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Pesquisa História Na Educação Física V 4 - Amarílio Ferreria Neto (Org )

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Amarílio Ferreira Neto (org.)
Ana Carrilho R. Grunennvaldt
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Homero Luís Alves de Lima
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Luciano Mendes Faria Filho
Pierre Normando Gomes da Silva
Tarcísio Mauro Vago
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FICHA CATALOGRÁFICA: BIBLIOTECA FACHA
P474 Pesquisa histórica na educação física, vol. 4 / Amarilio Ferreira
Neto,(org.). Aracruz! ES: FACHA, 1999.
p. 169
1. Educação física - Pesquisa. 2. Educação Física -
historiografia, l. Ferreira Neto, Amarilio.
CDU: 796(81 )(Ô91)
Reg. 006779
Conselho Editorial: Amarílio Ferreira Neto
Carmen Lúcia Soares
Eustáquia Salvadora de Souza
Fernanda Paiva
Tarcísio Mauro Vago
Victor Andrade de Melo
Editoração Eletrônica: Amarilio Ferreira Neto
Márcio Schneider Machado
Revisão do Texto: Alina da Silva Bonella
Capa: Cristina Xavier
© Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz
Sumário
Apresentação
A Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na Conformação de
um Corpo Civilizado no Século XIX
Luciano Mendes Faria Filho
Carla Simone Chamon 5
Compendio de Gymnastica Escolar: o Corpo e a Pedagogia no
Inicio do Século XX
Pierre Normando Gomes da Silva 27
Estratégias de Formação de Professores de Gymnastica em Minas
Gerais na Década de 1920: Produzindo o Especialista
Tarcísio Mauro Vago 51
Escola Normal de Sergipe: a Educação Física e as Normalistas
Ana Carrilho Romero Grunennvaldt 79
A Psicologia e a Educação Física em Lourenço Filho
Amarílio Ferreira Neto 97
Pensamento Epistemológico da Educação Física Brasileira: Uma
Análise Crítica
Homero Luis Alves de Lima 117
Uma Rima Dá História...
Fernanda Paiva 139
Biblioteca
Apresentação
A História sempre tem outra parte... Felizmente, estamos
trazendo a um público cada vez mais amplo e especializado o
"Pesquisa Histórica na Educação Física", volume 4. Novas fontes,
saberes, instituições, atores sociais até então intocados pela pesquisa
na Educação Física brasileira.
Esta outra parte é apresentada, discutida, interpretada, a partir
de olhares e experiências de pesquisa diversificadas no âmbito da
Educação e da Educação Física por co-autores já conhecidos nos
volumes anteriores, situação de Amarílio Ferreira Neto, Fernanda Paiva
e Tarcíso Mauro Vago. Mantendo um princípio fundamental desde o
primeiro volume desta produção, solicitamos, no sentido de renovar e
qualificar o debate, ao mesmo tempo, as contribuições de Ana Carrilho
Romero Grunennvaldt, Carla Simone Chamon, Homero Luís Alves de
Lima, Lucíano Mendes Faria Filho e Pierre Normando Gomes da Silva.
Foi gratificante a abordagem dos originais, dado que ficou patente,
logo, o esmero com que esses novos co-autores prepararam seus
textos. Sou grato pela atenção de todos.
Este livro é um intertexto que dialoga em muitos pontos com os
três volumes anteriores de modo que sua organização interna procura
articular, complementarmente, os co-autores que aqui se expõem ao
tempo que preenche lacunas, limites do estágio atual da pesquisa
histórica. Isso, garantindo-se o espaço da diferença teórico-
metodológica consistente e necessária à consolidação do nosso modo
de fazer e veicular o conhecimento.
Luciano Mendes Faria Filho e Carla Simone Chamon, em "A
Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na Conformação de um
Corpo Civilizado no Século XIX", a partir de fontes primárias,
explicitam como a instituição escolar e as festas cívicas, em seu agir
pedagógico, conformam uma corporeidade civilizada nas primeiras
décadas do século XIX, em Minas Gerais. Pretendem, ainda, indicar
novos caminhos para a pesquisa de racionalidades e apropriação
diferenciada do fenómeno educacional.
Pierre Normando Gomes da Silva em " Compendio de
Gymnastica Escolar: o Corpo e a Pedagogia no Início do Século
XX", discute em pormenor o "Compêndio de Gymnastica Escolar:
methodo sueco-belga-brasileiro"', publicado em 1896 e reeditado até
1934, do professor da Escola Normal do Rio de Janeiro, Arthur Higgins.
Essa obra não se constitui apenas num manual pedagógico que foi
indicado oficialmente como livro didático para as escolas públicas do
município do Rio de Janeiro, mas nela está contida a compreensão de
corpo e de atividade física daquela época. Também explicita, através
da sistematização pedagógica, a implantação do projeto de civilidade
burguesa, instalado no Distrito Federal, que tinha a finalidade capitalista
de substituir os hábitos corporais do povo brasileiro por aqueles dos
países industrializados.
Tarcísio Mauro Vago, com "Estratégias de Formação de
Professores de Gymnastica em Minas Gerais na Década de
1920: Produzindo o Especialista", pretende dar continuidade àquele
estudo publicado no "Pesquisa Histórica na Educação Física",
volume 2, sobre o processo de escolarização da ginástica nas escolas
normais mineiras, entre 1883 e 1918, focalizando agora a década de
1920, destacando algumas estratégias mobilizadas para a formação do
professorado para atuar no ensino de Educação Física nas escolas
primárias. Paulatinamente, essas estratégias conduzem à produção do
professor especialista em Educação Física e, dentre elas, destacam-se
as reformas do ensino (primário e normal), a publicação e circulação da
Revista do Ensino, a criação da Inspetoria de Educação Física e o
Curso de Aperfeiçoamento. São os documentos relativos a essas
estratégias que constituem fontes deste trabalho preliminar.
Ana Carrilho Romero Grunennvaldt, em "Escola Normal de
Sergipe: a Educação Física e as Normalistas", aborda a Escola
Normal de Sergipe como uma das instituições que servem de base para
o processo da instrução pública no Estado, principalmente no que se
refere à democratização e interiorização do ensino, pois eram as
normalistas recém-formadas que partiam para os sertões, no intuito de
iniciar e implementar a instrução pública nesses povoados distantes.
Este estudo tem por objetivo resgatar e registrar a memória da
Educação Física em Sergipe, com ênfase numa instituição - Escola
Normal de Sergipe.
Amarílio Ferreira Neto, em "A Psicologia e a Educação
Física em Lourenço Filho", a partir das bases da Educação Física
brasileira, na forma concebida por Inezil Penna Marinho, levanta e
discute a produção de Lourenço Filho sobre a contribuição da
Psicologia para a Educação Física. Já aí, é possível captar uma
tentativa de demonstração da insuficiência da Biologia como forma
exclusiva de se explicar a educação e a Educação Física,
especialmente quando a Biologia é confrontada com a prática
hipótese de que o pensamento pedagógico na Educação Física ocorre
a partir da Biologia e da incorporação crescente das Ciências Sociais
entre o século XIX e XX.
Homero Luis Alves de Lima, em "Pensamento
Epistemológico da Educação Física Brasileira: uma Análise
Crítica", analisa o pensamento epistemológico da Educação Física
brasileira. Interroga sobre as condições de possibilidade de constituição
de um campo científico, centrado nas práticas corporais, que substitua
a's abordagens disciplinares que tradicionalmente deram sustentação
teórico-científica à Educação Física. Todavia, a abrangência do campo
- tenha ele como objeto, a motricidade humana, o movimento humano,
os esportes, etc. -, ao permitir a incursão das ciências já constituídas,
aponta para a inviabilidade da construção de uma ciência específica. A
pesquisa, ao invocar Nietzsche e Foucault, lança suspeitas sobre a
ambição de poder que a pretensão de cientificidade poderá estar
engendrando. Sugere, então, que a problemática da legitimidade
académica e social da Educação Física seja retomada pela via da
discussão ética e estética do corpo.
Fernanda Paiva, em "Uma Rima Dá História...", propõe-se a
refletir sobre Teoria da História aplicada à Educação e Educação
Física. Para tanto, opondo ao formalismo académico uma abordagem
simultaneamente sintética e poética, busca pensar: para que História?
Como não se deve dar a escrita da História? Existe uma História ou faz
sentido pensar em Histórias de ...? Paraque História da Educação?
História e História da Educação: o que falam à Educação Física?
Temos, no conjunto dos textos deste livro um universo imenso
de problemas para novas pesquisas desses e de outros autores. O que
os leitores dos campos da Educação e Educação Física,
especialmente, hão de conferir... na quinta parte. A História sempre tem
outra parte...
Vitória, 11 de agosto de 1999.
Amarílio Ferreira Neto - Organizador
r
A Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na
Conformação de um Corpo Civilizado no Século XIX
Luciano Mendes de Faria Filho
Professor da Universidade Federal de Minas Gerais
Doutor em Educação - USP
Carla Simone Chamon
Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica - MG
Mestre em História - UFMG
Introdução
Neste texto, propomo-nos a discutir as distintas racionalidades
que informam as práticas escolares e/ou cívicas que tinham, dentre
outras intencionalidades, a conformação de uma corpo civilizado, em
Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XIX.
Ocupamo-nos, inicialmente, das práticas escolares,
organizadas segundo os preceitos do método monitorial ou mútuo,
pretendendo indicar as relações entre os processos escolares, a
ocupação do tempo e do espaço e as propostas de produção de uma
corporeidade dita civilizada. Na segunda parte do texto, nossa atenção
volta-se para os festejos cívicos na tentativa de compreender como a
festa buscava imprimir nos corpos uma ocupação cívica do espaço
público.
Em ambos os casos, ou seja, tanto na instituição escolar
quanto nas festas cívicas, nossa pretensão é a de indicar possíveis
pistas para pesquisas, entradas possíveis para o entendimento de uma
complexa teia de relações entre processos racionalmente idealizados e
apropriações diferenciadas realizadas pelos diversos sujeitos
envolvidos.
