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Intérprete de males contos Jhumpa Lahiri Tradução José Rubens Siqueira Copyright © 1999 by Jhumpa Lahiri Copyright da tradução © 2014 by Editora Globo Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida — em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. — nem apropriada ou estocada em sistema de banco de dados sem a expressa autorização da editora. Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo no 54, de 1995). Título original: Interpreter of Maladies Editor responsável: Ana Lima Cecilio Editores assistentes: Erika Nogueira Vieira e Juliana de Araujo Rodrigues Editor digital: Erick Santos Cardoso Preparação de texto: Maria Fernanda Alvares Revisão: Rogério Trentini Capa: Adriana Bertolla Diagramação: Jussara Fino Imagem de capa: “Gazing at the Moon”, de Rani Jha cip-brasil. catalogação na publicação sindicato nacional dos editores de livros, rj L185i Lahiri, Jhumpa Intérprete de males/Jhumpa Lahiri; tradução José Rubens Siqueira. 1. ed. – São Paulo: Biblioteca Azul, 2014 209 p.; 21 cm. Tradução de: Interpreter of maladies isbn 978-85-250-5770-9 1. Conto inglês. i. Siqueira, José Rubens. ii. Título. 14-13031 cdd: 823 cdu: 821.111-3 Direitos exclusivos de edição em língua portuguesa para o Brasil adquiridos por editora globo s.a. Av. Jaguaré, 1485 05346-902 São Paulo-SP www.globolivros.com.br Sumário Capa Folha de rosto Créditos Dedicatória Uma questão temporária Quando o senhor Pirzada vinha jantar Intérprete de males Um durwan de verdade Sexy A senhora Sen Esta casa abençoada O tratamento de Bibi Haldar O terceiro e último continente Notas Para meus pais e para minha irmã Uma questão temporária A notificação informava que era uma questão temporária: por cinco dias a eletricidade seria cortada durante uma hora, a partir das oito da noite. Uma linha caíra na última tempestade de neve e os operários iam aproveitar as noites mais brandas para arrumá-la. O trabalho afetaria apenas as casas da tranquila rua arborizada na qual Shoba e Shukumar moravam havia três anos, de onde se podia ir a pé até as lojas com fachada de tijolos e o ponto do bonde. — Bondade deles ter avisado — Shoba admitiu depois de ler a notificação em voz alta, mais para si mesma que para Shukumar. Deslizou dos ombros a alça da mochila de couro, recheada de pastas, e deixou-a no corredor ao entrar na cozinha. Usava uma capa de chuva de popelina azul-marinho por cima da calça de moletom cinza e tênis branco, com a aparência do tipo de mulher que um dia havia jurado nunca ser em seus trinta e três anos. Estava voltando da academia. O batom vermelho-escuro só era visível no contorno externo da boca e o delineador deixara marcas escuras debaixo dos cílios inferiores. Shukumar pensou que ela, às vezes, ficava com essa cara de manhã depois de uma festa ou de uma noite no bar, quando sentia preguiça de lavar o rosto, louca para cair nos braços dele. Ela jogou uma pilha de correspondência em cima da mesa sem nem olhar. Ainda estava atenta ao comunicado em sua outra mão. — Mas eles deviam fazer isso durante o dia. — Quando eu estou em casa, você quer dizer — disse Shukumar. Pôs a tampa de vidro na panela com o cordeiro, ajeitou para que ficasse saindo só um pouquinho do vapor. Desde janeiro, estava trabalhando em casa, tentando terminar os capítulos finais de sua dissertação sobre as revoltas agrárias da Índia. — Quando começa o conserto? — Diz aqui que em dezenove de março. Hoje é dezenove? — Shoba foi até o painel de cortiça pendurado ao lado da geladeira, sem nada além de um calendário com padrões de papel de parede da William Morris. Olhou aquilo como se fosse a primeira vez, estudando cuidadosamente o padrão do papel de parede da parte superior antes de baixar os olhos para o quadriculado embaixo. Uma amiga havia mandado por correio o calendário como presente de Natal, embora Shoba e Shukumar não tivessem comemorado o Natal naquele ano. — É hoje então — Shoba anunciou. — Aliás, você tem dentista sexta-feira que vem. Ele passou a língua pela ponta dos dentes: tinha esquecido de escová-los de manhã. Não era a primeira vez. Não saíra de casa o dia inteiro, nem no dia anterior. Quanto mais Shoba ficava longe de casa, quanto mais horas extras pegava no trabalho e em projetos adicionais, mais ele queria ficar em casa, sem sair nem para pegar a correspondência, ou comprar frutas ou vinho nas lojas perto do ponto do bonde. Seis meses antes, em setembro, Shukumar estava numa conferência acadêmica em Baltimore quando Shoba entrou em trabalho de parto, três semanas antes da data. Ele não queria ir à conferência, mas ela insistira; era importante para fazer contatos e ele iria entrar no mercado profissional no ano seguinte. Ela dissera que tinha o telefone do hotel, uma cópia dos horários dele, os números de voos, e combinara com sua amiga Gillian para levá-la ao hospital no caso de emergência. Quando partiu para o aeroporto naquela manhã, Shoba ficou dando adeus em seu roupão, um braço apoiado no volume da barriga como se fosse uma parte absolutamente natural de seu corpo. Toda vez que ele pensava nesse momento, o último momento em que vira Shoba grávida, era do táxi que mais se lembrava, uma perua pintada de vermelho com letras brancas. Era ampla comparada com seu carro. Embora Shukumar medisse um metro e oitenta, com mãos grandes demais até para acomodar confortavelmente nos bolsos da calça jeans, ele se sentira pequeno no banco de trás. Enquanto o táxi corria pela Beacon Street, pensara no dia em que ele e Shoba talvez tivessem de comprar uma perua para levar os filhos para aulas de música e consultas no dentista. Ele se imaginara agarrado à direção, enquanto Shoba virava para trás para distribuir as caixinhas de suco para as crianças. Uma vez, essas imagens de paternidade haviam perturbado Shukumar, somando-se à ansiedade de ainda ser estudante aos trinta e cinco anos. Mas naquela manhã de outono, bem cedo, as árvores ainda pesadas com folhas de bronze, ele deu as boas-vindas à imagem pela primeira vez. Um funcionário o havia encontrado de algum jeito entre as salas de convenções idênticas e lhe entregara um quadrado de papel cartonado. Era apenas um número de telefone, mas Shukumar sabia que era do hospital. Quando voltou para Boston, já estava tudo terminado. O bebê nascera morto. Shoba estava deitada, dormindo, num quarto individual tão pequeno que mal havia espaço para ficar parado ao lado dela, numa ala do hospital que não haviam visitado em sua expedição de pais grávidos. A placenta havia enfraquecido e ela fora submetida a uma cesariana, embora não com a devida urgência. O médico explicou que essas coisas aconteciam. Seu sorriso foi o mais gentil possível para pessoas que só se conhece profissionalmente. Em poucas semanas, Shoba estava de novo em atividade. Nada indicava que não pudesse ter filhos no futuro. Agora, sempre que Shukumar acordava, Shoba já havia saído. Ele abria os olhos, via os longos fios de cabelo preto que ficavam no travesseiro e pensava nela, vestida, tomando já sua terceira xícara de café no escritório na cidade, onde procurava erros tipográficos em livros didáticos, que marcava com um código que um dia explicara a ele, com uma coleção da lápis coloridos. Ela prometera que faria o mesmo com a dissertação dele, quando estivesse pronta. Ele invejava a especificidade do trabalho dela, tão diferente da natureza difusa do dele. Era um estudante medíocre que tinha facilidade para absorver detalhes sem