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Próximo Lançamento A Arte no Horizonte do Provável Haroldo de Campos sociologia Qual o caminho que se abre para o esporte em nossa época? £ a pergunta a que Georges Magnane tenta responder, anali- sando o que de melhor e de pior as práticas esportivas propor- cionam ao homem de hoje. tf) oo 5 o o oo m tf) T) OJO H m georges magnane SOCIOLOGIA DO ESPORTE P í editora perspectiv Sociologia do Esporte Coleção Debates Dirigida por J. Guinsburg Conselho Editorial: Anatol Rosenfeld, Anita Novinsky, Aracy Amaral, Boris Schnaiderman, Celso Lafer, Gita K. Ghinzberg, Haroldo de Campos, Rosa Krausz, Sábato Magaldi, Zulmira Ribeiro Tavares Georges Magnane Sociologia do Esporte Equipe de realização: Fernando dos Santos Fonseca, tradução; Geraldo Gerson de Souza, revisão; Moysés Baumstein, capa e trabalhos técnicos. Editora Perspectiva São Paulo Título do original: Sociologie du sporí Copyright by ÉDITIONS GALLIMARD Paris Direitos reservados para a língua portuguesa EDITORA PERSPECTIVA S.A. Av, Brigadeiro Luís Antônio, 3 .025 São Paulo 1969 SUMÁRIO Introdução 9 Primeka parte O ESPORTE NA VIDA QUOTIDIANA I • Aspectos do jato esportivo da vida quo- tidiana 15 H. Elementos psicanalíticos da atração exercida pelo esporte 21 Hl • Racionalizações e justificações 27 I II III IV n. m Segunda parte O ESPORTE, ATIVIDADE DE LAZER Do lazer à liberdade 37 Função social do lazer esportivo 43 Estudo do lazer esportivo nas suas relações com o trabalho 55 Definição do esporte 69 Terceira parte POPULARIDADE DO ESPORTE I. Prestígio do campeão esportivo II. Esportistas e espectadores . . . III. Os ídolos do esporte 79 83 95 Quarta parte O ESPORTE, MEIO DE CULTURA Efeitos do esporte sobre o comportamento social 107 Os pais dos esporte francês 121 Esporte e jogo 133 É com verdadeiro prazer que exprimo aqui o meu reconhecimento àqueles que me ajudaram a des- cobrir, para este ensaio (que, aliás, aproveita todas as li- berdades consentidas pelo gênero), não só uma rica fonte de documentos, mas também um método de inter- pretação e de pesquisa sem o qual a acumulação de ratos só pode produzir um amálgama mais ou menos pitoresco ou, quando muito, uma "sociografia" super- ficial. Envio os meus sinceros agradecimentos a Georges Friedmann que me acolheu no C.N.R.S. (Centre Na- tional de Ia Recherche Scientifique). Sua atenta dedi- cação, sua alta competência, sua cortesia e indulgência tornaram os meus primeiros trabalhos de pesquisa tão agradáveis como frutuosos. Toda a minha gratidão es- tende-se igualmente a Joffre Dumazedier: guiou-me pas- so a passo, com uma solicitude toda fraternal, e o en- tusiasmo que me soube comunicar me foi quase tão precioso quanto os conselhos práticos que me prodiga- lizava todos os dias. Devo muito, também, a todos os pesquisadores do Centre d'Études Sociologiques, graças aos quais pene- trei num mundo de camaradagem e de solidariedade ativa que não esquecerei, especialmente Lucien Brams, Edgar Morin, Roland Barthes, Jean Duvignaud, Ro- bert Pagès. Os estudantes do Centre de Formation et d*Érudes de Éducation Surveillée (Srs. Arnaud, Sauvadet, Avy, Douchin, Radix), que redigiram suas teses de graduação sob minha direção, trouxeram-me todos interessantes informações. O mesmo acontece com os alunos da École Normale Supérieure d'Éducation Physique (Srs. Elissalde, Sarragosse, Lamouille, Merrien), que reali- zaram pesquisas em meu nome, e sob a égide do C.N.R.S. Por outro lado, só tive motivos de satisfação com o cuidado de precisão dos numerosos alunos das École Normales dlnstituteurs que se dignaram redi- gir monografias sobre agrupamentos esportivos segun- do o plano de trabalho que eu lhes havia proposto. Para o estudo das instituições esportivas, recebi uma ajuda preciosa de Christian Dujean, que me pro- porcionou a sua experiência e me pôs em contato com os seus colegas do Haut Comissariat aux Sports. Tenho ainda que agradecer aos dirigentes de so- ciedades esportivas (cujo anonimato me comprometi a respeitar) que aceitaram responder aos meus questio- nários. E também ao Sr. Gaston Meyer, redator-chefe de UÊquipe, assim como aos seus confrades do Sport et Vie, pelas facilidades que generosamente me conce- deram. Devo mencionar muito especialmente a cor- tesia e a paciência com que os dirigentes da Federação Francesa de Futebol se prestaram a um inquérito que se estendeu ao longo de um ano inteiro. Enfim, envio as mais cordiais saudações a todos os estudantes e a todos os meus colegas de clubes que me proporcionaram uma cooperação que, por ser be- névola e ocasional, não era menos eficaz. INTRODUÇÃO O esporte apresenta-se atualmente como um fato social em estado bruto. É tão difícil ter uma visão de conjunto dele, como estudá-lo em detalhe; o que não tem nada de inesperado, já que estas duas perspectivas, Aonge de se excluírem, não podem ter eficácia uma sem a outra. Um conhecimento sociológico autêntico se "npoe pela originalidade de fatos significativos exami- nados de perto e de diversos pontos de vista subjetivos; ttas essa originalidade mesma só pode ser notada após u_m estudo completo das estruturas objetivas. O inqui- or só faz perguntas pertinentes, se estabeleceu es- quemas de respostas para verificar, completar ou reti- ficar. Ora, este movimento de ida e volta, este intercâm- bio incessante, supõe um grau de elaboração dos do- cumentos acessíveis que o esporte, enquanto fato social, não oferece, atualmente, a nível nenhum. Quais são esses elementos? De um lado, inventários mais ou menos comple- tos de fatos acumulados sem método e sem objetivo aparentes: avaliação do número dos praticantes dota- dos de certo título ou munidos de uma ficha de identi- ficação sumária (licença ou mesmo simplesmente "car- tão de adesão"); estatutos das sociedades esportivas; listas de dirigentes; avaliações temerárias e diversas do número de espectadores de tal acontecimento ou de tal manifestação. De outro lado, é-nos lícito respigar ao acaso, na imprensa ou nas brochuras corporativas — ou ainda nas revistas de tal maneira especializadas que, de uma escola para a outra do mesmo esporte, não se compre- ende nada do vocabulário técnico —, uma infinidade de testemunhos fragmentários freqüentemente muito preciosos mas que exigem uma espécie de decifração — mesmo de tradução — prévia, Assim, encontramo-nos em presença desses dois amontoados confusos de fatos em estado bruto; de um lado, a floresta petrificada das instituições e, do outro, a jungle incoerente, indefinidamente flutuante, dos re- sultados e dos projetos. Trata-se de descobrir (ou de criar) um conjunto de ligações orgânicas de um para o outro. Para uma tal empresa convém ver inicialmente que ajuda pode- mos receber dos intelectuais que falaram do esporte, ou que escreveram sobre ele. À primeira vista, o quadro parece atrativo. Está estabelecido hoje que os escritores e os artistas conce- deram ao esporte um lugar cada vez maior nas suas obras, levantando-se assim contra a afirmação de La Fontaine de que "a matéria era estéril e pequena".1 (1) Consultar especialmente: a) M. Berger e E. Mousset. Anthologie dês textes sportifs de 1'Antiquitê. Grasset, 1927. b) G. Prouteau. Anthologie dês íextes sportijs de Ia littérature. Ed. Défense de Ia France, 1948. c) "Lês peintres témoins de leur temps", número especial. Lê Sport, 1957. 10 Ura exame rápido da lista dos autores modernos citados na antologia de G. Prouíeau deixaria supor que o esporte se tornou um centro de interesse literário de primeiro plano, tão universal como o amor, a cupidez ou a ambição, visto que, ao lado dos Giraudoux, Obey, Montherlant, Louis Hémon e Mac Orlan, cuja reputa- ção de "especialistas" do esporte está firmemente es- tabelecida, encontramos misturados: Paul Valéry e Ro- ger Vercel, Apollinaire e Tristan Bernard, Frédéric Mis- tral e Georges Duhamel, Colette e Alfred Jarry, Pierre Loti e Jacques de Lacretelle etc. Mas uma leitura atenta desses textos díspares e geralmente brilhantes permite-nos tomar consciênciade que só a preocupação de fazer ressoar nomes glo- riosos presidiu a sua escolha, ou mesmo a sua reunião. Todavia, coletâneas deste gênero têm a sua utili- dade. Deixam ver como a existência do esporte se impõe paulatinamente num número crescente de escri- tores muito diversos. Com a prontidão de levar aos extremos o que é simultaneamente a sua força e a sua fraqueza fatal, os especialistas desse gênero de desenvoltura que per- mitia a Valéry dizer: "O gênio é fazer uma mala", fize- ram do esporte ora uma panacéia, ora um novo ópio do povo. (E, bem entendido, o esporte é tudo isso, mas somente nas zonas marginais onde o excesso é obri- gatório.) Portanto, pouco nos surpreendemos que fosse Al- dous Huxley, o intelectual mais resolutamente retirado do mundo, que tivesse celebrado no esporte "uma das descobertas maiores dos tempos modernos". Ainda me- nos que Paul Valéry tivesse declarado: "Lastimo per- tencer a uma geração que subestimou o esporte", e muito gravemente tivesse empreendido demonstrar que as regras impostas aos jogos de espírito são parentes próximas daquelas impostas aos jogos de estádio". Pa- ra ele como para todos aqueles que tentam manter-se nas margens da vida, esse "carnaval estranho", o espor- e, visto de longe, aparecia como um meio de simulação e suprema eficácia: a atividade sem a ação, o último icrugio, em suma, da não-participação. nosso 0"PartÍCÍpação' e*s Prec'samente aquilo que, ao ver, caracteriza a maior parte das obras artísti- 11 cas e literárias que tratam de assuntos esportivos. Com exceção de alguns documentos técnicos, fornecidos por atletas, quer oralmente por meio de entrevistas, quer por escrito (praticamente não vejo êxito total a citar, no gênero, a não ser 400 metros de Boisset), en- contramos sobretudo descrições onde a atividade es- portiva é tratada anedòticamente, da mesma maneira que a ceifa, o regresso dos pescadores ou o trabalho no poço da mina. Trata-se simplesmente de um ele- mento decorativo. ' Contudo, existe