Método Mútuo e Escolarização dos Corpos
No que se refere à escolarização dos corpos, ou seja, o
processo sistemático de produção de uma corporeidade tipicamente
escolar, vários estudos têm demonstrado ser esta uma das facetas
mais importantes do processo de escolarização na modernidade
(Louro,1995).
Interessa-nos aqui, de forma particular, discutir essa questão a
partir das possibilidades apresentadas pela análise de um momento
específico e bastante exemplar da escolarização no Brasil, no século
XIX. Trata-se, no presente caso, de analisar as formas de
submetimento e educação dos corpos enunciadas, postas em
circulação e/ou praticadas no interior daquilo que se convencionou
denominar, na história da educação, de método monitorial ou mútuo.
Em síntese, o método monitorial ou mútuo consiste,
basicamente, numa proposta na qual o professor utiliza os alunos mais
adiantados para ensinar àqueles que estão num nível inferior da
aprendizagem de determinado conteúdo. O professor trabalharia com
os alunos-monitores e estes, por sua vez, trabalhariam, cada um, com
uma turma de "colegas", daí a denominação monitorial ou mútuo.
Busca-se com esse método a superação do ensino individual que até,
então, imperava, no qual o professor, mesmo tendo uma turma de
vários alunos, "ensinava" as matérias para cada um deles
individualmente (Bastos e Faria Filho, 1999).
As primeiras elaborações sobre esse método datam do final do
século XVIII, na Europa, sendo que sua "chegada" ao Brasil ocorre nas
primeiras décadas dos oitocentos. Em Minas, conforme pudemos
observar em outra ocasião (Faria Filho e Miranda Rosa, 1999), os
primeiros contatos com o método mútuo datam da década de 20 do
século XIX.
A primeira notícia que temos sobre a presença do método de
ensino mútuo, na Província de Minas Gerais, encontra-se numa portaria
de 29 de abril de 1823 quando, acompanhando o movimento que se
fazia em relação a esse método em várias outras Províncias, decide-se
retirar um soldado da "tropa de linha" para aprender o sistema
lancasteriano e praticá-lo nas aulas públicas (Lima, 1927, p.45).
Dois anos depois, em 1825, o método mútuo recebe aquela
que registramos ser a sua maior propaganda em terras mineiras, a
publicação, pelo jornal O Universal, de uma série de artigos sobre as
vantagens desse método em relação ao método individual. De 18 de
julho a 22 de agosto daquele ano, o jornal publica uma extensa matéria
intitulada Educação Elementar. Ao que tudo indica, essa matéria foi
reproduzida no jornal pelo seu editor, apontado por muitos como sendo
Bernardo Pereira de Vasconcelos, futuro membro do Conselho Superior
da Província mineira, Senador do Império e, sem dúvida, um dos mais
influentes políticos mineiros na primeira metade do século XIX.
O texto Educação Elementar está organizado em cinco partes,
a saber: Introdução, Origem do novo sistema em Inglaterra, Princípios
em que se funda esse sistema, Emprego das diferentes classes de
meninos na escola. Este último tópico inclui um subitem denominado
"Disciplina das escolas. Prémio".
No primeiro número do jornal, antes mesmo de iniciar a
matéria, o editor explicita seus propósitos afirmando:
Como estão a estabelecer nesta Província duas escolas de ensino
mútuo, a que algumas pessoas de consideração chamam mudo,
julguei, que faria um serviço ao público, transcrevendo algumas
lições de tão importante ensino. A vista destas lições se convencerão
os incrédulos, de quanto convém promover, e generalizar na
Província este ensino (18-7- 1825).
Este propósito de convencimento sobre a superioridade do
método reaparece, agora na matéria propriamente dita, logo no primeiro
parágrafo, quando, muito rapidamente, faz-se um diagnóstico da
situação da instrução pública no Brasil:
O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil,
desde o seu descobrimento, tem sido mui dispendioso, e mui
delimitado; ainda sem notar outros defeitos, que de tempos em
tempos se tem conhecido, e se tem tentado remediar com algumas
providências oportunas (18-07- 1825).
É abordada também a questão da" necessidade de estender a instrução
para as "classes inferiores" da sociedade, no que o método é
apresentado como sendo de grande vantagem:
Não pode deixar de conhecer-se a vantagem, que toda a sociedade
tira destes estabelecimentos na Inglaterra, quando se visitam as
escolas. Os meninos, e as meninas, aprendendo a ler, escrever e
contar, segundo o novo sistema, se habituam necessariamente a um
comportamento bem regulado de obediência, e de subordinação
metódica de uma classes a outras; a promoção dos indivíduos não
só produz a emulação, mas acostuma-os a olhar o merecimento
próprio, como para um bom caminho seguro de se avantajar: a
prática de obrar metodicamente, e de mandar numa classe ao
mesmo tempo em que obedece a outra, necessariamente dá aos
meninos um conhecimento refletfírin rin .initn o rin iniuetn- o «,,^«w« „
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menino tem adquirido os elementos de primeiras letras, que lhe são
de tanto uso, de tão grandes vantagens em todas as ocupações da
vida, está igualmente disposto a ser um cidadão útil, obediente, e
morigerado (18- 7).
No entanto, afirma o autor do texto, para realizar esse fim é
preciso enfrentar um grande problema:
O problema, pois, que há de resolver é: como se poderá generalizar
uma boa educação elementar, sem grandes despesas do Governo, e
sem que tire as classes trabalhadoras o tempo, que é necessário que
empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas ocupações? (18 - 7).
Por isso, nada melhor que o método mútuo que, além de
permitir uma grande economia de recursos, pois um professor poderia
trabalhar com novecentos ou mil discípulos, também representa uma
enorme economia de tempo. Sintetizando os fatores de sucesso do
novo método, afirma:
Três causas contribuem para essa brevidade do ensino: 1a é a
aplicação bem sucedida da disciplina na escola; T a emulação bem
dirigida; e 3a não retardar os progressos do discípulo de mais talento
fazendo-o esperar pelos outros de menor engenho (18- 7).
Na terceira parte da matéria, principiada no dia 27 de julho,
sob o título de princípios em que se funda esse sistema, o autor expõe
o que, a nosso ver, constitui o cerne da proposta defendida. O texto
inicia-secom a seguinte síntese:
Dissemos já, que o novo método de educação que nos propusemos
a explicar, tem em vista três grandes vantagens. 1a abreviar o tempo
necessário para a educação das crianças; 2a diminuir as despesas
das escolas; 3a generalizar a instrução necessária às classes
inferiores da sociedade (27 - 7).
Com o desenvolver do texto, a partir das dimensões espaço-
temporais do método, o autor propõe-se a demonstrar a partir de que
elementos centrais ele se organiza, apresentando as ideias em relação
à sala de aula, aos materiais necessários, à divisão das classes, ao
papel dos decuriões, ao tempo, dentre outros aspectos.
Em relação à sala, ele afirma:
Para obter estes fins é necessário, em primeiro lugar, que a sala da
escola seja construída e mobiliada da maneira mais conveniente a
por em prática o novo plano.
A sala deve ser um paralelogramo, proporcionado ao número dos
meninos; pouco mais ou menos dois pés quadrados para cada um (27 - 7).
Diz ainda ser necessário um número grande de janelas e que
estas devem ser suficientemente altas para que os meninos não
possam enxergar o que se passa fora do recinto escolar e, assim, se
distraírem.
Quanto às classes.afirma:
A divisão dos meninos em classes se fundamenta neste princípio:
que todos os meninos que ocupam uma classe tenham os mesmos
conhecimentos, e que logo que algum sobressaia aos demais seja
passado para a outra superior. Os decuriões de cada classe são
tirados da classe superior e cada decurião tem um ajudante que é o
menino mais bem instruído da classe que esse decurião ensina (27- 7).
Com referência ao tempo, assim se posicionou:
Outra divisão fundamental, neste sistema, é a do tempo. Os meninos
entrarão na escola às 9 horas da manhã; e duas horas depois do
jantar. Ao entrar no escola tirarão o chapéu, que fica pendurado nas
costas pelo barbichelo. Quando o relógio bate a hora, cada menino
toma o seu lugar na classe que lhe compete. Um dos meninos reza
uma oração, que toda a escola repete. Daí começarão os exercícios
alternativamente de ler e escrever. A escrita nos bancos; a leitura
junto ao lugar da escola aonde está a carta; saindo os meninos dos
bancos em fileira; a formar sem confusão, um semicírculo junto da
carta e o decurião com o ponteio na mão; na mesma ordem voltam
par ao banco, a continuar a escrita (1 - 8).
Finalmente, nos dias 17, 19 e 22 de agosto de 1825, são
publicadas as últimas matérias da série, abordando a questão da
"Disciplina das escolas. Prémio". Elas têm como início o seguinte
parágrafo:
Neste artigo temos de observar três coisas: os prémios, os castigos e
averiguação das faltas. Nas escolas mui numerosas faz-se
sumamente difícil o Mestre atentar por estas coisas com as
necessárias exatidão; e o método, que sobre isto se tem adotado nas
novas escolas, tem a vantagem de aliviar todas as dificuldades,
10 '
, facilitar o trabalho do mestre e melhorar muitíssimo a condição moral
' dos discípulos.
Na continuação da matéria, chama-se, mais uma vez, a
atenção para a centralidade da emulação, dos prémios e dos castigos,
ocasião em que se expõe detalhadamente a forma como a disciplina
deve funcionar na escola, propondo-se o controle e a emulação entre
0$"alunos e entre as classes como sendo a pedra de toque da mesma.
Como último aspecto, faz uma severa crítica aos professores que se
distanciam dps alunos, apresentando-se como carrascos dos mesmos.
l̂ pCqÇQSto, então, uma maior aproximação entre mestres e discípulos.
. Menos de um mês após o término da publicação dessa longa
.^matéria, em 14 de setembro, o jornal voltou a colocar em circulação
outra notípia sobre o método mútuo. Tratava-se, na ocasião, de um
ofício do Imperador enviado a todos os Presidentes de Província,
incentivando a adoção do método mútuo de ensino.