curiosidade. Até setembro tinha sido diligente, se não dedicado, resumindo capítulos, esboçando argumentações em cadernos de papel amarelo pautado. Mas agora ficava deitado na cama até se entediar, olhando seu ladodo armário, que Shoba sempre deixava meio aberto, a fileira de paletós de tweed e calças de veludo que nem precisaria escolher para dar suas aulas neste semestre. Depois que o bebê morreu, era tarde demais para desistir de seu compromisso com as aulas. Mas seu orientador arranjou as coisas de forma que ele ficasse livre no semestre da primavera. Shukumar estava no sexto ano de pós- graduação. — Isso e o verão vão dar um bom impulso — o orientador dissera. — Até setembro você consegue fechar tudo. Mas nada impulsionava Shukumar. Em vez disso, pensava em como ele e Shoba haviam se tornado peritos em evitar um ao outro na casa de três quartos, passando o máximo de tempo possível em andares separados. Pensou que não ficavam mais esperando os fins de semana, quando ela passava horas sentada no sofá com seus lápis coloridos e pastas, e ele temia que botar uma música em sua própria casa pudesse ser rude. Pensou quanto tempo fazia que ela não olhava nos olhos dele e sorria, ou sussurrava seu nome nas raras ocasiões em que ainda buscavam um o corpo do outro antes de dormir. No começo, ele havia acreditado que isso ia passar, que ele e Shoba iriam superar de alguma forma. Ela estava com trinta e três anos apenas. Era forte, disposta outra vez. Mas isso não consolava. Muitas vezes, já era quase hora do almoço quando Shukumar finalmente saía da cama e descia até o bule de café para tomar o resto que Shoba deixara para ele, ao lado de uma caneca vazia, em cima da bancada. Shukumar recolheu as cascas de cebola com a mão e deixou que caíssem na lata de lixo, em cima das fatias de gordura que havia tirado do carneiro. Abriu a torneira da pia, limpou a faca e a tábua de cortar, esfregou metade de um limão na ponta dos dedos para tirar o cheiro de alho, truque que havia aprendido com Shoba. Eram sete e meia. Pela janela, via o céu, como piche negro e macio. Montes de neve irregulares ainda se acumulavam sobre as calçadas, embora estivesse suficientemente quente para as pessoas saírem sem chapéu nem luvas. Na última tempestade caíra quase um metro de neve, de forma que durante uma semana as pessoas tiveram de andar em fila indiana, em trincheiras estreitas. Durante uma semana, essa foi a desculpa de Shukumar para não sair de casa. Mas agora as trincheiras estavam se ampliando, a água drenava, constante, para as grelhas de escoamento. — O carneiro ainda não vai estar pronto às oito — disse Shukumar. — Talvez a gente tenha de comer no escuro. — Podemos acender velas — Shoba sugeriu. Ela soltou o cabelo, preso na nuca durante o dia, e tirou os tênis sem desamarrar. — Vou ver se tomo uma ducha antes que acabe a força — disse ela, indo para escada. — Desço logo. Shukumar empurrou a mochila e os tênis para longe da geladeira. Ela não era assim antes. Costumava pendurar o casaco num cabide, deixar os tênis no armário e pagar as contas assim que chegavam. Mas agora tratava a casa como se fosse um hotel. O fato de a poltrona de chintz amarela da sala entrar em choque com o tapete turco azul e marrom não a incomodava mais. Na varanda fechada dos fundos da casa, em cima de uma poltrona de vime, ainda estava um saco branco cheio de renda que ela um dia planejara transformar em cortinas. Enquanto Shoba tomava banho, Shukumar foi ao banheiro do andar térreo e debaixo da pia encontrou uma escova de dentes nova ainda na caixa. As cerdas baratas, duras, machucavam a gengiva e ele cuspiu um pouco de sangue na pia. Shoba comprara aquela escova numa promoção, para o caso de alguma visita resolver passar a noite na casa no último minuto. Típico dela. Era do tipo que se prepara para surpresas, boas ou más. Se encontrava uma saia ou uma bolsa de que gostava, comprava duas. Guardava os bônus de seu trabalho em outra conta bancária em seu nome. Isso não o incomodava. A mãe dele havia despencado quando seu pai morrera, abandonando a casa em que ele crescera e se mudando para Calcutá, deixando Shukumar sozinho para providenciar tudo. Ele gostava que Shoba fosse diferente. Ficava perplexo com sua capacidade de se antecipar. Quando ela fazia as compras, a despensa estava sempre equipada com embalagens extras de azeite de oliva e óleo de milho, dependendo da comida que estivessem fazendo, italiana ou indiana. Havia inúmeras caixas de massa de todas as formas e cores, sacos lacrados de arroz basmati, cortes inteiros de carneiro e cabrito dos açougues muçulmanos de Haymarket, congelados em incontáveis sacos plásticos. Em sábados alternados, circulavam pelo labirinto de barracas que Shukumar acabou conhecendo de cor. Ele ficava, sem poder acreditar, vendo-a comprar mais comida, arrastando sacolas de lona ao passar no meio da multidão, discutindo com rapazinhos jovens demais para se barbear, mas já com dentes faltando, que fechavam retorcendo sacos de papel pardo com alcachofras, ameixas, gengibre e inhames, que jogavam na balança e atiravam para Shoba, um a um. Ela não se importava com empurrões, mesmo quando estava grávida. Era alta, de ombros largos, com quadris que sua obstetra garantira serem feitos para parir. Ao voltar de carro para casa, na curva ao longo da Charles, eles invariavelmente se deslumbravam com a quantidade de comida que haviam comprado. E que nunca desperdiçavam. Quando apareciam amigos, Shoba servia refeições que parecia ter levado dias para preparar, com coisas que ela havia congelado e embalado, não coisas baratas de latas, mas pimentões que ela mesma havia marinado com alecrim, e chutneys que ela fazia aos domingos, mexendo panelas de tomates e ameixas secas. Seus vidros de boca larga ocupavam as prateleiras da cozinha em pirâmides lacradas, suficientes, ambos concordavam, para seus netos provarem. Agora tinham comido tudo. Shukumar recorrera ao suprimento para preparar refeições para os dois, medindo xícaras de arroz, descongelando sacos de carne dia após dia. Ele espiava os livros de receitas dela todas as tardes, obedecendo suas instruções anotadas a lápis para usar duas colheres de coentro moído em vez de uma, ou lentilha vermelha em vez de amarela. Cada receita tinha sua data, revelando a primeira vez que tinham comido juntos aquele prato. Dois de abril, couve-flor com erva-doce. Catorze de janeiro, frango com passas e amêndoas. Ele não se lembrava de ter comido nenhum daqueles pratos, mas lá estavam, registrados na linda letra de revisora de provas de sua mulher. Shukumar agora gostava de cozinhar. Era a única coisa que o fazia se sentir produtivo. Sabia que, se não fosse ele, Shoba era capaz de comer uma tigela de cereal no jantar. Essa noite, sem luz, iam ter de jantar juntos. Havia meses serviam-se no fogão, ele levava seu prato para o estúdio e deixava a comida esfriar em cima da mesa antes de engolir tudo sem pausa, enquanto Shoba levava seu prato para a sala de estar e assistia a programas de esporte ou lia suas provas com o arsenal de lápis coloridos à mão. Em algum momento da noite, ela o visitava. Quando ele a ouvia chegando, deixava de lado o romance e começava a digitar frases. Ela pousava as mãos nos ombros dele e olhava junto com ele a luminosidade azulada da tela do monitor. “Não trabalhe demais”, ela dizia depois de um ou dois minutos, e ia para a cama. Era o único momento do dia em que o procurava e, no entanto, ele passara a abominar