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liiil- 796f ex. 1 ^ ooef UISA TÓRIGA A EDUCAÇÃO FI ST C A . . _ . - - - . - - . - - -:; -'.; aj " : , ; : , ' • - ' Amarílio Ferreira Neto (org.) Ana Carrilho R. Grunennvaldt Carla Simone Chatnon t% Fernanda Paiva Homero Luís Alves de Lima . . . . ; Luciano Mendes Faria Filho Pierre Normando Gomes da Silva Tarcísio Mauro Vago ••••l DE ARACRUZ[ACHA FICHA CATALOGRÁFICA: BIBLIOTECA FACHA P474 Pesquisa histórica na educação física, vol. 4 / Amarilio Ferreira Neto,(org.). Aracruz! ES: FACHA, 1999. p. 169 1. Educação física - Pesquisa. 2. Educação Física - historiografia, l. Ferreira Neto, Amarilio. CDU: 796(81 )(Ô91) Reg. 006779 Conselho Editorial: Amarílio Ferreira Neto Carmen Lúcia Soares Eustáquia Salvadora de Souza Fernanda Paiva Tarcísio Mauro Vago Victor Andrade de Melo Editoração Eletrônica: Amarilio Ferreira Neto Márcio Schneider Machado Revisão do Texto: Alina da Silva Bonella Capa: Cristina Xavier © Faculdade de Ciências Humanas de Aracruz Sumário Apresentação A Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na Conformação de um Corpo Civilizado no Século XIX Luciano Mendes Faria Filho Carla Simone Chamon 5 Compendio de Gymnastica Escolar: o Corpo e a Pedagogia no Inicio do Século XX Pierre Normando Gomes da Silva 27 Estratégias de Formação de Professores de Gymnastica em Minas Gerais na Década de 1920: Produzindo o Especialista Tarcísio Mauro Vago 51 Escola Normal de Sergipe: a Educação Física e as Normalistas Ana Carrilho Romero Grunennvaldt 79 A Psicologia e a Educação Física em Lourenço Filho Amarílio Ferreira Neto 97 Pensamento Epistemológico da Educação Física Brasileira: Uma Análise Crítica Homero Luis Alves de Lima 117 Uma Rima Dá História... Fernanda Paiva 139 Biblioteca Apresentação A História sempre tem outra parte... Felizmente, estamos trazendo a um público cada vez mais amplo e especializado o "Pesquisa Histórica na Educação Física", volume 4. Novas fontes, saberes, instituições, atores sociais até então intocados pela pesquisa na Educação Física brasileira. Esta outra parte é apresentada, discutida, interpretada, a partir de olhares e experiências de pesquisa diversificadas no âmbito da Educação e da Educação Física por co-autores já conhecidos nos volumes anteriores, situação de Amarílio Ferreira Neto, Fernanda Paiva e Tarcíso Mauro Vago. Mantendo um princípio fundamental desde o primeiro volume desta produção, solicitamos, no sentido de renovar e qualificar o debate, ao mesmo tempo, as contribuições de Ana Carrilho Romero Grunennvaldt, Carla Simone Chamon, Homero Luís Alves de Lima, Lucíano Mendes Faria Filho e Pierre Normando Gomes da Silva. Foi gratificante a abordagem dos originais, dado que ficou patente, logo, o esmero com que esses novos co-autores prepararam seus textos. Sou grato pela atenção de todos. Este livro é um intertexto que dialoga em muitos pontos com os três volumes anteriores de modo que sua organização interna procura articular, complementarmente, os co-autores que aqui se expõem ao tempo que preenche lacunas, limites do estágio atual da pesquisa histórica. Isso, garantindo-se o espaço da diferença teórico- metodológica consistente e necessária à consolidação do nosso modo de fazer e veicular o conhecimento. Luciano Mendes Faria Filho e Carla Simone Chamon, em "A Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na Conformação de um Corpo Civilizado no Século XIX", a partir de fontes primárias, explicitam como a instituição escolar e as festas cívicas, em seu agir pedagógico, conformam uma corporeidade civilizada nas primeiras décadas do século XIX, em Minas Gerais. Pretendem, ainda, indicar novos caminhos para a pesquisa de racionalidades e apropriação diferenciada do fenómeno educacional. Pierre Normando Gomes da Silva em " Compendio de Gymnastica Escolar: o Corpo e a Pedagogia no Início do Século XX", discute em pormenor o "Compêndio de Gymnastica Escolar: methodo sueco-belga-brasileiro"', publicado em 1896 e reeditado até 1934, do professor da Escola Normal do Rio de Janeiro, Arthur Higgins. Essa obra não se constitui apenas num manual pedagógico que foi indicado oficialmente como livro didático para as escolas públicas do município do Rio de Janeiro, mas nela está contida a compreensão de corpo e de atividade física daquela época. Também explicita, através da sistematização pedagógica, a implantação do projeto de civilidade burguesa, instalado no Distrito Federal, que tinha a finalidade capitalista de substituir os hábitos corporais do povo brasileiro por aqueles dos países industrializados. Tarcísio Mauro Vago, com "Estratégias de Formação de Professores de Gymnastica em Minas Gerais na Década de 1920: Produzindo o Especialista", pretende dar continuidade àquele estudo publicado no "Pesquisa Histórica na Educação Física", volume 2, sobre o processo de escolarização da ginástica nas escolas normais mineiras, entre 1883 e 1918, focalizando agora a década de 1920, destacando algumas estratégias mobilizadas para a formação do professorado para atuar no ensino de Educação Física nas escolas primárias. Paulatinamente, essas estratégias conduzem à produção do professor especialista em Educação Física e, dentre elas, destacam-se as reformas do ensino (primário e normal), a publicação e circulação da Revista do Ensino, a criação da Inspetoria de Educação Física e o Curso de Aperfeiçoamento. São os documentos relativos a essas estratégias que constituem fontes deste trabalho preliminar. Ana Carrilho Romero Grunennvaldt, em "Escola Normal de Sergipe: a Educação Física e as Normalistas", aborda a Escola Normal de Sergipe como uma das instituições que servem de base para o processo da instrução pública no Estado, principalmente no que se refere à democratização e interiorização do ensino, pois eram as normalistas recém-formadas que partiam para os sertões, no intuito de iniciar e implementar a instrução pública nesses povoados distantes. Este estudo tem por objetivo resgatar e registrar a memória da Educação Física em Sergipe, com ênfase numa instituição - Escola Normal de Sergipe. Amarílio Ferreira Neto, em "A Psicologia e a Educação Física em Lourenço Filho", a partir das bases da Educação Física brasileira, na forma concebida por Inezil Penna Marinho, levanta e discute a produção de Lourenço Filho sobre a contribuição da Psicologia para a Educação Física. Já aí, é possível captar uma tentativa de demonstração da insuficiência da Biologia como forma exclusiva de se explicar a educação e a Educação Física, especialmente quando a Biologia é confrontada com a prática hipótese de que o pensamento pedagógico na Educação Física ocorre a partir da Biologia e da incorporação crescente das Ciências Sociais entre o século XIX e XX. Homero Luis Alves de Lima, em "Pensamento Epistemológico da Educação Física Brasileira: uma Análise Crítica", analisa o pensamento epistemológico da Educação Física brasileira. Interroga sobre as condições de possibilidade de constituição de um campo científico, centrado nas práticas corporais, que substitua a's abordagens disciplinares que tradicionalmente deram sustentação teórico-científica à Educação Física. Todavia, a abrangência do campo - tenha ele como objeto, a motricidade humana, o movimento humano, os esportes, etc. -, ao permitir a incursão das ciências já constituídas, aponta para a inviabilidade da construção de uma ciência específica. A pesquisa, ao invocar Nietzsche e Foucault, lança suspeitas sobre a ambição de poder que a pretensão de cientificidade poderá estar engendrando. Sugere, então, que a problemática da legitimidade académica e social da Educação Física seja retomada pela via da discussão ética e estética do corpo. Fernanda Paiva, em "Uma Rima Dá História...", propõe-se a refletir sobre Teoria da História aplicada à Educação e Educação Física. Para tanto, opondo ao formalismo académico uma abordagem simultaneamente sintética e poética, busca pensar: para que História? Como não se deve dar a escrita da História? Existe uma História ou faz sentido pensar em Histórias de ...? Paraque História da Educação? História e História da Educação: o que falam à Educação Física? Temos, no conjunto dos textos deste livro um universo imenso de problemas para novas pesquisas desses e de outros autores. O que os leitores dos campos da Educação e Educação Física, especialmente, hão de conferir... na quinta parte. A História sempre tem outra parte... Vitória, 11 de agosto de 1999. Amarílio Ferreira Neto - Organizador r A Escola e a Festa: Racionalidades Distintas na Conformação de um Corpo Civilizado no Século XIX Luciano Mendes de Faria Filho Professor da Universidade Federal de Minas Gerais Doutor em Educação - USP Carla Simone Chamon Professora do Centro Federal de Educação Tecnológica - MG Mestre em História - UFMG Introdução Neste texto, propomo-nos a discutir as distintas racionalidades que informam as práticas escolares e/ou cívicas que tinham, dentre outras intencionalidades, a conformação de uma corpo civilizado, em Minas Gerais, nas primeiras décadas do século XIX. Ocupamo-nos, inicialmente, das práticas escolares, organizadas segundo os preceitos do método monitorial ou mútuo, pretendendo indicar as relações entre os processos escolares, a ocupação do tempo e do espaço e as propostas de produção de uma corporeidade dita civilizada. Na segunda parte do texto, nossa atenção volta-se para os festejos cívicos na tentativa de compreender como a festa buscava imprimir nos corpos uma ocupação cívica do espaço público. Em ambos os casos, ou seja, tanto na instituição escolar quanto nas festas cívicas, nossa pretensão é a de indicar possíveis pistas para pesquisas, entradas possíveis para o entendimento de uma complexa teia de relações entre processos racionalmente idealizados e apropriações diferenciadas