uma categoria de escritores de que este ensaio tratará: são os moralistas do esporte. Sua atitude não é, aliás, fundamentalmente diferente da dos romancistas ou dos poetas já citados, visto que se co- locam resolutamente no exterior do fenômeno e, em vez de se aperceberem dele, procuram fechá-lo num sis- tema. Para eles também, o fato esportivo permanece no estado de acessório. Não procuram conhecê-lo. Para eles também, é um assunto: um tema de disserta- ção, isto é, uma ocasião de expor e de ilustrar as suas idéias sobre identidades como o bem, o belo, a natureza do homem, seus vícios ou suas virtudes. Primeira parte n O ESPORTE NA VIDA QUOTIDIANA I. ASPECTOS DO FATO ESPORTIVO NA VIDA QUOTIDIANA Não tenho tese a propor, nem "posição" firmada o- priori a defender. E devo também prevenir o leitor de que não pretendo limitar-me a essa "objetividade" que é comum invocar no umbral da maioria dos ensaios como este. Recuso-a, pelo contrário, com todo o co- nhecimento de causa: longe de me retirar do mundo que tento estudar, esforçar-me-ei por tornar a minha pre- Sença sensível nele. Assim como, em toda experiên- Cia ^ física, o experimentador faz parte do sistema o observador de um fato social é simul- sujeito e objeto no processo de observação. Portanto, nunca procurarei mascarar-me, nem brincar de esconde-esconde. Adotei, em relação ao es- porte, atitudes muito diversas: alternadamente espor- tivo e não-esportivo, antiesportivo ou pró-esportivo, participante ou espectador, "torcedor" ou opositor de- clarado. Informarei sobre essas mudanças de atitude. Tendo decidido afastar a enumeração de fatos em estado bruto, a dissertação moralizante e o arbitrário da escolha estética, tentarei mostrar em primeiro lu- gar que o esporte é um fenômeno social que impregna profundamente a vida quotidiana do homem do século XX. Sua presença se impõe não só àqueles que o pra- ticam, àqueles que o organizam ou àqueles que pro- curam dirigi-lo ou que pretendem fazê-lo, mas ainda àqueles que se dedicam a combatê-lo. Estes últimos desempenham, sem que o saibam, um papel de importância primordial: se o esporte, ati- vidade específica da juventude, não encontrasse resis- tências combinadas, não teria tanto atrativo para uma adolescência impaciente por reconhecer tanto as posi- ções dos seus adversários quanto as dos seus aliados. Que o esporte seja uma atividade específica da juventude, é evidente. A categoria "veteranos" come- ça aos trinta e cinco anos e todos os secretários de clubes declaram que ela abrange um número muito pequeno de praticantes regulares. Além disso, estes são recrutados sobretudo nas profissões onde o traba- lho exige apenas um dispêndio de energia muscular relativamente fraca. Por razões que aparecerão cada vez mais clara- mente à medida que travarmos conhecimento com o público das diferentes especialidades, é na classe de trabalhadores assalariados (operários e empregados) que o esporte exerce a sua mais forte atração e pode ter a mais profunda influência. Examinemos em primeiro lugar o ponto de vista do homem da rua. O dito de Jean Paulhan, que, em Lês Fleurs âe Tarbes, constatava que a literatura "ile- gível" era muito íida, se aplica freqüentemente à im- prensa esportiva. É incontestável que os jornais consagrados às es- trelas do esporte gozam de sucesso considerável. Todos podem comprovar que os usuários do metrô, entre as 16 sete e as oito horas da manhã, concedem a VEquipe uma preferência marcada sobre todos os outros diários. Observações efetuadas por seis estudantes, duran- te os meses de junho e de julho, estabeleceram que, num compartimento de segunda classe, para cada 100 leitores de jornais, 43 haviam escolhido U Equipe. Na segunda-feira, esta proporção subia para 57 pessoas em 100. Não se trata de fazer aqui um juízo de valor so- bre o jornal L'£quipe l. Mas foi da boca de um pro- fessor da Sorbonne que procura ler tudo aquilo que ele considera legível que ouvi um dia esta paráfrase de Paulhan: "Se a imprensa esportiva tem tartps lei- tores, é porque é ilegível". s^v*£ o^J^fc-*^ *»***•>- Como a boa vontade desse representante autori- zado da cultura não é posta em dúvida, perguntei-lbe o que sabia sobre o esporte. Não teve nenhuma di- ficuldade em confiar-me que a sua ignorância era to- tal. E apressou-se a acrescentar que não tinha von- tade nenhuma de se informar mais, pela simples razão de que a seus olhos não existia problema do esporte: "Os esportistas preferem se virar sozinhos". Esta frase merece ser examinada. Faz eco, quase palavra por palavra, a outra frase que encontrei há pou- co, não sem alguma admiração, sob a pena de um cé- lebre sociólogo americano: "Talvez uma conspiração do silêncio a respeito do lazer seja a sua melhor pro- teção" 2. Assim, os intelectuais com mais boa vontade em relação ao esporte afastam-se dele ou apenas conce- dem, como tempp perdido, uma olhadela ora indulgen- te, ora irritada, àquilo que eles consideram folguedos pueris e desprovidos de todo significado. Não quero dizer que errem (ou que estejam erra- dos) inteiramente: os verdadeiros significados do es- porte ainda estão por descobrir, talvez por criar. Mas se os únicos homens capazes de ir aos significados de- claram que esperam serenamente que os significados ve- nham antes até eles, encontramo-nos numa situação sem saída. . O) O estudo do conteúdo desse jornal foi assunto de monografia 00 Sr. Sauvadet, estudante do C.F.E.E.S., feita sob a minha direção. „.. í2) David Riesman, The Lonely Crawâ, p. 327. Uma das próximas "««Coes da Editora Perspectiva na Coleção "Debates". 17 Muitas vezes, no correr do livro, terei a ocasião de mostrar que os erros são recíprocos: os represen- tantes do mundo esportivo respondem com insolêccia e irritação ao desdém do mundo intelectual. Mas acho particularmente irrazoável a atitude do "homem de bem" do século XX que recusa tomar consciência de um fato de civilização tão enormemente visível como o esporte. Vejo nisso um sinal, entre outros que não me ca- bem denunciar,da demissão de uma certa cultura tra- dicional, que é a pouco e pouco substituída por uma outra cultura: ainda incerta e hesitante, mal conhecida e desconhecida, sem glória, mas que tem o mérito de não condenar a priori o presente em nome do passado. Entre os homens que jazem o esporte tal como é e os homens que falam dele institui-se uma segrega- ção que corresponde, mais ainda que à parede invisí- vel erigida entre a cátedra professoral e os alunos na classe, aquele muro de desconfiança implícita que se cria entre adultos e crianças nas famílias dadas à mo- ralização. Todos os educadores observaram que os alu- nos mais rebeldes à sua influência são precisamente aqueles a quem os pais "pregam moral", impelindo-os deste modo a se fecharem numa atitude estritamente defensiva s. Doutrinado e catequiza3o muito de cima, compa- rado a personagens heróicas ou lendárias que não co- nhece, o esportista apresenta freqüentemente aos seus •pretensos guias a fronte obstinada e o sorriso fingido do cabulador * cínico. Em oposição a esse cabulador que diz sempre não, há também o outro: o cabulador alegre, aquele que diz sim antecipadamente, com um bom sorrisc^ com o úni- co fim de se desembaraçar o mais depressa possível do tagarela. Enfim, existe a categoria, menos numerosa, mas militante, dos cabuladores de boa vontade: aqueles que aceitam tudo, e sem sorrir. Ê inútil apelarmos-para o seu senso crítico. São homens de hábitos, que apre- ciam muito os seus discursos e a sua cerimônia de dis- tribuição de prêmios. Vi um deles, outrora, com lá- (3) Cf. Karen Horney, The Neuroilc Personátíty of cur time, p. 194. (4) Em francês: cancre, que tem uma acepção um pouco mais am- pla do que seu correspondente português, no sentido de fuga em face de determinadas condições. (N. do T.) 18 grimas nos olhos, porque o presidente do banquete ofe- recido em honra dos concorrentes se contentara em proferir algumas frases de pura cordialidade, em vez de lançar-se, como se previa, ao firmamento dos lu- gares-comuns esperados sobre a fraternidade através do esporte. Era um rapagão, de aspecto um pouco carregado, bochechudo e avermelhado, que exercia a profissão de contador. Durante a sessão, manteve a expressão amuada de um bebê gigantesco privado da sobremesa. Pronto a bater os pés no chão e a cho- rar, lembrava-me o Benjy de Faulkner, que, na última página de The Sound and the Fury, guardando pre- ciosamente entre os dedos o seu narciso estiolado, se apercebe que Luster se apronta a contornar o monu- mento do Soldado Confederado pela esquerda e não pela direita, como habitualmente. .. Na verdade, quase não há dia em que o espor- tista não encontre alguma razão para se entrincheirar nessas posições de cabulador do mundo moderno. No próprio momento em que acabava de escrever as li- nhas precedentes, saltou-me à vista esta passagem do editorial de L'Express: "Na falta de outra coisa (tra- tava-se de formular a' sua resposta a um apelo do chefe do governo pela televisão), só restaria interes- sar-se apaixonadamente pela Volta da França ou pela pesca submarina". O autor deste artigo, querendo estigmatizar uma lamentável tendência dos franceses a não se-ocuparem com o que lhes diz respeito, responsabilizava muito na- turalmente uma prova esportiva que é o grande acon- tecimento popular do ano. Reconhecemos aí um des- ses movimentos de irritação que o adulto fatigado não pode reprimir quando os jogos das crianças começam a estorvar demais. E precisamente na imprensa que o esporte, a crian- ça difícil do século, manifesta a sua presença da ma- neira mais indiscreta. Assim é que, no momento em que a política nacional mudava decisivamente de ru- m°, se via o anúncio do jogo França-Brasil, para as quartas de final da Copa do Mundo, eclipsar pelos seus gordos títulos, nos vespertinos, a entrevista à imprensa ü^ um porta-voz do General de Gaulle. Na primeira Pagina do Paris-Presse de 25 de junho de 1958, as fo- tografias, os prognósticos e os comentários dos astros 19 futebolistas