aquilo. Sabia que era uma coisa que ela se forçava a fazer. Ele olhava as paredes do estúdio, que tinham decorado juntos no verão anterior, com uma borda de patinhos marchando e coelhos tocando cornetas e tambores. No final de agosto, havia um berço de cerejeira debaixo da janela, uma cômoda-trocador branca com puxadores verde-claros e uma cadeira de balanço com almofadas xadrez. Shukumar desmontara tudo antes de trazer Shoba de volta do hospital,raspando os coelhos e os patos com uma espátula. Por alguma razão, o quarto não o incomodava tanto como incomodava Shoba. Em janeiro, quando parou de trabalhar em seu cubículo na biblioteca, instalou a escrivaninha ali deliberadamente, em parte porque o quarto o acalmava, em parte porque era um lugar que Shoba evitava. Shukumar voltou à cozinha e começou a abrir gavetas. Tentou encontrar uma vela no meio das tesouras, batedores de ovos, espátulas, pilões e uma mão de pilão que ela havia comprado num bazar em Calcutá e que usava para amassar dentes de alho e bagas de cardamomo na época em que cozinhava. Encontrou uma lanterna, mas sem pilhas, e uma caixa de velinhas de aniversário pela metade. Shoba havia lhe dado uma festa de aniversário surpresa em maio passado. Cento e vinte pessoas se acotovelaram na casa, todos os amigos e amigos dos amigos que eles agora evitavam sistematicamente. Garrafas de vinho verde numa cama de gelo na banheira. Shoba no quinto mês de gravidez, bebendo refrigerante numa taça de martíni. Ela havia feito um bolo de creme de baunilha com cobertura e açúcar de confeiteiro. A noite inteira ficara com os dedos entrelaçados com os de Shukumar, se deslocando entre os convidados. Desde setembro, a única visita havia sido da mãe de Shoba. Ela viera do Arizona e ficara dois meses com eles, depois que Shoba voltou do hospital. Fazia o jantar toda noite, ia de carro sozinha ao supermercado, lavava as roupas deles, guardava. Era uma mulher religiosa. Instalou um altarzinho, uma imagem emoldurada de uma deusa de cara arroxeada e um prato de pétalas de flor na mesa de cabeceira do quarto de hóspedes, e rezava duas vezes ao dia por netos saudáveis no futuro. Ela era gentil com Shukumar, sem ser amigável. Dobrava os suéteres dele com uma habilidade que aprendera em seu trabalho numa loja de departamentos. Substituiu um botão que faltava em seu casaco de inverno e tricotou para ele um cachecol marrom e bege, com que o presenteou sem a menor cerimônia, como se ele tivesse acabado de derrubá-lo no chão sem notar. Nunca falava com ele sobre Shoba; uma vez, quando ele mencionou a morte do bebê, ela ergueu os olhos do tricô e disse: — Mas você nem estava lá. Ele achou estranho não haver velas de verdade na casa. Que Shoba não tivesse se preparado para uma ocorrência tão simples. Procurou então algo em que fixar as velas de aniversário e escolheu a terra de um vaso de hera que normalmente ficava no peitoril da janela em cima da pia. Mesmo estando a centímetros da torneira, a terra estava tão seca que ele teve de molhá-la antes para espetar as velas. Empurrou as coisas da mesa da cozinha, a pilha de correspondência, os livros da biblioteca não lidos. Lembrou da primeira refeição deles ali, quando estavam tão felizes de estar casados e vivendo juntos na mesma casa afinal, que simplesmente se procuravam por qualquer motivo bobo, mais dispostos a fazer amor do que comer. Estendeu duas toalhinhas bordadas, presente de casamento de um tio de Lucknow, e pôs os pratos e os cálices que normalmente guardavam para visitas. Colocou a hera no meio, as folhas em forma de estrela, debruadas de branco, engalanadas com dez velinhas. Ligou o rádio-relógio e sintonizou uma estação de jazz. — O que é tudo isso? — Shoba perguntou ao descer. Estava com o cabelo enrolado numa toalha branca grossa. Desenrolou a toalha e pendurou no encosto de uma cadeira, deixando o cabelo molhado e escuro cair pelas costas. Ao caminhar distraída para o fogão, desembaraçou alguns nós com os dedos. Estava com uma calça de moletom limpa, camiseta, um velho roupão de flanela. A barriga lisa outra vez, a cintura fina acima da expansão dos quadris, o cinto do roupão amarrado num nó frouxo. Eram quase oito horas. Shukumar pôs o arroz na mesa e a lentilha da noite anterior no micro-ondas, apertando os números do painel. — Você fez rogan josh — Shoba observou, olhando através da tampa de vidro o colorido cozido de páprica. Shukumar tirou um pedaço do carneiro, beliscou depressa entre os dedos para não se queimar. Cutucou um pedaço maior com a colher de servir para ter certeza de que a carne estava soltando fácil do osso. — Está pronta — anunciou. O micro-ondas apitou bem no momento em que as luzes se apagaram e a música sumiu. — Timing perfeito — disse Shoba. — Só encontrei velinhas de aniversário. — Ele acendeu a hera, mantendo o resto das velas e uma caixa de fósforos ao lado do prato. — Não tem importância — ela disse, deslizando o dedo pela haste do cálice de vinho. — Ficou lindo. No escuro, ele sabia como ela se sentava, um pouco para a frente na cadeira, os tornozelos cruzados na travessa mais baixa da cadeira, o cotovelo esquerdo apoiado na mesa. Durante a procura das velas, Shukumar havia encontrado uma garrafa de vinho num engradado que achava estar vazio. Ele prendeu a garrafa entre os joelhos enquanto girava o saca-rolhas. Preocupado em não derramar, pegou os cálices e segurou-os bem perto enquanto vertia o vinho. Serviram-se, mexendo o arroz com seus garfos, olhando com atenção para remover folhas de louro e cravos do cozido. A cada poucos minutos, Shukumar acendia mais velinhas e as espetava na terra do vaso. — É como na Índia — disse Shoba, observando enquanto ele arrumava o candelabro improvisado. — Às vezes, a força acabava durante horas. Uma vez, tive de participar de uma cerimônia do arroz inteirinha no escuro. O bebê chorava e chorava. Devia estar com muito calor. O bebê deles nunca havia chorado, Shukumar pensou. O bebê deles nunca teria uma cerimônia do arroz, muito embora Shoba já tivesse feito uma lista de convidados e resolvido a qual de seus três irmãos ia pedir para dar ao bebê a primeira comida sólida, aos seis meses se fosse menino, aos sete se fosse menina. — Está com calor? — ele perguntou. Empurrou o vaso de hera iluminado para a outra ponta da mesa, mais perto da pilha de livros e da correspondência, dificultando ainda mais para eles se enxergarem. De repente, ele ficou irritado por não poder subir e sentar na frente do computador. — Não. Isto aqui está uma delícia — ela falou, batendo no prato com o garfo. — Bom mesmo. Ele completou o vinho do cálice dela. Ela agradeceu. Não eram assim antes. Agora, ele tinha de fazer um esforço para dizer alguma coisa que a interessasse, alguma coisa que a fizesse erguer os olhos do prato, ou de suas provas de texto. Ele acabou desistindo de diverti-la. Aprendera a não se importar com os silêncios dela. — Lembro que, durante as falhas de energia na casa da minha avó, todo mundo tinha de dizer alguma coisa — Shoba continuou. Ele mal conseguiu ver o rosto dela, mas pelo tom sabia que ela estava com os olhos semicerrados, como se tentasse focalizar um objeto distante. Era um costume dela. — Como o quê? — Não sei. Um poeminha. Uma piada. Um acontecimento do mundo. Por alguma razão, meus parentes sempre queriam que eu contasse o nome dos meus amigos da América. Não sei por que essa informação era tão interessante para eles. Da última vez que vi minha tia, ela me perguntou de quatro meninas que