realizadas pelos diversos sujeitos envolvidos. Método Mútuo e Escolarização dos Corpos No que se refere à escolarização dos corpos, ou seja, o processo sistemático de produção de uma corporeidade tipicamente escolar, vários estudos têm demonstrado ser esta uma das facetas mais importantes do processo de escolarização na modernidade (Louro,1995). Interessa-nos aqui, de forma particular, discutir essa questão a partir das possibilidades apresentadas pela análise de um momento específico e bastante exemplar da escolarização no Brasil, no século XIX. Trata-se, no presente caso, de analisar as formas de submetimento e educação dos corpos enunciadas, postas em circulação e/ou praticadas no interior daquilo que se convencionou denominar, na história da educação, de método monitorial ou mútuo. Em síntese, o método monitorial ou mútuo consiste, basicamente, numa proposta na qual o professor utiliza os alunos mais adiantados para ensinar àqueles que estão num nível inferior da aprendizagem de determinado conteúdo. O professor trabalharia com os alunos-monitores e estes, por sua vez, trabalhariam, cada um, com uma turma de "colegas", daí a denominação monitorial ou mútuo. Busca-se com esse método a superação do ensino individual que até, então, imperava, no qual o professor, mesmo tendo uma turma de vários alunos, "ensinava" as matérias para cada um deles individualmente (Bastos e Faria Filho, 1999). As primeiras elaborações sobre esse método datam do final do século XVIII, na Europa, sendo que sua "chegada" ao Brasil ocorre nas primeiras décadas dos oitocentos. Em Minas, conforme pudemos observar em outra ocasião (Faria Filho e Miranda Rosa, 1999), os primeiros contatos com o método mútuo datam da década de 20 do século XIX. A primeira notícia que temos sobre a presença do método de ensino mútuo, na Província de Minas Gerais, encontra-se numa portaria de 29 de abril de 1823 quando, acompanhando o movimento que se fazia em relação a esse método em várias outras Províncias, decide-se retirar um soldado da "tropa de linha" para aprender o sistema lancasteriano e praticá-lo nas aulas públicas (Lima, 1927, p.45). Dois anos depois, em 1825, o método mútuo recebe aquela que registramos ser a sua maior propaganda em terras mineiras, a publicação, pelo jornal O Universal, de uma série de artigos sobre as vantagens desse método em relação ao método individual. De 18 de julho a 22 de agosto daquele ano, o jornal publica uma extensa matéria intitulada Educação Elementar. Ao que tudo indica, essa matéria foi reproduzida no jornal pelo seu editor, apontado por muitos como sendo Bernardo Pereira de Vasconcelos, futuro membro do Conselho Superior da Província mineira, Senador do Império e, sem dúvida, um dos mais influentes políticos mineiros na primeira metade do século XIX. O texto Educação Elementar está organizado em cinco partes, a saber: Introdução, Origem do novo sistema em Inglaterra, Princípios em que se funda esse sistema, Emprego das diferentes classes de meninos na escola. Este último tópico inclui um subitem denominado "Disciplina das escolas. Prémio". No primeiro número do jornal, antes mesmo de iniciar a matéria, o editor explicita seus propósitos afirmando: Como estão a estabelecer nesta Província duas escolas de ensino mútuo, a que algumas pessoas de consideração chamam mudo, julguei, que faria um serviço ao público, transcrevendo algumas lições de tão importante ensino. A vista destas lições se convencerão os incrédulos, de quanto convém promover, e generalizar na Província este ensino (18-7- 1825). Este propósito de convencimento sobre a superioridade do método reaparece, agora na matéria propriamente dita, logo no primeiro parágrafo, quando, muito rapidamente, faz-se um diagnóstico da situação da instrução pública no Brasil: O sistema de educação elementar, que se tem seguido no Brasil, desde o seu descobrimento, tem sido mui dispendioso, e mui delimitado; ainda sem notar outros defeitos, que de tempos em tempos se tem conhecido, e se tem tentado remediar com algumas providências oportunas (18-07- 1825). É abordada também a questão da" necessidade de estender a instrução para as "classes inferiores" da sociedade, no que o método é apresentado como sendo de grande vantagem: Não pode deixar de conhecer-se a vantagem, que toda a sociedade tira destes estabelecimentos na Inglaterra, quando se visitam as escolas. Os meninos, e as meninas, aprendendo a ler, escrever e contar, segundo o novo sistema, se habituam necessariamente a um comportamento bem regulado de obediência, e de subordinação metódica de uma classes a outras; a promoção dos indivíduos não só produz a emulação, mas acostuma-os a olhar o merecimento próprio, como para um bom caminho seguro de se avantajar: a prática de obrar metodicamente, e de mandar numa classe ao mesmo tempo em que obedece a outra, necessariamente dá aos meninos um conhecimento refletfírin rin .initn o rin iniuetn- o «,,^«w« „ r menino tem adquirido os elementos de primeiras letras, que lhe são de tanto uso, de tão grandes vantagens em todas as ocupações da vida, está igualmente disposto a ser um cidadão útil, obediente, e morigerado (18- 7). No entanto, afirma o autor do texto, para realizar esse fim é preciso enfrentar um grande problema: O problema, pois, que há de resolver é: como se poderá generalizar uma boa educação elementar, sem grandes despesas do Governo, e sem que tire as classes trabalhadoras o tempo, que é necessário que empreguem nos diferentes ramos de suas respectivas ocupações? (18 - 7). Por isso, nada melhor que o método mútuo que, além de permitir uma grande economia de recursos, pois um professor poderia trabalhar com novecentos ou mil discípulos, também representa uma enorme economia de tempo. Sintetizando os fatores de sucesso do novo método, afirma: Três causas contribuem para essa brevidade do ensino: 1a é a aplicação bem sucedida da disciplina na escola; T a emulação bem dirigida; e 3a não retardar os progressos do discípulo de mais talento fazendo-o esperar pelos outros de menor engenho (18- 7). Na terceira parte da matéria, principiada no dia 27 de julho, sob o título de princípios em que se funda esse sistema, o autor expõe o que, a nosso ver, constitui o cerne da proposta defendida. O texto inicia-secom a seguinte síntese: Dissemos já, que o novo método de educação que nos propusemos a explicar, tem em vista três grandes vantagens. 1a abreviar o tempo necessário para a educação das crianças; 2a diminuir as despesas das escolas; 3a generalizar a instrução necessária às classes inferiores da sociedade (27 - 7). Com o desenvolver do texto, a partir das dimensões espaço- temporais do método, o autor propõe-se a demonstrar a partir de que elementos centrais ele se organiza, apresentando as ideias em relação à sala de aula, aos materiais necessários, à divisão das classes, ao papel dos decuriões, ao tempo, dentre outros aspectos. Em relação à sala, ele afirma: Para obter estes fins é necessário, em primeiro lugar, que a sala da escola seja construída e mobiliada da maneira mais conveniente a por em prática o novo plano. A sala deve ser um paralelogramo, proporcionado ao número dos meninos; pouco mais ou menos dois pés quadrados para cada um (27 - 7). Diz ainda ser necessário um número grande de janelas e que estas devem ser suficientemente altas para que os meninos não possam enxergar o que se passa fora do recinto escolar e, assim, se distraírem. Quanto às classes.afirma: A divisão dos meninos em classes se fundamenta neste princípio: que todos os meninos que ocupam uma classe tenham os mesmos conhecimentos, e que logo que algum sobressaia aos demais seja passado para a outra superior. Os decuriões de cada classe são tirados da classe superior e cada decurião tem um ajudante que é o menino mais bem instruído da classe que esse decurião ensina (27- 7). Com referência ao tempo, assim se posicionou: Outra divisão fundamental, neste sistema, é a do tempo. Os meninos entrarão na escola às 9 horas da manhã; e duas horas depois do jantar. Ao entrar no escola tirarão o chapéu, que fica pendurado nas costas pelo barbichelo. Quando o relógio bate a hora, cada menino toma o seu lugar na classe que lhe compete. Um dos meninos reza uma oração, que toda a escola repete. Daí começarão os exercícios alternativamente de ler e escrever. A escrita nos bancos; a leitura junto ao lugar da escola aonde está a carta; saindo os meninos dos bancos em fileira; a formar sem confusão, um semicírculo junto da carta e o decurião com o ponteio na mão; na mesma ordem voltam par ao banco, a continuar a escrita (1 - 8). Finalmente, nos dias 17, 19 e 22 de agosto de 1825, são publicadas as últimas matérias da série, abordando a questão da "Disciplina das escolas. Prémio". Elas têm como início o seguinte parágrafo: Neste artigo temos de observar três coisas: os prémios, os castigos e averiguação das faltas. Nas escolas mui numerosas faz-se sumamente difícil o Mestre atentar por estas coisas com as necessárias exatidão; e o método, que sobre isto se tem adotado nas novas escolas, tem a vantagem de aliviar todas as dificuldades, 10 ' , facilitar o trabalho do mestre e melhorar muitíssimo a condição moral ' dos discípulos. Na continuação da matéria, chama-se, mais uma vez, a atenção para a centralidade da emulação, dos prémios e dos castigos, ocasião em que se expõe detalhadamente a forma como a disciplina deve funcionar na escola, propondo-se o controle e a emulação entre 0$"alunos e entre as classes como sendo a pedra de toque da mesma. Como último aspecto, faz uma severa crítica aos professores que se distanciam dps alunos, apresentando-se como carrascos dos mesmos. l̂ pCqÇQSto, então, uma maior aproximação entre mestres e discípulos. . Menos de um mês após o término da publicação dessa longa .