ocupavam um pouco mais de espaço que o anúncio do recrudescimento da guerra fria, no dia seguinte à execução de Imre Nagy. Após o jogo, o cronista literário desse mesmo jor- nal comparava os esforços dos nossos jogadores (ba- tidos) à inútil carga dos cavaleiros de Gallifet no pla- nalto de Dly, e exclamava, como o príncipe da Prússia: "Ah! Os bravos". Uma simples notícia anunciava por outro lado que a venda dos aparelhos de TV, estacio- naria há dois meses, aumentara bruscamente em 20%. Sobre os jogadores do quadro brasileiro, que ga- nhou a Copa, os detalhes mais surpreendentes eram prodigalizados à curiosidade de um público espantado, mas geralmente admirador: "Para preservar o clima que criou, (o treinador) manda examinar diariamente seus jogadores por um psicanalista". O dito treina- dor, Vicente Feola, não se contentava em recorrer as- sim às luzes da ciência, e implorava ao céu nestes termos: "Senhor, fazei que as ardentes suecas não de- cidam a Copa do Mundo". Este surpreendente artigo mostrava os jogadores brasileiros "literalmente sufoca- dos pelos abraços das jovens suecas" (sic). O entu- siasmo que acolheu os vencedores no seu país atingiu excessos tais que os cronistas esportivos, embora ricos em superlativos, acharam mais eficaz relatar fatos: "Um milhão e meio de torcedores berram a sua ale- gria", ou "Gastou quatro horas (o carro dos joga- dores) para percorrer vinte quilômetros". Citemos ainda, a propósito da recepção oferecida pela cidade de São Paulo, este achado de estilo: "Mesmo que saiam vivos disso, nem por isso terão terminado.. .". Esta forma degradada do culto do herói contribui sem dúvida nenhuma para manter o esporte numa con- dição de eterno menor. Os profissionais do futebol, do boxe ou do ciclismo esperam, após cada jogo, cada luta ou cada corrida, a sua porção de elogios e medem a solidez da sua situação pelas homenagens que lhes são concedidas, da mesma forma que os atores de ci- nema ou as estrelas da canção. 20 II. ELEMENTOS PSICANALITICOS DA ATRAÇÃO EXERCIDA PELO ESPORTE Todos os leitores da nossa literatura esportiva já notaram o emprego abusivo da palavra "complexo". É quase impossível percorrer a página de esportes de um jornal qualquer sem encontrar esse termo, que se degradou paulatinamente ao ponto de designar qual- quer espécie de inquietação, deficiência ou mal-estar. Poder-se-ia, como os antropólogos fizeram para a pala- vra mana 1, atribuir-lhe um valor simbólico zero no vo- cabulário usado nos meios populares. (1) Mareei Mauss, Sociologie et antkropologte, Introd., p. 48. 21 Objetivamente, a escolha desta palavra que, no seu contexto psico-sociológico, designa, segundo a sim- ples e precisa definição de Roger Bastide: "Uma mo- dificação do instinto pela cultura" 2, é reveladora. Na medida em que o esporte tende, não a integrar-se numa cultura cujas portas lhe são mantidas severamente fe- chadas, mas a criar uma nova, ele se coloca como rei- vindicação do instinto. E, principalmente, do instinto agonal. Nesta perspectiva, é possível, pelo estudo das "condutas" do esportista, empreender uma psicanálise da juventude atual. Um esboço fora proposto, já em 1917, por Thorstein Veblen na sua Theory of the lei- sure class, onde o esporte era representado como um meio de desrecalque comparável à guerra. Robert Lynd, no capítulo VII de Knowledge for what, dá uma lista de vinte contradições importantes que não deixa- riam -de amarrar psiquicamente todo cidadão america- no que se interrogasse sobre o espírito das leis morais do seu país, e o condenariam quer à rebelião, quer à neurose. Dos dois elementos acoplados por um "mas" (but) que Lynd 3 distingue: de um lado "as necessidades pro- fundas próximas do impulso instintivo" e do outro o pre- ceito "poderosamente afirmado pela classe ou outra autoridade", o mais seguro meio de recuperação do pri- meiro pela cultura é precisamente o jogo organizado: o esporte. Consideremos, por exemplo, a segunda desta cé- lebre lista de proposições contraditórias: "Oindividua- lismo, a sobrevivência dos mais aptos, é uma lei da na- tureza, mas íienhum homem deveria viver para si só". O problema posto: a conciliação do instinto agonístico e da necessidade de fraternidade aparece na maior par- te das narrativas de guerra. Mas trata-se então de uma situação imposta ao soldado. O esporte de equi- pe foi, pelo contrário, livremente escolhido pelo jo- gador. De um lado, permite-lhe lutar contra o adver- sário por todos os meios que a vida em sociedade lhe proíbe: a violência e, ocasionalmente, a brutalidade; a estratégia e, dado o caso, o ardil; a intimidação e, nos extremos, métodos humilhantes. E, de outro lado, o (2) O) 22 Roger Bastide, Psychanalyse et saciologie, p. 149. Knowledge for what, p. 59. jogador de equipe sente-se justificado pelo pensamento de que trava um combate não egoísta, o bom comba- te: é pelos seus, pelo seu clube e pelas suas cores que ele leva a agressividade até aos últimos limites fixados pelas regras do jôgo.A, Se estes limites forem transpostos, já não se tra- ta de um jogador, mas de um rebelde que é preciso punir, por vezes excluir: a cultura fracassou, o espor- tista torna-se um delinqüente, uma vocação degrada-se em destino. A invenção do rugby pelos ingleses, e a do seu futebol especial pelos americanos, esportes coletivos on- de o máximo de violência permitida é acompanhado pelo máximo de rigor nas regras, reflete o poder ao conflito, nos anglo-saxões, entre uma grande necessi- dade de exuberância física e um instinto gregário igual- mente exigente. A frase do mais célebre dos treinadores americanos, Knute Rockne: "Depois da igreja, é o fu- tebol o que temos de melhor"4, fornece-nos, sobre o assunto, um verdadeiro raio de luz. Esta tomada de consciência do valor terapêutico dp esporte é quase sugerida por Karen Horney no sen livro The newotic personality of our time. Ela é, em contrapartida, afirmada muito explicitamente pelos es- pecialistas do lazer Denney e Riesman. Estudando as transformações do futebol nos Estados Unidos 5, nota- ram que originàriamente "os americanos temiam essas brutalidades agressivas, mas ao mesmo tempo encon- travam prazer nelas, e que por conseqüência sentiam uma grande dificuldade em reconhecer o sentido pro- fundo dessas violências exteriores". Após a interven- ção do Presidente Roosevelt em 1905, a engenhosida- de dos técnicos se dedica ao aperfeiçoamento do jogo de passe, graças ao qual os acidentes mortais se tor- nam cada vez menos numerosos. No mesmo artigo, a evolução desse jogo nacional é assim resumida: "A ati- tude americana em face do futebol testemunha uma ne- cessidade imperiosa de definir, limitar e submeter a con- venções o .simbolísmo da violência nos esportes". É digno de nota que esta campanha tenaz e, no conjunto, bastante eficaz (há menos acidentes de fute- (4) Citado em Indíviãualism Reconsidered, p, 253. , (5) Reuel Denney e David Riesman, Individualism Reconsidered, PP. 242 a 257. 23 boi nos Estados Unidos, atualmente, que acidentes de rugby na Inglaterra), se tenha desenvolvido paralela- mente a uma propaganda em favor da psicanálise cujo sucesso, por vezes, ultrapassa o seu objetivo. Desde o tempo em que Michel Crozier escrevia: "A religião da América, o seu ópio do povo, é a de- mocracia estatística" % sucederam-se as denúncias de um outro ópio, ainda mais ativo e mais popular, que pode definir-se por uma simplificação abusiva dos pro- cessos freudianos de desrecalque. Os documentos reunidos por Crosswell Bowen em lis ont maí tourné7 contêm uma acusação contra a li- teratura dos "super-homens" e dos manejadores de re- vólveres, e constituem a prova de que o adolescente, à força de ouvir falar a torto e a direito de recalque e desrecalque, se habitua paulatinamente à noção de um verdadeiro direito à violência. Eis, a esse respeito, um extrato característico de um relatório do-psiquiatra Werthem: "No meu enten- der, o crime de que Brown é acusado tem o caráter de uma explosão (fie). Deve-se procurar a causa na conexão de dois fatores: fixação catalítica sobre a ima- gem-mãe, e os efeitos nocivos imputáveis à glorifica- cão da violência e dos métodos violentos pelas histó- rias em quadrinhos, bem como ao hábito a estas últi- mas adquirido ao longo da pré-adolescência" s. . Mais claramente ainda que nas biografias de de- linqüentes comentadas por Crosswell Bowen, os efei- tos do "simbolismo da violência" sobre a juventude americana (e sobre os seus imitadores de todo o mun- do ocidental) aparecem nas duas narrativas estritamen- te descritivas de Hal Ellson: Duke, Tomboy. Alguns nova-iorquinos que não são pobres, nem abandonados pelas suas famílias, nem anormais mental ou fisica- mente, formam um "bando" com o único fim de saciar a sua sede de violência. Sede insaciável e que faz da sua vida uma seqüência, incrivelmente monótona a lon- go prazo, de brigas coletivas mais ou menos sangren- tas, de ajustes de contas entre rivais, e de abraços bes- tiais. Um deles, oportunamente chamado Angel, ex- plica deste modo por que não tem outra preocupação (6) Lês Temps Moãernes, tfí 69, p. 73. , (7) Galümard, coleção "L'air du temps", 1955. (8) Op. cit., p. 96. 