tinham ido à escola comigo em Tucson. Mal me lembro delas agora. Shukumar não tinha passado tanto tempo na Índia como Shoba. Os pais dele, que se instalaram em New Hampshire, costumavam voltar para lá sem ele. A primeira vez que voltou, em criança, quase morreu de disenteria amebiana. Seu pai, um tipo nervoso, ficou com medo de levá-lo de novo, no caso de acontecer alguma coisa, e o deixava com a tia e o tio em Concord. Na adolescência, ele preferia velejar em acampamentos ou tomar sorvete durante o verão a ir para Calcutá. Só depois da morte do pai, quando estava no último ano da faculdade, foi que começou a se interessar pelo país e estudou sua história nos livros do curso como se fosse outra matéria do currículo. Agora,ele gostaria de ter tido sua própria história de infância na Índia. — Vamos fazer isso — ela disse, de repente. — Fazer o quê? — Falar alguma coisa um para o outro, no escuro. — Como o quê? Não sei nenhuma piada. — Não, piada não. — Ela pensou um momento. — Que tal a gente contar uma coisa que nunca contou para o outro? — Eu brincava disso na escola — Shukumar lembrou. — Quando ficava bêbado. — Você está pensando no jogo da verdade. Isto é diferente. Tudo bem, eu começo. — Ela tomou um gole de vinho. — A primeira vez que fiquei sozinha no seu apartamento, olhei sua agenda de endereços para ver se eu estava nele. Acho que a gente se conhecia fazia duas semanas. — Onde eu estava? — Você tinha ido atender o telefone na outra sala. Era sua mãe e eu percebi que ia ser uma ligação demorada. Queria saber se você tinha me promovido da margem do seu jornal. — Eu tinha? — Não. Mas não desisti de você. Agora é sua vez. Ele não conseguiu pensar em nada, mas Shoba ficou esperando que falasse. Ela não parecia tão determinada havia meses. O que mais tinha para dizer a ela? Ele pensou no primeiro encontro deles, quatro anos antes, no salão de palestras em Cambridge, onde um grupo de poetas bengaleses estava dando um recital. Acabaram lado a lado em cadeiras desmontáveis de madeira. Shukumar logo se entediou; não decifrava a dicção literária e não conseguia acompanhar o resto da plateia, que suspirava e balançava a cabeça solenemente em certas frases. Espiando o jornal dobrado em seu colo, estudou as temperaturas de cidades do mundo todo. Trinta e três graus em Cingapura ontem, onze em Estocolmo. Quando virou a cabeça para a esquerda, viu uma mulher a seu lado fazendo uma lista de compras no verso de um folheto e ficou pasmo ao descobrir que era linda. — Tudo bem — ele disse, lembrando. — A primeira vez que nós saímos para jantar, no restaurante português, eu esqueci de dar gorjeta para o garçom. Voltei na manhã seguinte, descobri o nome dele, deixei o dinheiro com o gerente. — Você voltou até Somerville só para dar gorjeta para o garçom? — Peguei um táxi. — Por que você esqueceu da gorjeta? As velinhas de aniversário tinham se apagado, mas ele percebia o rosto dela claramente no escuro, os grandes olhos fundos, os lábios cheios cor de uva, a queda da cadeirinha alta aos dois anos ainda visível numa vírgula em seu queixo. Shukumar notava, todos os dias, que a beleza dela, que um dia o fascinara, parecia fenecer. Os cosméticos que antes pareciam supérfluos eram necessários agora, não para melhorá- la, mas para defini-la de certa forma. — No fim do jantar, eu tive uma estranha sensação de que podia casar com você — ele disse, admitindo o fato para si mesmo, tanto quanto para ela, pela primeira vez. — Isso deve ter me distraído. Na noite seguinte, Shoba voltou para casa mais cedo que o normal. Havia um resto de carneiro da noite anterior, que Shukumar aqueceu, de forma que conseguiram comer por volta das sete horas. Ele havia saído esse dia, pela neve derretendo, e comprado na loja da esquina um pacote de velas e pilhas para a lanterna. Estava com as velas prontas na bancada, presas em suportes de latão em forma de lótus, mas comeram sob a luz do lustre de cobre pendurado no teto sobre a mesa. Quando terminaram, Shukumar se surpreendeu ao ver Shoba pôr seu prato em cima do dele e levar os dois para a pia. Ele achara que ela ia se retirar para a sala, para trás da sua barricada de pastas. — Não se preocupe com os pratos — ele disse, pegando-os da mão dela. — Parece bobagem não lavar — ela respondeu, pingando detergente na esponja. — São quase oito horas. O coração dele bateu mais rápido. O dia inteiro Shukumar aguardara o momento em que as luzes se apagassem. Pensou no que Shoba havia dito na noite anterior, sobre olhar sua agenda de endereços. Era gostoso lembrar dela como tinha sido naquela época, como tinha sido ousada mesmo que nervosa no primeiro encontro, tão cheia de esperança. Ficaram lado a lado diante da pia, as lembranças se encaixando na moldura da janela. Sentiu-se intimidado, como se sentira da primeira vez que pararam juntos diante de um espelho. Não conseguia lembrar a última vez que tinham sido fotografados. Tinham parado de ir a festas, não iam juntos a lugar nenhum. O filme que estava na câmera ainda continha fotos de Shoba no quintal, grávida. Ao terminarem os pratos, se encostaram no balcão, enxugando as mãos um em cada ponta da toalha. Às oito horas, a casa ficou escura. Shukumar acendeu as velas, impressionado com as chamas longas, firmes. — Vamos lá para fora — Shoba disse. — Acho que ainda está quente. Cada um levou uma vela e se sentaram nos degraus. Parecia estranho sentar-se lá fora com o chão ainda coberto por manchas de neve. Mas estava todo mundo fora de casa essa noite, o ar fresco o bastante para deixar as pessoas inquietas. Portas de correr abriam e fechavam. Um pequeno desfile de vizinhos passou com lanternas. — Vamos até a livraria dar uma olhada — disse o homem de cabelo grisalho. Estava andando ao lado da esposa, uma mulher magra de casaco quebra-vento, levando um cachorro pela coleira. Eram os Bradford e tinham deixado um cartão de condolências na caixa de correio de Shoba e Shukumar em setembro. — Ouvi dizer que eles têm gerador. — Melhor mesmo — disse Shukumar —, senão vocês vão olhar no escuro. A mulher riu, deslizando o braço na curva do cotovelo do marido. — Vamos com a gente? — Não, obrigado — Shoba e Shukumar disseram juntos. Ele se surpreendeu de suas palavras coincidirem com as dela. Perguntou-se o que Shoba iria lhe dizer no escuro. As piores possibilidades já haviam lhe passado pela cabeça. Que ela tinha um caso. Que não o respeitava por ter trinta e cinco anos e ainda ser estudante. Que o culpava por estar em Baltimore, como a mãe dela culpava. Mas ele sabia que essas coisas não eram verdade. Ela era tão fiel quanto ele. Acreditava nele. Ela é que havia insistido que fosse para Baltimore. O que eles não sabiam a respeito um do outro? Ele sabia que ela cerrava os dedos quando dormia, que seu corpo se retorcia durante os pesadelos. Ele sabia que ela gostava mais de melão honeydew que de cantalupe. Sabia que quando voltaram do hospital a primeira coisa que ela fez ao entrar na casa foi pegar objetos deles e jogar numa pilha no corredor: livros das estantes, plantas do peitoril das janelas, quadros das paredes, porta-retratos das mesas, panelas e caçarolas que ficavam penduradas em ganchos acima do fogão. Shukumar tinha se afastado, observando enquanto ela se movimentava metodicamente de sala em sala. Quando se satisfez, parou para olhar a pilha que havia feito, os lábios distendidos com tamanho desagrado que Shukumar achou que ela ia cuspir. Então, ela começou a chorar. Ele estava começando a sentir