^matéria, em 14 de setembro, o jornal voltou a colocar em circulação outra notípia sobre o método mútuo. Tratava-se, na ocasião, de um ofício do Imperador enviado a todos os Presidentes de Província, incentivando a adoção do método mútuo de ensino. Dois anos depois, conforme sabemos, veio a público aquela que seria a principal estratégia de divulgação e de expansão do método de ensino mútuo no País: a Lei de 15 de outubro de 1827. Essa Lei determina a criação de escolas de primeiras letras nas principais vilas e ci,dj|tles do Império e a obrigatoriedade da utilização do método mútuo. No "seu artigo 15, afirma-se que "estas escolas serão regidas pelos estatutos atuais no que se não opuserem à presente lei; os castigos serão os praticados pelo método de Lancaster". Ao que tudo indica, para efetuar essa determinação e normalizar o uso dos castigos, o Conselho Superior da Província manda publicar, em 1829, um pequeno livro, de não mais que quatorze páginas, tendo como titulo: Castigos Lancasterianos - Em consequência da Resolução do Exmo. Conselho de governo da Província de Minas Gerais, mandado executar pelos Mestres de 1as. Letras e de Gramática Latina.1 No livro, como o próprio título o indica, são estabelecidos e descritos minuciosamente os castigos lancasterianos a serem utilizados nas escolas da Província. Nele podemos perceber, mais uma vez, que o grande problema imposto pelo método mútuo refere-se à questão da ordem nas escolas. Nestas, a questão do tempo e a ocupação do espaço, experienciadas no ritmo, no entrelaçamento entre os meninos e 1 Devemos a Elizabeth Madureira, professora da Universidade Federal do Mato Grosso, a indicação desse livro. Somos-lhe muito gratos porque, muito gentilmente, enviou-nos 11 as classes, no vaivém dos discípulos, devem merecer a contínua vigilância: Principais faltas que ocorrem nas aulas: Será muito impróprio os discípulos perderem seu tempo, ou a estarem a conversar, porque eles não podem falar e aprender ao mesmo tempo. Em qualquer aula que os discípulos estiveram a conversar, isto se decidirá como uma grande ofensa, e se evitará com uma exata inspeção (Minas Gerais, 1829, p. 10-1). Para a imposição da ordem, além dos castigos, de natureza física e ou moral, os quais chamam a atenção pela extrema crueldade, defende-se com veemência o estabelecimento da hierarquia entre os alunos e a obediência estrita à mesma, enfatizando a importância de os decuriões não descuidarem da execução de suas tarefas. Como parte das estratégias de disciplina e controle aparece, com grande centralidade, mais uma vez, a ideia da emulação, da competição entre os meninos. Apesar da intensa propaganda sobre a superioridade do método, ao que tudo indica, a maioria das escolas, mesmo na capital da Província, Ouro Preto, continuaram a trabalhar segundo o método de ensino individual. O relatório de 1835 do Presidente da Província dá- nos algumas informações sobre as escolas de primeiras letras em Minas Gerais. Nele observamos que, enquanto o número de escolas de ensino mútuo eram apenas nove, as de ensino individual para meninos eram 108 e para meninas eram 13. As de ensino mútuo atendiam a 635 meninos (média de 70,5 por escola), as de ensino individual de meninos atendiam a 2.239 (média de 20,7 por escola) e as escolas de ensino individual para meninas atendiam a 236 (média de 18,2 por escola). Esses números de meninos ou meninas das escolas nos mostram que uma escola de ensino mútuo, apesar de atender mais de 3,5 vezes o número de meninos ou meninas atendidos por uma de ensino individual, está longe de ser frequentada por uma "multidão" deles, conforme preconizado quando da sua defesa. Ainda nesse mesmo ano, noutra matéria, o jornal voltaria a criticar, na sessão Variedades, os métodos disciplinares empregados nas escolas, condenando a violência dos mesmos, atingindo, também, indiretamente, o método mútuo dado o caráter extremamente violento das prescrições mandadas publicar pelo Conselho do Governo da Província, conforme vimos. Dizia a matéria: 12 Bem que os castigos corporais sejam por sua natureza muito próprios para inspirar o medo, e para conter certos espíritos indóceis e tenazes, devemos fugir de empregar meios, que a humanidade ou o pudor reprova, meios muito mais próprios para aviltar o homem, do que para inspirar-lhe sentimentos de honra, e delicadeza. O mal irreparável, e a educação errada, logo que já não se pode dirigir o menino, senão com a vara na mão; neste caso, não resta outro partidopara o estabelecimento a fim de evitar exemplos perigosos, senão reenviar o menino a seus pais, que se verão forçados a dar- lhe um desses empregos rudes, dependentes, capazes de dominar os espíritos mais indomáveis: tal como a condição de militar, ou do marinheiro (Suzanne Education -24-7- 1835). Este clima de questionamento do método pode ser observado também no fato de que, na Lei Provincial n° 13, a primeira legislação mineira sobre instrução pública, não se determina a utilização de nenhum método, ficando, ao que aparece, a escolha a cargo do professor. Aqui também, em consonância com aquilo que foi observado em estudos relativos a outros países, toda a "movimentação" em torno do método corresponde a uma perspectiva educacional mais ampla, de verdadeira civilização do povo, sobretudo daquela parcela identificada como as "classes inferiores" da sociedade. Nesta perspectiva civilizatória, outro lugar para o corpo é reservado...uma outra corporeidade precisa ser produzida. No que se refere ao método mútuo, a questão da escolarização dos corpos pode ser observada no controle restrito sobre os mesmos a partir do esquadrinharnepto da ação educativa no tempo e no espaço. Relacionada a essas dimensões está a dimensão discursiva da escola, uma espécie de linguagem pedagógica, instituidora e legitimadora de representações sobre a escola e a corporeidade. Com relação ao tempo, conforme pudemos observar, a busca de uma maior "produtividade escolar" passa centralmente pelo controle estrito do corpo do aluno, de tal forma que é preciso que o mesmo aprenda, incorpore, torne corpo uma dimensão temporal organizada em novas bases, a do tempo controlado, dividido, esquadrinhado. Não é sem razão que boa parte das elaborações do método e, sobretudo, a respeito dos castigos, visam a ensinar que o tempo é precioso e, mais que isso, que o tempo precisa ser utilizado racional e funcionalmente. No entanto, isso não pode realizar-se sem o concurso de um —»„!„ *«^kAm 0cn,Qn!firn cnhrp nutra das dimensões estruturantes 13 da escola: a dimensão espacial. É na conjugação dessas duas dimensões que trabalha o método sobre o corpo. Vejamos um exemplo, no que se refere aos castigos: Instrumentos e Modos de Castigos Lancasterianos Quando uma ofensa se perpetre muitas vezes, depois da admoestação, o decurião a quem o ofensor apresentar bilhete lhe porá um pedaço de pau á roda do pescoço, que lhe servirá como gonilha, e com isto se manda para o seu lugar. Este pau pesará desde 4 a 6 arráteis, pouco mais ou menos. O pescoço não se oprime, mas deve por-se de sorte que, voltando ele a cabeça para a direita ou esquerda, isto lhe embarace o pescoço. Em quanto que o pau descansa sobre os ombros, sempre se conserva no equilíbrio, mas com o mais leve movimento perde-se, e o pau opera como um peso morto. Assim ele será obrigado a sentar-se em sua verdadeira posição, e continuar com o seu trabalho. Das Cadeias de Pau Quando o castigo de pau no pescoço é inútil, se amarram as pernas dos ofensores juntas com cadeias de pau, uma ou mais conforme a ofensa. Esta cadeia é um pedaço de pau; de um pé de comprido e seis ou oito polegadas de grosso, amarrado a cada perna. Quando tiver a cadeia não poderá andar senão muito devagar; sendo obrigado a fazer seis passos no tempo em que, estando em liberdade faria dois. Estando preparado é obrigado a passear ao redor da aula até estar cansado, então pede liberdade, e promete comportar-se melhor para o futuro: com isto se manda para o seu lugar para continuar com o seu trabalho. Se este castigo não tiver o desejado efeito , então se amarrará á mão esquerda atrás das costas, ou se amarrarão cadeias de pau, de cotovelo a cotovelo, atrás das costas. Algumas vezes se amarrarão as pernas juntas. Este é um excelente castigo para aqueles discípulos que saem dos seus lugares, e vão andar passeando pela aula. Observe-se aí a incidência da preocupação em disciplinar o corpo, em produzir um corpo dócil e sujeitado à escola e às suas determinações específicas. Sair do lugar, andar e conversar são práticas subversivas da boa ordem escolar as quais precisam ser sumariamente combatidas. É interessante que o combate se dê, também, pela instituição de práticas disciplinares que impliquem movimento, mas um movimento que obrigue o corpo a curvar-se, literal e simbolicamente, à ordem escolar. 