24 que arranjar dinheiro o mais depressa possível: "Fa- ríamos farras terríveis; teria guarda-costas e uma ar- tilharia pessoal, uma pistola de coronha de ná- car sob o braço esquerdo, para as vezes em que os meus rapazes não se mexam bastante depressa para li- quidar um intrometido"e. Aspirações desta natureza mostram até que ponto esta jângal da adolescência per- manece marginal e depende, pela simetria e pela cla- reza prêto-contra-branco das suas próprias oposições, da civilização a que pretende fugir, contestar ou des- truir. Nada de menos revolucionário que essas revol- tas infantis onde persiste a imitação dos adultos. Assim, os "Harpas", após terem infligido uma correção a um pequeno grupo do bando inimigo dos "Hipócritas", ce- lebram o seu triunfo como viram os soldados fazê-lo nas atualidades: "Longe de estarem abatidos, gritam e trocam gracejos acerca dos golpes que haviam dado" 10. Não existem praticamente páginas, nessa obra es- pessa, formigante de anotações de uma autenticidade inelutável, onde se não faça sentir o surdo desejo de uma legitimação pelo mundo adulto. Um rapaz cha- mado Jigga, por exemplo, impõe-se a todos os outros porque, com a idade de dezoito anos, tem comporta- •mento de homem. Quando os pais são evocados, é sempre com um embaraço em que se manifesta a ambivalência dos sen- timentos: profunda necessidade de afeição e de apro- vação e ao mesmo tempo rebelião alardeada. Assim um deles acusa o pai e a mãe de indiferença e amora- lidade: "E depois eles se batem, para eles o que inte- ressa é a grana" ". Sobre o mesmo assunto, um outro, crendo absolutamente ser da mesma opinião que o seu camarada, felicita-se de escapar perfeitamente as vistas das pessoas grandes: "Comigo, é a mesma coisa. No fundo, os velhos são broncos de morrer: acreditam sa- ber tudo e não sabem nada ( . . . ) . Se a minha velha soubesse a metade das malandrices que já fiz na minha vida, ela cairia duraí" 12. Neste último, a auto-afirmação atinge os piores ex- cessos da fanfarronada porque lhe falta o auditório de- sejado, que ele gostaria tanto de escandaüzar: à força (9) Hal Ellson, Duke, Tomboy, p. 185. (10) Jdem, p. 217. (11) e (12) Ibtdem, p. 185. 25 de gritar, ele espera obscuramente conseguir fazer cair as muralhas. A "explosão", de que Werthem tão opor- tunamente falava, não deve produzir-se indefinidamente no vazio. A nostalgia de um mundo social comple- to, onde os adultos poderiam enfim conservar o seu ní- vel é quef bem mais freqüentemente que a pobreza, im- pele os jovens larápios e os "brigões" aprendizes a subir penosamente os escalões da ilegalidade até ao ato de- lituoso caracterizado. O crime, que força os adultos a se ocuparem deles, mesmo que para enviá-los aos trabalhos forçados, ou mesmo para a cadeira elétrica, apresenta-se como o resultado final de um processo de autopunição. Seriaportanto possível reduzir a situação do ado- lescente difícil ao quadro representado, na América, dê um lado, pelos casos-limites das "crianças assassinas" e, de outro lado, pelas apologias de um esporte-espe- táculo que ofereceria meios de desrecalque" bastante po- derosos para que Knute Rockne compare a sua ação civilizadora à da Igreja? Segundo este esquema, as numerosas crianças mal integradas no seu meio familiar só teriam que escolher entre o esporte e a delinqüência. Uma tal simplifica- ção é evidentemente inaceitável. 26 III. RACIONALIZAÇÕES E JUSTIFICAÇÕES A rápida apreciação dos extremos que acabamos de realizar é útil para fixar os limites do assunto. De- dicaremos, neste ensaio, toda a nossa atenção ao es- porte de competição, com exclusão dos jogos propria- mente ditos. A tarefa mais urgente para nós era re- conhecer, nos pontos mais sensíveis do nosso sistema social, a inserção dos impulsos agonais. A necessidade de auto-afirmação por via competi- tiva continua sendo a dominante da cultura ocidental. O princípio da livre empresa é a sua caução oficial e a publicidade o meio de ação mais eficaz. Cada indi- 27 víduo está cada vez mais impregnado disso, quase sem- pre sem saber, mesmo no momento em que os meios para satisfazê-la se tornam de acesso cada vez mais difícil. Torna-se portanto inevitável que a juventude pro- cure atalhos, principalmente essa fração da juventude para quem a igualdade das oportunidades, pedra an- gular do edifício democrático existente, não representa mais do que uma abstração em desuso. -pa£*=a - Quando é demasiado grande o desequilíbrio entre o fim e os meios, a violência surge como único recurso. Entre os numerosos ülmes consagrados aos bõxadores, há um, Marcado pelo ódio, que tem o duplo mérito de narrar a história verdadeira de um antigo campeão do mundo, Rocky Graziano, e de desenvolver perante nós a fórmula pela qual a ideologia americana converte a violência no estado selvagem do delinqüente numa vío- .lência ajuizada, canalizada, regulamentada; a do espor- te de combate. É, teoricamente, tão lógico e racional quanto a cap- tação de energia de uma torrente da montanha, e no desenrolar das seqüências do fume, quase tão simples. Primeiro tempo: o jovem Graziano foi durante muito tempo batido e aterrorizado por seu pai que era um boxeur fracassado; depois de grande, vinga-se de seu pai batendo em todo homem que detém uma autoridade qualquer. E ele bate desvairadamentê, com a vontade de matar. Segundo tempo: ele continua batendo frenè- tícamente, mas no ringue, segundo as regras. Além disso, compreendeu, graças a um treinador hábil, que o seu verdadeiro inimigo não era seu pai, mas os outros: os responsáveis pela injustiça social que, precisamente, impediu que seu pai tivesse sucesso. Em vez de matar simbolicamente o pai a cada luta, ele o vinga. O mesmo ódio que fazia dele um bandido perigoso armará do- ravante o braço de um cavaleiro. Do Nero adolescente, o'esporte fez um Rodrigo adulto. C.Q.D. Uma conversão tão perfeita evoca as metamorfoses da mitologia e, mais ainda, os passes de mágica de uma certa "psicologia" orientada. Mas, embora ela quase não resista ao exame, possui um incontestável poder de persuasão sobre um público habituado a ver o cinema propor-lhe incessantemente redenções também tão mi- lagrosas, É geralmente pelo amor que se opera a trans- 28 mutação do mau rapaz e da moça perdida em herói do mais puro'metal. Era inevitável que o esporte, mais cedo ou mais tarde, encontrasse o seu lugar nessa perspectiva de correio sentimental. Do mesmo modo que uma noção normativa e estereotipada do comportamento amoroso permite introduzir simplificações úteis no caos dos ins- tintos sexuais em estado bruto, a regra do jogo esportivo intervém para entregar o controle da necessidade de vio- , lência às mãos dos managers, treinadores ou outros re- presentantes dá ortodoxia. Logo que se manifesta um motor social de alguma potência, é rodeado de homens engenhosos que experi- mentam meios de o fazer funcionar para os maiores in- teresses da coletividade. Assiste-se então à elaboração de um mito, onde as forças explosivas produzidas por um desequilíbrio social no estado agudo são transfigu- radas por ilusões lisonjeiras e tranqüilizantes. Os técnicos da ilusão dirigida, representados, nos Estados Unidos, pelos agentes publicitários, pelos jor- nalistas e pelos autores de filmes, sempre tiraram os seus efeitos mais brutais e mais imperiosos do espe- táculo da violência. O mito do bom esportista virtuoso, recompensado pela vitória, vem a propósito para asse- gurar a difusão do mito, usado até à lona, desses "cava- leiros dos tempos modernos" (tal é título de Gary Cooper no cume da sua glória), que faziam triunfar o Bem pelo poder, invariavelmente conjugado, da sua aptidão para o boxe e da sedução que exerciam sobre a filha de milionário injustamente perseguida. Se os produtores de Hollywood e os seus satélites não tomarem precauções, o fantoche do bom, esportista, construído demasiado sumariamente, vai ficar fora de moda antes mesmo de se instalar na carreira. É justo notar, com efeito, que o sedutor de punhos invencíveis, sucessor do atirador infalível dos westerns, cede terreno, cada vez mais visivelmente, ante uma categoria de campeões do Bem de concepção menos zoológica. Já, em Assim Caminha a Humanidade, era dado ao es- pectador assistir a uma vitória ambígua do represen- tante do Bem, Rock Hudson. Sem dúvida ele sa- crificava à tradição batendo-se aos socos. Mas, re- viravolta decisiva, ele recebia uma sova memorável, finalmente pontuada por uma queda num amálgama 29 de couve com creme e de xarope de groselha que ele derruba ao cair, A crítica não sublinhou suficientemente o signifi- cado dessa desintegração do átomo simbólico represen- tado, no cinema, pela noção de uma virtude que triun- fava, rápida e indiscutivelmente, pela força brutal. • Na cena considerada, a vitória de Rock Hudson é mais sutil e mais sólida que a dos punhos: é uma vi- tória exclusivamente moral. Apesar dos seus cabelos brancos (ele é quadrigenário e pai de família), ape- sar da sua falta de treino e de um entorpecimento fi- gurado por um estofo abdominal bem ajustado, ele ganha. E ganha, a despeito do seu espetacular des- moronamento, porque luta pela causa do anti-racismo o qual, precisamente, empreendeu acabar com a vio- lência. A sua vitória impõe-se aos olhos do espectador americano, de uma maneira incontestável: 1^) bom rico, ele continua rico; 2^) valente cavaleiro lutando por uma nobre causa, é ó único bem-amado da Bela. Re- conhecemos aqui a dupla sanção tradicional mais per- • feita que existe em relação a uma cultura onde "o su- cesso sexual é o símbolo de sucesso social"1. Mais claro ainda, mais convincente também, é o recurso contra a violência primária apresentada por um fume mais recente, A man is ten jeet tall (título no Brasil: Um Homem tem três Metros de Altura). A admirável personagem do negro, Tommy, que, apesar da sua atitude conciliadora, não pode escapar ao ajuste de contas em que é encurralado por Malik, o vilão caracterizado que reina sobre seu grupo pela chantagem e pelo terror, é morto na briga. A sua vi- tória final será ainda mais retumbante: ela dá a cora- gem e a invencível pureza ao seu amigo Axel, a quem um complexo de culpa tirava a alegria de viver e a luz do dia. Cabe notar, de resto, que este, uma vez provido da sua nova armadura, alcança também a vi- tória no combate, tão difícil e perigoso é, segundo pa- rece, romper totalmente com um sistema de retribui- ção que conserva, para um vasto público, o valor de um reflexo condicionado. (1) David RJesman,. Individuaiism Reconsldered, p. 62. 