Dois anos depois, conforme sabemos, veio a público aquela
que seria a principal estratégia de divulgação e de expansão do método
de ensino mútuo no País: a Lei de 15 de outubro de 1827. Essa Lei
determina a criação de escolas de primeiras letras nas principais vilas e
ci,dj|tles do Império e a obrigatoriedade da utilização do método mútuo.
No "seu artigo 15, afirma-se que "estas escolas serão regidas pelos
estatutos atuais no que se não opuserem à presente lei; os castigos
serão os praticados pelo método de Lancaster".
Ao que tudo indica, para efetuar essa determinação e
normalizar o uso dos castigos, o Conselho Superior da Província
manda publicar, em 1829, um pequeno livro, de não mais que quatorze
páginas, tendo como titulo: Castigos Lancasterianos - Em
consequência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da
Província de Minas Gerais, mandado executar pelos Mestres de 1as.
Letras e de Gramática Latina.1
No livro, como o próprio título o indica, são estabelecidos e
descritos minuciosamente os castigos lancasterianos a serem utilizados
nas escolas da Província. Nele podemos perceber, mais uma vez, que
o grande problema imposto pelo método mútuo refere-se à questão da
ordem nas escolas. Nestas, a questão do tempo e a ocupação do
espaço, experienciadas no ritmo, no entrelaçamento entre os meninos e
1 Devemos a Elizabeth Madureira, professora da Universidade Federal do Mato Grosso,
a indicação desse livro. Somos-lhe muito gratos porque, muito gentilmente, enviou-nos
11
as classes, no vaivém dos discípulos, devem merecer a contínua
vigilância:
Principais faltas que ocorrem nas aulas:
Será muito impróprio os discípulos perderem seu tempo, ou a
estarem a conversar, porque eles não podem falar e aprender ao
mesmo tempo.
Em qualquer aula que os discípulos estiveram a conversar, isto se
decidirá como uma grande ofensa, e se evitará com uma exata
inspeção (Minas Gerais, 1829, p. 10-1).
Para a imposição da ordem, além dos castigos, de natureza
física e ou moral, os quais chamam a atenção pela extrema crueldade,
defende-se com veemência o estabelecimento da hierarquia entre os
alunos e a obediência estrita à mesma, enfatizando a importância de os
decuriões não descuidarem da execução de suas tarefas. Como parte
das estratégias de disciplina e controle aparece, com grande
centralidade, mais uma vez, a ideia da emulação, da competição entre
os meninos.
Apesar da intensa propaganda sobre a superioridade do
método, ao que tudo indica, a maioria das escolas, mesmo na capital
da Província, Ouro Preto, continuaram a trabalhar segundo o método
de ensino individual. O relatório de 1835 do Presidente da Província dá-
nos algumas informações sobre as escolas de primeiras letras em
Minas Gerais. Nele observamos que, enquanto o número de escolas de
ensino mútuo eram apenas nove, as de ensino individual para meninos
eram 108 e para meninas eram 13. As de ensino mútuo atendiam a 635
meninos (média de 70,5 por escola), as de ensino individual de
meninos atendiam a 2.239 (média de 20,7 por escola) e as escolas de
ensino individual para meninas atendiam a 236 (média de 18,2 por
escola). Esses números de meninos ou meninas das escolas nos
mostram que uma escola de ensino mútuo, apesar de atender mais de
3,5 vezes o número de meninos ou meninas atendidos por uma de
ensino individual, está longe de ser frequentada por uma "multidão"
deles, conforme preconizado quando da sua defesa.
Ainda nesse mesmo ano, noutra matéria, o jornal voltaria a
criticar, na sessão Variedades, os métodos disciplinares empregados
nas escolas, condenando a violência dos mesmos, atingindo, também,
indiretamente, o método mútuo dado o caráter extremamente violento
das prescrições mandadas publicar pelo Conselho do Governo da
Província, conforme vimos. Dizia a matéria:
12
Bem que os castigos corporais sejam por sua natureza muito
próprios para inspirar o medo, e para conter certos espíritos indóceis
e tenazes, devemos fugir de empregar meios, que a humanidade ou
o pudor reprova, meios muito mais próprios para aviltar o homem, do
que para inspirar-lhe sentimentos de honra, e delicadeza. O mal
irreparável, e a educação errada, logo que já não se pode dirigir o
menino, senão com a vara na mão; neste caso, não resta outro
partidopara o estabelecimento a fim de evitar exemplos perigosos,
senão reenviar o menino a seus pais, que se verão forçados a dar-
lhe um desses empregos rudes, dependentes, capazes de dominar
os espíritos mais indomáveis: tal como a condição de militar, ou do
marinheiro (Suzanne Education -24-7- 1835).
Este clima de questionamento do método pode ser observado
também no fato de que, na Lei Provincial n° 13, a primeira legislação
mineira sobre instrução pública, não se determina a utilização de
nenhum método, ficando, ao que aparece, a escolha a cargo do
professor.
Aqui também, em consonância com aquilo que foi observado
em estudos relativos a outros países, toda a "movimentação" em torno
do método corresponde a uma perspectiva educacional mais ampla, de
verdadeira civilização do povo, sobretudo daquela parcela identificada
como as "classes inferiores" da sociedade. Nesta perspectiva
civilizatória, outro lugar para o corpo é reservado...uma outra
corporeidade precisa ser produzida.
No que se refere ao método mútuo, a questão da
escolarização dos corpos pode ser observada no controle restrito sobre
os mesmos a partir do esquadrinharnepto da ação educativa no tempo
e no espaço. Relacionada a essas dimensões está a dimensão
discursiva da escola, uma espécie de linguagem pedagógica,
instituidora e legitimadora de representações sobre a escola e a
corporeidade.
Com relação ao tempo, conforme pudemos observar, a busca
de uma maior "produtividade escolar" passa centralmente pelo controle
estrito do corpo do aluno, de tal forma que é preciso que o mesmo
aprenda, incorpore, torne corpo uma dimensão temporal organizada em
novas bases, a do tempo controlado, dividido, esquadrinhado. Não é
sem razão que boa parte das elaborações do método e, sobretudo, a
respeito dos castigos, visam a ensinar que o tempo é precioso e, mais
que isso, que o tempo precisa ser utilizado racional e funcionalmente.
No entanto, isso não pode realizar-se sem o concurso de um
—»„!„ *«^kAm 0cn,Qn!firn cnhrp nutra das dimensões estruturantes
13
da escola: a dimensão espacial. É na conjugação dessas duas
dimensões que trabalha o método sobre o corpo. Vejamos um exemplo,
no que se refere aos castigos:
Instrumentos e Modos de Castigos Lancasterianos
Quando uma ofensa se perpetre muitas vezes, depois da
admoestação, o decurião a quem o ofensor apresentar bilhete lhe
porá um pedaço de pau á roda do pescoço, que lhe servirá como
gonilha, e com isto se manda para o seu lugar. Este pau pesará
desde 4 a 6 arráteis, pouco mais ou menos. O pescoço não se
oprime, mas deve por-se de sorte que, voltando ele a cabeça para a
direita ou esquerda, isto lhe embarace o pescoço. Em quanto que o
pau descansa sobre os ombros, sempre se conserva no equilíbrio,
mas com o mais leve movimento perde-se, e o pau opera como um
peso morto. Assim ele será obrigado a sentar-se em sua verdadeira
posição, e continuar com o seu trabalho.
Das Cadeias de Pau
Quando o castigo de pau no pescoço é inútil, se amarram as pernas
dos ofensores juntas com cadeias de pau, uma ou mais conforme a
ofensa. Esta cadeia é um pedaço de pau; de um pé de comprido e
seis ou oito polegadas de grosso, amarrado a cada perna. Quando
tiver a cadeia não poderá andar senão muito devagar; sendo
obrigado a fazer seis passos no tempo em que, estando em
liberdade faria dois. Estando preparado é obrigado a passear ao
redor da aula até estar cansado, então pede liberdade, e promete
comportar-se melhor para o futuro: com isto se manda para o seu
lugar para continuar com o seu trabalho. Se este castigo não tiver o
desejado efeito , então se amarrará á mão esquerda atrás das
costas, ou se amarrarão cadeias de pau, de cotovelo a cotovelo,
atrás das costas. Algumas vezes se amarrarão as pernas juntas.
Este é um excelente castigo para aqueles discípulos que saem dos
seus lugares, e vão andar passeando pela aula.
Observe-se aí a incidência da preocupação em disciplinar o
corpo, em produzir um corpo dócil e sujeitado à escola e às suas
determinações específicas. Sair do lugar, andar e conversar são
práticas subversivas da boa ordem escolar as quais precisam ser
sumariamente combatidas. É interessante que o combate se dê,
também, pela instituição de práticas disciplinares que impliquem
movimento, mas um movimento que obrigue o corpo a curvar-se, literal
e simbolicamente, à ordem escolar.
14
Há que se considerar, no entanto, como fazem diversos dos
estudos sobre o método mútuo, que as questões relativas à produção
de um novo corpo não está relacionada apenas com os processos de
escolarização no sentido estrito, estando, antes disso, relacionadas
com a própria racionalidade capitalista. Nesse sentido, cumpre chamar
a atenção para dois aspectos importantes.
Em primeiro lugar, muitos estudos enfatizam a íntima relação
existente entre a organização dos processos produtivos fabris e a
organização da instituição escolar, demonstrando que as elaborações
em torno do método mútuo significam uma clara apropriação, para o
terreno da escola, daquilo que estava ocorrendo na fábrica. Isso pode
ser percebido também em Minas Gerais, apesar da ausência quase
absoluta de experiências fabris entre nós. É significativo, por exemplo,
que o mesmo jornal que faz a intensa propaganda do método mútuo,
também o faça da nova organização do trabalho tal qual vinha
ocorrendo na Europa, centrando algumas de suas reflexões sobre as
propostas de A. Smith sobre a divisão do trabalho.