14 Há que se considerar, no entanto, como fazem diversos dos estudos sobre o método mútuo, que as questões relativas à produção de um novo corpo não está relacionada apenas com os processos de escolarização no sentido estrito, estando, antes disso, relacionadas com a própria racionalidade capitalista. Nesse sentido, cumpre chamar a atenção para dois aspectos importantes. Em primeiro lugar, muitos estudos enfatizam a íntima relação existente entre a organização dos processos produtivos fabris e a organização da instituição escolar, demonstrando que as elaborações em torno do método mútuo significam uma clara apropriação, para o terreno da escola, daquilo que estava ocorrendo na fábrica. Isso pode ser percebido também em Minas Gerais, apesar da ausência quase absoluta de experiências fabris entre nós. É significativo, por exemplo, que o mesmo jornal que faz a intensa propaganda do método mútuo, também o faça da nova organização do trabalho tal qual vinha ocorrendo na Europa, centrando algumas de suas reflexões sobre as propostas de A. Smith sobre a divisão do trabalho. Em segundo lugar, naquele momento histórico, em Minas Gerais, outros discursos sobre a necessidade de uma Educação Física eram postos em circulação, muitas vezes utilizando os mesmos veículos de divulgação daqueles anteriormente relacionados. Assim, encontramos uma muito interessante matéria publicada n'0 Universal, nos meses de outubro e novembro de 1825, respectivamente nos números 43,44,46 e 47. Trata-se de uma resenha, de autoria ao que tudo indica do próprio redator do jornal, a respeito de um fraíado de Educação Física, escrito por António Gonçalves Gomide, em decorrência de uma conclamação do Conselho do Governo da Província de Minas Gerais. A resenha inicia-se da seguinte forma: Reflexões sobre o Tratado de Educação Física O Exmo. Conselho do Governo desta Província, solícito pelo exato cumprimento de seus deveres, e convencido da grande ignorância, que nela grassa, resolveu a composição de um Tratado de Educação Física, Intelectual e Mora/; e que impresso fosse distribuído pelos habitantes da Província. Foram convidados para essa composição as pessoas ma/s acreditadas por seu saber, como melhor consta do Diário do Conselho N° XIV. O Ilustre Mineiro o Sr. António Gonçalves Gomide ofereceu o Tratado, que fez p objeto das presentes reflexões, em limitado espaço de oito dias, e mereceu a preferência a outro que tão bem compôs o benemérito Manoel José Pires da Silva ís amo/o, e compreens/Vo. 15 Em continuidade, o autor da resenha critica a resposta negativa de certas pessoas à conclamação do Conselho e afirma que, apesar das falhas que serão apontadas no tratado, o mesmo "é sem dúvida um dos grandes benefícios que nos poderia fazer o Exmo. Conselho do Governo". Na matéria seguinte, intitulada "Continuação das Reflexões sobre o Tratado de Educação Física", o autor principia dizendo que "com razão dizia Descartes, que só na medicina se podia achar o meio de regenerar a espécie humana", louvando os progressos dessa ciência, anunciando, ainda, que o tratado ora em discussão ocupa-se das regras da Educação Física desde a concepção. A seguir, afirma que ... cumpre observar, que o maior defeito da obra é a linguagem inteiramente técnica em que é escrita. Daqui resulta, que se torna incompreensível a maior parte dos leitores, para quem foi recomendada: com efeito como poderá o rústico lavrador entender as expressões embriões, feto, pletora, estuação, zea mais, e outras sem as necessárias explicações? É sem dúvida nesta parte indesculpável o Autor.2 Continua o autor da resenha chamando a atenção para a ausência, ou aprofundamento, de assuntos comoa questão da necessidade de cuidados com o casamento, e a importância de se observar o "tempo mais próprio para a fecundação. Relata a seguir a forma como o autor do tratado refere-se à prenhez, criticando seu método de exposição. Critica também o tratado por recomendar "nada de aperto, e principalmente sobre o ventre", dizendo ser isso um grande engano, um vez que a utilização de largas cintas que servem para sustentar e aliviar o peso do ventre, serem francamente recomendáveis, sob pena de as mulheres ficarem disformes por uma só prenhez. No número seguinte do jornal, o de número 46, continuam as reflexões sobre o tratado. Cobra-se o fato de o autor não ter levado em conta as diferenças de regimes de vida (sedentária ou ociosa) e de temperamentos entre as mulheres e entre as estações do ano (tempo quente ou frio), ao prescrever os métodos de tratamento, criticando a 2 Para uma reflexão aprofundada sobre a questão da linguagem e os jargões utilizados fim riiwprcac nrnficc/Soc v 16 ausência de uma recomendação sobre a necessidade especial, das mulheres, em relação ao sono, mais ainda na situação de prenhez. "Vamos já à educação do ensino depois que sai à luz", assim inicia a última parte da matéria sobre o tratado em questão. Fala-se sobre o pranto do recém-nascido, as suas dificuldades com o novo ambiente e os cuidados que se devem ter com a criança e com a mãe no momento do parto e do imediato pós-parto. Termina o texto por elogiar as recomendações do autor do tratado a respeito do "embiho do recém-nascido", cobrando, porém, uma maior extensão do texto a esse respeito. A resenha permite-nos fazer algumas reflexões. Em primeiro lugar, o que o autor chama de Educação Física? Sem dúvida, estamos num momento ainda em que a Educação Física é considerada uma das dimensões fundamentais da formação, constituição, do humano, ao lado das duas outras, quais sejam a dimensão moral e intelectual. Esse aspecto pode ser percebido na própria conclamação do Conselho do Governo da Província: trata-se de "encomendar" um tratado de educação moral, física e intelectual. Essa compreensão, que entende a formação humana nessa tríplice dimensão, atravessará o século XX, sendo, entre nós, muito reforçada pelas leituras e apropriações realizadas dos textos de H. Spencer. Estamos longe, pois, da compreensão da Educação Física como disciplina escolar, fato que somente ocorrerá, entre nós, já no inícios do século XX e que marcará, sem dúvida, um momento fundamental da trajetória do ensino da Educação Física. Em segundo lugar, é possível observar como os processos de racionalização dos cuidados com o corpo vão-se impondo socialmente entre a população, sobretudo a letrada. Veja que o próprio Estado, ainda no início de um lento mas inexorável processo de estruturação, toma para si a tarefa de educação não apenas moral e intelectual, mas também física do povo. Há, evidente, os limites impostos a essa ação do Estado, seja pelas circunstâncias (o povo é iletrado), seja pelo próprio jargão médico. Este último fato, aliás, bastante discutido e, mesmo, ridicularizado ao longo dos séculos. Em terceiro lugar, entendemos que se engana quem pensa que estes processos racionalizados, mesmo quando se utilizam do impresso, dirigem-se tão somente aos letrados. Pela ação do estado e das instituições, principalmente da escola, busca-se moldar um povo, estruturar um estado e construir uma nação e, nesses processos, elevar o povo à civilização. Tudo isso passa, necessariamente, por — cj..««^m c.-oi^o mine mnmentns de realização, como veremos, 17 não obedecem apenas à racionalidade escolar, abrangendo outros espaços e tempos sociais. É disso que trataremos a seguir. Festas e Corporeidade Cívica Estruturar um Estado, construir uma nação, elevar o povo à civilização: eis a grande obsessão do século XIX. Em Minas, nas primeiras décadas do século XIX, em especial nas décadas de 20, 30 e 40, esse projeto perpassava os debates aúblicos, o teatro, os jornais e uma multiplicidade de festejos cívicos que foram celebrados com grande frequência nos arraiais da província mineira. Eram festejos acolhendo reis e governantes; comemorando aniversários, casamentos e falecimentos na família real; festejos pela aclamação e coroação de D. Pedro l e D. Pedro II; festas em comemoração à independência brasileira, ao juramento da constituição e por muitos outros motivos. Segundo Francisco Rezende, por "qualquer ato político ou público" (Rezende, 1987, p. 68) se fazia uma festa. . As festas cívicas eram em geral organizadas pela elite mineira local, contando sempre com a ajuda e participação dos moradores. Nesses dias, os habitantes enfeitavam ruas e praças, soltavam fogos de artifício, salvas de artilharia, tocavam os sinos, iluminavam suas casas, percorriam o arraial com bandas de música, celebravam missas cantadas, faziam jantares especiais, tiravam os trajes de gala do baú, enfeitavam chapéus e lapelas com ramos de fumo e café - símbolos nacionais - brincavam de argolinha, dançavam, executavam óperas, touradas e cavalhadas (Chamon, 1998). Momento de encontro alegre, quando o povo tomava as ruas das vilas e arraiais mineiros para se divertir, a festa era, também, momento privilegiado de captação de adesão e de aprendizagem de virtudes políticas, onde se buscava educar o povo para as virtudes cívicas e interessá-lo pelas questões públicas. Como reunião pública e cívica, essas comemorações procuravam efetuar a correspondência dos corações, buscavam a extensão a todos de um mesmo sentimento: o de amor à pátria. Além disso, ao promover a reunião de todos num mesmo lugar, ao colocar em cena o espetáculo de um "grande povo reunido" (Duvignaud, 1965, p. 238) nesses festejos, sempre se queria criar e reforçar laços de comunhão e de solidariedade cívica entre os 18 habitantes de um mesmo lugar. Existia, nessas celebrações festivas, além de uma vontade pedagógica, uma vontade de unificação, onde, reunidos num mesmo espaço, o povo estreitasse laços de união. A festa realizada em Minas nesse período, calorosa e contagiosa, pretendia provocar o fervor coletivo e realizar a união de todos num só corpo, esforçando-se para que todos se reconhecessem como parte de uma mesma comunidade e se apegassem às virtudes cívicas. Para isso, era necessário atingir não só o coração, mas o próprio corpo do cidadão. Era necessário inspirar no povo o amor e a adesão à pátria, mas também criar uma corporeidade cívica, ou seja, inscrever nos corpos dos cidadãos atitudes que simbolizassem esse patriotismo e uma ocupação cívica do espaço público. Essa ordenação cívica do corpo era vivida pelos habitantes da província mineira em vários momentos das celebrações festivas. Aqui vamos destacar dois deles: as paradas e desfiles militares e as alvoradas. Alvorada era o nome dado para o cortejo de pessoas, acompanhado de uma banda de música, que percorria as principais ruas da vila. Segundo Francisco Rezende, era costume nos festejos a realização de uma alvorada, onde o povo cantava hinos patrióticos e dava vivas: "logo que chegava a hora anunciada ou que a reunião já estava bastante numerosa todos