30 Não é menos evidente que o herói já não é ne- cessariamente o boxador vitorioso. O que Riesman, no artigo supracitado, chama the nerve oj failure (a força no fracasso) é proposto abertamente como um valor mais alto que o sucesso em primeiro grau. . Esbo- ça-se, assim, uma reação contra a tradição medieval do "julgamento de Deus"que prevaleceu no cinema, desde a sua criação, e na subliteratura que deriva dele. Deveremos felicitar estes novos diretores da consciên- cia popular que são os produtores de filmes ou lamen- tar, pelo contrário, que tenham levado meio século pa- ra perceber que, em toda briga, há geralmente dois homens em presença e que aquele que é lançado ao chão não é necessariamente aquele que ali deve per- manecer para sempre? Contentar-nos-emos em colocar o problema. O nosso propósito era mostrar até que ponto a consciência do homem da rua permanece constante- mente impregnada (e quando se trata do americano, podemos dizer saturada) de sensibilidade agonal. _ O esporte, concebido como um jogo visando es- sencialmente à competição, oferece um meio lícito de reagir à fascinação da violência. Esta se manifesta nos menores detalhes da vida quotidiana de todo ho- mem, e mais particularmente na adolescência, esse pe- ríodo em que uma selvageria total e uma docilidade ao ídolo do momento igualmente intransigente, coexistem ou se sucedem sem razão aparente, muitas vezes com uma instabilidade vertiginosa. Uma contaminação cada vez mais generalizada do comportamento sexual pelo espírito de competição esportiva manifesta-se nos costumes atuais. Ela só existia, até ao meio do século, no estado clandestino e nos agrupamentos juvenis pouco extensos. Ora, o primeiro relatório Kinsey, Sexual behaviour of men, traz-lhe uma consagração oficial, utilizando com bas- tante freqüência a expressão "atleta sexual". E Ries- man, não menos claramente, declara que, para muitos jovens, a sexualidade, "embora eles pareçam usá-la da mesma forma que a sua dose de vitaminas, permanece para eles um terreno de competição e um local de pes- quisas"2. Não partilhamos da convicção otimista dês- te sociólogo quanto ao poder da sexualidade, concebi- <2) The Lonely Crava, p. 155. 31 da deste modo, de afastar "a ameaça de uma apatia total"3. Todavia, se for exato que, como Riesman afirma, o qualificativo foi assim expulso do seu último , refúgio pelo quantitativo, esperamos com curiosidade as conseqüências sobre os varões americanos desta no- va conquista do espírito de competição esportiva. Ries- man contenta-se, de momento, em indicar que "a an- siedade dos homens que temem não satisfazer as-"mu- Iheres cresce à medida que se tornam consumidores mais experientes"4. Mais reveladores ainda, por causa de uma espé- cie de candura, ou pelo menos de uma ausência evi- dente de intenção didática, são os filmes em que apa- rece, não já a juventude concebida pelo código holly- woodiano, mas a juventude americana tal como se com- porta na sua vida quotidiana. Assim, esta cena de Peyton Place em que o rapaz, que foi persuadido pela moça, não sem dificuldade, a beijá-la, pergunta: "Não é tão bom como com o Rodney, hein?", pergunta bem honesta, e que conduz a uma resposta igualmente ho- nesta: "Não", disse a moça, com o único fito de enco- rajar o seu companheiro a treinar a fim de melhorar as suas atuações. O público europeu, durante muito tempo, respon- deu pela troça a esta concepção esportiva da sexuali- dade. Todavia, o aparecimento dos dois relatórios Kinsey provocou, na imprensa francesa e mais ainda na imprensa inglesa, uma reprovação escarnecedora de onde estava rigorosamente excluído o divertimento. Esta irritabilidade traduzia o embaraço de uma civilização insegura, que, de um lado, continua a repe- tir com o taoísmo que o "homem verdadeiro é aquele que não tem semelhante" e que, de outro lado, tenta, pelos meios mais poderosos da propaganda moderna, impor uma ideologia de confecção, onde as manifesta- ções da inquietude pessoal serão pejorativamente qualifi- cadas de complexos, neuroses ou atitudes anti-sociais. Este mal-estar e esta ambigüidade, foram, mais brevemente e mais claramente ainda üo gue por Ro- bert Lynd, definidos por um sociólogo francês: "A nossa civilização é fundada na concorrência econômi- ca, mas a competição não domina apenas as relações (3) The Lonely Crowd, p. 154. <4) Iblá., p. 156. 32 entre os grupos profissionais, estende-se até às relações de amizade, de família, de sexos, provocando rivalida- des, suspeitas, ciúmes. Ora, simultaneamente, a nos- sa sociedade vive sob uma ideologia cristã de fraterni- dade e de amor"5. Consideramos a atração exercida pelo esporte vio- lento como um sintoma desse conflito profundo. Ve- remos se a disciplina esportiva 'pode representar uma solução, um remédio ocasional ou apenas um paliati- vo. (5) Roger Bastide, Sociologia et psychanalyse, p. 126. Segunda O ESPORTE, ATIVIDADE DE LAZER I. DO LAZER À LIBERDADE Nas obras e nos filmes que citamos, tratava-se sobretudo de estados patológicos ou subpatológicos que oferecem um interesse dramático evidente, mas cujo alcance social, mesmo tendo em conta o poder*, de fascínio que lhes asseguram os jornais especializa- dos na exploração das pequenas notícias sensacionais, os chamados filmes "de ação" e a literatura negra, permanece bastante limitado e, em todo caso, difícil de medir. Entretanto, é incontestável que os seres reputados como os mais normais atravessam crises de crescimento; durante as quais apresentam sintomas claramente pa- 37 tológicos. Ora, só a psicanálise permitiu pôr em evi- dência as causas do mal-estar mais secreto do adoles- cente que tenta integrar-se na coletividade pela sua exploração minuciosa das relações familiares. O estudo de toda vocação esportiva torna por- tanto inevitável o recurso à psicanálise, da qual ado- taremos aqui, mantendo toda a mitologia entre parên- teses, esta definição mínima: um método de estudo do comportamento do adolescente no seu meio educativo, sendo este por sua vez condicionado por um dado meio social. A palavra lazer, pela sua etimologia (licere: ser permitido), evoca uma organização do trabalho tradi- cional e patriarcal: o senhor concede aos seus filhos e aos seus dependentes, em certas horas, e em certas condições, a permissão de fazer o que lhes agradar, ou de nada fazer. Neste aspecto, a diferença entre a palavra francesa lòisir (e a palavra inglesa leisure que deriva dela) e os termos empregados pelos povos es- lavos e germânicos, aos quais falta um equivalente exa- to, merece ser tomada em consideração. Num "Encontro internacional de peritos" que foi organizado em Annecy pela Unesco, de 13 a 17 de junho de 1957, com vistas a estabelecer um plano de estudo comum à França, Dinamarca, Alemanha Oci- dental, Holanda, Polônia, Suíça, Grã-Bretanha, Bél- gica, Itália e Iugoslávia, ocorreu uma viva discussão, anteriormente à adoção de uma definição da palavra lazer, no curso da qual foi declarado que os proble- mas lingüísticos que ela punha eram "quase insoíú- veis"1. Mario Melino, lembrando que a Itália, que ele representava, adotara a expressão tempo libero, que corresponde ao freizeit dos alemães, fez observar que a identificação implícita entre trabalho e necessidade de um lado e, de outro, entre lazer e liberdade, trazia con- sigo uma valorização abusiva das atividades do lazer. E Asher Tropp, delegado da Inglaterra, indicou que o termo leisure estava em uso sobretudo nas classes médias e superiores, enquanto as outras falavam mais de rest-time (tempo de repouso). Convém acrescen- (1) Projeto de estudo comparativo sobre a evolução das formas e das necessidades de lazer em diversos países, Unesco, 1957, p. 13. 38 tar que spare time (literalmente, tempo poupado) de- signa sobretudo momentos de liberdade imprevistos, não entrando num programa organizado. É portanto impossível aproximar ao ponto de con- fundi-las, como parecem fazer numerosos» sociólogos americanos 2, as noções de lazer e de liberdade. Tra- ta-se de fato de uma liberdade autorizada, muito preci- samente limitada no tempo, dependente de toda orga- nização social e principalmente das condições do tra- balho humano. Teremos oportunidade, ao estabelecer um plano de estudo dos agrupamentos esportivos, de mostrar a importância de uma definição precisa do lazer. É a sorte de toda uma juventudeque está em jogo. O esporte é o principal pólo de atração para as atividades aprovadas, lícitas, conscientemente so- ciais e, no sentido mais amplo da palavra, dóceis. Os "jogos selvagens" da rua e dos bosques, nascidos ao acaso dos agrupamentos mais ou menos anárquicos de vizinhança, o isolamento verdadeiro ou fictício, os de- vaneios violentos ou eróticos suscitados pela literatu- ra e pelo cinema, as conversas surpreendidas e mal compreendidas, constituem o outro pólo: aí triunfam a evasão, o apelo da floresta ilusória onde se encon- tram os "Tarzan" e os "Super-homens", as "meninas- -môças" e as "mulheres fatais", os assassinos e os san- tos: todas as criaturas fictícias e simplificadas que o adolescente se esforça por imitar, no mais das vezes pela indumentária, aspecto ou gesto, algumas vezes também pelos atos. Uma liberdade bem orientada é o que os "rebel- des sem causa" do século do absurdo e do desme- surado não podem aceitar e é, precisamente, o que a disciplina esportiva lhes traz. Que a motivação domi- nante do esportista seja, na origem, a admiração desta categoria de "super-homens" que a popularidade ten- de a fazer do campeão, em nada altera o fato: o atle- ta em treino é um jovem regrado, tem a consciência tranqüila porque realiza o melhor possível a tarefa que lhe prescreveram as pessoas dignas, respeitáveis e que provaram as suas capacidades. Conscientemente ou não, ele se comporta como um bom filho de família. <2) Cf.: American Journal of Sociology, maio 1957 (número con- sagrado ao lazer). 