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Sociologia do Esporte - Georges Magnane

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Próximo Lançamento
A Arte no Horizonte do Provável
Haroldo de Campos
sociologia
Qual o caminho que se abre para o esporte em nossa época?
£ a pergunta a que Georges Magnane tenta responder, anali-
sando o que de melhor e de pior as práticas esportivas propor-
cionam ao homem de hoje.
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georges magnane
SOCIOLOGIA
DO ESPORTE
P í editora perspectiv
Sociologia do Esporte
Coleção Debates
Dirigida por J. Guinsburg
Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita
Novinsky, Aracy Amaral, Boris Schnaiderman, Celso
Lafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, Rosa
Krausz, Sábato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares
Georges Magnane
Sociologia do Esporte
Equipe de realização: Fernando dos Santos Fonseca,
tradução; Geraldo Gerson de Souza, revisão; Moysés
Baumstein, capa e trabalhos técnicos.
Editora Perspectiva São Paulo
Título do original:
Sociologie du sporí
Copyright by
ÉDITIONS GALLIMARD
Paris
Direitos reservados para a língua portuguesa
EDITORA PERSPECTIVA S.A.
Av, Brigadeiro Luís Antônio, 3 .025
São Paulo
1969
SUMÁRIO
Introdução 9
Primeka parte
O ESPORTE NA VIDA QUOTIDIANA
I • Aspectos do jato esportivo da vida quo-
tidiana 15
H. Elementos psicanalíticos da atração exercida
pelo esporte 21
Hl • Racionalizações e justificações 27
I
II
III
IV
n.
m
Segunda parte
O ESPORTE, ATIVIDADE DE LAZER
Do lazer à liberdade 37
Função social do lazer esportivo 43
Estudo do lazer esportivo nas suas relações
com o trabalho 55
Definição do esporte 69
Terceira parte
POPULARIDADE DO ESPORTE
I. Prestígio do campeão esportivo
II. Esportistas e espectadores . . .
III. Os ídolos do esporte
79
83
95
Quarta parte
O ESPORTE, MEIO DE CULTURA
Efeitos do esporte sobre o comportamento
social 107
Os pais dos esporte francês 121
Esporte e jogo 133
É com verdadeiro prazer que exprimo aqui o
meu reconhecimento àqueles que me ajudaram a des-
cobrir, para este ensaio (que, aliás, aproveita todas as li-
berdades consentidas pelo gênero), não só uma rica
fonte de documentos, mas também um método de inter-
pretação e de pesquisa sem o qual a acumulação de
ratos só pode produzir um amálgama mais ou menos
pitoresco ou, quando muito, uma "sociografia" super-
ficial.
Envio os meus sinceros agradecimentos a Georges
Friedmann que me acolheu no C.N.R.S. (Centre Na-
tional de Ia Recherche Scientifique). Sua atenta dedi-
cação, sua alta competência, sua cortesia e indulgência
tornaram os meus primeiros trabalhos de pesquisa tão
agradáveis como frutuosos. Toda a minha gratidão es-
tende-se igualmente a Joffre Dumazedier: guiou-me pas-
so a passo, com uma solicitude toda fraternal, e o en-
tusiasmo que me soube comunicar me foi quase tão
precioso quanto os conselhos práticos que me prodiga-
lizava todos os dias.
Devo muito, também, a todos os pesquisadores do
Centre d'Études Sociologiques, graças aos quais pene-
trei num mundo de camaradagem e de solidariedade
ativa que não esquecerei, especialmente Lucien Brams,
Edgar Morin, Roland Barthes, Jean Duvignaud, Ro-
bert Pagès.
Os estudantes do Centre de Formation et d*Érudes
de Éducation Surveillée (Srs. Arnaud, Sauvadet, Avy,
Douchin, Radix), que redigiram suas teses de graduação
sob minha direção, trouxeram-me todos interessantes
informações. O mesmo acontece com os alunos da
École Normale Supérieure d'Éducation Physique (Srs.
Elissalde, Sarragosse, Lamouille, Merrien), que reali-
zaram pesquisas em meu nome, e sob a égide do
C.N.R.S. Por outro lado, só tive motivos de satisfação
com o cuidado de precisão dos numerosos alunos das
École Normales dlnstituteurs que se dignaram redi-
gir monografias sobre agrupamentos esportivos segun-
do o plano de trabalho que eu lhes havia proposto.
Para o estudo das instituições esportivas, recebi
uma ajuda preciosa de Christian Dujean, que me pro-
porcionou a sua experiência e me pôs em contato com
os seus colegas do Haut Comissariat aux Sports.
Tenho ainda que agradecer aos dirigentes de so-
ciedades esportivas (cujo anonimato me comprometi
a respeitar) que aceitaram responder aos meus questio-
nários. E também ao Sr. Gaston Meyer, redator-chefe
de UÊquipe, assim como aos seus confrades do Sport
et Vie, pelas facilidades que generosamente me conce-
deram. Devo mencionar muito especialmente a cor-
tesia e a paciência com que os dirigentes da Federação
Francesa de Futebol se prestaram a um inquérito que
se estendeu ao longo de um ano inteiro.
Enfim, envio as mais cordiais saudações a todos
os estudantes e a todos os meus colegas de clubes que
me proporcionaram uma cooperação que, por ser be-
névola e ocasional, não era menos eficaz.
INTRODUÇÃO
O esporte apresenta-se atualmente como um fato
social em estado bruto. É tão difícil ter uma visão de
conjunto dele, como estudá-lo em detalhe; o que não
tem nada de inesperado, já que estas duas perspectivas,
Aonge de se excluírem, não podem ter eficácia uma sem
a outra. Um conhecimento sociológico autêntico se
"npoe pela originalidade de fatos significativos exami-
nados de perto e de diversos pontos de vista subjetivos;
ttas essa originalidade mesma só pode ser notada após
u_m estudo completo das estruturas objetivas. O inqui-
or só faz perguntas pertinentes, se estabeleceu es-
quemas de respostas para verificar, completar ou reti-
ficar.
Ora, este movimento de ida e volta, este intercâm-
bio incessante, supõe um grau de elaboração dos do-
cumentos acessíveis que o esporte, enquanto fato social,
não oferece, atualmente, a nível nenhum.
Quais são esses elementos?
De um lado, inventários mais ou menos comple-
tos de fatos acumulados sem método e sem objetivo
aparentes: avaliação do número dos praticantes dota-
dos de certo título ou munidos de uma ficha de identi-
ficação sumária (licença ou mesmo simplesmente "car-
tão de adesão"); estatutos das sociedades esportivas;
listas de dirigentes; avaliações temerárias e diversas do
número de espectadores de tal acontecimento ou de tal
manifestação.
De outro lado, é-nos lícito respigar ao acaso, na
imprensa ou nas brochuras corporativas — ou ainda
nas revistas de tal maneira especializadas que, de uma
escola para a outra do mesmo esporte, não se compre-
ende nada do vocabulário técnico —, uma infinidade
de testemunhos fragmentários freqüentemente muito
preciosos mas que exigem uma espécie de decifração
— mesmo de tradução — prévia,
Assim, encontramo-nos em presença desses dois
amontoados confusos de fatos em estado bruto; de um
lado, a floresta petrificada das instituições e, do outro,
a jungle incoerente, indefinidamente flutuante, dos re-
sultados e dos projetos.
Trata-se de descobrir (ou de criar) um conjunto
de ligações orgânicas de um para o outro. Para uma
tal empresa convém ver inicialmente que ajuda pode-
mos receber dos intelectuais que falaram do esporte,
ou que escreveram sobre ele.
À primeira vista, o quadro parece atrativo. Está
estabelecido hoje que os escritores e os artistas conce-
deram ao esporte um lugar cada vez maior nas suas
obras, levantando-se assim contra a afirmação de La
Fontaine de que "a matéria era estéril e pequena".1
(1) Consultar especialmente:
a) M. Berger e E. Mousset. Anthologie dês textes sportifs de 1'Antiquitê.
Grasset, 1927.
b) G. Prouteau. Anthologie dês íextes sportijs de Ia littérature. Ed.
Défense de Ia France, 1948.
c) "Lês peintres témoins de leur temps", número especial. Lê Sport, 1957.
10
Ura exame rápido da lista dos autores modernos
citados na antologia de G. Prouíeau deixaria supor que
o esporte se tornou um centro de interesse literário de
primeiro plano, tão universal como o amor, a cupidez
ou a ambição, visto que, ao lado dos Giraudoux, Obey,
Montherlant, Louis Hémon e Mac Orlan, cuja reputa-
ção de "especialistas" do esporte está firmemente es-
tabelecida, encontramos misturados: Paul Valéry e Ro-
ger Vercel, Apollinaire e Tristan Bernard, Frédéric Mis-
tral e Georges Duhamel, Colette e Alfred Jarry, Pierre
Loti e Jacques de Lacretelle etc.
Mas uma leitura atenta desses textos díspares e
geralmente brilhantes permite-nos tomar consciênciade que só a preocupação de fazer ressoar nomes glo-
riosos presidiu a sua escolha, ou mesmo a sua reunião.
Todavia, coletâneas deste gênero têm a sua utili-
dade. Deixam ver como a existência do esporte se
impõe paulatinamente num número crescente de escri-
tores muito diversos.
Com a prontidão de levar aos extremos o que é
simultaneamente a sua força e a sua fraqueza fatal, os
especialistas desse gênero de desenvoltura que per-
mitia a Valéry dizer: "O gênio é fazer uma mala", fize-
ram do esporte ora uma panacéia, ora um novo ópio
do povo. (E, bem entendido, o esporte é tudo isso,
mas somente nas zonas marginais onde o excesso é obri-
gatório.)
Portanto, pouco nos surpreendemos que fosse Al-
dous Huxley, o intelectual mais resolutamente retirado
do mundo, que tivesse celebrado no esporte "uma das
descobertas maiores dos tempos modernos". Ainda me-
nos que Paul Valéry tivesse declarado: "Lastimo per-
tencer a uma geração que subestimou o esporte", e
muito gravemente tivesse empreendido demonstrar que
as regras impostas aos jogos de espírito são parentes
próximas daquelas impostas aos jogos de estádio". Pa-
ra ele como para todos aqueles que tentam manter-se
nas margens da vida, esse "carnaval estranho", o espor-
e, visto de longe, aparecia como um meio de simulação
e suprema eficácia: a atividade sem a ação, o último
icrugio, em suma, da não-participação.
nosso 0"PartÍCÍpação' e*s Prec'samente aquilo que, ao
ver, caracteriza a maior parte das obras artísti-
11
cas e literárias que tratam de assuntos esportivos. Com
exceção de alguns documentos técnicos, fornecidos
por atletas, quer oralmente por meio de entrevistas,
quer por escrito (praticamente não vejo êxito total a
citar, no gênero, a não ser 400 metros de Boisset), en-
contramos sobretudo descrições onde a atividade es-
portiva é tratada anedòticamente, da mesma maneira
que a ceifa, o regresso dos pescadores ou o trabalho
no poço da mina. Trata-se simplesmente de um ele-
mento decorativo. '
Contudo, existe uma categoria de escritores de que
este ensaio tratará: são os moralistas do esporte. Sua
atitude não é, aliás, fundamentalmente diferente da dos
romancistas ou dos poetas já citados, visto que se co-
locam resolutamente no exterior do fenômeno e, em
vez de se aperceberem dele, procuram fechá-lo num sis-
tema. Para eles também, o fato esportivo permanece
no estado de acessório. Não procuram conhecê-lo.
