subtrai alimentos para saciar sua fome ou de pessoa a ele ligada por laços de parentesco ou amizade.
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