39 Parece, portanto, a priori, que o lazer, e especial- mente o lazer esportivo, deve surgir como um assunto de primeira importância para os sociólogos america- nos, em relação aos quais o professor Girod, na sua tese, estabeleceu claramente que "é sob o ângulo do controle social, em regra geral, que eles exploram e analisam as atitudes. Controle social, no seu vocabu- lário, é muitas vezes sinônimo de cultura" 3. Ora, não existe, nos Estados Unidos, nenhum es- tudo de conjunto sobre a questão. O número espe- cial do American Journal oj Sociology, já citado, po- de ser considerado, a esse respeito, como um notável exemplo de carência. Lá encontramos, com efeito, ar- tigos e notas sobre os seguintes assuntos: a moda, os cafés e as boites, a musica popular, o diálogo amoro- so na canção, os espetáculos com participação do au- ditório, os cosméticos e os cuidados de beleza, a his- tória, natural das idéias fixas. (Respeitei a ordem do sumário.) A ausência do esporte, nesta confusão, verdadei- ro caos de idéias engenhosas e de informações que só os colecionadores de curiosidades irão apreciar, não é de modo nenhum fortuita. Nos Estados Unidos, como na França, o esporte ainda não foi considerado como tema de estudo. Mais abundantes e mais luxuosamente apresentadas que na Europa, podemos folhear, nas livrarias nova-iorquinas, obras técnicas do gênero: Guia do Perfeito Esquiador, O Treino de Inverno, As Novas Regras do Futebol etc. É possível também arranjar, às centenas, livros de vul- garização médica freqüentemente muito bem feitos, so- bre as virtudes higiênicas de todos os exercícios espor- tivos. Mas é inútil procurar nas bibliotecas obras onde o esporte seja estudado enquanto fato'social, capaz de representar um papel na cultura e na civilização. O exame do Cumulative Index das publicações em língua inglesa de 1928 a 1956, feito ao mesmo tempo que o exame das resenhas críticas e dos anúncios de livros, em duas revistas: American Socialogical Review e American Journal of Sociology, permitiram-me ter a certeza de que o tema só fora abordado incidental ou fragmentàriamente. (3> Roger Girod, Altitudes collectives et relations humaincs. P.U.F. p. 131. 40 Mesmo nos dois livros cujos títulos anunciam pe- lo menos um começo de "tratamento" sociológico: Sports, their organization and administration (1944), de W. L. Hughes, e Sports in American Life (1953), de Cozens e Stumpf, os autores dedicam-se apenas a descrever as instituições esportivas e seu funcionamento. E as considerações contidas no segundo permanecem estritamente pedagógicas. Conclusão: faça bem os seus exercícios e será provavelmente um bom esportista e um bom americano. Sem dúvida, é preciso ver nesta serena aceitação do status quo a razão principal do grande silêncio ame- ricano sobre a questão. Não existe problema, num domínio inteiramente colocado sob o signo da boa consciência. Já no primeiro capítulo, W. L. Hughes cita John Galsworthy: "Se alguma vez o espírito de fair-play do esporte reinar nos negócios internacionais, as forças felinas que aí fazem a lei cairão por si pró^ prias e a vida humana pela primeira vez emergirá da selva"4. E como ele afirma a sua convicção de que a América é uma democracia que pratica um esporte democrático, esse ponto de partida será também a sua conclusão, inevitavelmente. Entretanto, o artigo sobre o futebol que figura no Individualism Reconsidered colocava problemas cujo interesse já assinalei. Dirigi-me pessoalmente a David Ríesman, que praticamente me deixou sem ne- nhuma esperança: "Quase nada se escreveu sobre os esportes neste país ( . . . ) . Falei aos redatores-chefes da nova revista Sports Illustrafed, da possibilidade de empreender estudos sistemáticos, mas disso não resultou nada". Assim, o país que possui os mais prestigiosos cam- peões de atletismo, os astros do esporte mais célebres e mais mimados, onde o número dos espectadores dos jogos televisionados está avaliado em 14 milhões, mas que, de outro lado, se queixa, pela voz do seu presi- dente, da fraca participação do americano médio na prá- tica do esporte, onde se nota também uma recente dimi- nuição do número dos espectadores no campo5, ainda não se apercebeu da necessidade de realizar um inqué- (4) W. L. Hughes, Sports, their organization and adminlslration, p. 2. (5) Cf. Léo Bogart, The age oi tetevision, p. 162. 41 rito sério sobre um fenômeno social tão intimamente integrado no seu modo de vida e nas suas tendências profundas. Uma tal "distração" é comparável àquela que, para a França, Henri Lefebvre assinala na sua Critique de Ia vie quotidienne, quando escreve: "Hoje em dia, não se sabe como se vive. Mal se sabe, após ter vivi- do, como se viveu. E que amargura, nessa consciên- cia infeliz" 6. Essa "consciência infeliz" revela-se mais fecunda que a boa consciência dos americanos já que ela faz aparecer a necessidade de um vasto inquérito, para o qual Lefebvre, na obra citada, propõe o título: "Como se vive". (6) H. Lefevrc, Critique de Ia vie quotidienne, p. 208. 42 II. FUNÇÃO SOCIAL DO LAZER ESPORTIVO^ Um inquérito desse tipo vem sendo realizado des- de 1953, data em que Joffre Dumazedier publicou: Significado e função do lazer na vida quotidiana 1. Ele encontrou o seu lugar no quadro do vasto programa de estudo do trabalho humano do qual Geor- ges Friedmann é o animador. Não nos compete aqui lembrar a importância de uma obra que, sob o título geral de Machine et hwnanisme, conquistou renome mundial. Mas cabe no quadro deste ensaio assinalar que G. Friedmann é o primeiro especialista de ciên- cias humanas a afirmar claramente a necessidade de (1) Número especial de Rééducation, dezembro de 1953. 43 avaliar o alcance social do lazer, e em especial do la- zer esportivo, no seio da nossa civilização* essencial- mente industrial e técnica. Na perspectiva que adota para um estudo da ati- vidade humana global, isto é, do trabalho estudado em suas relações polivalentes com todas as atividades e todas as atitudes do indivíduo, Georges Friedmann foi levado a empreender inquéritos cada vez mais de- talhados e com informações cada vez mais amplas so- bre o não-trabalno, que compreende o lazer e o tempo livre. Seu livro mais recente apresenta x dessa forma a situação do trabalhador moderno: "As exigências de interesse, de significação, de participação, de realiza- ção, que não são satisfeitas através das tarefas ra- cionalizadas da vida de trabalho, nas oficinas, escri- tórios, minas, estaleiros, astensões latentes que elas desenvolvem: -no- psiquismo de muitos indivíduos, man- têm sua pressão fora do trabalho e influenciam as ati- vidades que procuram durante as horas de "liberdade", cada vez mais numerosas, que lhes deixa a-redução progressiva da jornada ou da semana de trabalho" a. É isto, em poucas palavras, abrir um leque de pesquisas de infinita amplitude. Depois que Jean Fou- rastié, mostrando a evolução do mundo dos trabalhado- res para uma dilatação incessante do setor terciário, não hesitou em predizer que: "nada será menos in- dustrial que a civilização nascida da revolução indus- trial"3, os poetas da ciência acreditaram-se autorizados a passar da "utopia técnica"4,à profecia pura e simples. E pudemos ver Deuis Roug^mont, que nada perdeu da habilidade de brincar com os paracronismos e os anacronismos que bem admiramos em L'Amour et VOccident, saltar, tão alegremente quanto Tarzan en- tre os cipós, às últimas conseqüências de um proces- so ainda incerto para anunciar que abandonávamos a era do labor a fim de entrar na "era do lazer" 5. (2) G. Friedmann, Lê rravail en miettes, GalJimard, 1964, p. 188. Uma das futuras edições da Editora Perspectiva, em sua Coleção "De- bates". (3) S. Fourastié, Lê grana espoir da XX siècle, p. 59. Unia das próximas edições da Coleção "Debates", Ed. Perspectiva. (4) G. Friedmann, Lê travail en mienes, p. 201. (5) D. de Rougemont, "L'êre dês loisirs" na revista hebdomadária 4rts. 44 Como esta categoria de proezas não entra no qua- dro do nosso estudo, contentar-nos-emos em examinar as obras sobre o lazer, da autoria de J. Dumazedier que, empregando um método experimental dinâmico e previsional, consagrou dez anos a distinguir com pre- cisão entre aquilo que foi, aquilo que é, aquilo que pro- vavelmente será e aquilo que talvez será. Estes trabalhos inscrevem-se na perspectiva in- dicada em Machine et humanisme. Todavia, Duma- zedier dá esta precisão: enquanto "Georges Friedmann enfocou sobretudo a ação provável do trabalho sobre o lazer"G, ele concederá uma atenção igual à outra fase desta reciprocidade de influência: o lazer pode ter sobre o trabalho um efeito positivo, nulo ou nega- tivo. No colóquio de sociologia internacional que se realizou em Annecy, em junho de 1957, os represen- tantes da França propuseram um meio muito simples de resolver o problema da definição que, já o dissemos, todos reconheceram como "quase; insolúvel" no plano lingüístico. Segundo os próprios termos de J. Dumazedier, a solução consistia em chegar a uma "definição empírica ao nível das representações e não dos conceitos"7. Aquela que foi apontada resultava não de uma formulação verbal, mas de uma série de questões pos- tas a mais de oitocentos trabalhadores compreenden- do 10% de empregados e 90% de operários. Ao longo deste inquérito, que foi feito simulta- neamente em todas as regiões da França, constatou-se que, em 60% dos casos, o lazer definia-se inicialmen- te por oposição ao trabalho profissional, às tarefas do- mésticas, às atividades de diversão, às atividades ri- tuais, familiares ou outras e, em geral, a todas as ocu- pações interessadas (tais como a preparação de um exame — mesmo a longo prazo) ou outros esforços com vistas a uma promoção social. Todavia, os entrevistados não excluíam as ativi- dades que visavam a um melhoramento geral das suas aptidões, isto é, uma elevação do seu nível de cultura, ou ainda, para empregar o termo que, repetindo-se (6) J. Dumazedier, Travail et loisir, p. 26, em Tralté de Sociologie au travai!. (7) Projet d'étude comparative, brochura da Unesco, ia citado (p. 14). ' 45 com mais freqüência nas suas conversas, foi adotado na formulação final: um desenvolvimento da sua per- sonalidade e da sua socialidade. Assim elaborada, essa definição foi considerada, a título provisório, como um instrumento de trabalho suficiente por todos os congressistas de Annecy. Um tal acordo constitui, na história das relações interna- cionais entre os especialistas das -ciências sociais", um acontecimento importante e que justifica a enérgica to- mada de posição de Dumazedier: "É preferível abor- dar as questões importantes, mesmo que ainda não te- nhamos os meios de resolvê-las, a perder o nosso tem- po em demonstrar com rigor proposições sem importân- cia"8. Eis essa definição, tal como foi dada no artigo supracitado: "O lazer é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode dedicar-se, quer para descon- trair-se, quer para diveytir-se, quer para desenvolver a sua participação voluntária, suas informações ou sua cultura, após ter-se libertado de todas as obrigações profissionais, familiares ou outras". Já concedemos a esta definição um elogio, ao nos- so ver, capital: é um instrumento de trabalho, uma fer- ramenta. Empregá-la-emos portanto, levando em con- ta as limitações que ela implica necessariamente. Não nos escapa, em especial, que, no concernente ao espor- te, 'o inquérito prévio de Dumazedier lucraria em ser retomado a partir de uma amostragem um pouco di- ferente, onde os elementos sociais privilegiados — pes- soal dirigente superior e profissões liberais — seriam representados com mais amplitude. Embora conside- remos que o esporte assume toda a sua importância, enquanto fenômeno social, pela ;sua popularidade e pelos efeitos sobre a classe operária, deve-se levar em conta dois fatos que o convertem numa forma de lazer que tem suas leis específicas: !•?) a maioria dos dirigentes são recrutados nas classes abastadas; 2*?) os esportes mais populares: futebol, ciclis- mo, boxe e luta, são condicionados (alguns dizem mi- nados) pela tentação permanente, ou ao menos peta miragem do profissionalismo. (8) J. Dumazedier, Travall et loisir, p. l, em Traité de Sodologte du travail. 46 A parte frágil da ferramenta construída,por Du- mazedier e seu grupo de trabalho parece-me residir, rio que respeita ao esporte, na definição das obrigações., A atividade esportiva torna-se muito rapidamen- te, em caso de sucesso, exigente e absorvente até à obsessão. Por conseguinte, o elemento de obrigação se apresenta, para alguns, como uma constante amea- ça, para outros, como uma sedução. Entre o amador excelente e o profissional de meios modestos, a linha demarcatória, como iremos mostrar especialmente a propósito do futebol, se revela muitas vezes difícil de traçar. Este sistema de classificação é portanto repos- to em questão de forma radical ao nível das motiva- ções. E isso, precisamente, no meio operário ao qual concedemos toda a nossa atenção. Numa sondagem efetuada em meu clube de judô, resultou que 75% dos operários, no dia em que amarram em volta da cintura a faixa branca do principiante, não só visam a faixa preta dos "peritos", como também sonham em ter um sucesso bastante brilhante de forma a escapar à fábrica tornando-se os "diretores técnicos" bem pagos de uma "academia" da região parisiense. No boxe, a porcenta- gem desses candidatos ao profissionalismo dourado ain- da é muito mais elevada: segundo o secretário-geral da F.F.B., Sr. Royère, atinge 90%. Ora, tentaremos demonstrar, num capítulo ulterior, que não é possível limitar um estudo do esporte ao puro amadorismo. Pior que uma restrição, isso eqüi- valeria a aceitar uma falsificação da qual o menos que se pode dizer, correndo o risco de desagradar aos poetas da "cavalaria" e da "santidade" esportivas, é que apresentaria do esporte uma imagem edulcorada, ou mesmo castrada. Admitiremos todavia, de momento, que entre os três milhões de esportistas oficialmente recenseados, uma maioria de jovens razoáveis (estes dois epítetos não me parecem contraditórios depois de ter consul- tado as sondagens efetuadas pelo I. F. O. P. por con- ta de UExpress9) praticam o esporte de uma maneira que corresponde à rubrica adotada por Dumazedier: "Prática distrativa ou competitiva", sem se deixar fas- (9) Françoise Giroud, La nouveUe vague, ed. Gallimard, p. 331 a 338. 47 cmar pelos sonhos de glória e de opulência oferecidos pelas diversas crônicas dos astros. Para esta massade praticantes a quem os espor- tistas apaixonados (que, bem entendido, se conside- ram os únicos verdadeiros) aplicam o desdenhoso epí- teto de "esportistas de domingo", e dos quais dizem: "Têm muita sorte em ter tempo para se divertirem", o esporte é evidentemente um lazer como os outros. De minha parte, não responderei a esta ironia pela ironia, porque durante muito tempo conheci esta alienação muito especial em que o esforço do esportis- ta, para se exteriorizar, se volta contra ele. O espor- tista "alienado" é aquele que acreditou tomar o es- porte como meio e que nem sequer percebe que o considera de fato como um fim. Ó mito que êlè criou começa a viver fora dele, como uma vida autônoma, e o mantém prisioneiro. Já Samuel Butler, em Erewhon, mostrara admiràvelmente como, de maneira análoga, o homem se tornava rapidamente o escravo da máquina, da qual se julgava senhor. Consideremos inicialmente o esportista sensato e culturalmente consciente. A que categoria, entre as funções do lazer tais como foram determinadas pelos sociólogos de boa vontade que empreendem realizar um inquérito internacional, pertence o esporte? Estas funções foram resumidas, quando de um encontro de peritos efetuado em Gauting, em três pa- lavras: Descontração (Dl); Divertimento (D2); De- senvolvimento (D3). É oportuno notar que o repouso propriamente dito quase não é tomado em consideração neste pla- no de pesquisa. No seu projeto n<? 5 de "classifica- ção funcional dos lazeres", J. Dumazedier precisava que, segundo a sua terminologia, "a descontração é to- mada mais no sentido de recuperação". Deste ponto de vista, seria possível fazer figurar nesta rubrica ativi- dades físicas pouco intensas, qualificadas às vezes de esportes, tais como a pesca à linha ou o boliche. A categoria "divertimentos" compreende, sempre segundo os termos do projeto: "as ocupações inspira- das pela necessidade de distração, com ou sem predo- minância artística". Como notou um sociólogo ame- ricano, Cassirer, presente a uma das nossas sessões de trabalho em grupo, a noção de lazer nos Estados Uni- 48 dos, no seu estado atual, entra inteiramente nessa ru- brica. Pode-se incluir aí a prática dos esportes, quais- quer que sejam, em que a atração da competição nun- ca se sobrepõe ao gosto do jogo. (Fixaremos na al- tura própria 10 os limites que nos propomos para a categoria de esportistas que correspondem a esta des- crição.) À função de "desenvolvimento" são consagra- das as atividades desinteressadas que tendem à "afir- mação e ao desenvolvimento da personalidade". Dis- tingue-se entre: a) as ocupações dominadas pela necessidade de receber ou de dar uma informação, de desenvolver uma cultura; Ir) as que são dominadas pela necessidade de participar no funcionamento dos grupos espontâneos ou organizados para um trabalho social gracioso. Ora o esporte apresenta-se freqüentemente como um lazer-papão: 19) pelo número de horas necessárias a uma prática regular; 2"?) pela falta de ganho que daí decorre; 31?) pelas despesas que impõe (equipamentos, vestuários, deslocamentos). Entra portanto mais freqüentemente nesta catego- ria. Os termos "afirmação de personalidade" é que convém acentuar. Convém determinar bem o lugar das atividades esportivas em todo programa de inquérito sociológico, sobretudo quando este está organizado no plano in- ternacional. Com efeito, aí o esporte corre o risco de ser, não esquecido, nem mesmo negligenciado, mas considerado como uma espécie de apêndice incômodo, com o qual não se saberá o que fazer e que será, mais uma vez, colocado entre parênteses, ou posto em re- serva para mais tarde. (Não se age de maneira di- ferente, no ginásio, com os "excedentes". . . ) Já denunciamos esse preconceito invencível que apresenta o esporte como o cabulador da civilização ocidental: desprezado e- detestado por uns, idolatrado (10) No capítulo intitulado: "Definição do esporte". 49 por outros, continua em todo o caso um "mal amado", relegado à margem pelos guias da juventude que não o compreendem ou que decretaram que ele nada ti- nha para compreender. J. Dumazedier não poderia ser suspeito de acei- tar um tá! preconceito. Já em 1950, quando publi- cou Regards neufs sur lê sport moyen de cultwe, este título constituía, por si só, um manifesto. E o livro oferecia, ao mesmo tempo que uma considerável so- ma de informações, uma espécie de prancha anatô- mica da nossa sociedade, onde os inumeráveis pontos de inserção do fato esportivo eram marcados por gran- des flechas do mais pedagógico efeito. Cada um desses pontos exigia um inquérito ou um estudo mo- nográfico. Ora, esses apelos, talvez demasiado numerosos, ainda não foram ouvidos até hoje. Por isso, o documento elaborado pelo grupo de estudo do lazer oferece uma oportunidade decisiva a todos aqueles que visam a um conhecimento autênti- co do esporte contemporâneo. • Os trabalhos sobre o lazer na cidade de Annecy foram considerados como um inquérito-pilôto pelos peritos internacionais reunidos sob a égide da Unesco. Um dos princípios metodológicos que foram adotados já em 17 de junho de 1957 permite esperar uma re- novação radical da orientação do esporte na França, onde sempre foi, até ao presente, confiado a federa- ções e a ligas ciosamente fechadas em si próprias. Enuncia-se assim: "Mais do que uma descrição dos grupos de lazer, o nosso estudo tem por objetivo os seus diferentes modos de integração na estrutura so- cial da coletividade" ". No que concerne ao esporte, estudar o "modo de integração" consistirá no mais das vezes em esta- belecer provas de não-integração. De onde derivará, sem discussão possível, a necessidade de reformas ur- gentes. Um tal programa de estudo contém, para nós, uma grande esperança. No projeto de dezembro de 1957 figuravam sete categorias de lazeres: (11) Profet d'elude eomparative, brochura da Unesco, p. 29. 50 19) ocupações ainda sobrepostas as obrigações; 2<?) ocupações dominadas pela necessidade de descontração; 3°) e 49) ocupações inspiradas pela necessida- de de distração; 5*?) e 69) ocupações dominadas pelas necessi- dades culturais; 79) ocupações dominadas pela necessidade de participar no funcionamento de grupos espontâneos ou organizados. Um documento operacional ultimado em 1958 la só compreendia seis categorias, das quais três têm um lugar mais ou menos importante nos esportes. Na categoria l, a dos "semilazeres", é que o es- porte era citado com mais freqüência: primeiramente no número O que designa as "atividades meio lucrati- vas, meio desinteressadas". Dada a fraca porcentagem de esportistas profis- sionais de pleno emprego (citamos, corno exemplo, l para l 000 em futebol e l para 500 em boxe), é evi- dente que a maior parte dos praticante assíduos devem ser classificados nesta rubrica. Assinalemos também a subcategoria destes semi- lazeres chamados "com predominância de descontra- ção", que diz respeito às formas especiais do repouso. A "recuperação" do esportista que acaba de se entre- gar a loucas prodigalidades de energia nervosa e físi- ca depende dê técnicas muito estudadas. Para os es- pecialistas dos esportes "de combate, o sono coloca muitas vezes problemas espinhosos. Assim, o ex- -catnpeão mundial,de pesos pesados, Joe Louis, ti- nha necessidade de dormir, durante as fases de re- pouso, quatorze e mesmo dezesseis horas em vinte e quatro. Os pesquisadores sobre o lazer deveriam con- ceder uma atenção especial, desse ponto de vista, aos- esportistas assíduos. Na categoria II (ocupações distrativas com pre- dominância não-artística), o n*? 8 designa expressa- mente "a prática distrativa de todos os esportes", e o n9 9 "a prática competitiva dos esportes". No mes- mo n.9 9, é proposta também uma tipologia talvez de- (12) Code dês activltís de loisir, brochura do C.N.R.S. 51 masiado simples porém racional: esportes individuais (de equipe, de combate); outros esportes. Assim se apresenta, para nós, a parte importante da documentação internacional que se está constituin- do. Pode parecerdesconcertante encontrar também, nesta mesma categoria II, atividades tão heterogêneas como, por exemplo, os "prazeres gastronômicos" no o9 12, os "flertes" e outras "intimidades" no n1? 10. Mas todas as classificações de alguma eficácia com- portam necessariamente uma parte de arbitrariedade. A única reserva importante que apresentarei (e isso com o único fim de reduzir ao mínimo as hesita- ções ou as confusões que não deixarão de se produ- zir) é que esta categoria, pelo seu próprio título, pa- rece pertencer exclusivamente à função "divertimen- to" (D2), enquanto que, mesmo tendo em conta a noção de predominância já introduzida no projeto n? 5, é impossível atribuir à maior parte dos esportes de competição uma outra predominância que não seja a do "desenvolvimento" (D3). Em contrapartida, é com toda a justiça que cer- tas ocupações muitas vezes qualificadas como espor- tivas mas que, excluída a idéia de competição, depen- dem unicamente do turismo e da higiene, figuram nes- ta mesma categoria II: n? l esqui e alpinismo; n4? 2 passeios, inclusive aqueles que se fazem de bicicleta, de moto ou de scooter; n<? 3 pesca e caça; n^ 5 bo- liche ou jogo de bocha; n<? 6 outros jogos e concursos diversos. Esta distinção exclui um preconceito ambí- guo que amplia desraesuradamente a noção de espor- te, ora (por pedantismo) a todos os folguedos que lembram o "desporto"13 que está na origem do termo, ora (por gosto das palavras que servem para tudo) a toda atividade física de alguma intensidade. Examinemos as outras categorias consideradas, com o único fim de ter deste código uma visão de. conjunto. A categoria II: Ocupações distrativas com predominância artística (corresponde, portanto, às funções D2 e D3). As categorias IV: Ocupação com V: Ocupações com predominância intelectual (autodi- daxia e pesquisas pessoais) constituem os domínios (13) V. nota 3, p. 69. 52 privilegiados da função D3, A atividade do dirigente esportivo entra na categoria VI: Ocupações corri pre- dominância do trabalho social gracioso, que .põe em evidência principalmente o desenvolvimento cultural, a afirmação da personalidade e o gosto da autoridade. Nesta última categoria, o esporte é designado no n? 0: "Participação nas organizações de lazeres re- creativos ou culturais". Os dirigentes esportivos -in- sistem geralmente sobre o caráter benévolo e gratuito do seu trabalho ". Quase sempre, são ex-praticantes. É de uma importância capital, para o futuro do es- porte, estudar neles as qualidades específicas do líder. A análise deste plano de estudo ressalta simulta- neamente a sua eficácia e as suas limitações. De um lado, ele oferece um meio de avaliação quantitativa sem o qual só poderíamos trazer mais uma pedra para as construções teóricas existentes, das quais já assinalamos os excessos assim como a ten- dência à mistificação ou à falsificação deliberada. Não há ciência sem o mensurável; nenhuma integração à cultura e à civilização, nenhuma política do esporte, serão possíveis enquanto a implantação do fenômeno esportivo na sociedade atual continuar mal conhecida. De outro lado, já assinalamos a multiplicidade e a ambigüidade das interpretações possív-eis, não só das noções de "esporte" e de "esportista", mas também dos próprios termos da codificação adotada. ' Esta dupla dificuldade deve permanecer incessantemente presente no espírito dos estudantes e dos pesquisadores futuros. Assim, é impossível não levar em linha de con- ta, a cada passo, o esporte profissional, mesmo se lhe devêssemos consagrar um estudo especial, em virtude do poder de atração que os campeões exercem sobre os praticantes mais obscuros. Além disso, as funções do lazer, tais como fo- ram definidas por Dumazedier e seus colaboradores, misturam-se e mesmo por vezes mterpenetram-se de tal forma que sé deve ter em conta, a cada momento do inquérito, a noção,, tão prudentemente introduzida, de predominância. É certo, por exemplo, que o espor- tista oferece muitas vezes uma via de desenvolvimen- to autodidático de ordem intelectual (como mostra a (14) Ver o capítulo consagrado aos dirigentes. 53 notável autobiografia de G. Cousin15), elemento muito interessante e que uma interpretação demasiado lite- ral dos quadros da classificação proposta correria o risco de eliminar. E existe um grande número de atletas para quem o esporte é um meio de expressão artística 1R, (15) (16) 54 Regards neufs sur lê sport, p. 12 e seguintes. Cf. Píerre Naudin, Lês Mauvalses Routes, ed. Gallimard. III. ESTUDO DO LAZER ESPORTIVO NAS SUAS RELAÇÕES COM O TRABALHO A necessidade de demarcar o limite entre o lazer e a obrigação nos leva a classificar na categoria dos "semilazeres" a prática de esportes que comporta prê- mios tais como o boxe ou a luta livre, pelos quais al- guns trabalhadores garantem um ganho complementar. Aí só temos um aspecto, o mais simples e talvez o menos significativo, da extrema intrincação existen- te entre as disciplinas livremente consentidas na ori- gem, e aquelas, cada vez mais estritas e absorventes, que existem em certas coletividades esportivas, verda- deiras sociedades na Sociedade. Por conseguinte, torna-se inevitável a tentação, — constatei-o, especialmente ao ler monografias sobre as associações esportivas que me foram comunicadas por estudantes que operam em regiões diferentes, — de considerar o clube como um organismo isolado, com- pleto e autônomo, tendendo a elaborar as suas leis, os seus regulamentos e os seus meios de ação parti- culares. Nos casos-limites, uma tal situação marca o fra- casso da concepção humanista do esporte que se po- de resumir desta maneira: um meio de revelar, de de- senvolver, de criar conforme as necessidades, laços de reciprocidade entre a atividade esportiva e todas as outras atividades, especialmente as profissionais. Esporte e Obrigações O fato de que o homem, no próprio seio das sua atividades extraprofissionais, não pode escapar a um; incessante proliferação de novas obrigações não ímplí ca o desaparecimento total dos efeitos de descontração, de divertimento e de desenvolvimento que examinamos. Não exclui, em todo caso, a função liberadora do lazer que contém e condiciona as outras. Esta função é salvaguardada enquanto a ativida- de do lazer pode ser detida, interrompida ou retoma- da à vontade. B esta uma das principais caracterís- ticas do jogo. / Çíuizinga, no Homo ludens, insiste li- citamente: "Todo jogo é, primeiro e antes de tudo, uma ação livre" 1, A necessidade de jogo, nascida na infância, for- ma de fidejfdade ao espírito de infância, continua sen- do a foníe vivificadora, sempre renovada, de todo prazer; de todo lazer. Todavia, ao examinar as categorias estabelecidas no plano de estudos realizados em Annecy e Gauting, entrevimos que as formas do lazer modernç atingem um grau de complexidade tal que transbordam larga- mente a esfera do lúdico. Mesmo distendendo o con- ceito de jogo tão desmesuradamente quanto os ame- (1) Homo ludens, Gallimard, 1951, p. 25. Uma das próximas edi- ções da Editora Perspectiva. 56 ricanos o fazem, os quais pretendem ver nele o prin- cípio de todo o estilo de vida; ou os japoneses, em locuções como "jogar sua chegada", "jogar seu casa- mento", ou^mesmo "jogar a sua morte", é impossível incluir ocupações como, por exemplo, o estudo dos áto- mos (Código: n"? O da categoria V) ou mesmo, para um boxador ambicioso, os sessenta minutos por dia de uma cultura física tão violenta que perde um quilo por sessão. Todos os esportistas que praticaram a competi- ção sabem que a seriedade do esporte une como que por milagre a seriedade por vezes trágica do jogo in- fantil e a seriedade do' trabalho, com aquilo que. ele comporta de tenacidade, de vigilância, de vontade de descobrir os limites da resistência humana. "Trabalhar um movimento" é uma obra de lon- ga paciência, quer se trate da melhor maneira de transpor uma barreira, de sentir o desequilíbrio do adversário, ou de alargar o passo... Entretanto, o homem que se aplica assim está jogando, visto que pode
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