Para eles também, é um assunto: um tema de disserta-
ção, isto é, uma ocasião de expor e de ilustrar as suas
idéias sobre identidades como o bem, o belo, a natureza
do homem, seus vícios ou suas virtudes.
Primeira parte
n
O ESPORTE NA VIDA QUOTIDIANA
I. ASPECTOS DO FATO ESPORTIVO
NA VIDA QUOTIDIANA
Não tenho tese a propor, nem "posição" firmada
o- priori a defender. E devo também prevenir o leitor
de que não pretendo limitar-me a essa "objetividade"
que é comum invocar no umbral da maioria dos ensaios
como este. Recuso-a, pelo contrário, com todo o co-
nhecimento de causa: longe de me retirar do mundo que
tento estudar, esforçar-me-ei por tornar a minha pre-
Sença sensível nele. Assim como, em toda experiên-
Cia ^ física, o experimentador faz parte do sistema
o observador de um fato social é simul-
sujeito e objeto no processo de observação.
Portanto, nunca procurarei mascarar-me, nem
brincar de esconde-esconde. Adotei, em relação ao es-
porte, atitudes muito diversas: alternadamente espor-
tivo e não-esportivo, antiesportivo ou pró-esportivo,
participante ou espectador, "torcedor" ou opositor de-
clarado. Informarei sobre essas mudanças de atitude.
Tendo decidido afastar a enumeração de fatos em
estado bruto, a dissertação moralizante e o arbitrário
da escolha estética, tentarei mostrar em primeiro lu-
gar que o esporte é um fenômeno social que impregna
profundamente a vida quotidiana do homem do século
XX.
Sua presença se impõe não só àqueles que o pra-
ticam, àqueles que o organizam ou àqueles que pro-
curam dirigi-lo ou que pretendem fazê-lo, mas ainda
àqueles que se dedicam a combatê-lo.
Estes últimos desempenham, sem que o saibam,
um papel de importância primordial: se o esporte, ati-
vidade específica da juventude, não encontrasse resis-
tências combinadas, não teria tanto atrativo para uma
adolescência impaciente por reconhecer tanto as posi-
ções dos seus adversários quanto as dos seus aliados.
Que o esporte seja uma atividade específica da
juventude, é evidente. A categoria "veteranos" come-
ça aos trinta e cinco anos e todos os secretários de
clubes declaram que ela abrange um número muito
pequeno de praticantes regulares. Além disso, estes
são recrutados sobretudo nas profissões onde o traba-
lho exige apenas um dispêndio de energia muscular
relativamente fraca.
Por razões que aparecerão cada vez mais clara-
mente à medida que travarmos conhecimento com o
público das diferentes especialidades, é na classe de
trabalhadores assalariados (operários e empregados)
que o esporte exerce a sua mais forte atração e pode
ter a mais profunda influência.
Examinemos em primeiro lugar o ponto de vista
do homem da rua. O dito de Jean Paulhan, que, em
Lês Fleurs âe Tarbes, constatava que a literatura "ile-
gível" era muito íida, se aplica freqüentemente à im-
prensa esportiva.
É incontestável que os jornais consagrados às es-
trelas do esporte gozam de sucesso considerável. Todos
podem comprovar que os usuários do metrô, entre as
16
sete e as oito horas da manhã, concedem a VEquipe
uma preferência marcada sobre todos os outros diários.
Observações efetuadas por seis estudantes, duran-
te os meses de junho e de julho, estabeleceram que,
num compartimento de segunda classe, para cada 100
leitores de jornais, 43 haviam escolhido U Equipe. Na
segunda-feira, esta proporção subia para 57 pessoas
em 100.
Não se trata de fazer aqui um juízo de valor so-
bre o jornal L'£quipe l. Mas foi da boca de um pro-
fessor da Sorbonne que procura ler tudo aquilo que
ele considera legível que ouvi um dia esta paráfrase
de Paulhan: "Se a imprensa esportiva tem tartps lei-
tores, é porque é ilegível". s^v*£ o^J^fc-*^ *»***•>-
Como a boa vontade desse representante autori-
zado da cultura não é posta em dúvida, perguntei-lbe
o que sabia sobre o esporte. Não teve nenhuma di-
ficuldade em confiar-me que a sua ignorância era to-
tal. E apressou-se a acrescentar que não tinha von-
tade nenhuma de se informar mais, pela simples razão
de que a seus olhos não existia problema do esporte:
"Os esportistas preferem se virar sozinhos".
Esta frase merece ser examinada. Faz eco, quase
palavra por palavra, a outra frase que encontrei há pou-
co, não sem alguma admiração, sob a pena de um cé-
lebre sociólogo americano: "Talvez uma conspiração
do silêncio a respeito do lazer seja a sua melhor pro-
teção" 2.
Assim, os intelectuais com mais boa vontade em
relação ao esporte afastam-se dele ou apenas conce-
dem, como tempp perdido, uma olhadela ora indulgen-
te, ora irritada, àquilo que eles consideram folguedos
pueris e desprovidos de todo significado.
Não quero dizer que errem (ou que estejam erra-
dos) inteiramente: os verdadeiros significados do es-
porte ainda estão por descobrir, talvez por criar. Mas
se os únicos homens capazes de ir aos significados de-
claram que esperam serenamente que os significados ve-
nham antes até eles, encontramo-nos numa situação
sem saída.
. O) O estudo do conteúdo desse jornal foi assunto de monografia
00 Sr. Sauvadet, estudante do C.F.E.E.S., feita sob a minha direção.
„.. í2) David Riesman, The Lonely Crawâ, p. 327. Uma das próximas
"««Coes da Editora Perspectiva na Coleção "Debates".
17
Muitas vezes, no correr do livro, terei a ocasião
de mostrar que os erros são recíprocos: os represen-
tantes do mundo esportivo respondem com insolêccia
e irritação ao desdém do mundo intelectual. Mas
acho particularmente irrazoável a atitude do "homem
de bem" do século XX que recusa tomar consciência
de um fato de civilização tão enormemente visível como
o esporte.
Vejo nisso um sinal, entre outros que não me ca-
bem denunciar,da demissão de uma certa cultura tra-
dicional, que é a pouco e pouco substituída por uma
outra cultura: ainda incerta e hesitante, mal conhecida
e desconhecida, sem glória, mas que tem o mérito de
não condenar a priori o presente em nome do passado.
Entre os homens que jazem o esporte tal como é
e os homens que falam dele institui-se uma segrega-
ção que corresponde, mais ainda que à parede invisí-
vel erigida entre a cátedra professoral e os alunos na
classe, aquele muro de desconfiança implícita que se
cria entre adultos e crianças nas famílias dadas à mo-
ralização. Todos os educadores observaram que os alu-
nos mais rebeldes à sua influência são precisamente
aqueles a quem os pais "pregam moral", impelindo-os
deste modo a se fecharem numa atitude estritamente
defensiva s.
Doutrinado e catequiza3o muito de cima, compa-
rado a personagens heróicas ou lendárias que não co-
nhece, o esportista apresenta freqüentemente aos seus
•pretensos guias a fronte obstinada e o sorriso fingido
do cabulador * cínico.
Em oposição a esse cabulador que diz sempre não,
há também o outro: o cabulador alegre, aquele que diz
sim antecipadamente, com um bom sorrisc^ com o úni-
co fim de se desembaraçar o mais depressa possível
do tagarela.
Enfim, existe a categoria, menos numerosa, mas
militante, dos cabuladores de boa vontade: aqueles
que aceitam tudo, e sem sorrir. Ê inútil apelarmos-para
o seu senso crítico. São homens de hábitos, que apre-
ciam muito os seus discursos e a sua cerimônia de dis-
tribuição de prêmios. Vi um deles, outrora, com lá-
(3) Cf. Karen Horney, The Neuroilc Personátíty of cur time, p. 194.
(4) Em francês: cancre, que tem uma acepção um pouco mais am-
pla do que seu correspondente português, no sentido de fuga em face de
determinadas condições. (N. do T.)
18
grimas nos olhos, porque o presidente do banquete ofe-
recido em honra dos concorrentes se contentara em
proferir algumas frases de pura cordialidade, em vez
de lançar-se, como se previa, ao firmamento dos lu-
gares-comuns esperados sobre a fraternidade através
do esporte. Era um rapagão, de aspecto um pouco
carregado, bochechudo e avermelhado, que exercia a
profissão de contador. Durante a sessão, manteve a
expressão amuada de um bebê gigantesco privado da
sobremesa. Pronto a bater os pés no chão e a cho-
rar, lembrava-me o Benjy de Faulkner, que, na última
página de The Sound and the Fury, guardando pre-
ciosamente entre os dedos o seu narciso estiolado, se
apercebe que Luster se apronta a contornar o monu-
mento do Soldado Confederado pela esquerda e não
pela direita, como habitualmente. ..
Na verdade, quase não há dia em que o espor-
tista não encontre alguma razão para se entrincheirar
nessas posições de cabulador do mundo moderno. No
próprio momento em que acabava de escrever as li-
nhas precedentes, saltou-me à vista esta passagem do
editorial de L'Express: "Na falta de outra coisa (tra-
tava-se de formular a' sua resposta a um apelo do
chefe do governo pela televisão), só restaria interes-
sar-se apaixonadamente pela Volta da França ou pela
pesca submarina".
O autor deste artigo, querendo estigmatizar uma
lamentável tendência dos franceses a não se-ocuparem
com o que lhes diz respeito, responsabilizava muito na-
turalmente uma prova esportiva que é o grande acon-
tecimento popular do ano. Reconhecemos aí um des-
ses movimentos de irritação que o adulto fatigado não
pode reprimir quando os jogos das crianças começam
a estorvar demais.