Em segundo lugar, naquele momento histórico, em Minas
Gerais, outros discursos sobre a necessidade de uma Educação Física
eram postos em circulação, muitas vezes utilizando os mesmos
veículos de divulgação daqueles anteriormente relacionados. Assim,
encontramos uma muito interessante matéria publicada n'0 Universal,
nos meses de outubro e novembro de 1825, respectivamente nos
números 43,44,46 e 47.
Trata-se de uma resenha, de autoria ao que tudo indica do
próprio redator do jornal, a respeito de um fraíado de Educação Física,
escrito por António Gonçalves Gomide, em decorrência de uma
conclamação do Conselho do Governo da Província de Minas Gerais. A
resenha inicia-se da seguinte forma:
Reflexões sobre o Tratado de Educação Física
O Exmo. Conselho do Governo desta Província, solícito pelo exato
cumprimento de seus deveres, e convencido da grande ignorância,
que nela grassa, resolveu a composição de um Tratado de Educação
Física, Intelectual e Mora/; e que impresso fosse distribuído pelos
habitantes da Província. Foram convidados para essa composição as
pessoas ma/s acreditadas por seu saber, como melhor consta do
Diário do Conselho N° XIV. O Ilustre Mineiro o Sr. António Gonçalves
Gomide ofereceu o Tratado, que fez p objeto das presentes
reflexões, em limitado espaço de oito dias, e mereceu a preferência a
outro que tão bem compôs o benemérito Manoel José Pires da Silva
ís amo/o, e compreens/Vo.
15
Em continuidade, o autor da resenha critica a resposta
negativa de certas pessoas à conclamação do Conselho e afirma que,
apesar das falhas que serão apontadas no tratado, o mesmo "é sem
dúvida um dos grandes benefícios que nos poderia fazer o Exmo.
Conselho do Governo".
Na matéria seguinte, intitulada "Continuação das Reflexões
sobre o Tratado de Educação Física", o autor principia dizendo que
"com razão dizia Descartes, que só na medicina se podia achar o meio
de regenerar a espécie humana", louvando os progressos dessa
ciência, anunciando, ainda, que o tratado ora em discussão ocupa-se
das regras da Educação Física desde a concepção.
A seguir, afirma que
... cumpre observar, que o maior defeito da obra é a linguagem
inteiramente técnica em que é escrita. Daqui resulta, que se torna
incompreensível a maior parte dos leitores, para quem foi
recomendada: com efeito como poderá o rústico lavrador entender
as expressões embriões, feto, pletora, estuação, zea mais, e outras
sem as necessárias explicações? É sem dúvida nesta parte
indesculpável o Autor.2
Continua o autor da resenha chamando a atenção para a
ausência, ou aprofundamento, de assuntos comoa questão da
necessidade de cuidados com o casamento, e a importância de se
observar o "tempo mais próprio para a fecundação. Relata a seguir a
forma como o autor do tratado refere-se à prenhez, criticando seu
método de exposição. Critica também o tratado por recomendar "nada
de aperto, e principalmente sobre o ventre", dizendo ser isso um grande
engano, um vez que a utilização de largas cintas que servem para
sustentar e aliviar o peso do ventre, serem francamente
recomendáveis, sob pena de as mulheres ficarem disformes por uma só
prenhez.
No número seguinte do jornal, o de número 46, continuam as
reflexões sobre o tratado. Cobra-se o fato de o autor não ter levado em
conta as diferenças de regimes de vida (sedentária ou ociosa) e de
temperamentos entre as mulheres e entre as estações do ano (tempo
quente ou frio), ao prescrever os métodos de tratamento, criticando a
2 Para uma reflexão aprofundada sobre a questão da linguagem e os jargões utilizados
fim riiwprcac nrnficc/Soc v
16
ausência de uma recomendação sobre a necessidade especial, das
mulheres, em relação ao sono, mais ainda na situação de prenhez.
"Vamos já à educação do ensino depois que sai à luz", assim
inicia a última parte da matéria sobre o tratado em questão. Fala-se
sobre o pranto do recém-nascido, as suas dificuldades com o novo
ambiente e os cuidados que se devem ter com a criança e com a mãe
no momento do parto e do imediato pós-parto. Termina o texto por
elogiar as recomendações do autor do tratado a respeito do "embiho do
recém-nascido", cobrando, porém, uma maior extensão do texto a esse
respeito.
A resenha permite-nos fazer algumas reflexões. Em primeiro
lugar, o que o autor chama de Educação Física? Sem dúvida, estamos
num momento ainda em que a Educação Física é considerada uma das
dimensões fundamentais da formação, constituição, do humano, ao
lado das duas outras, quais sejam a dimensão moral e intelectual. Esse
aspecto pode ser percebido na própria conclamação do Conselho do
Governo da Província: trata-se de "encomendar" um tratado de
educação moral, física e intelectual. Essa compreensão, que entende a
formação humana nessa tríplice dimensão, atravessará o século XX,
sendo, entre nós, muito reforçada pelas leituras e apropriações
realizadas dos textos de H. Spencer. Estamos longe, pois, da
compreensão da Educação Física como disciplina escolar, fato que
somente ocorrerá, entre nós, já no inícios do século XX e que marcará,
sem dúvida, um momento fundamental da trajetória do ensino da
Educação Física.
Em segundo lugar, é possível observar como os processos de
racionalização dos cuidados com o corpo vão-se impondo socialmente
entre a população, sobretudo a letrada. Veja que o próprio Estado,
ainda no início de um lento mas inexorável processo de estruturação,
toma para si a tarefa de educação não apenas moral e intelectual, mas
também física do povo. Há, evidente, os limites impostos a essa ação
do Estado, seja pelas circunstâncias (o povo é iletrado), seja pelo
próprio jargão médico. Este último fato, aliás, bastante discutido e,
mesmo, ridicularizado ao longo dos séculos.
Em terceiro lugar, entendemos que se engana quem pensa
que estes processos racionalizados, mesmo quando se utilizam do
impresso, dirigem-se tão somente aos letrados. Pela ação do estado e
das instituições, principalmente da escola, busca-se moldar um povo,
estruturar um estado e construir uma nação e, nesses processos,
elevar o povo à civilização. Tudo isso passa, necessariamente, por
— cj..««^m c.-oi^o mine mnmentns de realização, como veremos,
17
não obedecem apenas à racionalidade escolar, abrangendo outros
espaços e tempos sociais. É disso que trataremos a seguir.
Festas e Corporeidade Cívica
Estruturar um Estado, construir uma nação, elevar o povo à
civilização: eis a grande obsessão do século XIX. Em Minas, nas
primeiras décadas do século XIX, em especial nas décadas de 20, 30 e
40, esse projeto perpassava os debates aúblicos, o teatro, os jornais e
uma multiplicidade de festejos cívicos que foram celebrados com
grande frequência nos arraiais da província mineira.
Eram festejos acolhendo reis e governantes; comemorando
aniversários, casamentos e falecimentos na família real; festejos pela
aclamação e coroação de D. Pedro l e D. Pedro II; festas em
comemoração à independência brasileira, ao juramento da constituição
e por muitos outros motivos. Segundo Francisco Rezende, por
"qualquer ato político ou público" (Rezende, 1987, p. 68) se fazia uma
festa. .
As festas cívicas eram em geral organizadas pela elite mineira
local, contando sempre com a ajuda e participação dos moradores.
Nesses dias, os habitantes enfeitavam ruas e praças, soltavam fogos
de artifício, salvas de artilharia, tocavam os sinos, iluminavam suas
casas, percorriam o arraial com bandas de música, celebravam missas
cantadas, faziam jantares especiais, tiravam os trajes de gala do baú,
enfeitavam chapéus e lapelas com ramos de fumo e café - símbolos
nacionais - brincavam de argolinha, dançavam, executavam óperas,
touradas e cavalhadas (Chamon, 1998).
Momento de encontro alegre, quando o povo tomava as ruas
das vilas e arraiais mineiros para se divertir, a festa era, também,
momento privilegiado de captação de adesão e de aprendizagem de
virtudes políticas, onde se buscava educar o povo para as virtudes
cívicas e interessá-lo pelas questões públicas. Como reunião pública e
cívica, essas comemorações procuravam efetuar a correspondência
dos corações, buscavam a extensão a todos de um mesmo sentimento:
o de amor à pátria.
Além disso, ao promover a reunião de todos num mesmo
lugar, ao colocar em cena o espetáculo de um "grande povo reunido"
(Duvignaud, 1965, p. 238) nesses festejos, sempre se queria criar e
reforçar laços de comunhão e de solidariedade cívica entre os
18
habitantes de um mesmo lugar. Existia, nessas celebrações festivas,
além de uma vontade pedagógica, uma vontade de unificação, onde,
reunidos num mesmo espaço, o povo estreitasse laços de união.
A festa realizada em Minas nesse período, calorosa e
contagiosa, pretendia provocar o fervor coletivo e realizar a união de
todos num só corpo, esforçando-se para que todos se reconhecessem
como parte de uma mesma comunidade e se apegassem às virtudes
cívicas. Para isso, era necessário atingir não só o coração, mas o
próprio corpo do cidadão. Era necessário inspirar no povo o amor e a
adesão à pátria, mas também criar uma corporeidade cívica, ou seja,
inscrever nos corpos dos cidadãos atitudes que simbolizassem esse
patriotismo e uma ocupação cívica do espaço público.
Essa ordenação cívica do corpo era vivida pelos habitantes da
província mineira em vários momentos das celebrações festivas. Aqui
vamos destacar dois deles: as paradas e desfiles militares e as
alvoradas.
Alvorada era o nome dado para o cortejo de pessoas,
acompanhado de uma banda de música, que percorria as principais
ruas da vila. Segundo Francisco Rezende, era costume nos festejos a
realização de uma alvorada, onde o povo cantava hinos patrióticos e
dava vivas: "logo que chegava a hora anunciada ou que a reunião já
estava bastante numerosa todos se punham em movimento, tendo à
sua frente o juiz de paz com o seu fitão; e, com fogos e música,
percorriam as principais ruas da povoação" (Rezende, 1987, p. 69).