frio ali na escada. Sentia que ela precisava falar primeiro para ele responder. — Aquela vez que sua mãe veio visitar a gente — ela disse, finalmente. — Uma noite, eu falei que ia trabalhar até tarde, mas saí com a Gillian e tomei um martíni. Ele olhou seu perfil, o nariz fino, a posição ligeiramente masculina do queixo. Lembrava bem dessa noite; jantar com sua mãe, cansado por dar duas aulas seguidas, querendo que Shoba estivesse em casa para dizer as coisas certas porque ele só conseguia dizer as coisas erradas. Fazia doze anos que seu pai tinha morrido e a mãe passara duas semanas com ele e Shoba para que pudessem homenagear juntos a memória do pai. Toda noite a mãe preparava alguma comida de que o pai dele gostava, mas ficava muito aflita para comer o que tinha feito e seus olhos se enchiam de lágrimas quando Shoba acariciava sua mão. — É tão tocante — Shoba tinha dito a ele naquele momento. Ele agora imaginava Shoba com Gillian num bar comsofás de veludo listrado, aquele a que costumavam ir depois do cinema, cuidando para o drink ter uma azeitona a mais, pedindo um cigarro a Gillian. Ele a imaginava reclamando e Gillian consolando a respeito das visitas de parentes. Gillian é que tinha levado Shoba ao hospital. — Sua vez — ela disse, interrompendo os pensamentos dele. No fim da rua, ouviram ruído de furadeira e os eletricistas gritando por cima. Ele olhou as fachadas escuras das casas ao longo da rua. Na janela de uma delas brilhavam velas. Apesar do calor, subia fumaça da chaminé. — Eu colei no meu exame de civilização oriental na faculdade — ele disse. — Era meu último semestre, minha última bateria de exames. Meu pai tinha morrido poucos meses antes. Dava para ver o caderno azul do cara ao meu lado. Era um americano, um maníaco. Ele sabia urdu e sânscrito. Eu não conseguia lembrar se o verso que tinha de identificar era exemplo de gazal ou não. Olhei a resposta dele e copiei. Isso acontecera mais de quinze anos antes. Ele se sentiu aliviado naquele momento, contando para ela. Ela se voltou para ele, sem olhar seu rosto, mas seus sapatos: os velhos mocassins que ele usava como chinelos, o couro da parte de trás achatado permanentemente. Ele se perguntou se ela se incomodava com o que acabara de dizer. Ela pegou a mão dele e apertou. — Não precisava me contar por que fez isso — disse, chegando mais para perto dele. Ficaram sentados ali, juntos, até as nove da noite, quando a luz voltou. Ouviram pessoas aplaudirem na varanda do outro lado da rua e começarem a ligar televisões. Os Bradford voltaram pela rua, tomando sorvete de casquinha, e acenaram. Shoba e Shukumar acenaram de volta. Depois se levantaram, a mão dele ainda na dela, e entraram em casa. De alguma forma, sem dizer nada, tinha se transformado naquilo. Numa troca de confissões — as miudezas com que haviam magoado ou decepcionado um ao outro e a si mesmos. No dia seguinte, Shukumar passou horas pensando no que dizer a ela. Estava dividido entre admitir que uma vez havia arrancado a foto de uma mulher de uma das revistas de moda que ela costumava assinar e levado dentro de seus livros durante uma semana, ou contar que não tinha realmente perdido o colete que ela comprara para ele como presente de terceiro aniversário de casamento, mas sim trocado por dinheiro na Filene e se embebedado sozinho no meio do dia num bar de hotel. No primeiro aniversário de casamento, Shoba havia preparado um jantar de dez pratos só para ele. O colete o deprimia. — Minha esposa me deu um colete de presente de aniversário de casamento — reclamou com o barman, a cabeça pesada de conhaque. — O que você esperava? — respondeu o barman. — Você é casado. Quanto à foto da mulher, ele não sabia por que a havia pegado. Ela não era tão bonita como Shoba. Usava um vestido branco com lantejoulas e tinha o rosto amuado e magro, pernas masculinizadas. Estava com os braços nus erguidos, os punhos fechados dos lados da cabeça, como se fosse dar um soco nas próprias orelhas. Era uma propaganda de meias. Shoba estava grávida na época, a barriga imensa de repente, a ponto de Shukumar não querer mais tocá-la. Quando viu a foto pela primeira vez, estava deitado na cama ao lado dela, olhando enquanto ela lia. Quando viu a revista na pilha de recicláveis, encontrou a mulher e arrancou a página com o máximo cuidado. Durante uma semana se permitiu dar uma olhada por dia. Sentia um intenso desejo pela mulher, mas era um desejo que se transformava em desagrado depois de um ou dois minutos. Foi o mais perto que chegou da infidelidade. Na terceira noite, contou a Shoba sobre o colete; na quarta, sobre a foto. Ela não disse nada quando ele falou, não expressou nem protesto nem censura. Simplesmente ouviu, depois pegou a mão dele e apertou como tinha feito antes. Na terceira noite, ela contou que uma vez, depois de uma palestra a que assistiram, ela deixara que ele conversasse com o diretor de seu departamento sem contar que estava com o queixo sujo de patê. Ficara irritada com ele por alguma razão, então deixara que continuasse falando e falando para garantir sua bolsa para o semestre seguinte, sem pôr um dedo no próprio queixo como sinal. Na quarta noite, ela disse que não gostava do único poema que ele havia publicado na vida, em uma revista literária de Utah. Ele escrevera o poema depois de conhecer Shoba. Ela acrescentou que achava o poema sentimental. Alguma coisa acontecia quando a casa ficava escura. Os dois conseguiam conversar um com o outro de novo. Na terceira noite, depois do jantar, eles se sentaram juntos no sofá e quando escureceu ele começou a beijá-la, desajeitado, na testa e no rosto, e embora estivesse escuro fechou os olhos e sabia que ela tinha fechado também. Na quarta noite, subiram cuidadosamente a escada, até a cama, tateando juntos com os pés no último degrau antes do patamar e fazendo amor com um desespero que tinham esquecido. Ela chorou sem som e sussurrou o nome dele, e contornou as sobrancelhas dele com o dedo no escuro. Enquanto fazia amor com ela, ele se perguntava o que iria dizer a ela na noite seguinte, e o que ela diria, e a ideia o excitou. — Me abrace — ela disse —, me abrace apertado. Quando as luzes voltaram a se acender no andar de baixo, eles estavam dormindo. Na manhã da quinta noite, Shukumar encontrou na caixa de correspondência outro comunicado da companhia de eletricidade. A linha estava consertada antes do prazo, dizia. Ficou decepcionado. Tinha planejado fazer malai de camarão para Shoba, mas quando chegou ao mercadinho não sentia mais vontade de cozinhar. Não era a mesma coisa, pensou, saber que as luzes não iam se apagar. No mercadinho, o camarão parecia cinzento e magro. O leite de coco estava empoeirado e com preço excessivo. Mesmo assim, comprou tudo, mais uma vela de cera de abelhas e duas garrafas de vinho. Ela voltou para casa às sete e meia. — Acho que é o fim do nosso jogo — disse, quando a viu lendo o comunicado. Ela olhou para ele. — Ainda pode acender as velas se quiser. Ela não tinha ido à academia essa noite. Estava com um tailleur debaixo da capa. A maquiagem tinha sido retocada recentemente. Quando ela subiu para trocar de roupa, Shukumar se serviu de vinho e pôs um disco, um álbum de Thelonious Monk que sabia que ela gostava. Quando ela desceu, jantaram juntos. Ela não agradeceu nem fez nenhum elogio a ele. Simplesmente comeram na sala escurecida, à luz das velas de cera. Tinham sobrevivido a um momento difícil. Acabaram com o camarão. Acabaram com a primeira garrafa de