se punham em movimento, tendo à sua frente o juiz de paz com o seu fitão; e, com fogos e música, percorriam as principais ruas da povoação" (Rezende, 1987, p. 69). A alvorada que corria a povoação nas comemorações cívicas era o lugar onde as pessoas se ajuntavam. Nas ruas e praças por onde ela passava, os corpos se misturavam: os diversos segmentos sociais se reuniam num mesmo espaço e celebravam um mesmo acontecimento. Apesar da algazarra festiva que acompanhava esses momentos, a ordenação hierárquica não era abandonada. Pelos relatos, percebe-se como a festa dava notoriedade à elite dirigente e, à frente da alvorada que percorria a cidade, geralmente, havia uma autoridade. Em Ouro Preto, nas festas pela pacificação do Rio Grande do Sul, em 1845, o povo percorreu a cidade "acompanhado pelos exm°s srs. vice-presidente e comandante das armas e grande número de pessoas gradas" (O Itacolomy,9 - 5 - 1845). A hierarquia que essa espécie de cortejo revelava, apesar de diluída no ajuntamento, era uma reafirmação da ordem, momento em que a festa educava os homens e lhes fixava o lugar na sociedade. Na alvorada, assim como nos cortejos realizados nas festas, renartiam o mesmo espaço físico, onde se buscava forjar uma 19 unidade cívica, uma comunhão entre os habitantes das vilas e povoados mineiros. Todos os presentes, testemunhas da festa, independentemente de sua posição na hierarquia social, eram incitados a fazer parte de uma mesma comemoração, a comungar dos mesmos valores e a caminhar num mesmo compasso. Na rua, a festa podia acomodar a todos, o que não significa que ela não fosse alvo de controle. Havia sempre um percurso a definir a marcha, espaço físico dentro do qual os organizadores pretendiam conter a festa. Segundo Mona Ozouf, esse é o ideal de uma festa bem- sucedida, onde a multidão se coloca num espaço disciplinado e somente ali se manifesta: "a festa é sentida como a expansão da felicidade pública através de um espaço urbano pleno como um gérmen; uma difusão regular, isenta de dispersão" (Ozouf, 1971, p. 890). Mesmo que a ocupação desse espaço não ocorresse de maneira regular e uniforme, mesmo não sendo expressão da ocupação harmoniosa do espaço urbano, ainda assim, a alvorada era uma tentativa de impedir a dispersão dos habitantes e fazer com que todos vivenciassem a mesma efusão e caminhassem num mesmo ritmo. Na verdade, a alvorada era uma tentativa de centralizar a comemoração, impedindo que a festa se fragmentasse e se diluísse pela cidade. Aqui se procurava criar tanto um corpo educado para a ocupação ordenada e civilizada do espaço público, quanto, simbolicamente, um corpo político: a nação. Um outro momento de criação de uma corporeidade cívica era o das paradas e desfiles militares, frequentes nos festejos cívicos das vilas e arraiais mais importantes da província. As paradas eram realizadas normalmente na praça principal da vila onde, depois da missa, os cidadãos encontravam formado em batalhões o corpo militar local. Além das continências e descargas de mosqueteria e artilharia, o que mais se destacava nos relatos com relação às paradas era a disciplina e a ordem. Em Ouro Preto, nos festejos pelo 7 de Abril, depois da missa, o povo dirigiu-se "à praça onde estava postada a Guarda Nacional em n. de 554 praças, muito bem disciplinadas, e vestida com todo o asseio e da mesma sorte a Guarda Policial: feita a continência de estilo, e havendo-se dado 3 descargas de mosqueteria, segui-se a de artilharia" (O Universal, 8 - 4 -1836). A continência, o alinhamento da tropa, a marcha cadenciada, enfim, os movimentos corporais das paradas e desfiles militares nos revelam um repertório de gestos codificados onde se explicita todo um ideal de ordenação, controle e hierarquização tanto do corpo físico, 20 quanto do corpo social. A ação do corpo militar na festa era uma ação coordenada, pensada, controlada. Entretanto, se os festejos cívicos celebrados em Minas Gerais naquele momento tinham a sua funcionalidade política - seja conquistando a adesão do povo, seja criando um corpo cívico - esses festejos não se esgotavam aí. Na verdade, eles não podem ser tomados simplesmente como um artifício político, "uma máquina dócil, pronta a ser montada e desmontada em um piscar de olhos pelas necessidades de uma causa" (Ozouf, 1976, p.34). A festa comportava uma multiplicidade de sonhos e era perpassada por desejos incontáveis. Apesar da tentativa de ordenar e direcionar o espaço festivo, ele era apropriado de inúmeras formas pelas pessoas que celebravam, inclusive de maneiras que não se encaixavam na festa que era idealmente imaginada pela elite mineira. As turbulências que agitavam e esquentavam os ânimos nas comemorações cívicas são um exemplo, na medida em que revelam a não-conformidade ao direcionamento que a elite dominante queria imprimir à festa e ao corpo que festejava. A festa cívica idealizada é sempre uma festa de harmonia e concórdia, sem tumultos e sem lutas. No entanto, a violência e a festa não são estranhas uma à outra. Esses dois momentos são informados pela emoção, pelo estímulo às reações afetivas, convivendo neles tanto o amor quanto as rivalidades. Apesar de todo o esforço dos organizadores das festas para mante-las sobre controle, para evitar qualquer transbordamento, elas quase sempre se aliam ao excesso e ao desregramento. A alegria a que ela convida ultrapassa os limites idealizados pelo poder político de uma festa ordenada e civilizada. Segundo Ives Bercé, que estuda a relação entre a festa e a revolta na mentalidade popular dos séculos XVI ao XVIII, os dias de festa comportam, ao lado da explosão de alegrias, a explosão de agressividades, sendo "ocasião de ajuntamentos e de arrebatamento da multidão, de excesso de bebidas e de discursos exaltados" (Bercé, 1976, p.74). Certamente a questão da desordem e da violência não perpassava apenas as ocasiões festivas, marcando também vários outros momentos da vida dos mineiros. Existiam desde rivalidades e enfrentamentos políticos entre as diversas facções da província, passando por sedições, até rebeliões escravas e crimes de natureza diversa. Em virtude da grande incidência de desordens e confrontos violentos, havia uma preocupação crescente por parte das autoridades n neriao representado por uma "população perigosa" e 21 rebelde, que englobava tanto escravos, quanto homens livres pobres e vadios e proprietários de terra inconformados. com a tentativa de implementação de um governo, centralizado. Preocupação essa que cresceria após a abdicação de D. Pedro l, com o aumento de insurreições e levantes que passaram ocorrer por todo o País (Mattos, 1990, p. 200-205). Em Minas Gerais, além da Sedição de Ouro Preto de 1833 e da Revolução, de 1842, dois momentos de grande comoção política, havia também conflitos entre liberais exaltados, liberais.moderados, também chamados de chimangos, e restauradores, denominados de caramurús, facções que, já ao final do período regência!, terão se organizado nos partidos liberal e conservador. De acordo com os dados levantados por Marcos Andrade, os núcleos urbanos mais importantes da.província "foram palco de várias disputas e contendas entre" chimangos e caramurús. : A violência em Minas incluía também desordens e crimes caracterizados como resistência à justiça, retirada ou fuga de presos em poder da justiça, arrombamento de cadeias, homicídio e tentativa de homicídio, ferimentos e ofensas físicas, uso de armas, furtos, ameaças, crimes contra a propriedade, entre outros (Andrade, 1996, p. 101,102). Presente no cotidiano mineiro, a violência estava também nos momentos festivos. Apesar da maior parte dos relatos negarem a sua existência, a própria ênfase dos narradores na tranquilidade e harmonia dos festejos nos indica que a violência e or tumulto estavam potencialmente ali, como que a rondar a festa, a espreitá-la na espera de uma brecha por onde entrar, , - Da mesma forma que a festa e o seus relatos difundiam o ideal de^uma província ordenada, onde coisas e pessoas estivessem em seus lugares, a própria festa era alvo de ordenamento por parte da elite política, que idealizava uma comemoração pacífica e sem tumultos, onde todos se congratulassem e se alegrassem em torno dos ideais que a festa proclamava. Preocupados em afirmar a civilidade e o patriotismo de um lugar, a maior parte dos relatos nega a existência da violência e da desordem. Mas, ao fazerem isso, eles acabam por nos confirmar que o ajuntamento de um grande número de pessoas e o entusiasmo festivo que as arrebatava nesses festejos cívicos eram um caminho aberto .para o desregramento, por vezes até mesmo um convite velado à violência. Nos festejos por ocasião da instalação da Assembleia Geral Legislativa, em 1826, ocorridos no Tejuco, o narrador nos conta que "no 22 seu contentamento e excesso de alegria nada fez o povo que perturbasse a boa ordem" (O Universal, 19 - 6 - 1826). Nas festas pela maioridadedo imperador D. Pedro II, em 1840, o narrador registra, mesmo considerando isso dispensável, "que no meio de tamanho entusiasmo, nenhuma só voz, nem um grito descompassado aguaram o gosto da bela e patriótica sociedade" (O Universal, 16 -11 - 1840, p.4). Ao falar da harmonia e da ordem presentes nos festejos, esses relatos também nos dizem que, "apesar" do grande entusiasmo mostrado pelo povo e do ajuntamento que ele formava, não ocorreram excessos nem perturbações, Ou seja, esses dois ingredientes, o entusiasmo e o ajuntamento, indispensáveis à festa, eram potencialmente propiciadores de confusão. Acreditando que seus relatos sobre as festas eram uma maneira de educar os cidadãos, de dar a eles exemplos de civilidade e patriotismo, alguns deles, na impossibilidade de enfatizar apenas a ordem, nos traziam não só a descrição do bom andamento da festa, mas também a descrição de ações violentas e de tumultos. Essa era uma forma de denunciar um comportamento bárbaro e antipatriótico, mostrando um exemplo que não deveria ser seguido. Esses relatos eram, pois, uma denúncia contra atos perturbadores nas festas. No arraial de Itabira do Campo, nos festejos em comemoração ao dia 7 de Abril, em meio à música e aos vivas liberais, um grupo de rapazes soltou vivas a D. Pedro l e ao Vigário Meirelles,3 provocando indignação em alguns cidadãos que festejavam, e que, sentindo-se atentados, gritaram ainda mais vivas a D. Pedro II. As provocações continuaram. Depois de ter-se repetido o mesmo viva a D. Pedro l, pelo grupo provocador, um "cidadão constitucional" que tomava parte nos festejos e que soltava vivas ao novo Imperador pediu ao Juiz de Paz que dissolvesse semelhante ajuntamento, ... depois de haver escapado felizmente de uma facada que um dos tais do grupo lhe dera e fora evitada pela destreza do Capitão José Maurício de Almeida e Silva [...]