A alvorada que corria a povoação nas comemorações cívicas
era o lugar onde as pessoas se ajuntavam. Nas ruas e praças por onde
ela passava, os corpos se misturavam: os diversos segmentos sociais
se reuniam num mesmo espaço e celebravam um mesmo
acontecimento. Apesar da algazarra festiva que acompanhava esses
momentos, a ordenação hierárquica não era abandonada. Pelos
relatos, percebe-se como a festa dava notoriedade à elite dirigente e, à
frente da alvorada que percorria a cidade, geralmente, havia uma
autoridade. Em Ouro Preto, nas festas pela pacificação do Rio Grande
do Sul, em 1845, o povo percorreu a cidade "acompanhado pelos
exm°s srs. vice-presidente e comandante das armas e grande número
de pessoas gradas" (O Itacolomy,9 - 5 - 1845). A hierarquia que essa
espécie de cortejo revelava, apesar de diluída no ajuntamento, era uma
reafirmação da ordem, momento em que a festa educava os homens e
lhes fixava o lugar na sociedade.
Na alvorada, assim como nos cortejos realizados nas festas,
renartiam o mesmo espaço físico, onde se buscava forjar uma
19
unidade cívica, uma comunhão entre os habitantes das vilas e
povoados mineiros. Todos os presentes, testemunhas da festa,
independentemente de sua posição na hierarquia social, eram incitados
a fazer parte de uma mesma comemoração, a comungar dos mesmos
valores e a caminhar num mesmo compasso.
Na rua, a festa podia acomodar a todos, o que não significa
que ela não fosse alvo de controle. Havia sempre um percurso a definir
a marcha, espaço físico dentro do qual os organizadores pretendiam
conter a festa. Segundo Mona Ozouf, esse é o ideal de uma festa bem-
sucedida, onde a multidão se coloca num espaço disciplinado e
somente ali se manifesta: "a festa é sentida como a expansão da
felicidade pública através de um espaço urbano pleno como um
gérmen; uma difusão regular, isenta de dispersão" (Ozouf, 1971, p.
890). Mesmo que a ocupação desse espaço não ocorresse de maneira
regular e uniforme, mesmo não sendo expressão da ocupação
harmoniosa do espaço urbano, ainda assim, a alvorada era uma
tentativa de impedir a dispersão dos habitantes e fazer com que todos
vivenciassem a mesma efusão e caminhassem num mesmo ritmo.
Na verdade, a alvorada era uma tentativa de centralizar a
comemoração, impedindo que a festa se fragmentasse e se diluísse
pela cidade. Aqui se procurava criar tanto um corpo educado para a
ocupação ordenada e civilizada do espaço público, quanto,
simbolicamente, um corpo político: a nação.
Um outro momento de criação de uma corporeidade cívica era
o das paradas e desfiles militares, frequentes nos festejos cívicos das
vilas e arraiais mais importantes da província. As paradas eram
realizadas normalmente na praça principal da vila onde, depois da
missa, os cidadãos encontravam formado em batalhões o corpo militar
local. Além das continências e descargas de mosqueteria e artilharia, o
que mais se destacava nos relatos com relação às paradas era a
disciplina e a ordem. Em Ouro Preto, nos festejos pelo 7 de Abril,
depois da missa, o povo dirigiu-se "à praça onde estava postada a
Guarda Nacional em n. de 554 praças, muito bem disciplinadas, e
vestida com todo o asseio e da mesma sorte a Guarda Policial: feita a
continência de estilo, e havendo-se dado 3 descargas de mosqueteria,
segui-se a de artilharia" (O Universal, 8 - 4 -1836).
A continência, o alinhamento da tropa, a marcha cadenciada,
enfim, os movimentos corporais das paradas e desfiles militares nos
revelam um repertório de gestos codificados onde se explicita todo um
ideal de ordenação, controle e hierarquização tanto do corpo físico,
20
quanto do corpo social. A ação do corpo militar na festa era uma ação
coordenada, pensada, controlada.
Entretanto, se os festejos cívicos celebrados em Minas Gerais
naquele momento tinham a sua funcionalidade política - seja
conquistando a adesão do povo, seja criando um corpo cívico - esses
festejos não se esgotavam aí. Na verdade, eles não podem ser
tomados simplesmente como um artifício político, "uma máquina dócil,
pronta a ser montada e desmontada em um piscar de olhos pelas
necessidades de uma causa" (Ozouf, 1976, p.34). A festa comportava
uma multiplicidade de sonhos e era perpassada por desejos
incontáveis. Apesar da tentativa de ordenar e direcionar o espaço
festivo, ele era apropriado de inúmeras formas pelas pessoas que
celebravam, inclusive de maneiras que não se encaixavam na festa que
era idealmente imaginada pela elite mineira. As turbulências que
agitavam e esquentavam os ânimos nas comemorações cívicas são um
exemplo, na medida em que revelam a não-conformidade ao
direcionamento que a elite dominante queria imprimir à festa e ao corpo
que festejava.
A festa cívica idealizada é sempre uma festa de harmonia e
concórdia, sem tumultos e sem lutas. No entanto, a violência e a festa
não são estranhas uma à outra. Esses dois momentos são informados
pela emoção, pelo estímulo às reações afetivas, convivendo neles tanto
o amor quanto as rivalidades. Apesar de todo o esforço dos
organizadores das festas para mante-las sobre controle, para evitar
qualquer transbordamento, elas quase sempre se aliam ao excesso e
ao desregramento. A alegria a que ela convida ultrapassa os limites
idealizados pelo poder político de uma festa ordenada e civilizada.
Segundo Ives Bercé, que estuda a relação entre a festa e a
revolta na mentalidade popular dos séculos XVI ao XVIII, os dias de
festa comportam, ao lado da explosão de alegrias, a explosão de
agressividades, sendo "ocasião de ajuntamentos e de arrebatamento
da multidão, de excesso de bebidas e de discursos exaltados" (Bercé,
1976, p.74).
Certamente a questão da desordem e da violência não
perpassava apenas as ocasiões festivas, marcando também vários
outros momentos da vida dos mineiros. Existiam desde rivalidades e
enfrentamentos políticos entre as diversas facções da província,
passando por sedições, até rebeliões escravas e crimes de natureza
diversa. Em virtude da grande incidência de desordens e confrontos
violentos, havia uma preocupação crescente por parte das autoridades
n neriao representado por uma "população perigosa" e
21
rebelde, que englobava tanto escravos, quanto homens livres pobres e
vadios e proprietários de terra inconformados. com a tentativa de
implementação de um governo, centralizado. Preocupação essa que
cresceria após a abdicação de D. Pedro l, com o aumento de
insurreições e levantes que passaram ocorrer por todo o País (Mattos,
1990, p. 200-205).
Em Minas Gerais, além da Sedição de Ouro Preto de 1833 e
da Revolução, de 1842, dois momentos de grande comoção política,
havia também conflitos entre liberais exaltados, liberais.moderados,
também chamados de chimangos, e restauradores, denominados de
caramurús, facções que, já ao final do período regência!, terão se
organizado nos partidos liberal e conservador. De acordo com os dados
levantados por Marcos Andrade, os núcleos urbanos mais importantes
da.província "foram palco de várias disputas e contendas entre"
chimangos e caramurús. :
A violência em Minas incluía também desordens e crimes
caracterizados como resistência à justiça, retirada ou fuga de presos
em poder da justiça, arrombamento de cadeias, homicídio e tentativa de
homicídio, ferimentos e ofensas físicas, uso de armas, furtos, ameaças,
crimes contra a propriedade, entre outros (Andrade, 1996, p. 101,102).
Presente no cotidiano mineiro, a violência estava também nos
momentos festivos. Apesar da maior parte dos relatos negarem a sua
existência, a própria ênfase dos narradores na tranquilidade e harmonia
dos festejos nos indica que a violência e or tumulto estavam
potencialmente ali, como que a rondar a festa, a espreitá-la na espera
de uma brecha por onde entrar, , -
Da mesma forma que a festa e o seus relatos difundiam o
ideal de^uma província ordenada, onde coisas e pessoas estivessem
em seus lugares, a própria festa era alvo de ordenamento por parte da
elite política, que idealizava uma comemoração pacífica e sem
tumultos, onde todos se congratulassem e se alegrassem em torno dos
ideais que a festa proclamava.
Preocupados em afirmar a civilidade e o patriotismo de um
lugar, a maior parte dos relatos nega a existência da violência e da
desordem. Mas, ao fazerem isso, eles acabam por nos confirmar que o
ajuntamento de um grande número de pessoas e o entusiasmo festivo
que as arrebatava nesses festejos cívicos eram um caminho aberto
.para o desregramento, por vezes até mesmo um convite velado à
violência.
Nos festejos por ocasião da instalação da Assembleia Geral
Legislativa, em 1826, ocorridos no Tejuco, o narrador nos conta que "no
22
seu contentamento e excesso de alegria nada fez o povo que
perturbasse a boa ordem" (O Universal, 19 - 6 - 1826). Nas festas pela
maioridadedo imperador D. Pedro II, em 1840, o narrador registra,
mesmo considerando isso dispensável, "que no meio de tamanho
entusiasmo, nenhuma só voz, nem um grito descompassado aguaram o
gosto da bela e patriótica sociedade" (O Universal, 16 -11 - 1840, p.4).
Ao falar da harmonia e da ordem presentes nos festejos,
esses relatos também nos dizem que, "apesar" do grande entusiasmo
mostrado pelo povo e do ajuntamento que ele formava, não ocorreram
excessos nem perturbações, Ou seja, esses dois ingredientes, o
entusiasmo e o ajuntamento, indispensáveis à festa, eram
potencialmente propiciadores de confusão.