E precisamente na imprensa que o esporte, a crian-
ça difícil do século, manifesta a sua presença da ma-
neira mais indiscreta. Assim é que, no momento em
que a política nacional mudava decisivamente de ru-
m°, se via o anúncio do jogo França-Brasil, para as
quartas de final da Copa do Mundo, eclipsar pelos seus
gordos títulos, nos vespertinos, a entrevista à imprensa
ü^ um porta-voz do General de Gaulle. Na primeira
Pagina do Paris-Presse de 25 de junho de 1958, as fo-
tografias, os prognósticos e os comentários dos astros
19
futebolistas ocupavam um pouco mais de espaço que
o anúncio do recrudescimento da guerra fria, no dia
seguinte à execução de Imre Nagy.
Após o jogo, o cronista literário desse mesmo jor-
nal comparava os esforços dos nossos jogadores (ba-
tidos) à inútil carga dos cavaleiros de Gallifet no pla-
nalto de Dly, e exclamava, como o príncipe da Prússia:
"Ah! Os bravos". Uma simples notícia anunciava por
outro lado que a venda dos aparelhos de TV, estacio-
naria há dois meses, aumentara bruscamente em 20%.
Sobre os jogadores do quadro brasileiro, que ga-
nhou a Copa, os detalhes mais surpreendentes eram
prodigalizados à curiosidade de um público espantado,
mas geralmente admirador: "Para preservar o clima
que criou, (o treinador) manda examinar diariamente
seus jogadores por um psicanalista". O dito treina-
dor, Vicente Feola, não se contentava em recorrer as-
sim às luzes da ciência, e implorava ao céu nestes
termos: "Senhor, fazei que as ardentes suecas não de-
cidam a Copa do Mundo". Este surpreendente artigo
mostrava os jogadores brasileiros "literalmente sufoca-
dos pelos abraços das jovens suecas" (sic). O entu-
siasmo que acolheu os vencedores no seu país atingiu
excessos tais que os cronistas esportivos, embora ricos
em superlativos, acharam mais eficaz relatar fatos:
"Um milhão e meio de torcedores berram a sua ale-
gria", ou "Gastou quatro horas (o carro dos joga-
dores) para percorrer vinte quilômetros". Citemos
ainda, a propósito da recepção oferecida pela cidade
de São Paulo, este achado de estilo: "Mesmo que saiam
vivos disso, nem por isso terão terminado.. .".
Esta forma degradada do culto do herói contribui
sem dúvida nenhuma para manter o esporte numa con-
dição de eterno menor. Os profissionais do futebol,
do boxe ou do ciclismo esperam, após cada jogo, cada
luta ou cada corrida, a sua porção de elogios e medem
a solidez da sua situação pelas homenagens que lhes
são concedidas, da mesma forma que os atores de ci-
nema ou as estrelas da canção.
20
II. ELEMENTOS PSICANALITICOS DA
ATRAÇÃO EXERCIDA PELO ESPORTE
Todos os leitores da nossa literatura esportiva já
notaram o emprego abusivo da palavra "complexo".
É quase impossível percorrer a página de esportes de
um jornal qualquer sem encontrar esse termo, que se
degradou paulatinamente ao ponto de designar qual-
quer espécie de inquietação, deficiência ou mal-estar.
Poder-se-ia, como os antropólogos fizeram para a pala-
vra mana 1, atribuir-lhe um valor simbólico zero no vo-
cabulário usado nos meios populares.
(1) Mareei Mauss, Sociologie et antkropologte, Introd., p. 48.
21
Objetivamente, a escolha desta palavra que, no
seu contexto psico-sociológico, designa, segundo a sim-
ples e precisa definição de Roger Bastide: "Uma mo-
dificação do instinto pela cultura" 2, é reveladora. Na
medida em que o esporte tende, não a integrar-se numa
cultura cujas portas lhe são mantidas severamente fe-
chadas, mas a criar uma nova, ele se coloca como rei-
vindicação do instinto. E, principalmente, do instinto
agonal.
Nesta perspectiva, é possível, pelo estudo das
"condutas" do esportista, empreender uma psicanálise
da juventude atual. Um esboço fora proposto, já em
1917, por Thorstein Veblen na sua Theory of the lei-
sure class, onde o esporte era representado como um
meio de desrecalque comparável à guerra. Robert
Lynd, no capítulo VII de Knowledge for what, dá uma
lista de vinte contradições importantes que não deixa-
riam -de amarrar psiquicamente todo cidadão america-
no que se interrogasse sobre o espírito das leis morais
do seu país, e o condenariam quer à rebelião, quer à
neurose.
Dos dois elementos acoplados por um "mas" (but)
que Lynd 3 distingue: de um lado "as necessidades pro-
fundas próximas do impulso instintivo" e do outro o pre-
ceito "poderosamente afirmado pela classe ou outra
autoridade", o mais seguro meio de recuperação do pri-
meiro pela cultura é precisamente o jogo organizado:
o esporte.
Consideremos, por exemplo, a segunda desta cé-
lebre lista de proposições contraditórias: "Oindividua-
lismo, a sobrevivência dos mais aptos, é uma lei da na-
tureza, mas íienhum homem deveria viver para si só".
O problema posto: a conciliação do instinto agonístico
e da necessidade de fraternidade aparece na maior par-
te das narrativas de guerra. Mas trata-se então de
uma situação imposta ao soldado. O esporte de equi-
pe foi, pelo contrário, livremente escolhido pelo jo-
gador. De um lado, permite-lhe lutar contra o adver-
sário por todos os meios que a vida em sociedade lhe
proíbe: a violência e, ocasionalmente, a brutalidade; a
estratégia e, dado o caso, o ardil; a intimidação e, nos
extremos, métodos humilhantes. E, de outro lado, o
(2)
O)
22
Roger Bastide, Psychanalyse et saciologie, p. 149.
Knowledge for what, p. 59.
jogador de equipe sente-se justificado pelo pensamento
de que trava um combate não egoísta, o bom comba-
te: é pelos seus, pelo seu clube e pelas suas cores que
ele leva a agressividade até aos últimos limites fixados
pelas regras do jôgo.A,
Se estes limites forem transpostos, já não se tra-
ta de um jogador, mas de um rebelde que é preciso
punir, por vezes excluir: a cultura fracassou, o espor-
tista torna-se um delinqüente, uma vocação degrada-se
em destino.
A invenção do rugby pelos ingleses, e a do seu
futebol especial pelos americanos, esportes coletivos on-
de o máximo de violência permitida é acompanhado
pelo máximo de rigor nas regras, reflete o poder ao
conflito, nos anglo-saxões, entre uma grande necessi-
dade de exuberância física e um instinto gregário igual-
mente exigente. A frase do mais célebre dos treinadores
americanos, Knute Rockne: "Depois da igreja, é o fu-
tebol o que temos de melhor"4, fornece-nos, sobre o
assunto, um verdadeiro raio de luz.
Esta tomada de consciência do valor terapêutico
dp esporte é quase sugerida por Karen Horney no sen
livro The newotic personality of our time. Ela é, em
contrapartida, afirmada muito explicitamente pelos es-
pecialistas do lazer Denney e Riesman. Estudando as
transformações do futebol nos Estados Unidos 5, nota-
ram que originàriamente "os americanos temiam essas
brutalidades agressivas, mas ao mesmo tempo encon-
travam prazer nelas, e que por conseqüência sentiam
uma grande dificuldade em reconhecer o sentido pro-
fundo dessas violências exteriores". Após a interven-
ção do Presidente Roosevelt em 1905, a engenhosida-
de dos técnicos se dedica ao aperfeiçoamento do jogo
de passe, graças ao qual os acidentes mortais se tor-
nam cada vez menos numerosos. No mesmo artigo, a
evolução desse jogo nacional é assim resumida: "A ati-
tude americana em face do futebol testemunha uma ne-
cessidade imperiosa de definir, limitar e submeter a con-
venções o .simbolísmo da violência nos esportes".
É digno de nota que esta campanha tenaz e, no
conjunto, bastante eficaz (há menos acidentes de fute-
(4) Citado em Indíviãualism Reconsidered, p, 253.
, (5) Reuel Denney e David Riesman, Individualism Reconsidered,
PP. 242 a 257.
23
boi nos Estados Unidos, atualmente, que acidentes de
rugby na Inglaterra), se tenha desenvolvido paralela-
mente a uma propaganda em favor da psicanálise cujo
sucesso, por vezes, ultrapassa o seu objetivo.
Desde o tempo em que Michel Crozier escrevia:
"A religião da América, o seu ópio do povo, é a de-
mocracia estatística" % sucederam-se as denúncias de
um outro ópio, ainda mais ativo e mais popular, que
pode definir-se por uma simplificação abusiva dos pro-
cessos freudianos de desrecalque.
Os documentos reunidos por Crosswell Bowen em
lis ont maí tourné7 contêm uma acusação contra a li-
teratura dos "super-homens" e dos manejadores de re-
vólveres, e constituem a prova de que o adolescente, à
força de ouvir falar a torto e a direito de recalque e
desrecalque, se habitua paulatinamente à noção de um
verdadeiro direito à violência.
Eis, a esse respeito, um extrato característico de
um relatório do-psiquiatra Werthem: "No meu enten-
der, o crime de que Brown é acusado tem o caráter
de uma explosão (fie). Deve-se procurar a causa na
conexão de dois fatores: fixação catalítica sobre a ima-
gem-mãe, e os efeitos nocivos imputáveis à glorifica-
cão da violência e dos métodos violentos pelas histó-
rias em quadrinhos, bem como ao hábito a estas últi-
mas adquirido ao longo da pré-adolescência" s.
. Mais claramente ainda que nas biografias de de-
linqüentes comentadas por Crosswell Bowen, os efei-
tos do "simbolismo da violência" sobre a juventude
americana (e sobre os seus imitadores de todo o mun-
do ocidental) aparecem nas duas narrativas estritamen-
te descritivas de Hal Ellson: Duke, Tomboy. Alguns
nova-iorquinos que não são pobres, nem abandonados
pelas suas famílias, nem anormais mental ou fisica-
mente, formam um "bando" com o único fim de saciar
a sua sede de violência. Sede insaciável e que faz da
sua vida uma seqüência, incrivelmente monótona a lon-
go prazo, de brigas coletivas mais ou menos sangren-
tas, de ajustes de contas entre rivais, e de abraços bes-
tiais. Um deles, oportunamente chamado Angel, ex-
plica deste modo por que não tem outra preocupação
(6) Lês Temps Moãernes, tfí 69, p. 73.
, (7) Galümard, coleção "L'air du temps", 1955.
(8) Op. cit., p. 96.