. Depois de muitas achincalhações ao Juiz de Paz o grupo se dissolveu e nenhuma outra novidade houve mais esta noite (O Universal, 4-11 - 1831, p. 4). Um dos grandes problemas das brigas e provocações era a sedução que elas exerciam sobre "a populaça ignorante e crédula". As provocações, como a do episódio acima descrito, visavam a instigar o às intenções dos restauradores. 23 povo presente nas comemorações, de maneira a perturbar a boa ordem e assim atrapalhar os festejos de uma facção política rival. O relator do caso de Itabira do Campo, no final de seu artigo, pede que se faça uma devassa para se saber de onde "partiram as insinuações à populaça, quem moveu aquela gente a andar dando vivas sediciosos". O povo era aqui considerado uma "populaça crédula e ignorante" que se deixava seduzir facilmente, devendo por isso ser bem orientado e conduzido no caminho da ordem e do patriotismo. Nos festejos cívicos promovidos pelos habitantes de Minas .Gerais, os relatos descrevendo momentos de tumultos e violências quase não nos contam agressões gratuitas, nem "ajuste de contas" entre particulares em meio ao ajuntamento festivo, o que não significa que eles não existissem. A violência que eles descrevem, como se pode ver nos casos anteriores, é principalmente aquela que revela a festa como ocasião de enfrentamento de segmentos rivais, entre facções e tendências políticas opostas. Os festejos no Serro, em 1831, em comemoração à abdicação do Imperador, retratam bem essa situação, em que os moradores "brasileiros" do arraial, tomados pelo ímpeto festivo, passaram a provocar os portugueses. Segundo o relato de Teófilo Ottoni, o entusiasmo festivo que embalava a festa transformou "os ímpetos do povo triunfante" em provocações contra "alguns poucos desafetos à nova ordem de coisas e mesmo a pessoas inofensivas". O povo, parado em frente à porta do Ouvidor, começou a provocar tumultos: "a exacerbação dos espíritos prognosticava cenas horrorosas". No entanto, no caso da festa do Serro, a violência não foi mais longe, sendo contida por uma "palavra de autoridade". Diante da cena tumultuosa, e prevendo o pior, Teófilo Ottoni, redator do jornal liberal da cidade Sentinella do Serro, conseguindo silêncio e atenção do povo, pregou e exigiu "moderação e generosidade, e pedindo que os - morras - somente ecoassem contra o tirano e que não manchássemos com excessos criminosos a bela vitória que nossos irmãos fluminenses acabavam de ganhar" (Ottoni, 1930, p.19). Mas, nem sempre a violência podia ser contida, seja pela falta de uma "palavra de autoridade", seja pela intensidade do momento. Incontroláveis foram as desordens ocorridas nas festas pela suspensão do tutor do imperador D. Pedro II, José Bonifácio, na cidade de Ouro Preto. A noticia, recebida com "transportes do mais vivo prazer", levou o povo às ruas para comemorar. Entretanto, em meio ao ajuntamento "não foi possível prevenir que algumas pessoas irritadas contra os excessos dos caramurús se contivessem": nas duas noites em que se 24 festejaram, elas "atiraram algumas pedradas a casas de pessoas conhecidas por pertencentes a esse partido" (O Universal, 3 -1 - 1835, p. 3). Como se pode observar nesses últimos relatos, essa violência explícita, por vezes presente nas festas, estava diretamente relacionada com as lutas e divergências entre as facções liberal e restauradora, entre chimangos e caramurús. Esses conflitos que tomavam a festa eram eminentemente conflitos políticos. Aqui, a festa não produzia a harmonia desejada, não só porque a ordem não era mantida, mas, principalmente, porque os homens que ela desejava ver reunidos se colocavam em luta no próprio momento festivo. A festa era, então, uma oportunidade para expressão de diversos conflitos políticos, principalmente aquele que, no período regencial, foi constante na província: o conflito entre restauradores que se opunham à abdicação de D. Pedro e os liberais que comemoravam a sua queda. Entretanto, essa violência não pode ser reduzida a uma expressão dos conflitos políticos cotidianos. Na verdade, ela era o resultado de um entusiasmo difícil de limitar, de uma efervescência incontrolável. Aqui, a violência não era previamente pensada e organizada, não era um tipo de movimento que envolvesse um cálculo racional, não podendo ser caracterizada como uma violência instrumental, mas sim impulsiva. Ela se ligava a raivas e ressentimentos das lutas políticas, mas sua ocorrência era um transbordamento do momento festivo, um descontrole ocasionado pela explosão de emoções que a própria festa provocava. Aqui, o ideal de educar o corpo para ocupar o espaço público de maneira cívica e civilizada mostrava seus limites e também as suas intencionalidades, Considerações Finais Ao longo de todo o texto, voltamo-nos para o entendimento de práticas educativas que enunciavam, por assim dizer, o esboço de um projeto civilizador que tem como um de seus momentos de realização á conformação de um corpo físico e social. Procuramos mostrar como as ações impetradas a partir de projetos idealizados de comportamentos acabavam por submeter o corpo de alunos e cidadãos a formas disciplinadas de ocupação dos tempos e dos espaços sociais. Num e noutro caso, as práticas de violência estão a anunciar a impossibilidade prática dessa conformação. No caso da escola, a • d e m o n s t r a a não-adesão d o s alunos. 25 à ordem pressuposta para o funcionamento regular do método mútuo. Já no caso das festas, a violência não desejada, mas existente, revela uma outra ocupação do espaço público bastante diferente daquela harmoniosa, hierarquizada e controlada tal qual idealizava a elite mineira. Referências Bibliográficas ANDRADE, Marcos Ferreira. Rebeldia e resistência: as revoltas escravas na Província de Minas Gerais (1831-1840). 1996. Dissertação (Mestrado em História) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais. BASTOS, Maria Helena C., FARIA FILHO, Luciano Mendes. A escola elementar no século XIX. Passo Fundo: Ed.UPF, 1999. BERCÉ, Yves-Marie. Fête et revolte. Dês mentalités populaires du XVIe au XVIII6 siècle. Paris: Hachette, 1976. BURKE, P., PORTER,R. Línguas e jargões: contribuições para uma história social da linguagem. São Paulo: Unesp, 1996. CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Brasília: Ed.Unb, 1981. CHAMON, Carla Simone. 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Compendio de Gymnastica Escolar: o Corpo e a Pedagogia no Início do Século XX Pierre Normando Gomes da Silva Professor da Universidade Federal da Paraíba Mestre em Educação - UFPB O Compendio... como Livro-Didático Pelos dados que a historiografia brasileira da Educação Física possui, o texto de Arthur Higgins, denominado inicialmente de Compendio de gymnastica e jogos gymnasticos escolares (1896), foi a primeira sistematização pedagógica para a Educação Física brasileira, durante a Primeira Republica, que de fato se efetivou na escola com aprovação oficial.1 Para ilustrar esse status que o Compendio... recebeu, pelo menos no Distrito Federal, basta dizer que foi aprovado unanimamente tanto pelo Conselho Superior de Instrução (1902), quanto por uma comissão da Diretoria Geral de Instrução Municipal, nos anos de 1912 e 1914, além de ter recebido prémio conferido por uma Comissão de Professores da Escola Normal do Distrito Federal (1913). Em 6 de março de 1912, início do ano letivo, o Compendio... foi indicado como "livro-didático", para a Educação Física das escolas públicas na cidade do Rio de Janeiro. Nessa época, a comissão da Diretoria Geral da Instrução Municipal emitiu um parecer afirmando que o livro seria um verdadeiro assessor aos professores primários, pelo menos por dois motivos: primeiro, porque tornava "a ginástica uma disciplina verdadeiramente útil e não nociva, como acontece sempre que os exercícios são dados com desprezo das regras"(apud Higgins, 1934, p.4); segundo, porque organizava os exercícios de acordo com a idade para os três cursos da escola primária (Elementar:7-10 anos; 1 Não estou desconsiderando toda a rica produção bibliográfica da segunda metade do século XIX. Carlos F. CUNHA JÚNIOR fala de seis manuais de Educação Física, publicados nesse período, e ainda acessíveis na Biblioteca Nacional. In: FERREIRA NETO, Amarílio (Org.). Pesquisa histórica na educação física, 1998. p. 22-24. 28 Médio:10 a 12 anos; Complementar: maiores de 12 anos). Desse modo, o Parecer concluía, Tem, pois, o professor primário, neste livro um verdadeiro roteiro, e não terá mais a fazer que acompanhá-lo, para ensinar proficientemente esta d/sc/p//na"(1934, p.8). Contemplando os requisitos indispensáveis para uma sistematização pedagógica burguesa, a racionalização das regras, o ajuste da matéria à idade e o cientificismo na seleção dos exercícios que fossem úteis para a vida e para o trabalho, o texto de Higgins teve uma repercussão dantes nunca vista. Além das aprovações oficiais, ganhou uma popularidade enorme, pois, para uma época de poucos leitores, devido ao índice de analfabetos, o livro teve três edições (1896/99,1911,1934), todas publicadas pela Tipografia do Jornal do Comércio/RJ. O manual pedagógico de Higgins, resultado de sua experiência de onze anos à frente da Ginástica na Escola Normal do Distrito Federal, funcionou como livro didático por, no mínimo, quatro décadas, nas escolas do Rio de Janeiro. Recebeu também elogios na imprensa escrita em diversos jornais e em diferentes momentos.2 Dentre esses, merece destaque o texto publicado n'0 Jornal do Comércio (2-11-1899): O Sr. professor Arthur Higgins acaba de publicar o seu excelente livro de que já nos ocupamos quando publicada a introdução [1896]... £síe volume consta de três livros: Noções teóricas, ginástica primária do primeiro grau e ginástica secundária. Além dos [exercícios] técnicos, o Sr. Higgins completou a sua obra com vários e divertidos jogos que ocupam agradavelmente as crianças e as fazem insensivelmente praticar a ginástica que tanto para elas como para os adultos é a realidade do prolóquio - mens sana in corpore sano"(apud, Higgins, 1934, p. 2). A "T/s/ca Pulmonar3' e o Interesse pela Ginástica Higiénica No prefácio à primeira edição, o professor, que lecionou 35 anos na Escola Normal do Distrito Federal e 37 no Externato do Colégio 2 No ano da publicação do livro de Higgins, vários jornais divulgaram a obra: A Gazeta de Notícias (6/10/1896), O Pais (3-10-1896), bem como por ocasião da segunda edição, pelo Jornal A Gazeta Comercial e Financeira (24-10-1902). 29 Pedro II ou Ginásio Nacional, além de outros anos como professor no Colégio Alfredo Gomes, revelou as origens do seu interesse: Só depois de 11 anos de tirocínio na arte que me dediquei de corpo e alma, julguei-me capaz de dar a publicidade um escrito digno do conceito generosamente elevado e do acolhimento carinhoso de que tenho gozado desde o princípio da minha carreira no ensino dessa arte utilíssima que, salvando-me da predisposição para a tísica pulmonar, me tomou capaz de ser útil à minha adorada Pátria (Higgins, 1934, p. 13). As origens do seu interesse pela Ginástica higiénica deveu-se aos exercícios que o salvaram da "tísica pulmonar". A tuberculose era uma doença comum entre a população, devido às condições ambientais em que as pessoas viviam. Acometido por esse mal, aos 21 anos de idade, o jornalista de O Cruzeiro foi orientado pelos médicos a ter uma "vida regrada" e "cuidar do físico". Foi, então, que Higgins procurou a Escola Normal para praticar exercícios ginásticos convenientes ao seu enfraquecido organismo. Nessa escola, o professor de Ginástica de então era o capitão Ataliba Fernandes. Após um período de prática de exercícios, relata Higgins: Ato fim do ano letivo, submetendo-me a exame, fui aprovado com distinção, nota que nenhum outro examinando do meu sexo obteve antes de ser eu professor daquela aula. A vista desses resultados tomei a resolução de fazer-me professor de ginástica escolar [...] fui logo depois do meu exame convidado para professor em estabelecimentos de primeira ordem (1934, p. 14). A Ginástica, essa "arte utilíssima", não só havia salvado Higgins da tuberculose, mas havia dado-lhe um sentido existencial, "ser útil à minha adorada Pátria", à semelhança do que a Ginástica de Jahn propunha. Assim, seu ideal humanitarista, sua prática como professor de Ginástica e a publicação do seumanual de Ginástica higiénica, constituíam uma espécie de medicalização preventiva pedagógica: salvar os de organismo enfraquecido e torná-los patrióticos, para se ajustarem ao ritmo social da civilidade burguesa, imprimido pelo lema "Ordem e Progresso". 30 O Mefhodo Sueco-8e/ga-Bras/7e/ro Na sistematização pedagógica dessa "arte utilíssima", Higgins, da primeira para a segunda edição (1911), alterou o título da obra de Compendio de gymnastica e yogos gymnasticos escolares para Compendio de gymnastica escolar (238 p.). O método era sueco- belga devido a ser "o resultado de escrupuloso estudo de diversos sistemas estrangeiros, principalmente dos de Ling, sueco e Dox, belga" (Higgins, 1934, p.15), e era também brasileiro, porque, dizia ele: Fiz inovações que concorrem muito para facilitar o aprendizado e o ensino, e também para o embelezamento da arte. Assim, é que sistematizei os comandos, o que facilita muito o trabalho dos discípulos, futuros mestres: a terminologia é quase toda arranjada por mim, as mais das vezes sem sair da língua vernácula e algumas empregando palavras latinas de facílima compreensão. As definições e divisões da ginastica e dos exercícios foram concebidos por mim; inventei alguns exercícios de movimentos combinados, imitativos e estéticos e modifiquei alguns jogos ginásticos, adaptando-os ao nosso clima (1934, p.15). Apesar de toda a sistematização que desenvolveu, o cuidado de Higgins em colocar-se como "organizador" e intitular o seu texto de compêndio revela a sua seriedade e preocupação em considerar-se como criador de um método para a Educação Física escolar, até porque um método de ensino, "para ser digno desse nome, deve ser baseado na experiência do exercício sobre o corpo, e somente com essa condição é que se pode impó-lo à esco/a"(Higgins, 1934, p.25). Como, para ele, a base de seu método estava no efeito que o exercício provocava sobre o corpo, cabe-nos descobrir qual a compreensão que o professor de Ginástica da Escola Normal possuía sobre o corpo e sobre o movimento que esse corpo executava. T 31Corpo e Movimento em Higgins A compreensão de corpo em Higgins não é difícil de ser identificada, pois ele mesmo a explicita quando afirma que para seu método ser eficaz os seus "discípulos, futuros mestres", deveriam conhecer o corpo humano. Sobre essa recomendação fazia a seguinte analogia: Assim como qualquer maquinista deve conhecer os nomes das diversas peças da máquina com que trabalha, nós temos que lidar com essa maravilhosa máquina que se chama o corpo humano, não podemos ignorar os nomes das diferentes partes de que ele se compõe, pelo menos superficialmente (1934, p.41). Conhecer os nomes das diversas peças da máquina com que trabalhava era a tarefa do professor. Nesse sentido, o educador do físico não passava de um operador de máquina que precisava identificar suas partes pelo nome. Por isso, deveria saber que o corpo era dividido, segundo os manuais de Anatomia que Higgins havia consultado, em quatro partes: cabeça, tronco, membros superiores e membros inferiores. A especificação que o professor de Ginástica fazia de cada parte era a seguinte: a cabeça constituía-se de crânio, toda a região onde nasce o cabelo, e mais a testa e face, parte anterior onde se acham olhos, nariz e boca; o tronco, a parte central do corpo, tem a forma de um cilindro achatado de trás para diante, constituído de duas partes: tórax (parte superior) e abdome, vulgo barriga; os membros superiores ou membros torácicos são divididos em ombro, braço, antebraço e mão - palma, dorso e dedos - e os membros inferiores ou membros abdominais, também divididos em quadril, coxa, perna e pé - calcanhar, sola ou planta, dorso e dedos ou artelhos - (Cf. Higgins, 1934, p. 41-42). A identificação entre o corpo e a máquina era tanta, que não bastava conhecer os nomes das "peças", era preciso vê-las pela óptica mecânica, por exemplo, o tronco é visto como um cilindro achatado. Esse entendimento anatómico do corpo-máquina, fruto da compreensão cartesiana, por um lado, supera o entendimento do corpo como invólucro da alma e, por outro, converte-o em simples máquina movida por comandos. Isso significava desmistificar o corpo. Dessacralizava-o para poder controlá-lo tecnicamente. Dessa forma, 32 indústria, propôs uma aprendizagem de movimentos em que estes fossem tecnicamente definidos e milimetricamente controlados. Nessa estética da máquina, o movimento corporal não poderia ser tomado dos costumes e festas do povo, mas da neutralidade científica da engrenagem de uma máquina. Sendo assim, Higgins (cf. p. 42) definiu uma taxionomia, denominando-a de "terminologia dos movimentos articulares", que estava estruturada em três ciasses de movimentos: flexíveis, inflexíveis e mistos. Os movimentos FLEXÍVEIS eram constituídos por flexão, quando uma parte do corpo se dobra sobre si mesma, e extensão, quando se desdobra a parte dobrada. Os INFLEXÍVEIS, eram subdivididos em nove espécies de movimentos: rotação, aquele que faz girar sobre si mesma uma parte do corpo; pronação faz voltar a palma da mão para baixo, quando o antebraço se achar em posição horizontal; o movimento inverso é supinação; abdução faz membro(s) ou parte(s) se afastar da linha mediana do corpo; o movimento oposto chama-se adução; elevação, movimento que eleva em qualquer direção uma parte do corpo; o oposto à elevação chama-se abaixamento; oscilação resulta da combinação dos movimentos de elevação e abaixamento executados em dois sentidos opostos e seguidamente; circundução, quando parte do corpo descreve uma figura cónica, cujo vértice fica na articulação e no outro extremo, descrevendo uma circunferência. Por último, os movimentos MISTOS, que eram constituídos pelos movimentos de distensões. A capacidade de mover-se e a intencionalidade operante da motricidade humana estavam, em Higgins, delimitadas por uma taxionomia que restringia a dimensão motora em três níveis de classificação de movimentos e em doze subcategorias correspondentes. Os movimentos flexíveis, inflexíveis e mistos tipificavam um corpo-máquina, cujos movimentos eram realizados à semelhança de alavancas, cilindros, pêndulos e esferas. Contudo, vale dizer que essa percepção corporal, própria das formulações dos movimentos ginásticos do último quartel do século XIX e da expansão do mundo industrial, representava, para os seus defensores, uma forma de embelezar o corpo. Não esqueçamos que esse movimento ginástico era compreendido por Higgins como arte. A beleza estava em fazer o corpo mover-se como uma máquina. E a cientificidade em compreendê-lo como a articulação de "peças anatómicas" desprovidas de desejo. Um corpo morto pronto para ser manipulado. 33 Nesse sentido, basta ilustrar que a posição inicial do corpo para os estudos anatómicos era a mesma para o início da execução dos exercícios. O exercício de posição, chamado "Posição Fundamental. Prima", deveria ser executado por todos os alunos (7 a 12 anos) na primeira lição de todos os cursos: depois da formação da fileira, um ao lado do outro, por altura, o professor comandava: "Atenção. Posição prima... Já". Decorrente desse comando, os corpos dos alunos homogeneamente assumiam a seguinte posição: Os calcanhares unidos; as pontas dos pés naturalmente apartadas: o corpo aprumado; os braços pendidos ao longo do corpo; as palmas das mãos voltadas um pouco para diante; o ventre retraído; o peito dilatado sem esforço visível; a cabeça erguida e o olhar dirigido para diante (Higgins, 1934, p. 61). Uma posição que deixava o corpo sem expressão de vida, "braços pendidos", sem nenhum movimento, sorriso ou olhar brilhante. Um corpo absorto, sem comunicação gestual para com outrem, mas apenas com um perdido "olhar dirigido para diante". Essa primeira posição sinalizava o esforço civilizatório de uma época para educar os alunos, tranformando-os em corpos "aprumados" e sem desejo, prontos para serem manipulados - talvez essa seja a grande intenção do capitalismo. A Ginástica trabalhava a partir da concepção do corpomorto - o corpo vivo, ou "vivido" no dizer de Merleau-Ponty e desejante, no entendimento de Freud, é uma percepção que demorou a chegar na Educação Física. Objetivo Educacional do Mef/iodo... Para entender o objetivo específico da proposta de Ginástica educativa de Higgins, faz-se necessário compreender qual o papel da educação para ele. Diz o autor: "Educar o homem é prepará-lo para a luta, para a vida, desenvolvendo e aperfeiçoando-lhe as faculdades" (1934, p. 21). Nesse sentido, educação é preparação para a vida ou, mais especificamente, para o trabalho. Na esteira do ideal lockeniano, ou da Reforma de Benjamin Constant, o objeto da educação para Higgins não era mais o estudo das humanidades, mas, sobretudo, o de ser útil e incorporar-se às demandas práticas da vida. 34 Nesse ideário burguês de educação, Higgins acreditava que a tarefa da educação era aperfeiçoar as faculdades físicas e intelectuais dos homens, pois, em sua compreensão, "qualquer plano de educação que não [tivesse] por fim o desenvolvimento harmónico dessas faculdades, [seria] incompleto e /mperfe/ío"(1934, p. 21). O desenvolvimento harmónico, nessa compreensão, significava oferecer os mesmos cuidados tanto ao corpo, quanto ao intelecto. Ambos deveriam ser exercitados de igual modo. Contudo, isso não queria dizer que ambos tinham o mesmo valor, pois, na verdade, a busca do corpo saudável era por causa do serviço que esse poderia prestar ao intelecto. Sobre essa subordinação do corpo à mente, dizia Higgins: As descobertas fisiológicas vieram, porém, em socorro da pedagogia, demonstrando de um modo patente que a lucidez do espírito depende do bom funcionamento dos órgãos corporais; que, para a alma brilhar através do corpo, é necessário se ache este em estado de desenvolvimento regular e de conveniente energia (1934, p. 21 j. Ou ainda quando cita o Dr. G. M. Schreber3, "o espirito é o senhor e o corpo o escravo; e para poder este obedecer às exigências d'aquele, é necessário que seja sadio e forte" (apud, Higgins,1934, p. 21). Por a educação, nesse entendimento, ter a tarefa de aperfeiçoar as duas faculdades humanas, estabeleceram-se, de forma dicotômica, dois modelos de educação, um para o corpo e outro para a mente. Apesar de distintos, um estava subordinado ao outro. Nesse sentido, Higgins, em sua proposta, tentou definir o papel específico dessa educação subordinada, mas não inferiorizada: "A educação física ou corporal é aquela que, por meio de exercícios convenientes, torna sadio e forte o homem, desenvolvendo-lhe ao mesmo tempo as aptidões para a vida prática" (1934, p. 21). A primeira função proposta era a de tornar o homem sadio e forte. Isso porque o objetivo político-educacional, no início da Primeira República, não era formar um guerreiro. Higgins, de forma diferente de Jahn e Amoros e semelhante a Ling e Demeny, propôs, como objetivo higienista, formar um homem "civilizado" (saudável, dócil e útil). Por isso, a preocupação da Ginástica educativa ou higiénica de Higgins 3 O livro "Gymnastica doméstica, médica e hygiênica"(Lisboa,1886) era referência 35 não era com o aumento da força muscular. Ele chegou até a menosprezá-la, quando desaconselhou a postura de alguns jovens que ... andam pelas ruas com os braços arqueados e o peito estufado com o intuito de aparentar grande vigor. A força muscular exagerada tem grande importância para os carregadores de fardos, mas não para os moços que tem outras aspirações e por isso precisam de uma educação física bem entendida (1934, p. 22). Nessa proposta pedagógica, o objetivo não era a hipertrofia dos grupos musculares, mas a aquisição de órgãos saudáveis, principalmente os pulmões. Essa Educação Física não visava a formar corpos de "carregadores de fardos", mas corpos civilizados que pudessem ser capazes de "competir com os povos mais adiantados em todas as esferas de ação" (1934, p. 23J.O segundo objetivo proposto era que, concomitante à formação do homem saudável, a Educação Física desenvolvesse as aptidões para a vida prática. Nesse projeto de civilidade burguesa, a prática corporal deveria tornar o homem apto para ser "prático", útil; enfim, trabalhador. Assim, Higgins, em sua proposta pedagógica, pretendia responder positivamente às demandas de força de trabalho para as classes dominantes (aristocracia agrário-comercial e a nascente burguesia industrial). Se não era esse o seu propósito, vejamos o que ele diz: "A educação física, desenvolvendo o gosto pelo trabalho, fornece braços vigorosos às indústrias e à agricultura" (1934, p. 22). Conteúdos Programáticos do Metóodo... Para formar um corpo civilizado (saudável, regrado e trabalhador), num ambiente permeado pela "tísica pulmonar" e num povo "mole e indolente" - concepção dos republicanos -, Higgins propôs como conteúdo programático a Ginástica. Não a "ginástica acrobática, brutal, empírica e perigosa, porém sim a ginástica racional, baseada em princípios científicos, própria do século em que vivemos" (1934, p. 23). Com o mesmo ódio pedagógico que tinha Amoros da Ginástica funambulesca ou do corpo circense que despertava o riso e provocava a liberdade, Higgins dizia: "A acrobacia é a arte de executar 36 exercícios perigosos e surpreendentes. É a ginástica dos circos... " (1934, p. 23). A acrobacia era "perigosa" não só porque oferecia "exercícios perigosos", mas porque produzia o "surpreendente", e isso seduzia o povo. Os movimentos acrobáticos confrontavam-se com a estética da máquina, pois eles menosprezavam os interditos médicos e o cientificismo mecanicista do uso do corpo e guiavam-se pelo prazer que proporcionavam tanto àqueles que se arriscavam quanto àqueles que admiravam. A vivência das acrobacias representava uma "alegria agressiva", utilizando a linguagem de Lapierre e Aucouturrier (1986, p. 56), porque negava a ordem estabelecida através de um movimento que abolia provisoriamente um certo número de proibições, e "trazia imagens de luz e riso, do grotesco e do sublime e, sobretudo, do corpo como centro de entretenimento", no dizer de Carmem Soares (1998, p. 55). Numa tentativa de superar essa Ginástica "perigosa", Higgins propunha uma Ginástica científica, conceituando-a, como "um conjunto de meios próprios para aperfeiçoar o indivíduo e finalmente a raça - o único remédio à degenerescência e ao desequilíbrio, consequência dos abusos do mundo moderno" (Demeny, apud Higgins, 1934, p. 25). Sendo assim, para selecionar, organizar e elaborar exercícios "convenientes", contrários aos movimentos acrobáticos brincalhões dos saltimbancos e malabaristas de rua, Higgins, baseado em Demeny, só considerava exercício ginástico aquele movimento que produzia efeitos específicos: na melhoria da saúde (higiénico), na distribuição dos espaços musculares sobre diferentes partes do corpo (estético) e na melhoria da utilização da força (económico). Pensando assim, Higgins classificou a Ginástica, "único remédio para a corrupção da carne", a partir dos indicativos de Ling, em higiénica, médica e educativa. Como não havia, naquele momento histórico, uma necessidade de formação militar, Higgins excluiu essa espécie de Ginástica, que até Ling havia incluído, e, na sua compreensão, dividiu a Ginástica em: higiénica, que tinha por fim "conservar e robustecer a saúde" (1934, p. 24); médica ou terapêutica e ortopédica, que tinha por objetivos, "auxiliar a medicina na cura de certas enfermidades e na correção de algumas deformidades" (1934, p. 24); e, por último, Ginástica educativa, que também era higiénica, porque se caracterizava por movimentos que eram praticados "com o fim de alcançar benéficos efeitos fisiológicos" (1934, p. 30). Essa Ginástica escolar, no entender do professor do Ginásio Nacional, foi 37 "subdividida", de acordo com a especificidade dos exercícios, em três grupos: Ginástica sistemática, Ginástica de aparelhos e Ginástica recreativa, que passaremos a explicitar separadamente. A Ginástica Sistemática A ginástica sistemática ou sistémica recebeu essa designação, porque os seus exercícios
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