Acreditando que seus relatos sobre as festas eram uma
maneira de educar os cidadãos, de dar a eles exemplos de civilidade e
patriotismo, alguns deles, na impossibilidade de enfatizar apenas a
ordem, nos traziam não só a descrição do bom andamento da festa,
mas também a descrição de ações violentas e de tumultos. Essa era
uma forma de denunciar um comportamento bárbaro e antipatriótico,
mostrando um exemplo que não deveria ser seguido. Esses relatos
eram, pois, uma denúncia contra atos perturbadores nas festas.
No arraial de Itabira do Campo, nos festejos em comemoração
ao dia 7 de Abril, em meio à música e aos vivas liberais, um grupo de
rapazes soltou vivas a D. Pedro l e ao Vigário Meirelles,3 provocando
indignação em alguns cidadãos que festejavam, e que, sentindo-se
atentados, gritaram ainda mais vivas a D. Pedro II. As provocações
continuaram. Depois de ter-se repetido o mesmo viva a D. Pedro l, pelo
grupo provocador, um "cidadão constitucional" que tomava parte nos
festejos e que soltava vivas ao novo Imperador pediu ao Juiz de Paz
que dissolvesse semelhante ajuntamento,
... depois de haver escapado felizmente de uma facada que um dos
tais do grupo lhe dera e fora evitada pela destreza do Capitão José
Maurício de Almeida e Silva [...]. Depois de muitas achincalhações
ao Juiz de Paz o grupo se dissolveu e nenhuma outra novidade
houve mais esta noite (O Universal, 4-11 - 1831, p. 4).
Um dos grandes problemas das brigas e provocações era a
sedução que elas exerciam sobre "a populaça ignorante e crédula". As
provocações, como a do episódio acima descrito, visavam a instigar o
às intenções dos restauradores.
23
povo presente nas comemorações, de maneira a perturbar a boa ordem
e assim atrapalhar os festejos de uma facção política rival. O relator do
caso de Itabira do Campo, no final de seu artigo, pede que se faça uma
devassa para se saber de onde "partiram as insinuações à populaça,
quem moveu aquela gente a andar dando vivas sediciosos". O povo era
aqui considerado uma "populaça crédula e ignorante" que se deixava
seduzir facilmente, devendo por isso ser bem orientado e conduzido no
caminho da ordem e do patriotismo.
Nos festejos cívicos promovidos pelos habitantes de Minas
.Gerais, os relatos descrevendo momentos de tumultos e violências
quase não nos contam agressões gratuitas, nem "ajuste de contas"
entre particulares em meio ao ajuntamento festivo, o que não significa
que eles não existissem. A violência que eles descrevem, como se
pode ver nos casos anteriores, é principalmente aquela que revela a
festa como ocasião de enfrentamento de segmentos rivais, entre
facções e tendências políticas opostas.
Os festejos no Serro, em 1831, em comemoração à abdicação
do Imperador, retratam bem essa situação, em que os moradores
"brasileiros" do arraial, tomados pelo ímpeto festivo, passaram a
provocar os portugueses. Segundo o relato de Teófilo Ottoni, o
entusiasmo festivo que embalava a festa transformou "os ímpetos do
povo triunfante" em provocações contra "alguns poucos desafetos à
nova ordem de coisas e mesmo a pessoas inofensivas".
O povo, parado em frente à porta do Ouvidor, começou a
provocar tumultos: "a exacerbação dos espíritos prognosticava cenas
horrorosas". No entanto, no caso da festa do Serro, a violência não foi
mais longe, sendo contida por uma "palavra de autoridade". Diante da
cena tumultuosa, e prevendo o pior, Teófilo Ottoni, redator do jornal
liberal da cidade Sentinella do Serro, conseguindo silêncio e atenção do
povo, pregou e exigiu "moderação e generosidade, e pedindo que os -
morras - somente ecoassem contra o tirano e que não manchássemos
com excessos criminosos a bela vitória que nossos irmãos fluminenses
acabavam de ganhar" (Ottoni, 1930, p.19).
Mas, nem sempre a violência podia ser contida, seja pela falta
de uma "palavra de autoridade", seja pela intensidade do momento.
Incontroláveis foram as desordens ocorridas nas festas pela suspensão
do tutor do imperador D. Pedro II, José Bonifácio, na cidade de Ouro
Preto. A noticia, recebida com "transportes do mais vivo prazer", levou
o povo às ruas para comemorar. Entretanto, em meio ao ajuntamento
"não foi possível prevenir que algumas pessoas irritadas contra os
excessos dos caramurús se contivessem": nas duas noites em que se
24
festejaram, elas "atiraram algumas pedradas a casas de pessoas
conhecidas por pertencentes a esse partido" (O Universal, 3 -1 - 1835, p. 3).
Como se pode observar nesses últimos relatos, essa violência
explícita, por vezes presente nas festas, estava diretamente
relacionada com as lutas e divergências entre as facções liberal e
restauradora, entre chimangos e caramurús. Esses conflitos que
tomavam a festa eram eminentemente conflitos políticos. Aqui, a festa
não produzia a harmonia desejada, não só porque a ordem não era
mantida, mas, principalmente, porque os homens que ela desejava ver
reunidos se colocavam em luta no próprio momento festivo. A festa era,
então, uma oportunidade para expressão de diversos conflitos políticos,
principalmente aquele que, no período regencial, foi constante na
província: o conflito entre restauradores que se opunham à abdicação
de D. Pedro e os liberais que comemoravam a sua queda.
Entretanto, essa violência não pode ser reduzida a uma
expressão dos conflitos políticos cotidianos. Na verdade, ela era o
resultado de um entusiasmo difícil de limitar, de uma efervescência
incontrolável. Aqui, a violência não era previamente pensada e
organizada, não era um tipo de movimento que envolvesse um cálculo
racional, não podendo ser caracterizada como uma violência
instrumental, mas sim impulsiva. Ela se ligava a raivas e
ressentimentos das lutas políticas, mas sua ocorrência era um
transbordamento do momento festivo, um descontrole ocasionado pela
explosão de emoções que a própria festa provocava. Aqui, o ideal de
educar o corpo para ocupar o espaço público de maneira cívica e
civilizada mostrava seus limites e também as suas intencionalidades,
Considerações Finais
Ao longo de todo o texto, voltamo-nos para o entendimento de
práticas educativas que enunciavam, por assim dizer, o esboço de um
projeto civilizador que tem como um de seus momentos de realização á
conformação de um corpo físico e social. Procuramos mostrar como as
ações impetradas a partir de projetos idealizados de comportamentos
acabavam por submeter o corpo de alunos e cidadãos a formas
disciplinadas de ocupação dos tempos e dos espaços sociais.
Num e noutro caso, as práticas de violência estão a anunciar a
impossibilidade prática dessa conformação. No caso da escola, a
• d e m o n s t r a a não-adesão d o s alunos.
25
à ordem pressuposta para o funcionamento regular do método mútuo.
Já no caso das festas, a violência não desejada, mas existente, revela
uma outra ocupação do espaço público bastante diferente daquela
harmoniosa, hierarquizada e controlada tal qual idealizava a elite
mineira.
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Compendio de Gymnastica Escolar:
o Corpo e a Pedagogia no Início do Século XX
Pierre Normando Gomes da Silva
Professor da Universidade Federal da Paraíba
Mestre em Educação - UFPB
O Compendio... como Livro-Didático
Pelos dados que a historiografia brasileira da Educação Física
possui, o texto de Arthur Higgins, denominado inicialmente de
Compendio de gymnastica e jogos gymnasticos escolares (1896),
foi a primeira sistematização pedagógica para a Educação Física
brasileira, durante a Primeira Republica, que de fato se efetivou na
escola com aprovação oficial.1 Para ilustrar esse status que o
Compendio... recebeu, pelo menos no Distrito Federal, basta dizer que
foi aprovado unanimamente tanto pelo Conselho Superior de Instrução
(1902), quanto por uma comissão da Diretoria Geral de Instrução
Municipal, nos anos de 1912 e 1914, além de ter recebido prémio
conferido por uma Comissão de Professores da Escola Normal do
Distrito Federal (1913).
Em 6 de março de 1912, início do ano letivo, o Compendio...
foi indicado como "livro-didático", para a Educação Física das escolas
públicas na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época, a comissão da
Diretoria Geral da Instrução Municipal emitiu um parecer afirmando que
o livro seria um verdadeiro assessor aos professores primários, pelo
menos por dois motivos: primeiro, porque tornava "a ginástica uma
disciplina verdadeiramente útil e não nociva, como acontece sempre
que os exercícios são dados com desprezo das regras"(apud Higgins,
1934, p.4); segundo, porque organizava os exercícios de acordo com a
idade para os três cursos da escola primária (Elementar:7-10 anos;
1 Não estou desconsiderando toda a rica produção bibliográfica da segunda metade do
século XIX. Carlos F. CUNHA JÚNIOR fala de seis manuais de Educação Física,
publicados nesse período, e ainda acessíveis na Biblioteca Nacional. In: FERREIRA
NETO, Amarílio (Org.). Pesquisa histórica na educação física, 1998. p. 22-24.
28
Médio:10 a 12 anos; Complementar: maiores de 12 anos). Desse
modo, o Parecer concluía, Tem, pois, o professor primário, neste livro
um verdadeiro roteiro, e não terá mais a fazer que acompanhá-lo, para
ensinar proficientemente esta d/sc/p//na"(1934, p.8).
Contemplando os requisitos indispensáveis para uma
sistematização pedagógica burguesa, a racionalização das regras, o
ajuste da matéria à idade e o cientificismo na seleção dos exercícios
que fossem úteis para a vida e para o trabalho, o texto de Higgins teve
uma repercussão dantes nunca vista. Além das aprovações oficiais,
ganhou uma popularidade enorme, pois, para uma época de poucos
leitores, devido ao índice de analfabetos, o livro teve três edições
(1896/99,1911,1934), todas publicadas pela Tipografia do Jornal do
Comércio/RJ. O manual pedagógico de Higgins, resultado de sua
experiência de onze anos à frente da Ginástica na Escola Normal do
Distrito Federal, funcionou como livro didático por, no mínimo, quatro
décadas, nas escolas do Rio de Janeiro. Recebeu também elogios na
imprensa escrita em diversos jornais e em diferentes momentos.2
Dentre esses, merece destaque o texto publicado n'0 Jornal do
Comércio (2-11-1899):
O Sr. professor Arthur Higgins acaba de publicar o seu excelente livro
de que já nos ocupamos quando publicada a introdução [1896]...