24
que arranjar dinheiro o mais depressa possível: "Fa-
ríamos farras terríveis; teria guarda-costas e uma ar-
tilharia pessoal, uma pistola de coronha de ná-
car sob o braço esquerdo, para as vezes em que os
meus rapazes não se mexam bastante depressa para li-
quidar um intrometido"e. Aspirações desta natureza
mostram até que ponto esta jângal da adolescência per-
manece marginal e depende, pela simetria e pela cla-
reza prêto-contra-branco das suas próprias oposições,
da civilização a que pretende fugir, contestar ou des-
truir. Nada de menos revolucionário que essas revol-
tas infantis onde persiste a imitação dos adultos. Assim,
os "Harpas", após terem infligido uma correção a um
pequeno grupo do bando inimigo dos "Hipócritas", ce-
lebram o seu triunfo como viram os soldados fazê-lo
nas atualidades: "Longe de estarem abatidos, gritam e
trocam gracejos acerca dos golpes que haviam dado" 10.
Não existem praticamente páginas, nessa obra es-
pessa, formigante de anotações de uma autenticidade
inelutável, onde se não faça sentir o surdo desejo de
uma legitimação pelo mundo adulto. Um rapaz cha-
mado Jigga, por exemplo, impõe-se a todos os outros
porque, com a idade de dezoito anos, tem comporta-
•mento de homem.
Quando os pais são evocados, é sempre com um
embaraço em que se manifesta a ambivalência dos sen-
timentos: profunda necessidade de afeição e de apro-
vação e ao mesmo tempo rebelião alardeada. Assim
um deles acusa o pai e a mãe de indiferença e amora-
lidade: "E depois eles se batem, para eles o que inte-
ressa é a grana" ". Sobre o mesmo assunto, um outro,
crendo absolutamente ser da mesma opinião que o seu
camarada, felicita-se de escapar perfeitamente as vistas
das pessoas grandes: "Comigo, é a mesma coisa. No
fundo, os velhos são broncos de morrer: acreditam sa-
ber tudo e não sabem nada ( . . . ) . Se a minha velha
soubesse a metade das malandrices que já fiz na minha
vida, ela cairia duraí" 12.
Neste último, a auto-afirmação atinge os piores ex-
cessos da fanfarronada porque lhe falta o auditório de-
sejado, que ele gostaria tanto de escandaüzar: à força
(9) Hal Ellson, Duke, Tomboy, p. 185.
(10) Jdem, p. 217.
(11) e (12) Ibtdem, p. 185.
25
de gritar, ele espera obscuramente conseguir fazer cair
as muralhas. A "explosão", de que Werthem tão opor-
tunamente falava, não deve produzir-se indefinidamente
no vazio. A nostalgia de um mundo social comple-
to, onde os adultos poderiam enfim conservar o seu ní-
vel é quef bem mais freqüentemente que a pobreza, im-
pele os jovens larápios e os "brigões" aprendizes a subir
penosamente os escalões da ilegalidade até ao ato de-
lituoso caracterizado. O crime, que força os adultos
a se ocuparem deles, mesmo que para enviá-los aos
trabalhos forçados, ou mesmo para a cadeira elétrica,
apresenta-se como o resultado final de um processo de
autopunição.
Seriaportanto possível reduzir a situação do ado-
lescente difícil ao quadro representado, na América, dê
um lado, pelos casos-limites das "crianças assassinas"
e, de outro lado, pelas apologias de um esporte-espe-
táculo que ofereceria meios de desrecalque" bastante po-
derosos para que Knute Rockne compare a sua ação
civilizadora à da Igreja?
Segundo este esquema, as numerosas crianças mal
integradas no seu meio familiar só teriam que escolher
entre o esporte e a delinqüência. Uma tal simplifica-
ção é evidentemente inaceitável.
26
III. RACIONALIZAÇÕES E
JUSTIFICAÇÕES
A rápida apreciação dos extremos que acabamos
de realizar é útil para fixar os limites do assunto. De-
dicaremos, neste ensaio, toda a nossa atenção ao es-
porte de competição, com exclusão dos jogos propria-
mente ditos. A tarefa mais urgente para nós era re-
conhecer, nos pontos mais sensíveis do nosso sistema
social, a inserção dos impulsos agonais.
A necessidade de auto-afirmação por via competi-
tiva continua sendo a dominante da cultura ocidental.
O princípio da livre empresa é a sua caução oficial e
a publicidade o meio de ação mais eficaz. Cada indi-
27
víduo está cada vez mais impregnado disso, quase sem-
pre sem saber, mesmo no momento em que os meios
para satisfazê-la se tornam de acesso cada vez mais
difícil.
Torna-se portanto inevitável que a juventude pro-
cure atalhos, principalmente essa fração da juventude
para quem a igualdade das oportunidades, pedra an-
gular do edifício democrático existente, não representa
mais do que uma abstração em desuso. -pa£*=a -
Quando é demasiado grande o desequilíbrio entre
o fim e os meios, a violência surge como único recurso.
Entre os numerosos ülmes consagrados aos bõxadores,
há um, Marcado pelo ódio, que tem o duplo mérito de
narrar a história verdadeira de um antigo campeão do
mundo, Rocky Graziano, e de desenvolver perante nós
a fórmula pela qual a ideologia americana converte a
violência no estado selvagem do delinqüente numa vío-
.lência ajuizada, canalizada, regulamentada; a do espor-
te de combate.
É, teoricamente, tão lógico e racional quanto a cap-
tação de energia de uma torrente da montanha, e no
desenrolar das seqüências do fume, quase tão simples.
Primeiro tempo: o jovem Graziano foi durante muito
tempo batido e aterrorizado por seu pai que era um
boxeur fracassado; depois de grande, vinga-se de seu
pai batendo em todo homem que detém uma autoridade
qualquer. E ele bate desvairadamentê, com a vontade
de matar. Segundo tempo: ele continua batendo frenè-
tícamente, mas no ringue, segundo as regras. Além
disso, compreendeu, graças a um treinador hábil, que
o seu verdadeiro inimigo não era seu pai, mas os outros:
os responsáveis pela injustiça social que, precisamente,
impediu que seu pai tivesse sucesso. Em vez de matar
simbolicamente o pai a cada luta, ele o vinga. O mesmo
ódio que fazia dele um bandido perigoso armará do-
ravante o braço de um cavaleiro. Do Nero adolescente,
o'esporte fez um Rodrigo adulto. C.Q.D.
Uma conversão tão perfeita evoca as metamorfoses
da mitologia e, mais ainda, os passes de mágica de uma
certa "psicologia" orientada. Mas, embora ela quase
não resista ao exame, possui um incontestável poder de
persuasão sobre um público habituado a ver o cinema
propor-lhe incessantemente redenções também tão mi-
lagrosas, É geralmente pelo amor que se opera a trans-
28
mutação do mau rapaz e da moça perdida em herói do
mais puro'metal. Era inevitável que o esporte, mais cedo
ou mais tarde, encontrasse o seu lugar nessa perspectiva
de correio sentimental. Do mesmo modo que uma noção
normativa e estereotipada do comportamento amoroso
permite introduzir simplificações úteis no caos dos ins-
tintos sexuais em estado bruto, a regra do jogo esportivo
intervém para entregar o controle da necessidade de vio- ,
lência às mãos dos managers, treinadores ou outros re-
presentantes dá ortodoxia.
Logo que se manifesta um motor social de alguma
potência, é rodeado de homens engenhosos que experi-
mentam meios de o fazer funcionar para os maiores in-
teresses da coletividade. Assiste-se então à elaboração
de um mito, onde as forças explosivas produzidas por
um desequilíbrio social no estado agudo são transfigu-
radas por ilusões lisonjeiras e tranqüilizantes.
Os técnicos da ilusão dirigida, representados, nos
Estados Unidos, pelos agentes publicitários, pelos jor-
nalistas e pelos autores de filmes, sempre tiraram os
seus efeitos mais brutais e mais imperiosos do espe-
táculo da violência. O mito do bom esportista virtuoso,
recompensado pela vitória, vem a propósito para asse-
gurar a difusão do mito, usado até à lona, desses "cava-
leiros dos tempos modernos" (tal é título de Gary
Cooper no cume da sua glória), que faziam triunfar o
Bem pelo poder, invariavelmente conjugado, da sua
aptidão para o boxe e da sedução que exerciam sobre
a filha de milionário injustamente perseguida.
Se os produtores de Hollywood e os seus satélites
não tomarem precauções, o fantoche do bom, esportista,
construído demasiado sumariamente, vai ficar fora de
moda antes mesmo de se instalar na carreira. É justo
notar, com efeito, que o sedutor de punhos invencíveis,
sucessor do atirador infalível dos westerns, cede terreno,
cada vez mais visivelmente, ante uma categoria de
campeões do Bem de concepção menos zoológica. Já,
em Assim Caminha a Humanidade, era dado ao es-
pectador assistir a uma vitória ambígua do represen-
tante do Bem, Rock Hudson. Sem dúvida ele sa-
crificava à tradição batendo-se aos socos. Mas, re-
viravolta decisiva, ele recebia uma sova memorável,
finalmente pontuada por uma queda num amálgama
29
de couve com creme e de xarope de groselha que ele
derruba ao cair,
A crítica não sublinhou suficientemente o signifi-
cado dessa desintegração do átomo simbólico represen-
tado, no cinema, pela noção de uma virtude que triun-
fava, rápida e indiscutivelmente, pela força brutal.
• Na cena considerada, a vitória de Rock Hudson
é mais sutil e mais sólida que a dos punhos: é uma vi-
tória exclusivamente moral. Apesar dos seus cabelos
brancos (ele é quadrigenário e pai de família), ape-
sar da sua falta de treino e de um entorpecimento fi-
gurado por um estofo abdominal bem ajustado, ele
ganha. E ganha, a despeito do seu espetacular des-
moronamento, porque luta pela causa do anti-racismo
o qual, precisamente, empreendeu acabar com a vio-
lência.
A sua vitória impõe-se aos olhos do espectador
americano, de uma maneira incontestável: 1^) bom
rico, ele continua rico; 2^) valente cavaleiro lutando por
uma nobre causa, é ó único bem-amado da Bela. Re-
conhecemos aqui a dupla sanção tradicional mais per- •
feita que existe em relação a uma cultura onde "o su-
cesso sexual é o símbolo de sucesso social"1.
Mais claro ainda, mais convincente também, é o
recurso contra a violência primária apresentada por um
fume mais recente, A man is ten jeet tall (título no
Brasil: Um Homem tem três Metros de Altura).
A admirável personagem do negro, Tommy, que,
apesar da sua atitude conciliadora, não pode escapar
ao ajuste de contas em que é encurralado por Malik,
o vilão caracterizado que reina sobre seu grupo pela
chantagem e pelo terror, é morto na briga. A sua vi-
tória final será ainda mais retumbante: ela dá a cora-
gem e a invencível pureza ao seu amigo Axel, a quem
um complexo de culpa tirava a alegria de viver e a
luz do dia. Cabe notar, de resto, que este, uma vez
provido da sua nova armadura, alcança também a vi-
tória no combate, tão difícil e perigoso é, segundo pa-
rece, romper totalmente com um sistema de retribui-
ção que conserva, para um vasto público, o valor de
um reflexo condicionado.
(1) David RJesman,. Individuaiism Reconsldered, p. 62.
30
Não é menos evidente que o herói já não é ne-
cessariamente o boxador vitorioso. O que Riesman,
no artigo supracitado, chama the nerve oj failure (a
força no fracasso) é proposto abertamente como um
valor mais alto que o sucesso em primeiro grau. . Esbo-
ça-se, assim, uma reação contra a tradição medieval
do "julgamento de Deus"que prevaleceu no cinema,
desde a sua criação, e na subliteratura que deriva dele.
Deveremos felicitar estes novos diretores da consciên-
cia popular que são os produtores de filmes ou lamen-
tar, pelo contrário, que tenham levado meio século pa-
ra perceber que, em toda briga, há geralmente dois
homens em presença e que aquele que é lançado ao
chão não é necessariamente aquele que ali deve per-
manecer para sempre? Contentar-nos-emos em colocar
o problema.
O nosso propósito era mostrar até que ponto a
consciência do homem da rua permanece constante-
mente impregnada (e quando se trata do americano,
podemos dizer saturada) de sensibilidade agonal. _
O esporte, concebido como um jogo visando es-
sencialmente à competição, oferece um meio lícito de
reagir à fascinação da violência. Esta se manifesta
nos menores detalhes da vida quotidiana de todo ho-
mem, e mais particularmente na adolescência, esse pe-
ríodo em que uma selvageria total e uma docilidade ao
ídolo do momento igualmente intransigente, coexistem
ou se sucedem sem razão aparente, muitas vezes com
uma instabilidade vertiginosa.
Uma contaminação cada vez mais generalizada
do comportamento sexual pelo espírito de competição
esportiva manifesta-se nos costumes atuais. Ela só
existia, até ao meio do século, no estado clandestino
e nos agrupamentos juvenis pouco extensos. Ora, o
primeiro relatório Kinsey, Sexual behaviour of men,
traz-lhe uma consagração oficial, utilizando com bas-
tante freqüência a expressão "atleta sexual". E Ries-
man, não menos claramente, declara que, para muitos
jovens, a sexualidade, "embora eles pareçam usá-la da
mesma forma que a sua dose de vitaminas, permanece
para eles um terreno de competição e um local de pes-
quisas"2. Não partilhamos da convicção otimista dês-
te sociólogo quanto ao poder da sexualidade, concebi-
<2) The Lonely Crava, p. 155.
31
da deste modo, de afastar "a ameaça de uma apatia
total"3. Todavia, se for exato que, como Riesman
afirma, o qualificativo foi assim expulso do seu último
, refúgio pelo quantitativo, esperamos com curiosidade
as conseqüências sobre os varões americanos desta no-
va conquista do espírito de competição esportiva. Ries-
man contenta-se, de momento, em indicar que "a an-
siedade dos homens que temem não satisfazer as-"mu-
Iheres cresce à medida que se tornam consumidores
mais experientes"4.
Mais reveladores ainda, por causa de uma espé-
cie de candura, ou pelo menos de uma ausência evi-
dente de intenção didática, são os filmes em que apa-
rece, não já a juventude concebida pelo código holly-
woodiano, mas a juventude americana tal como se com-
porta na sua vida quotidiana. Assim, esta cena de
Peyton Place em que o rapaz, que foi persuadido pela
moça, não sem dificuldade, a beijá-la, pergunta: "Não
é tão bom como com o Rodney, hein?", pergunta bem
honesta, e que conduz a uma resposta igualmente ho-
nesta: "Não", disse a moça, com o único fito de enco-
rajar o seu companheiro a treinar a fim de melhorar
as suas atuações.
O público europeu, durante muito tempo, respon-
deu pela troça a esta concepção esportiva da sexuali-
dade. Todavia, o aparecimento dos dois relatórios
Kinsey provocou, na imprensa francesa e mais ainda
na imprensa inglesa, uma reprovação escarnecedora
de onde estava rigorosamente excluído o divertimento.
Esta irritabilidade traduzia o embaraço de uma
civilização insegura, que, de um lado, continua a repe-
tir com o taoísmo que o "homem verdadeiro é aquele
que não tem semelhante" e que, de outro lado, tenta,
pelos meios mais poderosos da propaganda moderna,
impor uma ideologia de confecção, onde as manifesta-
ções da inquietude pessoal serão pejorativamente qualifi-
cadas de complexos, neuroses ou atitudes anti-sociais.
Este mal-estar e esta ambigüidade, foram, mais
brevemente e mais claramente ainda üo gue por Ro-
bert Lynd, definidos por um sociólogo francês: "A
nossa civilização é fundada na concorrência econômi-
ca, mas a competição não domina apenas as relações
(3) The Lonely Crowd, p. 154.
<4) Iblá., p. 156.
32
entre os grupos profissionais, estende-se até às relações
de amizade, de família, de sexos, provocando rivalida-
des, suspeitas, ciúmes. Ora, simultaneamente, a nos-
sa sociedade vive sob uma ideologia cristã de fraterni-
dade e de amor"5.
Consideramos a atração exercida pelo esporte vio-
lento como um sintoma desse conflito profundo. Ve-
remos se a disciplina esportiva 'pode representar uma
solução, um remédio ocasional ou apenas um paliati-
vo.
(5) Roger Bastide, Sociologia et psychanalyse, p. 126.
Segunda
O ESPORTE, ATIVIDADE DE LAZER
I. DO LAZER À LIBERDADE
Nas obras e nos filmes que citamos, tratava-se
sobretudo de estados patológicos ou subpatológicos
que oferecem um interesse dramático evidente, mas
cujo alcance social, mesmo tendo em conta o poder*,
de fascínio que lhes asseguram os jornais especializa-
dos na exploração das pequenas notícias sensacionais,
os chamados filmes "de ação" e a literatura negra,
permanece bastante limitado e, em todo caso, difícil
de medir.
Entretanto, é incontestável que os seres reputados
como os mais normais atravessam crises de crescimento;
durante as quais apresentam sintomas claramente pa-
37
tológicos. Ora, só a psicanálise permitiu pôr em evi-
dência as causas do mal-estar mais secreto do adoles-
cente que tenta integrar-se na coletividade pela sua
exploração minuciosa das relações familiares.
O estudo de toda vocação esportiva torna por-
tanto inevitável o recurso à psicanálise, da qual ado-
taremos aqui, mantendo toda a mitologia entre parên-
teses, esta definição mínima: um método de estudo do
comportamento do adolescente no seu meio educativo,
sendo este por sua vez condicionado por um dado
meio social.
A palavra lazer, pela sua etimologia (licere: ser
permitido), evoca uma organização do trabalho tradi-
cional e patriarcal: o senhor concede aos seus filhos e
aos seus dependentes, em certas horas, e em certas
condições, a permissão de fazer o que lhes agradar,
ou de nada fazer. Neste aspecto, a diferença entre a
palavra francesa lòisir (e a palavra inglesa leisure que
deriva dela) e os termos empregados pelos povos es-
lavos e germânicos, aos quais falta um equivalente exa-
to, merece ser tomada em consideração.
Num "Encontro internacional de peritos" que foi
organizado em Annecy pela Unesco, de 13 a 17 de
junho de 1957, com vistas a estabelecer um plano de
estudo comum à França, Dinamarca, Alemanha Oci-
dental, Holanda, Polônia, Suíça, Grã-Bretanha, Bél-
gica, Itália e Iugoslávia, ocorreu uma viva discussão,
anteriormente à adoção de uma definição da palavra
lazer, no curso da qual foi declarado que os proble-
mas lingüísticos que ela punha eram "quase insoíú-
veis"1.
Mario Melino, lembrando que a Itália, que ele
representava, adotara a expressão tempo libero, que
corresponde ao freizeit dos alemães, fez observar que a
identificação implícita entre trabalho e necessidade de
um lado e, de outro, entre lazer e liberdade, trazia con-
sigo uma valorização abusiva das atividades do lazer.
E Asher Tropp, delegado da Inglaterra, indicou que
o termo leisure estava em uso sobretudo nas classes
médias e superiores, enquanto as outras falavam mais
de rest-time (tempo de repouso). Convém acrescen-
(1) Projeto de estudo comparativo sobre a evolução das formas e
das necessidades de lazer em diversos países, Unesco, 1957, p. 13.
38
tar que spare time (literalmente, tempo poupado) de-
signa sobretudo momentos de liberdade imprevistos,
não entrando num programa organizado.
É portanto impossível aproximar ao ponto de con-
fundi-las, como parecem fazer numerosos» sociólogos
americanos 2, as noções de lazer e de liberdade. Tra-
ta-se de fato de uma liberdade autorizada, muito preci-
samente limitada no tempo, dependente de toda orga-
nização social e principalmente das condições do tra-
balho humano.
Teremos oportunidade, ao estabelecer um plano
de estudo dos agrupamentos esportivos, de mostrar a
importância de uma definição precisa do lazer.
É a sorte de toda uma juventudeque está em
jogo. O esporte é o principal pólo de atração para
as atividades aprovadas, lícitas, conscientemente so-
ciais e, no sentido mais amplo da palavra, dóceis. Os
"jogos selvagens" da rua e dos bosques, nascidos ao
acaso dos agrupamentos mais ou menos anárquicos de
vizinhança, o isolamento verdadeiro ou fictício, os de-
vaneios violentos ou eróticos suscitados pela literatu-
ra e pelo cinema, as conversas surpreendidas e mal
compreendidas, constituem o outro pólo: aí triunfam
a evasão, o apelo da floresta ilusória onde se encon-
tram os "Tarzan" e os "Super-homens", as "meninas-
-môças" e as "mulheres fatais", os assassinos e os san-
tos: todas as criaturas fictícias e simplificadas que o
adolescente se esforça por imitar, no mais das vezes
pela indumentária, aspecto ou gesto, algumas vezes
também pelos atos.
Uma liberdade bem orientada é o que os "rebel-
des sem causa" do século do absurdo e do desme-
surado não podem aceitar e é, precisamente, o que a
disciplina esportiva lhes traz. Que a motivação domi-
nante do esportista seja, na origem, a admiração desta
categoria de "super-homens" que a popularidade ten-
de a fazer do campeão, em nada altera o fato: o atle-
ta em treino é um jovem regrado, tem a consciência
tranqüila porque realiza o melhor possível a tarefa
que lhe prescreveram as pessoas dignas, respeitáveis e
que provaram as suas capacidades. Conscientemente
ou não, ele se comporta como um bom filho de família.
<2) Cf.: American Journal of Sociology, maio 1957 (número con-
sagrado ao lazer).
39
Parece, portanto, a priori, que o lazer, e especial-
mente o lazer esportivo, deve surgir como um assunto
de primeira importância para os sociólogos america-
nos, em relação aos quais o professor Girod, na sua
tese, estabeleceu claramente que "é sob o ângulo do
controle social, em regra geral, que eles exploram e
analisam as atitudes. Controle social, no seu vocabu-
lário, é muitas vezes sinônimo de cultura" 3.
Ora, não existe, nos Estados Unidos, nenhum es-
tudo de conjunto sobre a questão. O número espe-
cial do American Journal oj Sociology, já citado, po-
de ser considerado, a esse respeito, como um notável
exemplo de carência. Lá encontramos, com efeito, ar-
tigos e notas sobre os seguintes assuntos: a moda, os
cafés e as boites, a musica popular, o diálogo amoro-
so na canção, os espetáculos com participação do au-
ditório, os cosméticos e os cuidados de beleza, a his-
tória, natural das idéias fixas. (Respeitei a ordem do
sumário.)
A ausência do esporte, nesta confusão, verdadei-
ro caos de idéias engenhosas e de informações que só
os colecionadores de curiosidades irão apreciar, não
é de modo nenhum fortuita.
Nos Estados Unidos, como na França, o esporte
ainda não foi considerado como tema de estudo. Mais
abundantes e mais luxuosamente apresentadas que na
Europa, podemos folhear, nas livrarias nova-iorquinas,
obras técnicas do gênero: Guia do Perfeito Esquiador,
O Treino de Inverno, As Novas Regras do Futebol etc.
É possível também arranjar, às centenas, livros de vul-
garização médica freqüentemente muito bem feitos, so-
bre as virtudes higiênicas de todos os exercícios espor-
tivos. Mas é inútil procurar nas bibliotecas obras onde
o esporte seja estudado enquanto fato'social, capaz de
representar um papel na cultura e na civilização.
O exame do Cumulative Index das publicações em
língua inglesa de 1928 a 1956, feito ao mesmo tempo
que o exame das resenhas críticas e dos anúncios de
livros, em duas revistas: American Socialogical Review
e American Journal of Sociology, permitiram-me ter a
certeza de que o tema só fora abordado incidental ou
fragmentàriamente.
(3> Roger Girod, Altitudes collectives et relations humaincs. P.U.F.
p. 131.
40
Mesmo nos dois livros cujos títulos anunciam pe-
lo menos um começo de "tratamento" sociológico:
Sports, their organization and administration (1944),
de W. L. Hughes, e Sports in American Life (1953),
de Cozens e Stumpf, os autores dedicam-se apenas a
descrever as instituições esportivas e seu funcionamento.
E as considerações contidas no segundo permanecem
estritamente pedagógicas. Conclusão: faça bem os seus
exercícios e será provavelmente um bom esportista e
um bom americano.
Sem dúvida, é preciso ver nesta serena aceitação
do status quo a razão principal do grande silêncio ame-
ricano sobre a questão. Não existe problema, num
domínio inteiramente colocado sob o signo da boa
consciência. Já no primeiro capítulo, W. L. Hughes
cita John Galsworthy: "Se alguma vez o espírito de
fair-play do esporte reinar nos negócios internacionais,
as forças felinas que aí fazem a lei cairão por si pró^
prias e a vida humana pela primeira vez emergirá da
selva"4. E como ele afirma a sua convicção de que
a América é uma democracia que pratica um esporte
democrático, esse ponto de partida será também a sua
conclusão, inevitavelmente.
Entretanto, o artigo sobre o futebol que figura
no Individualism Reconsidered colocava problemas
cujo interesse já assinalei. Dirigi-me pessoalmente a
David Ríesman, que praticamente me deixou sem ne-
nhuma esperança: "Quase nada se escreveu sobre os
esportes neste país ( . . . ) . Falei aos redatores-chefes
da nova revista Sports Illustrafed, da possibilidade de
empreender estudos sistemáticos, mas disso não resultou
nada".
Assim, o país que possui os mais prestigiosos cam-
peões de atletismo, os astros do esporte mais célebres e
mais mimados, onde o número dos espectadores dos
jogos televisionados está avaliado em 14 milhões, mas
que, de outro lado, se queixa, pela voz do seu presi-
dente, da fraca participação do americano médio na prá-
tica do esporte, onde se nota também uma recente dimi-
nuição do número dos espectadores no campo5, ainda
não se apercebeu da necessidade de realizar um inqué-
(4) W. L. Hughes, Sports, their organization and adminlslration, p. 2.
(5) Cf. Léo Bogart, The age oi tetevision, p. 162.
41
rito sério sobre um fenômeno social tão intimamente
integrado no seu modo de vida e nas suas tendências
profundas.
Uma tal "distração" é comparável àquela que,
para a França, Henri Lefebvre assinala na sua Critique
de Ia vie quotidienne, quando escreve: "Hoje em dia,
não se sabe como se vive. Mal se sabe, após ter vivi-
do, como se viveu. E que amargura, nessa consciên-
cia infeliz" 6.
Essa "consciência infeliz" revela-se mais fecunda
que a boa consciência dos americanos já que ela faz
aparecer a necessidade de um vasto inquérito, para o
qual Lefebvre, na obra citada, propõe o título: "Como
se vive".
(6) H. Lefevrc, Critique de Ia vie quotidienne, p. 208.
42
II. FUNÇÃO SOCIAL DO LAZER ESPORTIVO^
Um inquérito desse tipo vem sendo realizado des-
de 1953, data em que Joffre Dumazedier publicou:
Significado e função do lazer na vida quotidiana 1.
Ele encontrou o seu lugar no quadro do vasto
programa de estudo do trabalho humano do qual Geor-
ges Friedmann é o animador. Não nos compete aqui
lembrar a importância de uma obra que, sob o título
geral de Machine et hwnanisme, conquistou renome
mundial. Mas cabe no quadro deste ensaio assinalar
que G. Friedmann é o primeiro especialista de ciên-
cias humanas a afirmar claramente a necessidade de
(1) Número especial de Rééducation, dezembro de 1953.
43
avaliar o alcance social do lazer, e em especial do la-
zer esportivo, no seio da nossa civilização* essencial-
mente industrial e técnica.
Na perspectiva que adota para um estudo da ati-
vidade humana global, isto é, do trabalho estudado
em suas relações polivalentes com todas as atividades
e todas as atitudes do indivíduo, Georges Friedmann
foi levado a empreender inquéritos cada vez mais de-
talhados e com informações cada vez mais amplas so-
bre o não-trabalno, que compreende o lazer e o tempo
livre.
Seu livro mais recente apresenta x dessa forma a
situação do trabalhador moderno: "As exigências de
interesse, de significação, de participação, de realiza-
ção, que não são satisfeitas através das tarefas ra-
cionalizadas da vida de trabalho, nas oficinas, escri-
tórios, minas, estaleiros, astensões latentes que elas
desenvolvem: -no- psiquismo de muitos indivíduos, man-
têm sua pressão fora do trabalho e influenciam as ati-
vidades que procuram durante as horas de "liberdade",
cada vez mais numerosas, que lhes deixa a-redução
progressiva da jornada ou da semana de trabalho" a.
É isto, em poucas palavras, abrir um leque de
pesquisas de infinita amplitude. Depois que Jean Fou-
rastié, mostrando a evolução do mundo dos trabalhado-
res para uma dilatação incessante do setor terciário,
não hesitou em predizer que: "nada será menos in-
dustrial que a civilização nascida da revolução indus-
trial"3, os poetas da ciência acreditaram-se autorizados a
passar da "utopia técnica"4,à profecia pura e simples.
E pudemos ver Deuis Roug^mont, que nada perdeu
da habilidade de brincar com os paracronismos e os
anacronismos que bem admiramos em L'Amour et
VOccident, saltar, tão alegremente quanto Tarzan en-
tre os cipós, às últimas conseqüências de um proces-
so ainda incerto para anunciar que abandonávamos
a era do labor a fim de entrar na "era do lazer" 5.
(2) G. Friedmann, Lê rravail en miettes, GalJimard, 1964, p. 188.
Uma das futuras edições da Editora Perspectiva, em sua Coleção "De-
bates".
(3) S. Fourastié, Lê grana espoir da XX siècle, p. 59. Unia das
próximas edições da Coleção "Debates", Ed. Perspectiva.
(4) G. Friedmann, Lê travail en mienes, p. 201.
(5) D. de Rougemont, "L'êre dês loisirs" na revista hebdomadária
4rts.
44
Como esta categoria de proezas não entra no qua-
dro do nosso estudo, contentar-nos-emos em examinar
as obras sobre o lazer, da autoria de J. Dumazedier
que, empregando um método experimental dinâmico
e previsional, consagrou dez anos a distinguir com pre-
cisão entre aquilo que foi, aquilo que é, aquilo que pro-
vavelmente será e aquilo que talvez será.
Estes trabalhos inscrevem-se na perspectiva in-
dicada em Machine et humanisme. Todavia, Duma-
zedier dá esta precisão: enquanto "Georges Friedmann
enfocou sobretudo a ação provável do trabalho sobre
o lazer"G, ele concederá uma atenção igual à outra
fase desta reciprocidade de influência: o lazer pode
ter sobre o trabalho um efeito positivo, nulo ou nega-
tivo.
No colóquio de sociologia internacional que se
realizou em Annecy, em junho de 1957, os represen-
tantes da França propuseram um meio muito simples
de resolver o problema da definição que, já o dissemos,
todos reconheceram como "quase; insolúvel" no plano
lingüístico.
Segundo os próprios termos de J. Dumazedier, a
solução consistia em chegar a uma "definição empírica
ao nível das representações e não dos conceitos"7.
Aquela que foi apontada resultava não de uma
formulação verbal, mas de uma série de questões pos-
tas a mais de oitocentos trabalhadores compreenden-
do 10% de empregados e 90% de operários.
Ao longo deste inquérito, que foi feito simulta-
neamente em todas as regiões da França, constatou-se
que, em 60% dos casos, o lazer definia-se inicialmen-
te por oposição ao trabalho profissional, às tarefas do-
mésticas, às atividades de diversão, às atividades ri-
tuais, familiares ou outras e, em geral, a todas as ocu-
pações interessadas (tais como a preparação de um
exame — mesmo a longo prazo) ou outros esforços
com vistas a uma promoção social.
Todavia, os entrevistados não excluíam as ativi-
dades que visavam a um melhoramento geral das suas
aptidões, isto é, uma elevação do seu nível de cultura,
ou ainda, para empregar o termo que, repetindo-se
(6) J. Dumazedier, Travail et loisir, p. 26, em Tralté de Sociologie
au travai!.
(7) Projet d'étude comparative, brochura da Unesco, ia citado
(p. 14). '
45
com mais freqüência nas suas conversas, foi adotado
na formulação final: um desenvolvimento da sua per-
sonalidade e da sua socialidade.
Assim elaborada, essa definição foi considerada,
a título provisório, como um instrumento de trabalho
suficiente por todos os congressistas de Annecy. Um
tal acordo constitui, na história das relações interna-
cionais entre os especialistas das -ciências sociais", um
acontecimento importante e que justifica a enérgica to-
mada de posição de Dumazedier: "É preferível abor-
dar as questões importantes, mesmo que ainda não te-
nhamos os meios de resolvê-las, a perder o nosso tem-
po em demonstrar com rigor proposições sem importân-
cia"8.
Eis essa definição, tal como foi dada no artigo
supracitado: "O lazer é um conjunto de ocupações às
quais o indivíduo pode dedicar-se, quer para descon-
trair-se, quer para diveytir-se, quer para desenvolver a
sua participação voluntária, suas informações ou sua
cultura, após ter-se libertado de todas as obrigações
profissionais, familiares ou outras".
Já concedemos a esta definição um elogio, ao nos-
so ver, capital: é um instrumento de trabalho, uma fer-
ramenta. Empregá-la-emos portanto, levando em con-
ta as limitações que ela implica necessariamente. Não
nos escapa, em especial, que, no concernente ao espor-
te, 'o inquérito prévio de Dumazedier lucraria em ser
retomado a partir de uma amostragem um pouco di-
ferente, onde os elementos sociais privilegiados — pes-
soal dirigente superior e profissões liberais — seriam
representados com mais amplitude. Embora conside-
remos que o esporte assume toda a sua importância,
enquanto fenômeno social, pela ;sua popularidade e
pelos efeitos sobre a classe operária, deve-se levar em
conta dois fatos que o convertem numa forma de lazer
que tem suas leis específicas:
!•?) a maioria dos dirigentes são recrutados nas
classes abastadas;
2*?) os esportes mais populares: futebol, ciclis-
mo, boxe e luta, são condicionados (alguns dizem mi-
nados) pela tentação permanente, ou ao menos peta
miragem do profissionalismo.
(8) J. Dumazedier, Travall et loisir, p. l, em Traité de Sodologte
du travail.
46
A parte frágil da ferramenta construída,por Du-
mazedier e seu grupo de trabalho parece-me residir,
rio que respeita ao esporte, na definição das obrigações.,
A atividade esportiva torna-se muito rapidamen-
te, em caso de sucesso, exigente e absorvente até à
obsessão. Por conseguinte, o elemento de obrigação
se apresenta, para alguns, como uma constante amea-
ça, para outros, como uma sedução. Entre o amador
excelente e o profissional de meios modestos, a linha
demarcatória, como iremos mostrar especialmente a
propósito do futebol, se revela muitas vezes difícil de
traçar.
Este sistema de classificação é portanto repos-
to em questão de forma radical ao nível das motiva-
ções. E isso, precisamente, no meio operário ao qual
concedemos toda a nossa atenção. Numa sondagem
efetuada em meu clube de judô, resultou que 75% dos
operários, no dia em que amarram em volta da cintura
a faixa branca do principiante, não só visam a faixa
preta dos "peritos", como também sonham em ter um
sucesso bastante brilhante de forma a escapar à fábrica
tornando-se os "diretores técnicos" bem pagos de uma
"academia" da região parisiense. No boxe, a porcenta-
gem desses candidatos ao profissionalismo dourado ain-
da é muito mais elevada: segundo o secretário-geral da
F.F.B., Sr. Royère, atinge 90%.
Ora, tentaremos demonstrar, num capítulo ulterior,
que não é possível limitar um estudo do esporte ao
puro amadorismo. Pior que uma restrição, isso eqüi-
valeria a aceitar uma falsificação da qual o menos
que se pode dizer, correndo o risco de desagradar aos
poetas da "cavalaria" e da "santidade" esportivas, é
que apresentaria do esporte uma imagem edulcorada,
ou mesmo castrada.
Admitiremos todavia, de momento, que entre os
três milhões de esportistas oficialmente recenseados,
uma maioria de jovens razoáveis (estes dois epítetos
não me parecem contraditórios depois de ter consul-
tado as sondagens efetuadas pelo I. F. O. P. por con-
ta de UExpress9) praticam o esporte de uma maneira
que corresponde à rubrica adotada por Dumazedier:
"Prática distrativa ou competitiva", sem se deixar fas-
(9) Françoise Giroud, La nouveUe vague, ed. Gallimard, p. 331 a 338.
47
cmar pelos sonhos de glória e de opulência oferecidos
pelas diversas crônicas dos astros.
Para esta massade praticantes a quem os espor-
tistas apaixonados (que, bem entendido, se conside-
ram os únicos verdadeiros) aplicam o desdenhoso epí-
teto de "esportistas de domingo", e dos quais dizem:
"Têm muita sorte em ter tempo para se divertirem",
o esporte é evidentemente um lazer como os outros.
De minha parte, não responderei a esta ironia
pela ironia, porque durante muito tempo conheci esta
alienação muito especial em que o esforço do esportis-
ta, para se exteriorizar, se volta contra ele. O espor-
tista "alienado" é aquele que acreditou tomar o es-
porte como meio e que nem sequer percebe que o
considera de fato como um fim. Ó mito que êlè criou
começa a viver fora dele, como uma vida autônoma,
e o mantém prisioneiro. Já Samuel Butler, em
Erewhon, mostrara admiràvelmente como, de maneira
análoga, o homem se tornava rapidamente o escravo
da máquina, da qual se julgava senhor.
Consideremos inicialmente o esportista sensato e
culturalmente consciente. A que categoria, entre as
funções do lazer tais como foram determinadas pelos
sociólogos de boa vontade que empreendem realizar
um inquérito internacional, pertence o esporte?
Estas funções foram resumidas, quando de um
encontro de peritos efetuado em Gauting, em três pa-
lavras: Descontração (Dl); Divertimento (D2); De-
senvolvimento (D3).
É oportuno notar que o repouso propriamente
dito quase não é tomado em consideração neste pla-
no de pesquisa. No seu projeto n<? 5 de "classifica-
ção funcional dos lazeres", J. Dumazedier precisava
que, segundo a sua terminologia, "a descontração é to-
mada mais no sentido de recuperação". Deste ponto
de vista, seria possível fazer figurar nesta rubrica ativi-
dades físicas pouco intensas, qualificadas às vezes de
esportes, tais como a pesca à linha ou o boliche.
A categoria "divertimentos" compreende, sempre
segundo os termos do projeto: "as ocupações inspira-
das pela necessidade de distração, com ou sem predo-
minância artística". Como notou um sociólogo ame-
ricano, Cassirer, presente a uma das nossas sessões de
trabalho em grupo, a noção de lazer nos Estados Uni-
48
dos, no seu estado atual, entra inteiramente nessa ru-
brica.
Pode-se incluir aí a prática dos esportes, quais-
quer que sejam, em que a atração da competição nun-
ca se sobrepõe ao gosto do jogo. (Fixaremos na al-
tura própria 10 os limites que nos propomos para a
categoria de esportistas que correspondem a esta des-
crição.)
À função de "desenvolvimento" são consagra-
das as atividades desinteressadas que tendem à "afir-
mação e ao desenvolvimento da personalidade". Dis-
tingue-se entre:
a) as ocupações dominadas pela necessidade de
receber ou de dar uma informação, de desenvolver
uma cultura;
Ir) as que são dominadas pela necessidade de
participar no funcionamento dos grupos espontâneos ou
organizados para um trabalho social gracioso.
Ora o esporte apresenta-se freqüentemente como
um lazer-papão:
19) pelo número de horas necessárias a uma
prática regular;
2"?) pela falta de ganho que daí decorre;
31?) pelas despesas que impõe (equipamentos,
vestuários, deslocamentos).
Entra portanto mais freqüentemente nesta catego-
ria. Os termos "afirmação de personalidade" é que
convém acentuar.
Convém determinar bem o lugar das atividades
esportivas em todo programa de inquérito sociológico,
sobretudo quando este está organizado no plano in-
ternacional. Com efeito, aí o esporte corre o risco de
ser, não esquecido, nem mesmo negligenciado, mas
considerado como uma espécie de apêndice incômodo,
com o qual não se saberá o que fazer e que será, mais
uma vez, colocado entre parênteses, ou posto em re-
serva para mais tarde. (Não se age de maneira di-
ferente, no ginásio, com os "excedentes". . . )
Já denunciamos esse preconceito invencível que
apresenta o esporte como o cabulador da civilização
ocidental: desprezado e- detestado por uns, idolatrado
(10) No capítulo intitulado: "Definição do esporte".
49
por outros, continua em todo o caso um "mal amado",
relegado à margem pelos guias da juventude que não
o compreendem ou que decretaram que ele nada ti-
nha para compreender.
J. Dumazedier não poderia ser suspeito de acei-
tar um tá! preconceito. Já em 1950, quando publi-
cou Regards neufs sur lê sport moyen de cultwe, este
título constituía, por si só, um manifesto. E o livro
oferecia, ao mesmo tempo que uma considerável so-
ma de informações, uma espécie de prancha anatô-
mica da nossa sociedade, onde os inumeráveis pontos de
inserção do fato esportivo eram marcados por gran-
des flechas do mais pedagógico efeito. Cada um
desses pontos exigia um inquérito ou um estudo mo-
nográfico.
Ora, esses apelos, talvez demasiado numerosos,
ainda não foram ouvidos até hoje.
Por isso, o documento elaborado pelo grupo de
estudo do lazer oferece uma oportunidade decisiva a
todos aqueles que visam a um conhecimento autênti-
co do esporte contemporâneo. •
Os trabalhos sobre o lazer na cidade de Annecy
foram considerados como um inquérito-pilôto pelos
peritos internacionais reunidos sob a égide da Unesco.
Um dos princípios metodológicos que foram adotados
já em 17 de junho de 1957 permite esperar uma re-
novação radical da orientação do esporte na França,
onde sempre foi, até ao presente, confiado a federa-
ções e a ligas ciosamente fechadas em si próprias.
Enuncia-se assim: "Mais do que uma descrição dos
grupos de lazer, o nosso estudo tem por objetivo os
seus diferentes modos de integração na estrutura so-
cial da coletividade" ".
No que concerne ao esporte, estudar o "modo
de integração" consistirá no mais das vezes em esta-
belecer provas de não-integração. De onde derivará,
sem discussão possível, a necessidade de reformas ur-
gentes. Um tal programa de estudo contém, para nós,
uma grande esperança.
No projeto de dezembro de 1957 figuravam sete
categorias de lazeres:
(11) Profet d'elude eomparative, brochura da Unesco, p. 29.
50
19) ocupações ainda sobrepostas as obrigações;
2<?) ocupações dominadas pela necessidade de
descontração;
3°) e 49) ocupações inspiradas pela necessida-
de de distração;
5*?) e 69) ocupações dominadas pelas necessi-
dades culturais;
79) ocupações dominadas pela necessidade de
participar no funcionamento de grupos espontâneos ou
organizados.
Um documento operacional ultimado em 1958 la
só compreendia seis categorias, das quais três têm um
lugar mais ou menos importante nos esportes.
Na categoria l, a dos "semilazeres", é que o es-
porte era citado com mais freqüência: primeiramente
no número O que designa as "atividades meio lucrati-
vas, meio desinteressadas".
Dada a fraca porcentagem de esportistas profis-
sionais de pleno emprego (citamos, corno exemplo, l
para l 000 em futebol e l para 500 em boxe), é evi-
dente que a maior parte dos praticante assíduos devem
ser classificados nesta rubrica.
Assinalemos também a subcategoria destes semi-
lazeres chamados "com predominância de descontra-
ção", que diz respeito às formas especiais do repouso.
A "recuperação" do esportista que acaba de se entre-
gar a loucas prodigalidades de energia nervosa e físi-
ca depende dê técnicas muito estudadas. Para os es-
pecialistas dos esportes "de combate, o sono coloca
muitas vezes problemas espinhosos. Assim, o ex-
-catnpeão mundial,de pesos pesados, Joe Louis, ti-
nha necessidade de dormir, durante as fases de re-
pouso, quatorze e mesmo dezesseis horas em vinte e
quatro. Os pesquisadores sobre o lazer deveriam con-
ceder uma atenção especial, desse ponto de vista, aos-
esportistas assíduos.
Na categoria II (ocupações distrativas com pre-
dominância não-artística), o n*? 8 designa expressa-
mente "a prática distrativa de todos os esportes", e o
n9 9 "a prática competitiva dos esportes". No mes-
mo n.9 9, é proposta também uma tipologia talvez de-
(12) Code dês activltís de loisir, brochura do C.N.R.S.
51
masiado simples porém racional: esportes individuais
(de equipe, de combate); outros esportes.
Assim se apresenta, para nós, a parte importante
da documentação internacional que se está constituin-
do.
Pode parecerdesconcertante encontrar também,
nesta mesma categoria II, atividades tão heterogêneas
como, por exemplo, os "prazeres gastronômicos" no
o9 12, os "flertes" e outras "intimidades" no n1? 10.
Mas todas as classificações de alguma eficácia com-
portam necessariamente uma parte de arbitrariedade.
A única reserva importante que apresentarei (e
isso com o único fim de reduzir ao mínimo as hesita-
ções ou as confusões que não deixarão de se produ-
zir) é que esta categoria, pelo seu próprio título, pa-
rece pertencer exclusivamente à função "divertimen-
to" (D2), enquanto que, mesmo tendo em conta a
noção de predominância já introduzida no projeto
n? 5, é impossível atribuir à maior parte dos esportes
de competição uma outra predominância que não seja
a do "desenvolvimento" (D3).
Em contrapartida, é com toda a justiça que cer-
tas ocupações muitas vezes qualificadas como espor-
tivas mas que, excluída a idéia de competição, depen-
dem unicamente do turismo e da higiene, figuram nes-
ta mesma categoria II: n? l esqui e alpinismo; n4? 2
passeios, inclusive aqueles que se fazem de bicicleta,
de moto ou de scooter; n<? 3 pesca e caça; n^ 5 bo-
liche ou jogo de bocha; n<? 6 outros jogos e concursos
diversos. Esta distinção exclui um preconceito ambí-
guo que amplia desraesuradamente a noção de espor-
te, ora (por pedantismo) a todos os folguedos que
lembram o "desporto"13 que está na origem do termo,
ora (por gosto das palavras que servem para tudo) a
toda atividade física de alguma intensidade.
Examinemos as outras categorias consideradas,
com o único fim de ter deste código uma visão de.
conjunto. A categoria II: Ocupações distrativas com
predominância artística (corresponde, portanto, às
funções D2 e D3). As categorias IV: Ocupação com
V: Ocupações com predominância intelectual (autodi-
daxia e pesquisas pessoais) constituem os domínios
(13) V. nota 3, p. 69.
52
privilegiados da função D3, A atividade do dirigente
esportivo entra na categoria VI: Ocupações corri pre-
dominância do trabalho social gracioso, que .põe em
evidência principalmente o desenvolvimento cultural, a
afirmação da personalidade e o gosto da autoridade.
Nesta última categoria, o esporte é designado no
n? 0: "Participação nas organizações de lazeres re-
creativos ou culturais". Os dirigentes esportivos -in-
sistem geralmente sobre o caráter benévolo e gratuito
do seu trabalho ". Quase sempre, são ex-praticantes.
É de uma importância capital, para o futuro do es-
porte, estudar neles as qualidades específicas do líder.
A análise deste plano de estudo ressalta simulta-
neamente a sua eficácia e as suas limitações.
De um lado, ele oferece um meio de avaliação
quantitativa sem o qual só poderíamos trazer mais
uma pedra para as construções teóricas existentes, das
quais já assinalamos os excessos assim como a ten-
dência à mistificação ou à falsificação deliberada. Não
há ciência sem o mensurável; nenhuma integração à
cultura e à civilização, nenhuma política do esporte,
serão possíveis enquanto a implantação do fenômeno
esportivo na sociedade atual continuar mal conhecida.
De outro lado, já assinalamos a multiplicidade e
a ambigüidade das interpretações possív-eis, não só das
noções de "esporte" e de "esportista", mas também dos
próprios termos da codificação adotada. ' Esta dupla
dificuldade deve permanecer incessantemente presente
no espírito dos estudantes e dos pesquisadores futuros.
Assim, é impossível não levar em linha de con-
ta, a cada passo, o esporte profissional, mesmo se lhe
devêssemos consagrar um estudo especial, em virtude
do poder de atração que os campeões exercem sobre
os praticantes mais obscuros.
Além disso, as funções do lazer, tais como fo-
ram definidas por Dumazedier e seus colaboradores,
misturam-se e mesmo por vezes mterpenetram-se de
tal forma que sé deve ter em conta, a cada momento
do inquérito, a noção,, tão prudentemente introduzida,
de predominância. É certo, por exemplo, que o espor-
tista oferece muitas vezes uma via de desenvolvimen-
to autodidático de ordem intelectual (como mostra a
(14) Ver o capítulo consagrado aos dirigentes.
53
notável autobiografia de G. Cousin15), elemento muito
interessante e que uma interpretação demasiado lite-
ral dos quadros da classificação proposta correria o
risco de eliminar. E existe um grande número de
atletas para quem o esporte é um meio de expressão
artística 1R,
(15)
(16)
54
Regards neufs sur lê sport, p. 12 e seguintes.
Cf. Píerre Naudin, Lês Mauvalses Routes, ed. Gallimard.
III. ESTUDO DO LAZER ESPORTIVO
NAS SUAS RELAÇÕES COM O TRABALHO
A necessidade de demarcar o limite entre o lazer
e a obrigação nos leva a classificar na categoria dos
"semilazeres" a prática de esportes que comporta prê-
mios tais como o boxe ou a luta livre, pelos quais al-
guns trabalhadores garantem um ganho complementar.
Aí só temos um aspecto, o mais simples e talvez
o menos significativo, da extrema intrincação existen-
te entre as disciplinas livremente consentidas na ori-
gem, e aquelas, cada vez mais estritas e absorventes,
que existem em certas coletividades esportivas, verda-
deiras sociedades na Sociedade.
Por conseguinte, torna-se inevitável a tentação, —
constatei-o, especialmente ao ler monografias sobre as
associações esportivas que me foram comunicadas por
estudantes que operam em regiões diferentes, — de
considerar o clube como um organismo isolado, com-
pleto e autônomo, tendendo a elaborar as suas leis,
os seus regulamentos e os seus meios de ação parti-
culares.
Nos casos-limites, uma tal situação marca o fra-
casso da concepção humanista do esporte que se po-
de resumir desta maneira: um meio de revelar, de de-
senvolver, de criar conforme as necessidades, laços
de reciprocidade entre a atividade esportiva e todas
as outras atividades, especialmente as profissionais.
Esporte e Obrigações
O fato de que o homem, no próprio seio das sua
atividades extraprofissionais, não pode escapar a um;
incessante proliferação de novas obrigações não ímplí
ca o desaparecimento total dos efeitos de descontração,
de divertimento e de desenvolvimento que examinamos.
Não exclui, em todo caso, a função liberadora do lazer
que contém e condiciona as outras.
Esta função é salvaguardada enquanto a ativida-
de do lazer pode ser detida, interrompida ou retoma-
da à vontade. B esta uma das principais caracterís-
ticas do jogo. / Çíuizinga, no Homo ludens, insiste li-
citamente: "Todo jogo é, primeiro e antes de tudo,
uma ação livre" 1,
A necessidade de jogo, nascida na infância, for-
ma de fidejfdade ao espírito de infância, continua sen-
do a foníe vivificadora, sempre renovada, de todo
prazer; de todo lazer.
Todavia, ao examinar as categorias estabelecidas
no plano de estudos realizados em Annecy e Gauting,
entrevimos que as formas do lazer modernç atingem
um grau de complexidade tal que transbordam larga-
mente a esfera do lúdico. Mesmo distendendo o con-
ceito de jogo tão desmesuradamente quanto os ame-
(1) Homo ludens, Gallimard, 1951, p. 25. Uma das próximas edi-
ções da Editora Perspectiva.
56
ricanos o fazem, os quais pretendem ver nele o prin-
cípio de todo o estilo de vida; ou os japoneses, em
locuções como "jogar sua chegada", "jogar seu casa-
mento", ou^mesmo "jogar a sua morte", é impossível
incluir ocupações como, por exemplo, o estudo dos áto-
mos (Código: n"? O da categoria V) ou mesmo, para
um boxador ambicioso, os sessenta minutos por dia de
uma cultura física tão violenta que perde um quilo
por sessão.
Todos os esportistas que praticaram a competi-
ção sabem que a seriedade do esporte une como que
por milagre a seriedade por vezes trágica do jogo in-
fantil e a seriedade do' trabalho, com aquilo que. ele
comporta de tenacidade, de vigilância, de vontade de
descobrir os limites da resistência humana.
"Trabalhar um movimento" é uma obra de lon-
ga paciência, quer se trate da melhor maneira de
transpor uma barreira, de sentir o desequilíbrio do
adversário, ou de alargar o passo... Entretanto, o
homem que se aplica assim está jogando, visto que
pode

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