vinho e partiram para a segunda. Ficaram sentados até a vela ter queimado quase inteira. Ela se mexeu na cadeira e Shukumar achou que ia dizer alguma coisa. Em vez disso, ela soprou a vela, levantou-se, acendeu a luz e sentou-se de novo. — Não era melhor deixar a luz apagada? — Shukumar perguntou. Ela empurrou o prato e pôs as mãos abertas sobre a mesa. — Quero que você veja o meu rosto quando eu te disser o que vou dizer — falou, delicadamente. O coração dele começou a bater forte. No dia em que ela lhe dissera que estava grávida, tinha usado as mesmas palavras, pronunciadas no mesmo tom suave, depois de desligar o jogo de basquete a que ele estava assistindo na televisão. Ele não estava preparado na época. Agora estava. Só que ele não queria que ela estivesse grávida de novo. Não queria ter de fingir que estava contente. — Andei procurando apartamento e encontrei um — disse ela, apertando os olhos aparentemente para olhar alguma coisa atrás do ombro esquerdo dele. A culpa não era de ninguém, ela continuou. Tinham passado por muita coisa. Ela precisava de algum tempo sozinha. Tinha economizado dinheiro numa conta de poupança. O apartamento ficava emBeacon Hill, de forma que podia ir a pé para o trabalho. Ela havia assinado o contrato essa noite, antes de voltar para casa. Não conseguia olhar para ele, mas ele olhava para ela. Era evidente que ela havia ensaiado o que dizer. O tempo todo, tinha procurado apartamento, experimentando a pressão da água, perguntando ao corretor se o aquecimento e a água quente estavam incluídos no aluguel. Shukumar sentia enjoo ao pensar que ela havia passado as noites anteriores se preparando para uma vida sem ele. Ficava aliviado, mas ao mesmo tempo enjoado. Era isso que ela vinha tentando lhe dizer nas últimas quatro noites. Era o motivo do jogo dela. Agora era a vez dele falar. Havia algo que ele jurara nunca dizer a ela e durante seis meses tinha feito o possível para tirar aquilo da cabeça. Antes do ultrassom, ela havia pedido ao médico para não contar o sexo do bebê, e Shukumar havia concordado. Ela queria que fosse surpresa. Mais tarde, naquelas poucas vezes em que conversaram sobre o que acontecera, ela disse que ao menos haviam sido poupados dessa informação. De certa forma, ela ficava quase orgulhosa de sua decisão, pois permitia que se refugiasse num mistério. Ele sabia que ela achava ser um mistério para ele também. Ele havia chegado de Baltimore tarde demais — quando já estava tudo acabado e ela dormia numa cama de hospital. Mas não era assim. Ele chegara a tempo de ver o bebê e segurá-lo nos braços antes que fosse cremado. De início, ele recuara diante da sugestão, mas o médico dissera que segurar o bebê podia ajudá-lo no processo do luto. Shoba estava dormindo. O bebê tinha sido limpo, as pálpebras bulbosas fechadas para o mundo. — Nosso bebê era um menino — ele disse. — A pele dele era mais vermelha que marrom. Tinha cabelo preto. Pesava quase três quilos. A mão estava fechada, como a sua durante a noite. Shoba olhou para ele então, o rosto contraído de tristeza. Ele tinha colado num exame da faculdade, tinha arrancado a foto de uma mulher de uma revista. Tinha trocado um colete e ficado bêbado com o dinheiro no meio do dia. Essas coisas é que havia contado para ela. Ele tinha carregado seu filho, que só conhecera a vida dentro dela, tinha apertado o bebê ao peito numa sala escura de uma ala desconhecida de um hospital. Tinha ficado com ele nos braços até uma enfermeira bater na porta e levá-lo embora, e prometera a si mesmo naquele dia nunca contar a Shoba, porque ele ainda a amava então e era a única coisa na vida que ela quisera que fosse uma surpresa. Shukumar se levantou e pôs seu prato em cima do dela. Levou os pratos para a pia, mas, em vez de abrir a torneira, olhou pela janela. Lá fora, a noite ainda estava quente e os Bradford passavam de braços dados. Enquanto ele olhava o casal, a sala ficou escura e ele se voltou. Shoba havia apagado a luz. Ela voltou à mesa e sentou-se e depois de um momento Shukumar sentou-se ao lado dela. Os dois choraram juntos, pelas coisas que agora sabiam. Quando o senhor Pirzada vinha jantar No outono de 1971, um homem costumava vir a nossa casa trazendo balas nos bolsos e esperanças de averiguar a vida e a morte de sua família. O nome dele era sr. Pirzada e era de Daca, hoje capital de Bangladesh, mas na época parte do Paquistão. Naquele ano, o Paquistão estava em guerra civil. A fronteira oriental, onde se localizava Daca, estava lutando por autonomia do poder dominante no Ocidente. Em março, Daca tinha sido invadida, incendiada e bombardeada pelo Exército paquistanês. Professores foram arrastados pelas ruas e mortos a tiros, mulheres arrastadas para quartéis e estupradas. No final do verão, diziam que trezentas mil pessoas haviam sido mortas. Em Daca, o sr. Pirzada possuía uma casa de três andares, uma cadeira de botânica na universidade, uma esposa havia vinte anos e sete filhas entre seis e dezesseis anos, cujos nomes todos começavam com a letra A. — Ideia da mãe delas — ele explicou um dia, tirando da carteira uma foto em preto e branco das sete meninas num piquenique, as tranças amarradas com fitas, sentadas de pernas cruzadas numa fileira, comendo curry de frango em folhas de bananeira. — Como eu faço para distinguir? Ayesha, Amira, Amina, Aziza, entende a dificuldade? Toda semana o sr. Pirzada escrevia cartas à esposa e mandava revistas em quadrinhos para cada uma das sete filhas, mas o correio, assim como tudo em Daca, entrara em colapso e ele não teve notícias delas durante mais de seis meses. Nessa época, o sr. Pirzada estava passando um ano nos Estados Unidos, porque havia ganhado uma bolsa do governo do Paquistão para estudar a flora da Nova Inglaterra. Na primavera e no verão, ele recolhera dados em Vermont e no Maine e no outono mudou-se para uma universidade ao norte de Boston, onde morávamos, para escrever um breve livro sobre suas descobertas. A bolsa era uma grande honra, mas quando convertida em dólares não era tão generosa. O sr. Pirzada morava num quarto no alojamento dos graduados e não tinha fogão nem televisão. Então vinha a nossa casa para jantar e assistir ao noticiário noturno. No começo, eu não sabia a razão de suas visitas. Tinha dez anos e não me surpreendia que meus pais, que eram indianos e tinham muitos conhecidos indianos na universidade, recebessem o sr. Pirzada para comer conosco. Era um campus pequeno, com calçadas estreitas de tijolos e edifícios brancos com colunas, localizado no limiar do que parecia ser uma cidade ainda menor. O supermercado não tinha óleo de mostarda, os médicos não atendiam em casa, os vizinhos apareciam sem ser convidados, e de quando em quando meus pais reclamavam dessas coisas. Em busca de compatriotas, eles costumavam, no começo de cada semestre, ler acompanhando com os dedos as colunas do diretório da universidade, grifando sobrenomes conhecidos de sua parte do mundo. Foi assim que descobriram o sr. Pirzada, telefonaram para ele e o convidaram. Não tenho lembrança de sua primeira visita, nem da segunda ou terceira, mas no final de setembro eu estava tão acostumada à presença do sr. Pirzada na sala de casa que uma noite, quando colocava as pedras de gelo dentro da jarra de água, pedi a minha mãe que pegasse um quarto copo no armário ainda alto demais para mim. Ela estava ocupada no fogão, controlando uma frigideira de espinafre com rabanete, e não me escutou por causa do ruído do exaustor e da fúria com que raspava a espátula. Recorri a meu pai, que estava encostado na geladeira, comendo castanhas de caju na concha da mão. — O que foi, Lilia? — Um copo para aquele moço indiano. — O senhor Pirzada não vem hoje. Mais importante, o senhor Pirzada não se considera mais indiano — meu pai anunciou, espanando o sal das castanhas da barba preta aparada. — Desde a Partição. Nosso país foi dividido. Em 1947. Quando falei que achava que essa era a data em que a Índia se tornara independente da Grã- Bretanha, meu pai disse: — Isso também. Num momento a gente estava livre, no outro partido em dois — explicou, fazendo um X com o dedo na bancada —, como uma torta. Hindus aqui, muçulmanos aqui. Daca não pertence mais a nós. Ele me contou que, durante a Partição, hindus e muçulmanos punham fogo uns nas casas dos outros. Para muitos, a ideia de comer um na companhia do outro ainda era impensável. Para mim não fazia sentido. O sr. Pirzada e meus pais falavam a mesma língua, riam das mesmas piadas, pareciam mais ou menos iguais. Comiam picles de manga nas refeições, comiam arroz com a mão toda noite no jantar. Assim como meus pais, o sr. Pirzada tirava os sapatos antes de entrar na casa, mascava sementes de erva-doce como digestivo depois da refeição, não tomava bebida alcoólica, como sobremesa molhava austeros biscoitos em sucessivas xícaras de chá. Mesmo assim, meu pai insistia para que eu entendesse a diferençae me levou até um mapa-múndi que havia pregado na parede acima de sua mesa. Ele parecia temer que o sr. Pirzada pudesse se ofender se eu acidentalmente me referisse a ele como indiano, embora eu não conseguisse imaginar o sr. Pirzada se ofendendo muito com qualquer coisa. — O senhor Pirzada é bengalês, mas é muçulmano — meu pai me informou. — Portanto, ele mora no Paquistão Oriental, não na Índia. — O dedo dele deslizou pelo Atlântico, atravessou a Europa, o Mediterrâneo, o Oriente Médio, e parou no losango largo e alaranjado que minha mãe havia me dito um dia que parecia uma mulher usando sári com o braço esquerdo estendido. Várias cidades estavam marcadas com um círculo e ligadas por linhas indicando as viagens de meus pais, e o lugar de nascimento deles, Calcutá, indicado com uma pequena estrela prateada. Eu só tinha estado lá uma vez e não me lembrava da viagem. — Como vê, Lilia, é outro país, de outra cor — disse meu pai. O Paquistão era amarelo, não alaranjado. Notei que havia nele duas partes distintas, uma muito maior que a outra, separadas por uma extensão do território indiano; era como se a Califórnia e Connecticut constituíssem uma nação separada dos Estados Unidos. Meu pai batucou com os nós dos dedos na minha cabeça. — Você deve estar informada da situação atual. Sabe que o Paquistão Oriental está lutando por soberania? Balancei a cabeça, ignorando a situação. Voltamos para a cozinha, onde minha mãe estava coando o arroz cozido num escorredor. Meu pai abriu a lata sobre o balcão e olhou firme para mim por cima dos óculos, enquanto comia mais algumas castanhas de caju. — O que exatamente te ensinam na escola? Você estuda história? Geografia? — Lilia tem muita coisa para aprender na escola — minha mãe falou. — Nós agora moramos aqui, ela nasceu aqui. — Parecia genuinamente orgulhosa do fato, como se fosse uma reflexão sobre meu caráter. Eu sabia que, na avaliação dela, tinha garantidas uma vida segura, uma vida facilitada, uma boa educação, todas as oportunidades. Nunca teria de comer comida racionada, nem respeitar toques de recolher, nem assistir a tumultos de cima do telhado, nem esconder vizinhos nos tanques de água para impedir que fossem fuzilados, como ela e meu pai tinham feito. — Imagine ela ter de frequentar uma escola decente. Imagine ela ter de ler à luz do lampião de querosene nos cortes de energia. Imagine as pressões, os professores, os exames constantes. — Ela passou a mão pelo cabelo, cortado com comprimento conveniente para seu emprego de meio período como caixa de banco. — Como você quer que ela saiba da Partição? Chega de comer castanha. — Mas o que ela sabe do mundo? — Meu pai chacoalhou a lata de castanhas na mão. — O que ela está aprendendo? Nós aprendíamos história americana, claro, e geografia americana. Naquele ano e em todos os anos, aparentemente, começávamos estudando a Revolução Americana. Éramos levados em ônibus da escola a excursões para visitar Plymouth Rock e caminhar pela Trilha da Liberdade, escalar até o alto do monumento Bunker Hill. Construíamos dioramas com papel colorido mostrando George Washington atravessando as águas encapeladas do rio Delaware e fazíamos fantoches do rei George usando calça branca apertada e um arco preto no cabelo. Nas provas, nos davam mapas em branco das treze colônias para colocarmos os nomes, as datas e as capitais. Eu sabia fazer tudo isso de olhos fechados. Na noite seguinte, o sr. Pirzada chegou como sempre às seis da tarde. Embora não fossem mais estranhos, ao se cumprimentarem, ele e meu pai mantinham o costume de apertarem as mãos. — Entre. Lilia, o casaco do senhor Pirzada, por favor. Ele entrava na sala, com terno impecável e cachecol, com uma gravata de seda no colarinho. Cada noite aparecia com um conjunto diferente em tons de ameixa, oliva, marrom, chocolate. Era um homem compacto e, embora os pés fossem virados para fora e a barriga ligeiramente grande, mantinha uma postura eficiente, como se levasse nas duas mãos malas de pesos iguais. As orelhas eram isoladas por tufos de pelos grisalhos que pareciam abafar o ruído desagradável do tráfego da vida. Tinha cílios fartos delineados com um traço de cânfora, um bigode generoso torcido de um jeito divertido com as extremidades para cima e uma verruga na forma de uva-passa achatada bem no meio da bochecha esquerda. Usava na cabeça um fez preto de lã de carneiro persa, preso com grampos de cabelo, e nunca o vi sem ele. Embora meu pai sempre se oferecesse para ir buscá-lo com nosso carro, o sr. Pirzada preferia vir a pé de seu alojamento até nosso bairro, distante uns vinte minutos, estudando as árvores e os arbustos do caminho, e quando entrava em casa os nós dos dedos dele estavam vermelhos por causa do ar fresco do outono. — Mais um refugiado, eu acho, em território indiano. — Estão estimando em nove milhões, pela última contagem — disse meu pai. O sr. Pirzada me entregou seu casaco, uma vez que era minha função pendurá-lo no cabide debaixo da escada. Era feito de lã com um xadrez miúdo cinza e azul, o forro listrado e os botões de chifre, com um ligeiro aroma de limão na trama do tecido. Não havia etiquetas visíveis na parte interna, apenas uma pregada à mão com as palavras Z. Sayeed, Confecção bordadas em manuscrito com linha preta brilhante. Às vezes, havia uma folha de bétula ou de bordo enfiada num bolso. Ele desamarrava os sapatos, deixava- os encostados ao rodapé; uma pasta dourada grudada na ponta do calcanhar, resultado de andar em nosso gramado úmido e não rastelado. Livre de seus atavios, ele tocava meu pescoço com os dedos curtos e inquietos, como uma pessoa que investiga a solidez da parede antes de pregar um prego. Depois, acompanhava meu pai até a sala, onde a televisão estava ligada no noticiário local. Assim que eles se sentavam, minha mãe vinha da cozinha com um prato de kebab de carne moída com chutney de coentro. O sr. Pirzada punha um inteiro na boca. — Só podemos esperar — disse ele, pegando outro — que os refugiados de Daca sejam bem alimentados. Isso me lembra... — Ele procurou no bolso do paletó e me deu um ovinho plástico cheio de corações de canela. — Para a dama da casa — disse com uma reverência quase imperceptível, os pés virados para fora. — Realmente, senhor Pirzada — minha mãe protestou. — Noite após noite o senhor mima a menina. — Só mimo crianças que não são mimadas. Era um momento estranho para mim, momento que eu esperava em parte com receio, em parte com prazer. Ficava encantada com a presença da rotunda elegância do sr. Pirzada, e lisonjeada com a ligeira teatralidade de suas atenções, ao mesmo tempo inquieta com a soberba facilidade de seus gestos, que faziam com que eu me sentisse por um momento como uma estranha em minha própria casa. Tinha se transformado num ritual nosso e, durante várias semanas, antes que estivéssemos mais à vontade um com o outro, era o único momento em que ele falava diretamente comigo. Eu não tinha resposta, não comentava nada, não traía nenhuma reação visível ao fluxo constante de balas recheadas de mel, trufas de framboesa, rolinhos de pastilhas azedinhas. Não conseguia nem agradecer a ele, pois uma vez, quando o fiz, por um pirulito de menta especialmente espetacular embrulhado numa nuvem de celofane roxo, ele me perguntou: — Agradecer por quê? A moça do banco me agradece, o caixa da loja me agradece, a bibliotecária me agradece quando devolvo um livro fora do prazo, a telefonista internacional me agradece quando tenta fazer uma ligação para Daca e não consegue. Se eu for enterrado neste país, com certeza vão me agradecer no meu enterro. Na minha opinião, era inadequado consumirde qualquer jeito os doces que o sr. Pirzada me dava. Eu esperava cada tesouro noturno como uma joia, ou uma moeda de um reino soterrado, e o colocava numa caixinha de guardados feita de sândalo entalhado, ao lado de minha cama, na qual, muito tempo antes, na Índia, a mãe de meu pai costumava guardar as nozes de areca moídas que comia depois do banho matinal. Era minha única lembrança de uma avó que não conheci e até o sr. Pirzada entrar em nossas vidas não encontrei nada para guardar nela. De vez em quando, antes de escovar os dentes e aprontar minha roupa para a escola do dia seguinte, eu abria a tampa da caixa e comia uma das delícias. Nessa noite, como todas as noites, não comemos na mesa de jantar, porque não dava para ver direito a tela da televisão. Em vez disso, nos reunimos em torno da mesa de centro, sem conversar, os pratos apoiados nos joelhos. Da cozinha, minha mãe trouxe uma sucessão de pratos: lentilha com cebola frita, feijão-verde com coco, peixe cozido com passas em molho de iogurte. Eu acompanhava com os copos de água, um prato de limões cortados em quatro e pimentas chili compradas em excursões mensais a Chinatown e guardadas no freezer, que eles gostavam de abrir e amassar junto com a comida. Antes de comer, o sr. Pirzada sempre fazia uma coisa curiosa. Tirava um relógio de prata simples sem correia que guardava no bolso do peito, segurava-o brevemente a uma das orelhas com seus tufos de pelos e dava corda com três movimentos rápidos de polegar e indicador. Ao contrário de seu relógio de pulso, o relógio de bolso, ele me explicou, marcava a hora de Daca, onze horas à frente. Durante toda a refeição, o relógio ficava em cima de seu guardanapo de papel na mesinha de centro. Ele parecia não consultá-lo nunca. Agora que eu sabia que o sr. Pirzada não era indiano, comecei a estudá-lo com mais cuidado, tentando entender o que o tornava diferente. Resolvi que o relógio de bolso era uma coisa. Quando o vi essa noite, e ele deu corda e o pôs na mesinha, fui tomada por uma inquietação; me dei conta de que a vida era vivida em Daca primeiro. Imaginei as filhas do sr. Pirzada acordando cedo, amarrando fitas no cabelo, à espera do café da manhã, se preparando para a escola. Nossas refeições, nossas ações eram apenas sombras do que já tinha acontecido lá, um lerdo fantasma da terra real do sr. Pirzada. Às seis e meia, hora em que começava o noticiário nacional, meu pai aumentava o volume e ajustava a antena. Geralmente eu me ocupava com um livro, mas nessa noite meu pai insistiu que eu prestasse atenção. Na tela, vimos tanques rodando por ruas poeirentas, edifícios destruídos, florestas de árvores desconhecidas onde os refugiados paquistaneses orientais tinham de se abrigar, buscando segurança além da fronteira indiana. Vi barcos com velas em forma de hélice flutuando em largos rios cor de café, uma universidade barricada, sedes de jornais queimadas de alto a baixo. Virei para olhar para o sr. Pirzada; as imagens passavam em miniatura nos olhos dele. Ao assistir, ele tinha uma expressão fixa no rosto, controlado, mas alerta, como se alguém estivesse lhe dando orientação para um destino desconhecido. Durante o comercial, minha mãe foi à cozinha buscar mais arroz, e meu pai e o sr. Pirzada deploraram a política de um general chamado Yahya Khan. Discutiram intrigas que eu não conhecia, uma catástrofe que eu não conseguia entender. — Está vendo, crianças da sua idade, o que precisam fazer para sobreviver — meu pai disse enquanto me servia outro pedaço de peixe. Mas eu não conseguia mais comer. Só conseguia dar uma olhadela ao sr. Pirzada, sentado a meu lado com seu paletó verde-oliva, criando calmamente um poço em seu arroz para acomodar uma segunda porção de lentilha. Não era assim que eu imaginava um homem tomado por graves preocupações. Eu me perguntava se a razão para ele estar sempre tão bem-vestido seria em preparação para suportar com dignidade qualquer notícia que lhe viesse, talvez mesmo para comparecer a um funeral sem aviso prévio. Me perguntava também o que aconteceria se de repente suas sete filhas aparecessem na televisão, sorrindo, acenando e atirando beijos para o sr. Pirzada, do alto de uma sacada. Imaginei como ele iria ficar aliviado. Mas isso nunca aconteceu. Nessa noite, quando guardei o ovo plástico cheio de corações de canela dentro da caixa ao lado de minha cama, não senti a satisfação cerimoniosa que normalmente sentia. Tentei não pensar no sr. Pirzada, em seu sobretudo com cheiro de limão, ligado àquele mundo convulso, sufocante, que tínhamos visto horas antes em nossa sala clara e acarpetada. E, no entanto, durante muitos momentos só consegui pensar naquilo. Sentia um nó no estômago pensando se a mulher e as sete filhas dele eram agora membros daquela multidão clamorosa e perdida que aparecera em flashes na tela. Num esforço para eliminar a imagem, olhei ao redor de meu quarto, a cama amarela de dossel, a cortina de babados combinando, as fotos de classe emolduradas nas paredes forradas de papel branco e violeta, as anotações a lápis na porta do armário em que meu pai registrava minha altura a cada aniversário. Mas, quanto mais eu tentava me distrair, mais começava a me convencer de que a família do sr. Pirzada muito provavelmente estava morta. Por fim, peguei um quadrado de chocolate branco da caixa, desembrulhei e fiz uma coisa que nunca tinha feito antes. Pus o chocolate na boca, deixei que amolecesse até o último momento possível e então mastiguei devagar, rezando para a família do sr. Pirzada estar sã e salva. Eu nunca havia rezado por nada antes, nunca tinha aprendido nem sido orientada a rezar, mas resolvi, diante das circunstâncias, que era o que devia fazer. Essa noite, quando fui ao banheiro, só fingi escovar os dentes, por medo de remover a oração também. Molhei a escova e arrumei o tubo de pasta de dentes para meus pais não fazerem perguntas e dormi com o açúcar na língua. