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118 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Unidade III Sociedade industrial, Estado e política As unidades anteriores focalizaram o percurso do pensamento político ocidental tendo por cenário a formação dos Estados Nacionais europeus e os impérios, em meio a guerras, processos de colonização e revoluções, uma trajetória que forjou a elaboração teórica do conceito de Estado, de poder político exercido e delimitado a partir dele. Na medida em que, desde o século XV, ou talvez antes, a sobrevivência no cotidiano passou a ser assegurada por práticas instaladas fora do controle estrito exercido pelos senhores feudais, instauraram‑se forças de mudança no modo de entender a vida e a sobrevivência, de pensar a morte, de estabelecer a relação com Deus. Como processo histórico, a trajetória do pensamento político ocidental resultou das condições concretas emergentes no espaço e tempo dos acontecimentos, envolvendo a prática de milhões de anônimas personagens que atuaram em conformidade – ou não – com entendimentos e disposições normativas sobre os acontecimentos. As forças sociais de mudança instalaram um conjunto de critérios na apreciação do poder e da política, tais como liberdade, garantia da propriedade, segurança e felicidade. Desse modo, a trajetória do pensamento político ocidental correspondeu à urdidura de formas de exercício do poder, tanto no plano normativo institucional, quanto nas práticas, abrangendo os processos de assujeitamento e de revolução, emergentes das condições abertas para a sobrevivência dos povos e grupos sociais. Os valores e critérios instaurados não surgiram da inventividade desse ou daquele autor, mas do curso histórico do segmento social que os exerceram em suas práticas, anonimamente, antes mesmo da sua elaboração teórica conceitual. Nesse sentido, a sociedade que emerge consolidando tais valores e práticas se diz sociedade burguesa, ao segmento social que a construiu, burguesia, e ao modelo de Estado emergente, Estado burguês. Esse modelo de sociedade contrasta em vários aspectos com o modelo vigente até então, dentre eles o aparecimento do indivíduo que vai se tornando mais significativo e dotado de direitos, inclusive o de escolha da religião, substituindo ou articulando‑se à condição de súdito; como indivíduo, essa personagem social também se torna agente da economia, associa‑se ao rei, organiza‑se em companhias, define as práticas das trocas monetárias no mercado interno e no âmbito das relações entre mercados nacionais; estabelece formas e regras de contratação para o trabalho e remuneração ou ainda recorre ao sistema vantajoso e lucrativo da escravidão. 119 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno Esse conjunto de práticas sociais, em que se configura a sociedade burguesa, decorreu do sistema de produção e circulação de bens e produtos que incorporou o trabalho remunerado, ou em condições especiais também o escravo, na produção, circulação e consumo de produtos e mercadorias. Nessas condições, o trabalho produz um “mais valor” agregado aos produtos – o que resulta em acumulação do capital investido e ampliação das atividades dos agentes que o detêm –, assim como aos instrumentos e saberes necessários à produção. Pode‑se dizer, portanto, que entre o modelo de sociedade burguesa e o sistema econômico que ela construiu há uma coerência perfeita, que se reflete no âmbito político, nas normas do direito, nas práticas e expectativas sociais, além dos padrões e regras de comportamento. Esse era o modelo de ordem social que o europeu colonizador lutou para preservar em toda parte por onde dominou, não importando de fato se o fazia sob o signo da colônia ou unidade imperial. Contudo, essa ordem continha, em si mesma, pelo menos dois fatores internos de mudança: a) o indivíduo, em sua liberdade barrada por direitos de súdito; e b) a possibilidade de introdução de formas mais rentáveis de trabalho, presididas por sistemas de gestão mais eficientes, portanto mais lucrativos. Combinados, esses dois fatores estão presentes na Revolução Industrial, nas demais revoluções e movimentos de independência que marcaram o século XIX. O modelo de sociedade que emerge das mudanças decorrentes da ação desses dois fatores, dentre outros, é o da sociedade industrial, cujas características básicas preservam o modelo original, burguês. Portanto, continuam a ser coerentes com o sistema econômico, ou, modo de produção capitalista (MPC), mas diferem da matriz original pela presença de um contingente populacional, urbano em sua maioria, integrado pelos que exercem a força de trabalho necessária ao sistema, porém em condições distintas das anteriores. Importante notar que esse “novo” contingente populacional se qualifica como participante do jogo político, inclusive para redefinir sua configuração institucional e instaurar novas regras. Por isso, as lutas sociais, as reivindicações populares, que surgem por toda parte no século XIX, refletem as acomodações e alterações do modelo original burguês. O próprio Estado, como construção simbólica e normativa, é afetado pelo resultado das lutas, das tendências de pensamento que surgem para dar conta das mudanças que precisam existir para que as disposições de poder do Estado burguês permaneçam fundamentalmente as mesmas. Observação A palavra “modelo”, em Ciências Sociais, tem sentido particular: não designa qualquer realidade concreta, histórica, mas uma construção teórica e imaginativa tomada como referência para análise de um dado momento dessa realidade. Por isso, é possível pensar em um “modelo” de mulher para o século passado e sabê‑lo sensivelmente distinto do que se entende hoje por “modelo” para a mulher contemporânea. 120 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III A palavra “sociedade”, não diz respeito a um determinado conjunto de indivíduos, mas às relações que entre eles são estabelecidas, seus respectivos sentidos, mesmo em processo de mudança. Os sentidos das relações sociais alteram‑se no tempo e no espaço, porque são históricos e articulados: mudanças introduzidas diretamente no modo de produção afetam outras esferas da vida, não ao mesmo tempo, nem com a mesma intensidade; isso é fácil de perceber com a tecnologia, que afetou todas as esferas do comportamento social, inclusive o espaço político, religioso. O conceito estrutura é utilizado em Ciências Sociais para sistematizar as análises das relações sociais e de seus sentidos cambiantes, com a vantagem de permitir descrever, compreender, analisar e interpretar os modelos, e até mesmo compará‑los. Portanto, com o emprego do termo estrutura nunca devem ser entendidas as relações observadas no cotidiano (empíricas), mas os sentidos aos quais elas correspondem, os quais se pretende focalizar. Em poucas palavras, estrutura social é conceito e não uma “empiricidade”; é ideia, e não uma materialidade. Exatamente porque se trata de um conceito é que se pode atribuir às ações sociais a qualidade de “relações estruturais”, ou ainda dizer que as “relações estruturais são estruturantes”, porque na expressão “estruturante” estão implícitas as dimensões de tempo e de dinâmica da estrutura, permitindo por essa concepção, entender como a estrutura se repõe, preservando‑se, ou se transforma na história. 7 A Ordem sOciAl e A pOlíticA Várias tendências emergem no ambiente político animado pelas contradições sociais, geradas pelo capitalismo industrial naEuropa, de meados do século XIX às primeiras décadas do século XX. Dessas tendências, duas – positivismo e socialismo – representam posturas políticas diametralmente opostas, em face da ordem social que ambas tomam como objeto de análise. Nas duas tendências, notam‑se alguns elementos em comum, especialmente o apego a uma racionalidade autoritária “científica”, crença partilhada por intelectuais e elites dessas tendências. Enquanto, para o positivismo, o controle moralizante, autoritário e científico da ordem era o sentido da política positiva, as ideias socialistas visavam a outra ordem social e, especialmente na versão marxista, uma ordem construída pelos militantes em um processo revolucionário de acirramento das contradições. 7.1 A ordem social e a política: as raízes do positivismo na França Auguste Comte (Montpellier, 1798 – Paris, 1857) teve uma vida de muito trabalho, de desgostos amorosos que o abalaram profundamente e de grande produção teórica, destacando‑se o Curso de Filosofia Positiva, o Discurso Sobre o Espírito Positivo (1844) e o Discurso Sobre o Conjunto do Positivismo (1848). Era ele um professor auxiliar da Escola Politécnica de Paris, fora secretário de Saint‑Simon entre 1815 e 1817, enamorado de Clotilde de Vaux, que faleceu em 1846. Sobre o período seguinte descreve Bréhier (1977, p. 252): 121 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno Desde esse momento passa Comte a sonhar com uma religião da humanidade, da qual se proclama o primeiro pontífice, inspirado pelo amor de Clotilde, e cujos ritos deviam ser presididos, em grande parte, pela recordação de Clotilde. O sistema da política positiva (1851‑4), o catecismo positivista (1852) e a síntese subjetiva, ou sistema universal de concepções próprias ao estado normal da humanidade (1856) são escritos desse período. Os títulos dos trabalhos de Comte, especialmente os últimos, dão a entender tratar‑se de um autor confiante, seguro de si e reconhecido no ambiente acadêmico, mas essa impressão não corresponde aos dados de sua biografia: a realidade de sua modesta posição na Escola Politécnica, a resistência da instituição em conferir‑lhe uma cátedra, seus períodos de depressão, que o impediram de continuar o curso de Filosofia Positiva, e finalmente a pobreza e o desconsolo após da morte de Clotilde. Na verdade, esse descompasso entre a envergadura do projeto, que se depreende nos títulos, e as condições efetivas para sua execução, no dizer de Paim (1979, p. 116) “[...] decorre do desconhecimento dos limites e pressupostos de semelhante inquirição”. E acrescenta o testemunho do próprio Comte em 1842 (apud PAIM, 2007, p. 52): Jamais li, em nenhuma língua, nem Vico, nem Kant, nem Herder, nem Hegel etc.; somente conheço suas diversas obras através de algumas relações indiretas e de certos resumos demasiado insuficientes. Quaisquer que possam ser os inconvenientes dessa negligência voluntária, estou convencido de que contribuiu para a pureza e a harmonia de minha filosofia social. Mas qual seria, enfim, o projeto de Comte, a sua filosofia social? Em princípio, a reorganização da sociedade a partir da ciência ou do pensamento científico que, para tanto, deveria também ser reorganizado, ou melhor, sistematizado em uma ciência com esse propósito. Para Auguste Comte essa ciência seria a Sociologia, desde que fundamentada em um método que tivesse por objeto os fenômenos sociais e por objetivo “[...] explicar diretamente, e com a maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da espécie humana”. Nesses termos, caberia a essa ciência ver, “[...] no estudo aprofundado do passado, a verdadeira explicação do presente e a manifestação geral do futuro” (COMTE, 1934, p. 511, apud MORAIS, 1978, p. 54). Essa ciência do social deveria abandonar a busca das causas e centrar a investigação nas leis naturais invariáveis, reveladas pela observação sistemática dos fatos, e pelas relações estabelecidas entre eles, considerando dois aspectos fundamentais: o Estado estático e o Estado dinâmico, tal como a anatomia e a fisiologia no âmbito das Ciências Naturais. O estudo do estágio estático do “organismo social” coincidiria com a elaboração científica de uma teoria positiva da ordem social, caracterizando as atividades que se destinam a preservar a estrutura do organismo social, e as forças sociais que respondem pela coesão social ou solidariedade. No estudo da dinâmica social, Comte focalizava as leis naturais que respondem pela evolução da sociedade humana, ou seja, a “Lei dos Três Estágios”, ou ainda a relação entre a ordem e o progresso. Os três estágios evolutivos da humanidade e da vida são: teológico (fetichismo, politeísmo, monoteísmo), metafísico e positivo. 122 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Segundo Bréhier (1977), aqui se introduz o tema da antítese entre épocas críticas ou revolucionárias e as orgânicas ou estáveis. O tema aparecera no corpus das filosofias antirrevolucionárias, para as quais “revolução e anarquia são a mesma coisa”, dado que: [essas teorias] consistem numa tentativa de destruição dos poderes legítimos, poder temporal e poder espiritual, destruição que se estende à família e à propriedade; e a tarefa dos regimes posteriores à Revolução é restaurar os poderes que haviam sido atingidos pela crise (BRÉHIER, 1977, p. 253). Comte, introduzindo a tese do progresso, empresta sentido particular à história: como o passado não volta, e também a história não regride, ele considera a revolução uma crise indispensável, sinalização da passagem de um estágio teológico para o científico. Contudo, o processo revolucionário deve conduzir ao restabelecimento dos dois poderes, do temporal e do espiritual, da família e da propriedade; assim, o progresso se resume à mudança das crenças, das teológicas para as científicas. Nesses termos, as ciências se tornam um recurso para o reformismo, ou suporte para mudanças que induzem à permanência, e, em caso de contradição, Comte aponta a necessidade da ditadura, de modo a manter a estrutura, ou unidade. Em síntese, afirma Bréhier (1977, p. 255‑256): A tese política de Comte é, por conseguinte, clara: a unidade social a qualquer preço, pela unidade da doutrina quando seja possível e, quando não, por uma ditadura temporária. Mas a doutrina positivista deve assegurar, de maneira definitiva, essa unidade que a doutrina teológica deixou fracassar. É possível perceber que a concepção de sociedade em Comte é fortemente conservadora, centrada na ordem social, apesar de ele reconhecer a situação de miséria em que vivia a população trabalhadora francesa de seu tempo, lamentar essa condição e não aceitar a imposição da violência para reprimir a manifestação popular. Comte via no positivismo a única tendência de pensamento (e de prática) capaz de conduzir a uma “saída” da situação social de crise, que, para ele, era de ordem moral, e não somente material. Para o filósofo, a crise por que passava a França de seu tempo correspondia a um momento da “marcha geral da civilização”, caracterizada pela coexistência em conflito de dois sistemas: um que se extinguia (a velha ordem), e outro que tendia a se constituir (a nova ordem industrial e científica). O positivismo, como expressão de uma “política científica”, seria o único movimento (e partido) capaz de enfrentar a “anarquia social” instalada, e de preservar o Ocidente de qualquer tentativa comunista. Seria um partido construtor de “uma política moderna, capaz de satisfazer aos pobres, tranquilizando os ricos”. Sob a proposta de “modernização e racionalidade”se situa o caráter conservador e autoritário do positivismo, e o forte cunho ideológico de sua concepção de progresso. Enfim, o pensamento comteano era antiliberal e anti‑individualista e propunha a intervenção do Estado na vida econômica e na organização social a partir de uma legislação reguladora, positiva, de 123 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno controle e organização, de modo a suprimir a desordem e a anarquia. Embora sugerisse ampla liberdade de discussão, o exercício de controle sobre a opinião pública se tornava fundamental. Portanto, a liberdade de imprensa deveria ser substituída pela divulgação de “informativos”, cartazes ou anúncios. “Liberdade com responsabilidade era a diretiva, devendo cada um assinar seus escritos, com data, local de nascimento e endereço”, logo, comenta Morais Filho sobre Comte: A educação deve ser universal, abrangendo todas as classes da sociedade e todos os ramos do conhecimento humano, desde a Matemática à Moral. Só assim teriam todos as mesmas oportunidades, ricos e pobres, burgueses e proletários, fazendo com que melhor se diferenciassem as vocações e aptidões pessoais, vindo cada qual a ocupar na sociedade o lugar que lhe fosse mais adequado (MORAIS FILHO, 1978, p. 31). Completando esse quadro, o sistema positivista proposto por Auguste Comte seria organizado sob o marco republicano, contrário à monarquia, mesmo à constitucional, implicando expansão do executivo, inclusive com função legislativa, abolindo o Parlamento, exceto para discussão de orçamento, e contrário ao sufrágio universal. Com tais características, o modelo positivista aproxima‑se ao de uma ditadura do proletariado, como regime correspondente ao “período de transição” entre a anarquia e o estado positivista. Entre a preservação da ordem social, enraizada no capitalismo industrial, e os conflitos sociais e econômicos dela decorrentes, geradores da anarquia repudiada, o positivismo se perde em contradições: ao mesmo tempo em que Comte considerava que “a tranquilidade só será solidamente atingida na França, quando o poder for ocupado por governadores proletários”, e que “os proletários devem aderir ao comunismo”, não seria essa a “solução” para a crise, visto que ela se apresentava como de natureza moral, exigindo intervenção positivista nessa esfera conforme recomenda Comte (1839 apud MORAIS FILHO, 1978, p. 33): Sem perturbar a economia geral, a reorganização mental, interpondo habitualmente uma comum autoridade moral entre os operários e seus chefes, oferecerá a única base regular de uma conciliação equitativa e pacífica de seus principais conflitos, quase abandonada hoje à brutal disciplina de um antagonismo puramente material. Paim (1979, p. 117) considera as ideias contidas no sistema de política positiva, uma “radical recusa do espírito moderno, batizado de anarquia mental”, enfim, O projeto de submeter as populações ao que se chama de “evolução sistemática”, isto é, um procedimento de ajustamento do homem ao novo estágio da evolução social e que consiste no puro e simples abandono da mediação da Idade Moderna, a fim de retornar a algo de muito próximo da situação vigente na Idade Média (PAIM, 1979, p. 117). Nesses termos, diz ainda o autor, a religiosidade, presente no catecismo positivista readquire a perdida primazia, e o poder temporal volta à subordinação ao poder espiritual. 124 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Não é estranho que as ideias positivistas tenham atraído a atenção de segmentos das elites brasileiras. Embora Cruz Costa (1960) não considere a influência do positivismo tão importante, não deixa de reconhecê‑la, e de afirmar que Na polifonia das correntes filosóficas do século XIX, é o tom positivista, por certo, o mais importante a atrair as elites. E os representantes destas são a expressão de uma nova modalidade de burguesia que se oporá à tradicional, a que em regra era constituída pela aristocracia (CRUZ COSTA, 1960, p. 41). 7.2 A ordem social e a política: as ideias socialistas As ideias socialistas formam um leque de tendências, mas a origem está associada à formação urbana do capitalismo, especialmente industrial. São as contradições entre segmentos sociais que passam a conviver no espaço urbano em situações radicalmente distintas que acabam por provocar as revoltas às quais as revoluções emprestaram discursos igualmente distintos. Dessas tendências, e foram muitas, apenas três nomes serão considerados nessa unidade: Saint‑Simon, Proudhon e Karl Marx. 7.2.1 As ideias socialistas: Saint‑Simon (1760‑1825) No Manifesto Comunista, Marx e Engels mencionam as ideias de Saint‑Simon e de outros em um grupo ao qual classificam como tendências do “socialismo e comunismo crítico utópico”, todavia reconhecem Saint‑Simon dentre os que elaboraram “sistemas socialistas e comunistas propriamente ditos” (MARX, 2010, p. 66) que se inserem nos movimentos iniciais do processo de luta do proletariado, contudo, dizem eles: Os fundadores desses sistemas compreendem bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante. Mas não percebem no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhe seja próprio. Segundo ainda o Manifesto, esses autores utópicos não perceberam as condições materiais da “emancipação do proletariado”, apelando para as ciências sociais, leis sociais ou para a própria imaginação. Tais autores também não admitiram a ação revolucionária, embora apelassem para o sofrimento da classe operária, e em nome desse sofrimento propusessem seus planos de organização social. Claude Henri de Rouvroy de Saint‑Simon viveu o período revolucionário conturbado na França, mas não participou dos debates e lutas políticas de seu tempo: em parte porque era militar e estava nos EUA, integrando as tropas francesas, em parte porque, ao voltar à França, dedicou‑se aos negócios. Empreendeu depois viagens pela Europa, Inglaterra e Alemanha, e, retornando à França, iniciou a sua atividade de escritor, estudioso da sociedade, filósofo, às vezes jornalista e professor. Suas ideias moderadas, utópicas segundo alguns ou confusas segundo H. Burgin, não tiveram acolhimento de seus contemporâneos, embora ele tenha tido alunos como Auguste Comte (1798‑1857), fundador da Sociologia, e Adolphe Thiers, político conservador, ministro do Segundo Império, além de jornalista e historiador. 125 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno Saint‑Simon viveu um tempo em que a descoberta e a crença na razão iluminista conduziram à queda da monarquia absolutista, o período de explosão emocional ou “catarse” de ressentimentos, vinganças e violência do terror, sucedido pela repressão e restauração do Império com Napoleão, seguindo‑se de sua rápida queda e nova fase de lutas, repressão e articulações políticas tendentes à reconstrução do Estado em bases republicanas. Os textos de Saint‑Simon não convergem para as tendências que se revelaram vencedoras em cada fase desse percurso, sendo possivelmente esse o motivo pelo qual foram relegados a um esquecimento que levou o seu autor à miséria trágica. Talvez também seja essa “inadequação” às tendências da conjuntura política francesa o que tornou a obra de Saint‑Simon tão significativa ao entendimento de sociólogos posteriores, dentre outros, Émile Durkheim (1858‑1917) e Georges Gurvitch (1894‑1965). Para este, “os verdadeirossucessores de Saint‑Simon sociólogo foram Proudhon e, sobretudo, Karl Marx”, e não Auguste Comte, conforme afirma Gurvitch na introdução da obra La Physiologie Sociale (SAINT‑SIMON, 1965, p. 5). A apresentação que o sociólogo russo Gurvitch faz de Saint‑Simon, ao preparar a Introdução e Prefácio das Obras Escolhidas do autor, corresponde a essa peculiaridade do seu pensamento, que desliza da análise das condições observadas para a proposição de linhas de ação, ou mais precisamente, para a antevisão de um futuro: Saint Simon, que foi o mais realista dos “utópicos” e o mais utópico dos sociólogos, ele mesmo facilita essa separação entre doutrina social política e a sociologia. Como resultado, segundo os regimes e as conjunturas, ele modifica os meios: revolucionário para os regimes militares e pré‑capitalistas, é reformista para os regimes capitalistas e pós‑capitalistas (SAINT‑SIMON, 1965, p. 5). Em 1803 Saint‑Simon publicava uma pequena obra à qual denominou Cartas de um Habitante de Genebra para os seus Contemporâneos. Nesse texto, ele conclama os não ricos, os trabalhadores, a se unirem, em uma linguagem que lembra as palavras do Manifesto Comunista, que apareceria em 1848, no qual as ideias de Saint‑Simon e de outros autores são classificadas como “socialismo utópico”. Dos excertos da carta, selecionados por Gurvitch (SAINT‑SIMON, 1965, p. 10), percebe‑se a construção de uma relação de poder entre “os ricos” e uma categoria que ele menciona por vous (na tradução livre substituída por “vocês”). Apesar de se associar a essa categoria pelo apelativo “meus amigos”, o autor se exclui da relação, descrevendo‑a a partir da distinção entre trabalho braçal, exercido pelos que não são instruídos, e a riqueza dos que comandam, designados por “ricos” ou “proprietários”. Essa diferenciação, que marca a relação de dominação entre os dois segmentos, seria minimizada na medida em que os trabalhadores, mais numerosos, “forçassem” os ricos a instruí‑los. No balanço quantitativo dos dois segmentos, são os trabalhadores (vocês, ou vous) que informam ao autor que “eles” são numericamente superiores, e apenas nesse momento o autor se insere nessa categoria (somos). [Meus amigos] Até hoje os ricos não tiveram outra ocupação que a de os comandar, forcem eles a esclarecê‑los e instruir; eles fizeram trabalhar os seus braços, façam trabalhar suas cabeças para vocês. Eu lhes convido a 126 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III fazer uso de uma pequena parcela da dominação que vocês exercem sobre os ricos [...]. Vocês me dizem que somos dez vezes, vinte vezes, cem vezes mais numerosos que os proprietários, e apesar disso os proprietários exercem sobre nós uma dominação bem maior que aquela que nós exercemos sobre eles (SAINT‑SIMON, 1965, p. 10). Em outro excerto, Saint‑Simon (SAINT‑SIMON, 1965, p. 10), ainda se dirigindo aos “amigos”, inicia a apresentação de um “projeto”, o seu, cuja finalidade é superar as diferenciações e chegar a um “sistema” mais racional, organizado e justo para a vida social. Nesse trecho, o autor se desvencilha de toda vinculação anterior com seus ouvintes, para assumir a autoria de um projeto (“eu concebi”) e dessa posição de saber ele não submete o projeto aos “amigos”, mas o apresenta, justificando‑o em suas observações e constatações. Interessante notar que, nessas constatações, a dominação entre ricos e trabalhadores aparece como “um fato”, um desejo encontrado em cada homem: Meus amigos, nós somos corpos organizados; em considerando como fenômenos fisiológicos as nossas relações sociais, eu concebi o projeto que lhes apresento. Pelas considerações colocadas no sistema, que emprego para ligar os fatos fisiológicos, vou lhes demonstrar a justiça do projeto que lhes apresento. Um fato constatado por uma longa série de observações é que cada homem experimenta em grau maior ou menor vivo desejo de dominar todos os outros homens (SAINT‑SIMON, 1965, p. 10). A mobilização dos trabalhadores convergiria para um conselho (Conselho de Newton) eleito por indicação dos integrantes, composto por intelectuais, para o qual as mulheres poderiam ser indicadas e eleitas. O Conselho teria divisões nos principais países, de modo a abranger toda a humanidade, e nesse Conselho todos trabalharão: Todos os Conselhos de Newton respeitarão a linha de demarcação que separa o poder espiritual do temporal. [...]. A obrigação imposta a cada um é a de constantemente orientar suas forças em uma direção útil à humanidade; os braços do pobre continuarão a nutrir os ricos, mas o rico será obrigado a fazer trabalhar seu cérebro, e se seu cérebro não é próprio ao trabalho, ele será também obrigado a fazer trabalhar os seus braços, porque Newton não deixará seguramente [...] trabalhadores voluntariamente inúteis em sua oficina (SAINT‑SIMON, 1965, p. 10). Nessas ideias, que beiram a ficção, observam‑se reflexos do ambiente religioso que permanece na França, apesar do ateísmo e agnosticismo dos enciclopedistas e da confiança na ciência como meio para encaminhar problemas sociais, que serão a tônica do positivismo, e a valorização da física (Newton), campo científico que atraía Saint‑Simon. O “projeto” não se constitui como partido político, nem como documento de mobilização, mas como uma proposta “esclarecida” para os leitores. É importante considerar que, ao longo da carta, Saint‑Simon apresenta suas três contribuições básicas a uma ciência do social: 127 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno a) ele afirma que a sociedade pode, e deve ser estudada a partir da ciência, no caso, a Fisiologia; b) ele indica que a sociedade se apresenta indiscutivelmente dividida em três classes, distinguidas como: os intelectuais (savants), abrangendo artistas e profissionais liberais; os funcionários públicos encarregados da guarda de valores e bens do patrimônio público e proprietários (os ricos antes mencionados), também abrangendo banqueiros, industriais, comerciantes; os igualitários, trabalhadores, e finalmente o povo; c) a terceira contribuição consiste na proposta de uma nova religião, não vinculada às existentes, mais espiritualizada, mais condizente com as condições instauradas pelas luzes, expressão utilizada por ele, nas quais o poder estaria associado à razão, ou ao saber. Essas três contribuições são discutidas e detalhadas em textos posteriores, os quais vão a uma direção cada vez mais utópica e de valorização da tecnocracia. Em 1813, ele publica Da Fisiologia Social e sob esse título discute o estudo da sociedade, admitindo correspondência entre a dinâmica social e aquela dos organismos vivos, um modelo organicista trazido das ciências naturais e, de certo, modo da Física, modelo que corresponderá ao utilizado posteriormente por Durkheim. Diz Saint‑Simon que “[...] o domínio da fisiologia, em relação a um tema geral, se compõe de todos os fatos que se passam nos seres organizados” (SAINT‑SIMON, 1965, p. 27‑28). Nesses termos ela se aplica ao estudo da vida social, porque: A sociedade não é uma simples aglomeração de seres viventes, cujas ações independentes de toda finalidade não têm outra causa que o arbítrio das vontades individuais, nem outro resultado que acidentes eventuais ou sem importância; a sociedade, ao contrário, é, sobretudo uma verdadeira máquina organizada, em que todas as partes contribuem de uma maneira diferente para o curso do conjunto. [...] A reunião dos homens constitui um verdadeiro ser, cuja existência é mais ou menos vigorosa ou vacilante, conforme seus órgãos cumpram mais ou menos regularmente as funçõesque lhes são confiadas (SAINT‑SIMON, 1965, p. 27‑28). Admitindo esse ponto de partida, a história da civilização não deixaria de ser uma história da vida humana, em diferentes estágios. Portanto, todas as medidas que foram tomadas para melhoria da sociedade não deixariam de ser como regras de higiene “que a natureza faz variar segundo o estado da civilização” e, desse modo, também a política adquire o caráter de medida higiênica para assegurar a harmonia. Mais uma vez, como a fisiologia social se vale de dados e observações, enfim dos fatos, ela é a ciência capaz de contribuir para encontrar um sistema adequado para o estado atual da civilização. Mas se o que se observa são as guerras, as lutas, os poderes absolutos etc., como se explica isso? Para Saint‑Simon, assim como as crianças são atraídas para o que lhes interessa, ou que lhes pareça útil, também nos estágios infantis da civilização esse comportamento aparece. Todavia, o povo sempre intervém quando não são atingidos os seus reclamos, razão pela qual se sucedem os governos e reis. 128 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Contudo, as revoluções, apesar da violência, tendem a substituir o poder que atua, sem considerar os objetivos do povo, por outras formas, das quais o povo participa. Para ele: A população europeia foi dominada pela força revolucionária desde o século XV, essa força não cessará até que um sistema social radicalmente distinto do sistema teológico e feudal seja estabelecido em seu lugar. A primeira operação para deter a ação revolucionária consistia em conceber e apresentar claramente o sistema social que convém ao presente Estado das luzes. Esta operação está terminada (SAINT‑SIMON, 1965, p. 34). A tarefa, ainda para o autor, seria então retomar suas atividades aqueles segmentos que ele considera úteis para a sociedade: os artistas, os sábios e os industriais, porque esses três grupos, atuando em conjunto, conduziriam à prosperidade da sociedade. Como foi apontado, Saint‑Simon se vale de um modelo orgânico para discutir a sociedade, mas suas proposições são fortemente influenciadas pelo pensamento iluminista, e dessa influência advém o apego demonstrado pela intervenção racional: Assim, segundo os princípios da política e da moral, e ao mesmo tempo que os da fisiologia e da higiene, o legislador deve combinar a organização social de maneira a estimular, o mais possível, todas as classes ao trabalho e particularmente ao trabalho mais útil à sociedade (SAINT‑SIMON, 1965, p. 33). Dessa racionalidade, ele retira uma concepção de homem e de organização: o homem é naturalmente preguiçoso, portanto, trabalha na medida da satisfação de suas necessidades, mas no Estado social, segundo ele: As solicitações são multiplicadas, e muito mais numerosas do que suas faculdades produtivas, ele é forçado a destinar uma parcela do que pode produzir em troca de certos produtos que ele não obtém diretamente de seu trabalho. Esta necessidade (que se converte para ele em uma fonte de riqueza) é a única que ele reconhece, e a única à qual ele consente em se submeter: quer dizer que o homem industrioso, como tal, se submete a uma única lei, a do seu interesse. [...]. Todavia, há homens que são preguiçosos como todos, e querem consumir como todos, mas não produzem nada, portanto esses homens usam da força para viver do trabalho alheio (SAINT‑SIMON, 1965, p. 44). Combater essa violência seria tarefa principal do governo, a qual corresponderia, em última instância, ao controle da ociosidade. Nesse sentido, o governo deveria ser próximo à atividade administrativa em uma empresa: 129 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno Penso que o fim único para onde devem pender todos os pensamentos e todos os nossos esforços, é a organização mais favorável, a da indústria; entendida no sentido mais geral e que abrange todos os gêneros de trabalhos úteis, a teoria como a aplicação; os trabalhos do espírito como aquele das mãos (SAINT‑SIMON, 1965, p. 44). O passo seguinte na argumentação de Saint‑Simon consiste em situar o sentido dessa política, que seria não a transformação da sociedade em uma indústria, mas a instalação de um princípio moral que pode ser extraído das relações administrativas, na medida em que todos trabalham para um fim comum e útil. Por isso a ênfase na organização e, por decorrência, a importância atribuída ao trabalho produtivo, em qualquer setor, ao lado da importância que atribui ao saber na organização. Outro aspecto importante do pensamento desse autor reside na crítica que ele faz às teorias de seu tempo, as quais não propuseram formas organizativas adequadas, de tal sorte que a Declaração dos Direitos do Homem, por exemplo, não pode ser considerada solução ao problema da liberdade social, porque na verdade ela não foi enunciada. Segundo Touchard (1970, v. 5, p. 136‑137), Saint‑Simon faz a diferença entre liberdade formal, a que é apresentada nos textos, e a liberdade real, essa não cogitada nos textos, embora ele não seja democrata, uma vez que admite a desigualdade como necessária. Em sua defesa da “classe industrial”, como a que produz a riqueza e a glória da nação francesa, assim como sua arte e ciência, Saint‑Simon desenvolve no texto “O Organizador”, em jornal datado de 1819, uma parábola, pela qual ficou famoso e foi muito criticado. Na parábola (apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79) ele argumenta sobre a classe industrial e sua contribuição para a França: Se a nação perdesse essa classe, ela seria um corpo sem alma, ficaria imediatamente em estado de inferioridade perante as demais nações que hoje são suas rivais, e continuaria a ser subalterna em relação a elas, de modo que ela não teria como reparar essa perda. [...] Seria necessário para a França pelo menos uma geração inteira para reparar esse infortúnio, porque os homens que se distinguem nos trabalhos de utilidade positiva são verdadeiras anomalias, e a natureza não é pródiga em anomalias, sobretudo anomalias dessa espécie. Em seguida ele introduz outra premissa de seu raciocínio, agora reportando à importância do segmento social que representava os níveis mais elevados de poder no Estado, em síntese, diz ele: Mas admitindo que a França conservasse todos os homens de gênio que ela possui nas ciências, belas artes, artes aplicadas e profissões, mas que por uma infelicidade perdesse no mesmo dia Monsieur, o irmão do rei, o Duque e a Duquesa de Angoulème, o Duque e a Duquesa de Berry, o Duque e a Duquesa D’Orleans, o Duque e a Duquesa de Bourbon, e Mademoiselle de Condé, e ao mesmo tempo, todos os altos oficiais da coroa, todos os ministros de 130 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Estado (com ou sem seus departamentos), todos os conselheiros de Estado [...] os marechais, cardeais, arcebispos, bispos, vigários canônicos, prefeitos e subprefeitos, empregados dos ministérios, juízes, e mais uns dez mil proprietários, os mais ricos que vivem nobremente. Esse acidente consternaria os franceses porque eles são bons. Mas esta perda de trinta mil indivíduos, reputados os mais importantes do Estado, não causaria outro sofrimento que o puramente sentimental, porque não causaria nenhum mau político para o Estado (SAINT‑SIMON apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79). Impiedoso, ele continua em sua análise, explicando a diferença entre o impacto de uma perda e de outra, dado que essas pessoas desaparecidas poderiam ser facilmentesubstituídas em suas funções, e de modo até melhor que os ocupantes que desapareceram. A seguir, acrescenta argumentos decisivos: [Elas] não contribuem, não fazem mais que dar prejuízo, visto que se esforçam por prolongar a preponderância exercida, pelas teorias conjunturais sobre os conhecimentos positivos; elas prejudicam necessariamente a prosperidade da nação privando, como acontece, os intelectuais, artistas e artesãos do primeiro grau de consideração que lhes pertence legitimamente; elas prejudicam porque empregam seus meios pecuniários de uma maneira que não é útil às ciências, artes e às artes aplicadas; prejudicam porque se valem anualmente dos impostos pagos pela nação [...] sob o título de abonos, pensões, gratificações, indenizações etc. para pagamento de seus trabalhos inúteis (SAINT‑SIMON apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79). A parábola explicita sua crítica em relação à ordem social, que em seus aspectos básicos era restaurada na França; contudo, a conclusão que o autor retira é de cunho moral, de “inversão de valores”. Apesar de um crítico do liberalismo que alimentava as tendências políticas à época, sua crítica à situação em França também é liberal. Nos textos de 1821 e 1822, intitulados Do Sistema Industrial, Saint–Simon usa uma forma epistolar, e se dirige aos distintos segmentos sociais, aos quais ele denomina classe. No primeiro texto, intitulado “Considerações sobre Medidas a Tomar para Terminar a Revolução”, ele reafirma suas posições, concluindo dirigindo‑se ao rei: As forces temporais e espirituais da sociedade mudaram de mãos. A força temporal verdadeira reside hoje nos industriais, e a força espiritual entre os intelectuais. Essas duas classes são as únicas que exercem sobre a opinião e sobre a conduta do povo uma influência real e permanente (SAINT‑SIMON apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79). No segundo texto, de 1821, ele se dirige aos empresários de todos os setores, apontando a necessidade de expandir o volume de atividades, e de empregos, como forma de corresponder às expectativas do povo. Para tanto, ele considera que a figura mais indicada para conduzir essa atividade seria o chefe das empresas industriais, na medida em que “[...] eles são os verdadeiros chefes do povo, porque controlam as jornadas de trabalho” (SAINT‑SIMON apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79). 131 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno No terceiro texto, de 1822, ele finalmente se dirige aos chefes dos operários, mas mudando de postura, articula o discurso a partir de uma identificação com a parcela mais pobre: “os senhores são ricos, nós somos pobres” e continua afirmando que, como “eles” são os chefes, é para eles que se deve dirigir o discurso. É nossa classe, senhores que suporta diretamente os inconvenientes da má administração atual, [que] comprova para a ela mesma tudo o que deixa de ganhar, e então é natural que sejamos nós que devamos encontrar o remédio para os males que pesam sobre nós de uma maneira particular.. Esses inconvenientes (...) resultam, para um grande número de nós, sofrimento desde as primeiras necessidades da vida. É então a nós que cabe a iniciativa de indicar os meios para colocar um fim a nossas misérias, essa demanda deve ser a de 25 milhões de homens (SAINT‑SIMON apud TOUCHARD, 1970, v. 5, p. 76‑79). Outros textos se seguiram, porém, assim como esses mencionados eles também caíram no silêncio. Para agonia de Saint‑Simon, suas obras não provocaram a reação esperada. Ao que consta, no final de sua vida ele vivia apoiado por amigos, os quais, aliás, foram os iniciadores do movimento saint‑simonista, um socialismo utópico, iluminista, religioso sem vínculo institucional, que o autor não chegou a conhecer. 7.2.2 As ideias socialistas: Pierre Joseph Proudhon (1809‑1865) Touchard (1970, p. 142) abre seu comentário sobre Proudhon afirmando que “Não é possível separar o proudhonismo da vida de Proudhon; o proudhonismo é a presença de um homem”. Segundo esse autor, a biografia de Proudhon foi marcada pelos seguintes acontecimentos: — O rompimento com Karl Marx em 1846, a propósito da publicação de Proudhon do Sistema de Contradições Econômicas ou Filosóficas da Miséria, livro ao qual Marx respondeu com a Miséria da Filosofia. — Eleição de Proudhon em 1848 para a Assembleia Nacional, mas lá não consegue se fazer ouvir. — Condenação a três anos de cadeia, após violentos artigos. — Publicação de Revolução Social demonstrada pelo golpe de Estado de 1851, parecendo que ele aderiu a Napoleão III, mas permaneceu a acusação de ter sido “adesista” (TOUCHARD, 1970, p. 142). Mas quais são os aspectos principais desse autor que é ao mesmo tempo uma referência obrigatória nas tendências do pensamento socialista e um autor que recebeu críticas tão profundas e espetaculares de Marx? 132 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III A primeira obra de Proudhon, O que é a Propriedade? (1840), trouxe ao autor reconhecimento e desagrado, talvez pela frase com a qual passou a ser identificado: “a propriedade é um roubo”, embora essa frase não fosse dele, mas de Brissot, em 1789. Na carta que Marx dirige, em 1865, a um editor, que lhe solicitara um “julgamento pormenorizado sobre Proudhon” (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332) o autor considera essa obra a melhor de Proudhon, embora não haja novidade em seu conteúdo, mas pelo modo novo e vigoroso com que expõe velhos conceitos. Marx identifica na obra uma contradição fundamental: seu autor, ao vincular a propriedade ao conceito jurídico, não faz uma análise sob o foco da economia política, consequentemente, essa opção pelo formal impediu que as relações econômicas e históricas que permitiriam responder à questão fossem exploradas, restando ao autor realmente responder que “a propriedade é um roubo”, tal como Brissot em 1789. Esse erro o levou a enredar‑se em toda sorte de sutis raciocínios, para ele próprio obscuros, sobre a verdadeira propriedade burguesa. Na sequência da carta, Marx menciona o contato com Proudhon em Paris, em 1844, ocasião em que “[...] contaminei‑o com o hegelianismo que, dada sua ignorância do idioma alemão, ele não podia estudar convenientemente” (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332). Depois que Marx deixou Paris, Proudhon continuou seus estudos com um professor de filosofia alemã “que tinha a vantagem de não entender patavina da matéria” (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332). Três anos depois, Proudhon enviou a Marx o seu livro Filosofia da Miséria (1847), acompanhado por uma carta solicitando uma “crítica severa” da obra. Marx não fez por menos, escreveu Miséria da Filosofia em resposta e, segundo o relato que faz ao editor, Demonstrei ali, entre outras coisas, quão pouco ele [Proudhon] penetra no segredo da dialética científica; mostrei como, por outro lado, ele compartilha das ilusões da filosofia especulativa, pois ao invés de conceber as categorias econômicas como expressões teóricas de relações históricas de produção, correspondentes a um dado estágio de desenvolvimento da produção material, ele as converte de maneira absurda em ideias eternas, preexistentes; e como através desses circunlóquios retorna mais uma vez ao ponto de vista da economia burguesa (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332). Na verdade, Proudhon fizera uma crítica contundente da economia política marxista para seu autor, mas não dispunha de instrumental teórico para tanto. Como diz Marx, “demonstrei como era absolutamente deficiente e, por vezes, até infantil o seu conhecimento da economia política que se propôs a criticar” (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332). Nos parágrafosfinais da carta, Marx sintetiza seu parecer sobre obra e autor: Proudhon tinha uma inclinação natural pela dialética, mas como nunca chegou a compreender a dialética verdadeiramente científica, jamais foi além da sofística. Isto de fato, condizia com seu ponto de vista pequeno‑burguês. 133 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno [...] o pequeno‑burguês é uma contradição viva. Se como Proudhon é um homem inteligente, logo aprenderá a jogar com suas próprias contradições e a desenvolvê‑las conforme as circunstâncias em paradoxos notáveis e espetaculares, ora escandalosos, ora brilhantes. O charlatanismo na ciência e a conciliação na política são inseparáveis desse ponto de vista. A tais indivíduos só resta uma força motora, a vaidade, e a única coisa que lhes interessa, como a todos os vaidosos, é o êxito do momento, a sensação do dia (MARX, 1961, v. 1, p. 326‑332). Afora a arrogância de Marx, traço perceptível mais em seu discurso que em sua pessoa, seus comentários aparecem em linguagem mais sutil nos textos que focalizam a contribuição de Proudhon. Kolakowiski (1978, v. 1, p. 207‑214) afirma que Proudhon não relia o que escreveu, portanto não se dava conta das contradições em que entrara, e por isso suas propostas podem ser consideradas como versão do socialismo utópico: “Sua contribuição é um esquema normativo, cujos ideais são justiça e liberdade, mas tentou basear esse esquema em uma análise econômica e apontar mudanças de caráter prático”. Reconhecendo que os direitos inalienáveis do homem eram violados pelo sistema econômico, ainda assim acreditava na possibilidade de uma “harmonia natural” e social, que preservasse os direitos “à liberdade, igualdade e soberania do indivíduo”, conforme a vontade de Deus, embora ele se dissesse não religioso, sendo‑lhe atribuída a frase de efeito “Deus é o mal”. Sua formação filosófica era precária (como aponta Marx), daí os equívocos no entendimento de Hegel, contrapondo ao movimento de superação hegeliano, a noção de “equilíbrio entre antagonismos”, que seria resultante do esforço dos homens e não de uma força imanente à história, como ele entendia o papel do progresso em Hegel. Kolakowiski (1978, v. 1, p. 209) afirma que, [...] ao contrário do que Marx apontou, Proudhon se esforça por sublinhar que a organização intelectual da realidade social em categorias abstratas é secundária a essa realidade. O primeiro determinante da existência humana é o trabalho produtivo, enquanto a atividade intelectual é secundária a esse trabalho. Contudo, trabalho para ele é uma categoria tanto normativa quanto descritiva, o que o leva a uma crítica da propriedade a partir da indignação moral, em face do sistema (imoral) de retribuição. Portanto sua crítica à propriedade era ao sistema de remuneração ao trabalho e não à propriedade privada em si mesma: É irrelevante o fato de o proprietário realizar ou não um trabalho produtivo; se o realiza está legitimado a obter uma justa recompensa, porém tudo o que obtiver acima disso, meramente como proprietário da riqueza, representa um roubo dos demais trabalhadores (KOLAKOWISKI, 1978, v. 1, p. 209). 134 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Na leitura de Touchard (1970, p. 145), as contradições no pensamento de Proudhon são frequentes, levando aos proudhonistas a explicar sempre “o que ele queria dizer com isso”, de tal maneira que, proudhonistas de esquerda o veem como adversário da democracia, um crítico da contra revolução, enquanto os da direita se opõem a isso. Todavia ele aceitou o golpe de Estado, porque se tratava de um acontecimento puramente político, que poderia ser utilizado para a revolução da economia, essa sim, “a única verdadeira”. Contudo, à semelhança de Saint‑Simon e Fourier, Proudhon também não considera o problema social como passível de solução política, mas de uma ciência, a economia política, na qual sua proposta de um Banco do Povo seria fundamental. Suas críticas ao Estado, ao sufrágio universal e à democracia não deixam de estar envolvidas em contradições: critica o Estado pela concentração de poder, mesmo aquele que represente (aparentemente) uma vontade geral, a seu ver uma ilusão, o que o torna um crítico de Rousseau, preferindo Voltaire; pelo mesmo motivo não aceita o sufrágio universal, e quanto à democracia, “Proudhon está apaixonadamente ligado à igualdade”, mas não sacrifica igualdade à liberdade, nem liberdade à igualdade. Touchard explica: Ele pensa em um equilíbrio entre liberdade e igualdade [que] só pode ser alcançado por meio de uma solidariedade fraterna. Opõe assim nas suas Confissões de um Revolucionário a liberdade simples, que é a do bárbaro, ou do civilizado, quando este não reconhece outra lei que não seja a “de cada um por si”, e a liberdade composta que se confunde com a solidariedade: “Do ponto de vista social, liberdade e solidariedade são termos idênticos: a liberdade de cada um encontrar, na liberdade alheia, não um limite, mas sim um auxiliar; o homem mais livre é aquele que tem mais relações com seus semelhantes (TOUCHARD, 1970, p. 147). A contribuição de Proudhon, portanto, é centrada no princípio da solidariedade, que ele estende ao âmbito político, no princípio do federalismo, na medida em que, segundo Touchard (1970), para ele, o Estado é uma federação de grupos: o Estado resulta da reunião de vários grupos diferentes pela natureza, e pelos objetivos, “[...] formados cada um, para o exercício de uma função social e para a criação de um objeto particular, depois agrupado sob uma lei comum e em um interesse idêntico” (Sobre a Justiça, quarto estudo, TOUCHARD, 1970, p. 147). Também no âmbito internacional Proudhon é favorável ao federalismo, chegando mesmo a profetizar a organização de grandes blocos de estados no século XX. No âmbito social, o princípio de solidariedade se constitui no que ele denomina por mutualismo, ou a associação mutualista, sistema de trocas de serviços, bens e recursos entre os integrantes da associação. Essa proposta evitaria a luta de classes, e a violência, e seria materializada no Banco do Povo. Na verdade, essa instituição nunca “ultrapassou a fase do projeto”, embora fosse referida continuamente por ele. Em síntese, com todas as contradições e imperfeições, o pensamento de Proudhon manteve‑se entre seus defensores. Aproximando‑se do pensamento pequeno burguês, e de suas ilusões utópicas, 135 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno ao mesmo tempo distanciando‑se delas, nas críticas à religião e ao Estado, Proudhon distanciou‑se das tendências socialistas, sobretudo do pensamento de Marx, contudo foram as mudanças na sociedade francesa sob impacto da revolução industrial que abalaram a confiança dos trabalhadores nas ideias de Proudhon. Exemplo de aplicação Na medida em que os autores até agora comentados não cogitam uma transformação da sociedade, eles integram variantes do pensamento político conservador ou reformista, cujo contexto teórico é o Estado burguês. Qual seria, então, o modelo de Estado coerente com a transformação da sociedade burguesa? 7.2.3 As ideias socialistas: Karl Marx (1815‑1883) Figura 28 – Karl Marx Muito já foi dito sobre o ambiente social e político em que viveu Marx, de expansão do capitalismo industrial, da miséria dos operários e também sobre as influências intelectuais que sobre ele foram exercidas, a começar pela obra de Hegel. Essenciala toda sua obra está uma proposta básica, preocupação constante do cientista, filósofo e homem político, que foi sintetizada em um fragmento do texto conhecido como “Teses sobre Feuerbach”: “os filósofos não fizeram mais que interpretar o mundo de forma diferente, trata‑se, porém de transformá‑lo” (MARX, 1963, v. 3, p. 210). Henri Lefebvre comenta a respeito da proposição: “A vida social é essencialmente práxis e os mistérios especulativos encontram a sua solução na compreensão desta práxis” (LEFEBVRE, 1958, p. 7‑21). A concepção de transformação social proposta difere radicalmente das apontadas por Saint‑Simon e especialmente por Augusto Comte: não se trata de municiar a burguesia com uma “ciência” e concebê‑la como recurso para intervenção na realidade social, segundo alguns propósitos políticos; trata‑se da práxis, conceito complexo, que permite várias leituras, mas que não remete a uma ciência, e sim a um projeto e processo político de ação coletiva, do qual todos participam. 136 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Enfim, a transformação da sociedade seria resultante de um processo político cujas características emergiam das condições concretas da sobrevivência no capitalismo industrial, e cujos participantes seriam todos os que estivessem política e racionalmente comprometidos com o processo de transformação. Essa acepção simplificada para práxis pressupõe uma dada relação entre pensamento e ação, cujas características suscitaram inúmeras discussões, tanto no plano político partidário quanto no plano teórico filosófico, e da investigação empírica, nas Ciências Sociais. Tais discussões que foram superadas pelo tempo, escapam ao interesse desse texto. Florestan Fernandes comentou a atualidade do pensamento de Marx, em artigo publicado no ano do centenário de sua morte (1983), partindo da afirmação encontradiça em autores menos avisados: “Marx está superado, independentemente do valor intrínseco de suas ideias” (FERNANDES, 1983, p. 125). Na verdade, a investigação de Marx sobre o capitalismo, além de consistente suporte empírico, incorpora, no âmbito da discussão teórica, as contribuições dos principais autores da economia clássica (Adam Smith, Ricardo, dentre outros). Sua contribuição não foi a descrição das relações capitalistas em uma dada temporalidade ou espaço geográfico, não foi instaurada como “novidade” e se insere no âmbito da teoria econômica. Portanto, se as ideias e análises contidas na obra de Marx sofreram desgaste pelo desenvolvimento da filosofia e das ciências, e pela emergência de peculiaridades do capitalismo contemporâneo, o mesmo argumento é válido para todas as grandes teorizações, inclusive as da economia clássica. Então, Florestan sintetiza: Se Marx investigou não só o capitalismo de sua época, mas as condições objetivas da produção e da acumulação capitalista acelerada, só seria possível negar “suas ideias” se o capitalismo se tivesse tornado o avesso de si próprio, ou seja, se a mais‑valia relativa, a manipulação econômica, social e política, o exército industrial de reserva, a concentração e a centralização do capital, as classes sociais e a dominação de classe etc. tivessem desaparecido. Ora, isso não ocorreu (FERNANDES, 1983, p. 126). Sob essa perspectiva, a da óbvia persistência das condições capitalistas no capitalismo, a análise do pensamento de Marx apresenta grande atualidade, não se tratando de uma “referência intelectual e histórica” simplesmente, embora continue a se desdobrar nas posturas contemporâneas das Ciências Sociais, da comunicação e, sobretudo, da política. Todavia, quais elementos da contribuição de Marx e de Engels podem ser considerados fundamentais para o pensamento político? Correndo o risco de simplificar, podem ser apontados: a) o método de investigação e de construção do conhecimento, o materialismo histórico dialético; b) a identificação de processos e de sujeitos coletivos que dinamizam a história, conduzindo‑a e sendo conduzidos por ela; c) a construção simbólica, discursiva, das condições materiais de existência e dos possíveis de alteração, bem como análise e crítica dessa construção e da ordem social que é seu objeto, visando à práxis para justificá‑la ou transformá‑la. Nos títulos a seguir são comentados brevemente esses três elementos centrais ao pensamento de Marx. 137 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno 7.2.3.1 O método de investigação, o materialismo histórico dialético Na verdade, o método de investigação da realidade social em Marx não se limita à construção do conhecimento da vida social, mas busca fundamentar a elaboração da práxis. No prefácio à Crítica da Economia Política, publicado em 1859, Marx sintetiza o fio condutor de seus estudos, dizendo: [...] na produção social da própria vida, os homens contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade, relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das suas forças produtivas e materiais. A totalidade dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta uma superestrutura jurídica e política, e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção material condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual (MARX, 1982, p. 25). No entanto, é importante reconhecer que “cada forma de produção cria suas próprias relações de direito, formas de governo etc.” (MARX, 1982, p. 6). Como um modo de produção abrange “a totalidade das relações de produção”, Marx focalizou, na perspectiva histórica e geográfica, o modo de produção asiático, o antigo, o feudal e o burguês moderno. A passagem de um modo ao outro se dá porque “as forças produtivas materiais de uma sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou com as relações de propriedade dentro das quais até então tinham se movido” (MARX, 1982, p. 26). Todavia, “as forças produtivas que se encontram em desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições materiais para solução desse antagonismo” (MARX, 1982, p. 26). A realidade social é vista por Marx em mudança, a história, portanto, não é uma instância fora da realidade, mas interna a ela. E não é um “fluir” do tempo, muito menos uma sequência de estágios, como pretendia Comte, mas um movimento, ele mesmo dotado de contradição, ou um movimento que se dá por contradição. Isso significa que uma dada situação no presente não é imóvel ou estável, porque nela estão contidas condições do passado e ao mesmo tempo as “sementes” do futuro. Ao introduzir o movimento como dinâmica da história, e da realidade analisada, Marx assume a posição dialética, todavia ele não foi o primeiro a fazê‑lo. Hegel já havia descrito a história como um movimento dialético de superação da irracionalidade, em direção à razão e ao espírito, daí a célebre frase, atribuída a Hegel: o real é racional; mas depois dele Feuerbach aponta o caminho de uma dialética materialista, centrada no sujeito, na vida. Mas então, o leitor pode se perguntar, “qual a diferença?” Para simplificar, pode‑se dizer que a dialética hegeliana é idealista, ou seja, são as ideias, os conceitos racionais que constituem a realidade passível de ser pensada, a consciência. Contudo, o problema consistia, em encontrar o processo explicativo do movimento dialético das condições históricas, mas que não fosse criado por um exercício lógico. Diz Giannotti (1985, p. 21): 138 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o -Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III O conceito de trabalho vem responder a essas dificuldades. Interpretado como a atividade material orientada por um projeto. [...] [porque] pelo trabalho podemos chegar a compreender o sentido de uma ação social, o alcance de suas consequências e sua transitoriedade intrínseca, sem precisar recorrer à finalidade divina. Mas agora surge outra dificuldade: como “situar” o processo de trabalho? Em outros termos, como focalizar, entender e mesmo interpretar o processo de trabalho em relação a uma totalidade que lhe seja mais ampla, mas que ao mesmo tempo, o explique em relações fundamentais? Observação Entenda melhor a dificuldade de “situar” o processo de trabalho: Sapatos produzidos no século XVI, no regime de corporação, outros produzidos no século XX em regime industrial avançado, outros ainda produzidos hoje em plena globalização (lembrar a Nike) são objetos produzidos por trabalho humano, empregando equipamentos e tecnologia em níveis variados e com finalidade assemelhada (nenhum sapato foi destinado a cobrir e proteger as mãos, mas os pés). Contudo, como entender os três exemplos de produção de sapatos sem inserir (situar) cada um deles na totalidade (da economia e sociedade) em que foram produzidos? Nos três exemplos houve dispêndio de energia humana (trabalho), mas as condições que regiam esse trabalho eram distintas em cada um dos exemplos, assim também “os valores” atribuídos aos sapatos produzidos, ao trabalho, destinação da produção em relação ao mercado etc. Portanto, voltando à questão anterior, o processo de trabalho, embora seja explicativo das transformações sociais e históricas, deve ser “situado” em relação à totalidade que lhe atribui sentidos, condições, limites etc. Só assim será possível comparar as evidências empíricas (os três exemplos de sapatos) e perceber as implicações dialéticas do processo. Mas como proceder nos casos concretos? Marx responde a essa questão, explicando como passar dos casos concretos para as relações teóricas, ou como ele mesmo diz: São sempre indivíduos determinados, com uma atividade produtiva que se desenrola de um determinado modo, que entram em relações sociais e políticas determinadas. É necessário que, em cada caso particular, a observação empírica mostre nos fatos, e sem qualquer especulação ou mistificação, o elo existente entre a estrutura social e política e a produção (MARX, 1961, v. 1, p. 24). Portanto, a relação entre o caso concreto e individual e a instância teórica é importante, na medida em que, tanto a estrutura social quanto o Estado, 139 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno [...] resultam constantemente do processo vital de indivíduos determinados, mas não resultam daquilo que estes indivíduos aparentam perante si mesmos, ou perante outros, e sim daquilo que são na realidade, isto é, tal como trabalham e produzem materialmente [...] independentemente de sua vontade (MARX, 1961, v. 1, p. 24). Marx alude às condições internas de um modo de produção, aquelas que fundamentam as relações estruturantes, as quais, no capitalismo, dizem respeito a sua dinâmica interna, conforme aponta nas primeiras páginas de O Capital: Minha concepção do desenvolvimento da formação econômico‑social como processo histórico natural, exclui, mais que qualquer outra, a responsabilidade do indivíduo por relações das quais ele continua sendo socialmente criatura, por mais que subjetivamente se julgue acima delas (MARX, 1980a, v. 1, p. 6). Nessa proposição, Marx estabelece relação entre as condições materiais “concretas” da vida dos homens (forças produtivas e relações produtivas), a estrutura social, política e o Estado (superestrutura). Então ele amplia o alcance da proposição, para atingir o modo como os homens pensam sobre si próprios, sobre os outros e sobre o mundo. Em uma frase de síntese, diz ele: ”não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX, 1980a, p. 26). Esse vínculo entre a vida real (as condições materiais de existência) e as ideias e políticas é fundamental ao pensamento de Marx, vindo daí o conceito de ideologia, formas de consciência etc. Marx não está pensando na consciência pura, muito menos na cristã (marcada pela noção pecado original), mas na linguagem! Diz ele: A linguagem é tão velha como a consciência: é a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, e que, portanto existe igualmente só para mim e, tal como a consciência, só surge com a necessidade, e exigências dos contatos com os outros homens. Em uma frase de rodapé, ele sintetiza: a minha consciência é a minha relação com o que me rodeia (MARX, 1980a, p. 36). Logo, o discurso teórico, e da prática que constrói a realidade econômica e política, vem a ser um modo particular de expor para o outro (receptor) uma “dada realidade”, sem grandes compromissos com a “verdade dos fatos”, mas com interesses de outra natureza, ou como ele o diz, com o mundo que rodeia o emissor, do modo como ele o vê. Nas análises de Marx sobre a economia capitalista, especialmente sobre o pensamento dos autores clássicos, fica bastante clara sua intenção de “desmascaramento” das “mistificações”. Isso não significa que ele próprio não tenha em outros textos, outros discursos, procedido de forma semelhante, na “exposição da verdade dos fatos”. Um exemplo de procedimentos que mascaram a realidade dos fatos em análise reside no emprego de abstrações ou generalizações, como “produção em geral”. Apesar de razoável, é preciso entender que a produção implica um complexo de determinações, associadas a épocas e condições distintas. Não 140 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III considerar essa diferenciação na análise é um esquecimento que, segundo Marx, “é responsável por toda a sabedoria dos economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a harmonia das relações sociais existentes no seu tempo” (MARX, 1982, p. 5). Consequentemente, ao introduzir sua análise crítica da economia política, Marx (1982) principia por focalizar as relações internas entre produção, distribuição troca e consumo, mostrando quais aspectos “os economistas” deixaram de apontar, quando operam com abstrações generalizantes. Com relação à abstração do trabalho (trabalho em geral), ele aponta que ela só é válida quando o trabalho se converteu em um meio de produzir riqueza em geral, deixando de se confundir com o indivíduo em sua particularidade. Essa condição só aparece na sociedade burguesa, embora o trabalho tenha sempre existido. Assim, na análise do modo de produção capitalista, Marx parte do processo de trabalho como a atividade do homem que [...] opera uma transformação, subordinada a um determinado fim, no objeto sobre que atua por meio do instrumental de trabalho [...] processo se extingue ao concluir‑se o produto [...] o trabalho está incorporado ao objeto [...]. O que se manifestava em movimento, do lado do trabalhador, se revela agora em quantidade fixa, na forma de ser, do lado do produto [...] do ponto de vista do resultado, do produto, evidencia‑se que meio e objeto de trabalho são meios de produção, e o trabalho é trabalho produtivo (MARX, 1980a, v. 1, p. 205). O resultado do processo de trabalho como valor de uso pode agregar vários trabalhos anteriores, igualmente valores de uso, mas que são considerados meios de produção do primeiro. Contudo essa colocação não basta para caracterizar a produção capitalista porque ela “nãoé apenas a produção de mercadorias, ela é essencialmente produção de mais‑valia”. (MARX, 1980b, v. 2, p. 584) Nesse sentido, o trabalhador deve produzir mais‑valia, não importa onde (seja em uma linha de montagem, seja em um SPA), mas sempre contribuindo para expansão do capital. Mas, o que significa mais‑valia? Deve estar se perguntando o leitor. Ao ser contratado por uma empresa, o trabalhador sabe que estará sujeito a um regime de 8 horas de trabalho diárias, em 30 dias, e descanso remunerado. Durante suas horas de trabalho ele produzirá mercadorias que têm, ao mesmo tempo, valor de uso e de troca. Sua força de trabalho foi assim alienada para a empresa, como mercadoria, tornando‑se um valor de uso como os demais, que serão envolvidos na produção; para o trabalhador, ela também se tornou uma mercadoria com valor de uso e de troca (contudo não será ele a determinar esse valor em termos de moeda), que lhe permite sobreviver, adquirindo produtos necessários para ele e seus dependentes. Um primeiro aspecto da mais‑valia reside na diferença entre a quantidade de horas efetivamente trabalhadas e no valor (de troca) dos produtos resultantes desse trabalho. Se o trabalhador perguntar‑se quanto de seu tempo de trabalho corresponde ao valor das mercadorias produzidas, ele vai constatar que, na verdade, o valor desses produtos supera em muito o valor atribuído ao trabalho socialmente necessário à sua produção. Esse excedente em horas trabalhadas 141 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Pensamento Político moderno (sobretrabalho) não foi remunerado e nem poderia ser, uma vez que se trata de uma dinâmica própria do capitalismo. Uma parcela desse excedente será utilizada pela empresa para assegurar a produção futura, a outra parcela vai estar embutida no lucro. O trabalhador produziu com seu trabalho uma parte para sua sobrevivência e outra parte para a expansão do capital da empresa (acumulação), parcela que será integralizada no lucro. Mas há outro aspecto importante: o trabalho envolve produtos que chegam à empresa sob a forma de “matéria‑prima” e “insumos”, produtos que foram “produzidos” no mesmo regime (de mais‑valia); o trabalhador vai agir sobre esses produtos, fazendo com que o “trabalho morto” que ali está contido volte a produzir valor, portanto, o “trabalho vivo” daquele trabalhador vai “ressuscitar” o “trabalho morto” que ali está fazendo com que ele produza valor mais uma vez. Até aqui foi descrita a realização do que Marx denomina mais valia absoluta, ou seja, [...] o prolongamento da jornada de trabalho além do ponto em que o trabalhador produz apenas um equivalente ao valor de sua força de trabalho, com a apropriação pelo capital [do] trabalho excedente. Ela constitui o fundamento do sistema capitalista e o ponto de partida da produção da mais‑valia relativa”. (MARX, 1980b, v. 2, p. 585). Esta última corresponde ao modo de produção tipicamente capitalista, industrial, no qual a “estimativa” do trabalho socialmente necessário (para a produção e para a sobrevivência do trabalhador) já se encontra estabelecido, no qual métodos e técnicas de organização produtiva são empregados para elevar a “produtividade” do trabalho, ampliando assim sua lucratividade. Nesse sistema, observa‑se “a sujeição real do trabalho ao capital” (MARX, 1980b, v. 2, p. 585). Essa sujeição tem implicações sociais significativas, refletindo na vida das pessoas, mas ela tende a ampliar‑se, dado o crescimento das populações e diminuição da demanda de trabalho humano, dando origem à constituição de um “exército industrial de reserva”, cuja existência favorece a manutenção dos salários em baixa. Em meados do século XIX, Marx descreveu as implicações do progresso da produtividade do capital, cujas linhas gerais aplicam‑se às condições observadas no capitalismo contemporâneo, especialmente no terceiro mundo: Graças ao progresso do trabalho social, quantidade sempre crescente de meios de produção pode ser mobilizada com um dispêndio progressivamente menor de força humana. Este enunciado é uma lei na sociedade capitalista, onde o instrumental emprega o trabalhador [...] esta lei se transmuda na seguinte: quanto maior a produtividade do trabalho, tanto maior a pressão dos trabalhadores sobre os meios de emprego, tanto mais precária, portanto, sua condição de existência, a saber, a venda da própria força para aumentar a riqueza alheia ou a expansão do capital (MARX, 1980b, v. 2, p. 748). 142 Re vi sã o: R os e Ca st ilh o - Di ag ra m aç ão : L uc as M an sin i - d at a 22 /0 8/ 20 14 Unidade III Essa lei, que mantém o exército industrial de reserva, “determina uma acumulação de miséria correspondente à acumulação de capital. Acumulação de riqueza num polo é ao mesmo tempo acumulação de miséria, (...) ignorância, brutalização e degradação moral, no polo oposto, constituído pela classe cujo produto vira capital” (MARX, 1980b, v. 2, p. 749). Nas condições do capitalismo contemporâneo, a descrição realizada por Marx há quase um século e meio se reflete no processo que, no Brasil, recebeu o nome de “exclusão social”. Todavia, pode‑se pensar que, sendo a sociedade contemporânea “uma sociedade de assalariados”, na feliz expressão de Giannotti (1984, p. 361), “todos os seus agentes comparecem como proprietários de uma riqueza em constante crescimento”, a força de trabalho de um lado, e as ações ou produtos do empresário de outro. Porém, é enganoso pensar assim, pois a produtividade das empresas não consiste no somatório da produtividade de seus trabalhadores, mas é medida por “seu outro, pelo jogo das outras empresas na conquista do mercado, de acordo com os limites da demanda efetiva” (GIANNOTTI, 1984, p. 361). Isso significa que, para as empresas, a política salarial será sempre a de manter os salários no nível mais baixo possível, mesmo que em situação de monopólio seja possível ter lucro pagando salários altos. Consequentemente, o trabalho não é medido em relação a sua produtividade, mas tendo como referência objetiva um comum articulado pelo mercado; nesse sentido, a produção pelo valor do trabalho mede o trabalho vivo pelo trabalho morto. Dessa forma, instala‑se um controle do trabalho vivo, ou seja, do “valor” de “venda” da força de trabalho, fora da possibilidade de o trabalhador interferir. Considerando‑se que “valor é representação e controle da produção” (GIANNOTTI, 1984, p. 361), a produção de valor será a reiteração permanente, dessa forma, independentemente da figura assumida pelo capital, mas tendendo sempre a uma produtividade média, porém oscilante, na qual se refletem as formas aparentemente distintas do capital (financeiro, industrial, terra etc.) bem como as “nacionalidades” (inglês, americano, japonês etc.). Nos meios corporativos e empresariais contemporâneos, instaurou‑se um “saber prático”, voltado à preservação e expansão da lucratividade, que afeta não somente as práticas empresariais de controle, como também configurações especiais, qualitativas e quantitativas para a força de trabalho. Por seu turno, os indivíduos se habilitam (ou buscam habilitar‑se) para a inserção nesses meios, tratando de assegurar diferenciais de formação. Tais processos refletem‑se nas faixas de salário, bem como na diversidade de formas de contratação. Os mesmos processos afetam diretamente a composição e dinâmica das classes sociais surgidas no capitalismo, inclusive nas formas tardias, como o capitalismo brasileiro, mas essa é outra história... 7.2.3.1 Identificação de processos e de sujeitos coletivos na história A presença de sujeitos coletivos implica considerá‑los inseridos na história, portanto conduzindo processos,
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