£síe volume consta de três livros: Noções teóricas, ginástica primária
do primeiro grau e ginástica secundária. Além dos [exercícios]
técnicos, o Sr. Higgins completou a sua obra com vários e divertidos
jogos que ocupam agradavelmente as crianças e as fazem
insensivelmente praticar a ginástica que tanto para elas como para
os adultos é a realidade do prolóquio - mens sana in corpore
sano"(apud, Higgins, 1934, p. 2).
A "T/s/ca Pulmonar3' e o Interesse pela Ginástica Higiénica
No prefácio à primeira edição, o professor, que lecionou 35
anos na Escola Normal do Distrito Federal e 37 no Externato do
Colégio
2 No ano da publicação do livro de Higgins, vários jornais divulgaram a obra: A Gazeta
de Notícias (6/10/1896), O Pais (3-10-1896), bem como por ocasião da segunda
edição, pelo Jornal A Gazeta Comercial e Financeira (24-10-1902).
29
Pedro II ou Ginásio Nacional, além de outros anos como
professor no Colégio Alfredo Gomes, revelou as origens do seu
interesse:
Só depois de 11 anos de tirocínio na arte que me dediquei de corpo e
alma, julguei-me capaz de dar a publicidade um escrito digno do
conceito generosamente elevado e do acolhimento carinhoso de que
tenho gozado desde o princípio da minha carreira no ensino dessa
arte utilíssima que, salvando-me da predisposição para a tísica
pulmonar, me tomou capaz de ser útil à minha adorada Pátria
(Higgins, 1934, p. 13).
As origens do seu interesse pela Ginástica higiénica deveu-se
aos exercícios que o salvaram da "tísica pulmonar". A tuberculose era
uma doença comum entre a população, devido às condições
ambientais em que as pessoas viviam. Acometido por esse mal, aos 21
anos de idade, o jornalista de O Cruzeiro foi orientado pelos médicos a
ter uma "vida regrada" e "cuidar do físico". Foi, então, que Higgins
procurou a Escola Normal para praticar exercícios ginásticos
convenientes ao seu enfraquecido organismo. Nessa escola, o
professor de Ginástica de então era o capitão Ataliba Fernandes. Após
um período de prática de exercícios, relata Higgins:
Ato fim do ano letivo, submetendo-me a exame, fui aprovado com
distinção, nota que nenhum outro examinando do meu sexo obteve
antes de ser eu professor daquela aula. A vista desses resultados
tomei a resolução de fazer-me professor de ginástica escolar [...] fui
logo depois do meu exame convidado para professor em
estabelecimentos de primeira ordem (1934, p. 14).
A Ginástica, essa "arte utilíssima", não só havia salvado
Higgins da tuberculose, mas havia dado-lhe um sentido existencial, "ser
útil à minha adorada Pátria", à semelhança do que a Ginástica de Jahn
propunha. Assim, seu ideal humanitarista, sua prática como professor
de Ginástica e a publicação do seumanual de Ginástica higiénica,
constituíam uma espécie de medicalização preventiva pedagógica:
salvar os de organismo enfraquecido e torná-los patrióticos, para se
ajustarem ao ritmo social da civilidade burguesa, imprimido pelo lema
"Ordem e Progresso".
30
O Mefhodo Sueco-8e/ga-Bras/7e/ro
Na sistematização pedagógica dessa "arte utilíssima", Higgins,
da primeira para a segunda edição (1911), alterou o título da obra de
Compendio de gymnastica e yogos gymnasticos escolares para
Compendio de gymnastica escolar (238 p.). O método era sueco-
belga devido a ser "o resultado de escrupuloso estudo de diversos
sistemas estrangeiros, principalmente dos de Ling, sueco e Dox, belga"
(Higgins, 1934, p.15), e era também brasileiro, porque, dizia ele:
Fiz inovações que concorrem muito para facilitar o aprendizado e o
ensino, e também para o embelezamento da arte. Assim, é que
sistematizei os comandos, o que facilita muito o trabalho dos
discípulos, futuros mestres: a terminologia é quase toda arranjada
por mim, as mais das vezes sem sair da língua vernácula e algumas
empregando palavras latinas de facílima compreensão. As definições
e divisões da ginastica e dos exercícios foram concebidos por mim;
inventei alguns exercícios de movimentos combinados, imitativos e
estéticos e modifiquei alguns jogos ginásticos, adaptando-os ao
nosso clima (1934, p.15).
Apesar de toda a sistematização que desenvolveu, o cuidado
de Higgins em colocar-se como "organizador" e intitular o seu texto de
compêndio revela a sua seriedade e preocupação em considerar-se
como criador de um método para a Educação Física escolar, até
porque um método de ensino, "para ser digno desse nome, deve ser
baseado na experiência do exercício sobre o corpo, e somente com
essa condição é que se pode impó-lo à esco/a"(Higgins, 1934, p.25).
Como, para ele, a base de seu método estava no efeito que o exercício
provocava sobre o corpo, cabe-nos descobrir qual a compreensão que
o professor de Ginástica da Escola Normal possuía sobre o corpo e
sobre o movimento que esse corpo executava.
T 31Corpo e Movimento em Higgins
A compreensão de corpo em Higgins não é difícil de ser
identificada, pois ele mesmo a explicita quando afirma que para seu
método ser eficaz os seus "discípulos, futuros mestres", deveriam
conhecer o corpo humano. Sobre essa recomendação fazia a seguinte
analogia:
Assim como qualquer maquinista deve conhecer os nomes das
diversas peças da máquina com que trabalha, nós temos que lidar
com essa maravilhosa máquina que se chama o corpo humano, não
podemos ignorar os nomes das diferentes partes de que ele se
compõe, pelo menos superficialmente (1934, p.41).
Conhecer os nomes das diversas peças da máquina com que
trabalhava era a tarefa do professor. Nesse sentido, o educador do
físico não passava de um operador de máquina que precisava
identificar suas partes pelo nome. Por isso, deveria saber que o corpo
era dividido, segundo os manuais de Anatomia que Higgins havia
consultado, em quatro partes: cabeça, tronco, membros superiores e
membros inferiores. A especificação que o professor de Ginástica fazia
de cada parte era a seguinte: a cabeça constituía-se de crânio, toda a
região onde nasce o cabelo, e mais a testa e face, parte anterior onde
se acham olhos, nariz e boca; o tronco, a parte central do corpo, tem a
forma de um cilindro achatado de trás para diante, constituído de duas
partes: tórax (parte superior) e abdome, vulgo barriga; os membros
superiores ou membros torácicos são divididos em ombro, braço,
antebraço e mão - palma, dorso e dedos - e os membros inferiores ou
membros abdominais, também divididos em quadril, coxa, perna e pé -
calcanhar, sola ou planta, dorso e dedos ou artelhos - (Cf. Higgins,
1934, p. 41-42).
A identificação entre o corpo e a máquina era tanta, que não
bastava conhecer os nomes das "peças", era preciso vê-las pela óptica
mecânica, por exemplo, o tronco é visto como um cilindro achatado.
Esse entendimento anatómico do corpo-máquina, fruto da
compreensão cartesiana, por um lado, supera o entendimento do corpo
como invólucro da alma e, por outro, converte-o em simples máquina
movida por comandos. Isso significava desmistificar o corpo.
Dessacralizava-o para poder controlá-lo tecnicamente. Dessa forma,
32
indústria, propôs uma aprendizagem de movimentos em que estes
fossem tecnicamente definidos e milimetricamente controlados.
Nessa estética da máquina, o movimento corporal não poderia
ser tomado dos costumes e festas do povo, mas da neutralidade
científica da engrenagem de uma máquina. Sendo assim, Higgins (cf.
p. 42) definiu uma taxionomia, denominando-a de "terminologia dos
movimentos articulares", que estava estruturada em três ciasses de
movimentos: flexíveis, inflexíveis e mistos. Os movimentos FLEXÍVEIS
eram constituídos por flexão, quando uma parte do corpo se dobra
sobre si mesma, e extensão, quando se desdobra a parte dobrada. Os
INFLEXÍVEIS, eram subdivididos em nove espécies de movimentos:
rotação, aquele que faz girar sobre si mesma uma parte do corpo;
pronação faz voltar a palma da mão para baixo, quando o antebraço
se achar em posição horizontal; o movimento inverso é supinação;
abdução faz membro(s) ou parte(s) se afastar da linha mediana do
corpo; o movimento oposto chama-se adução; elevação, movimento
que eleva em qualquer direção uma parte do corpo; o oposto à
elevação chama-se abaixamento; oscilação resulta da combinação
dos movimentos de elevação e abaixamento executados em dois
sentidos opostos e seguidamente; circundução, quando parte do
corpo descreve uma figura cónica, cujo vértice fica na articulação e no
outro extremo, descrevendo uma circunferência. Por último, os
movimentos MISTOS, que eram constituídos pelos movimentos de
distensões.
A capacidade de mover-se e a intencionalidade operante da
motricidade humana estavam, em Higgins, delimitadas por uma
taxionomia que restringia a dimensão motora em três níveis de
classificação de movimentos e em doze subcategorias
correspondentes. Os movimentos flexíveis, inflexíveis e mistos
tipificavam um corpo-máquina, cujos movimentos eram realizados à
semelhança de alavancas, cilindros, pêndulos e esferas.
Contudo, vale dizer que essa percepção corporal, própria das
formulações dos movimentos ginásticos do último quartel do século XIX
e da expansão do mundo industrial, representava, para os seus
defensores, uma forma de embelezar o corpo. Não esqueçamos que
esse movimento ginástico era compreendido por Higgins como arte. A
beleza estava em fazer o corpo mover-se como uma máquina. E a
cientificidade em compreendê-lo como a articulação de "peças
anatómicas" desprovidas de desejo. Um corpo morto pronto para ser
manipulado.
33
Nesse sentido, basta ilustrar que a posição inicial do corpo
para os estudos anatómicos era a mesma para o início da execução
dos exercícios. O exercício de posição, chamado "Posição
Fundamental. Prima", deveria ser executado por todos os alunos (7 a
12 anos) na primeira lição de todos os cursos: depois da formação da
fileira, um ao lado do outro, por altura, o professor comandava:
"Atenção. Posição prima... Já". Decorrente desse comando, os corpos
dos alunos homogeneamente assumiam a seguinte posição:
Os calcanhares unidos; as pontas dos pés naturalmente apartadas: o
corpo aprumado; os braços pendidos ao longo do corpo; as palmas
das mãos voltadas um pouco para diante; o ventre retraído; o peito
dilatado sem esforço visível; a cabeça erguida e o olhar dirigido para
diante (Higgins, 1934, p. 61).
Uma posição que deixava o corpo sem expressão de vida,
"braços pendidos", sem nenhum movimento, sorriso ou olhar brilhante.
Um corpo absorto, sem comunicação gestual para com outrem, mas
apenas com um perdido "olhar dirigido para diante". Essa primeira
posição sinalizava o esforço civilizatório de uma época para educar os
alunos, tranformando-os em corpos "aprumados" e sem desejo, prontos
para serem manipulados - talvez essa seja a grande intenção do
capitalismo. A Ginástica trabalhava a partir da concepção do corpomorto - o corpo vivo, ou "vivido" no dizer de Merleau-Ponty e
desejante, no entendimento de Freud, é uma percepção que demorou
a chegar na Educação Física.
Objetivo Educacional do Mef/iodo...
Para entender o objetivo específico da proposta de Ginástica
educativa de Higgins, faz-se necessário compreender qual o papel da
educação para ele. Diz o autor: "Educar o homem é prepará-lo para a
luta, para a vida, desenvolvendo e aperfeiçoando-lhe as faculdades"
(1934, p. 21). Nesse sentido, educação é preparação para a vida ou,
mais especificamente, para o trabalho. Na esteira do ideal lockeniano,
ou da Reforma de Benjamin Constant, o objeto da educação para
Higgins não era mais o estudo das humanidades, mas, sobretudo, o de
ser útil e incorporar-se às demandas práticas da vida.
34
Nesse ideário burguês de educação, Higgins acreditava que a
tarefa da educação era aperfeiçoar as faculdades físicas e intelectuais
dos homens, pois, em sua compreensão, "qualquer plano de educação
que não [tivesse] por fim o desenvolvimento harmónico dessas
faculdades, [seria] incompleto e /mperfe/ío"(1934, p. 21). O
desenvolvimento harmónico, nessa compreensão, significava oferecer
os mesmos cuidados tanto ao corpo, quanto ao intelecto. Ambos
deveriam ser exercitados de igual modo. Contudo, isso não queria dizer
que ambos tinham o mesmo valor, pois, na verdade, a busca do corpo
saudável era por causa do serviço que esse poderia prestar ao
intelecto.
Sobre essa subordinação do corpo à mente, dizia Higgins:
As descobertas fisiológicas vieram, porém, em socorro da pedagogia,
demonstrando de um modo patente que a lucidez do espírito
depende do bom funcionamento dos órgãos corporais; que, para a
alma brilhar através do corpo, é necessário se ache este em estado
de desenvolvimento regular e de conveniente energia (1934, p. 21 j.
Ou ainda quando cita o Dr. G. M. Schreber3, "o espirito é o
senhor e o corpo o escravo; e para poder este obedecer às exigências
d'aquele, é necessário que seja sadio e forte" (apud, Higgins,1934, p. 21).
Por a educação, nesse entendimento, ter a tarefa de
aperfeiçoar as duas faculdades humanas, estabeleceram-se, de forma
dicotômica, dois modelos de educação, um para o corpo e outro para a
mente. Apesar de distintos, um estava subordinado ao outro. Nesse
sentido, Higgins, em sua proposta, tentou definir o papel específico
dessa educação subordinada, mas não inferiorizada: "A educação
física ou corporal é aquela que, por meio de exercícios convenientes,
torna sadio e forte o homem, desenvolvendo-lhe ao mesmo tempo as
aptidões para a vida prática" (1934, p. 21).
A primeira função proposta era a de tornar o homem sadio e
forte. Isso porque o objetivo político-educacional, no início da Primeira
República, não era formar um guerreiro. Higgins, de forma diferente de
Jahn e Amoros e semelhante a Ling e Demeny, propôs, como objetivo
higienista, formar um homem "civilizado" (saudável, dócil e útil). Por
isso, a preocupação da Ginástica educativa ou higiénica de Higgins
3 O livro "Gymnastica doméstica, médica e hygiênica"(Lisboa,1886) era referência
35
não era com o aumento da força muscular. Ele chegou até a
menosprezá-la, quando desaconselhou a postura de alguns jovens que
... andam pelas ruas com os braços arqueados e o peito estufado
com o intuito de aparentar grande vigor. A força muscular exagerada
tem grande importância para os carregadores de fardos, mas não
para os moços que tem outras aspirações e por isso precisam de
uma educação física bem entendida (1934, p. 22).
Nessa proposta pedagógica, o objetivo não era a hipertrofia
dos grupos musculares, mas a aquisição de órgãos saudáveis,
principalmente os pulmões. Essa Educação Física não visava a formar
corpos de "carregadores de fardos", mas corpos civilizados que
pudessem ser capazes de "competir com os povos mais adiantados em
todas as esferas de ação" (1934, p. 23J.O segundo objetivo proposto
era que, concomitante à formação do homem saudável, a Educação
Física desenvolvesse as aptidões para a vida prática. Nesse projeto de
civilidade burguesa, a prática corporal deveria tornar o homem apto
para ser "prático", útil; enfim, trabalhador.
Assim, Higgins, em sua proposta pedagógica, pretendia
responder positivamente às demandas de força de trabalho para as
classes dominantes (aristocracia agrário-comercial e a nascente
burguesia industrial). Se não era esse o seu propósito, vejamos o que
ele diz: "A educação física, desenvolvendo o gosto pelo trabalho,
fornece braços vigorosos às indústrias e à agricultura" (1934, p. 22).
Conteúdos Programáticos do Metóodo...
Para formar um corpo civilizado (saudável, regrado e
trabalhador), num ambiente permeado pela "tísica pulmonar" e num
povo "mole e indolente" - concepção dos republicanos -, Higgins
propôs como conteúdo programático a Ginástica. Não a "ginástica
acrobática, brutal, empírica e perigosa, porém sim a ginástica racional,
baseada em princípios científicos, própria do século em que vivemos"
(1934, p. 23). Com o mesmo ódio pedagógico que tinha Amoros da
Ginástica funambulesca ou do corpo circense que despertava o riso e
provocava a liberdade, Higgins dizia: "A acrobacia é a arte de executar
36
exercícios perigosos e surpreendentes. É a ginástica dos circos... "
(1934, p. 23).
A acrobacia era "perigosa" não só porque oferecia "exercícios
perigosos", mas porque produzia o "surpreendente", e isso seduzia o
povo. Os movimentos acrobáticos confrontavam-se com a estética da
máquina, pois eles menosprezavam os interditos médicos e o
cientificismo mecanicista do uso do corpo e guiavam-se pelo prazer
que proporcionavam tanto àqueles que se arriscavam quanto àqueles
que admiravam. A vivência das acrobacias representava uma "alegria
agressiva", utilizando a linguagem de Lapierre e Aucouturrier (1986, p.
56), porque negava a ordem estabelecida através de um movimento
que abolia provisoriamente um certo número de proibições, e "trazia
imagens de luz e riso, do grotesco e do sublime e, sobretudo, do corpo
como centro de entretenimento", no dizer de Carmem Soares (1998, p. 55).
Numa tentativa de superar essa Ginástica "perigosa", Higgins
propunha uma Ginástica científica, conceituando-a, como "um conjunto
de meios próprios para aperfeiçoar o indivíduo e finalmente a raça - o
único remédio à degenerescência e ao desequilíbrio, consequência dos
abusos do mundo moderno" (Demeny, apud Higgins, 1934, p. 25).
Sendo assim, para selecionar, organizar e elaborar exercícios
"convenientes", contrários aos movimentos acrobáticos brincalhões dos
saltimbancos e malabaristas de rua, Higgins, baseado em Demeny, só
considerava exercício ginástico aquele movimento que produzia efeitos
específicos: na melhoria da saúde (higiénico), na distribuição dos
espaços musculares sobre diferentes partes do corpo (estético) e na
melhoria da utilização da força (económico).
Pensando assim, Higgins classificou a Ginástica, "único
remédio para a corrupção da carne", a partir dos indicativos de Ling,
em higiénica, médica e educativa. Como não havia, naquele momento
histórico, uma necessidade de formação militar, Higgins excluiu essa
espécie de Ginástica, que até Ling havia incluído, e, na sua
compreensão, dividiu a Ginástica em: higiénica, que tinha por fim
"conservar e robustecer a saúde" (1934, p. 24); médica ou terapêutica
e ortopédica, que tinha por objetivos, "auxiliar a medicina na cura de
certas enfermidades e na correção de algumas deformidades" (1934, p.
24); e, por último, Ginástica educativa, que também era higiénica,
porque se caracterizava por movimentos que eram praticados "com o
fim de alcançar benéficos efeitos fisiológicos" (1934, p. 30). Essa
Ginástica escolar, no entender do professor do Ginásio Nacional, foi
37
"subdividida", de acordo com a especificidade dos exercícios, em três
grupos: Ginástica sistemática, Ginástica de aparelhos e Ginástica
recreativa, que passaremos a explicitar separadamente.
A Ginástica Sistemática
A ginástica sistemática ou sistémica recebeu essa
designação, porque os seus exercícios

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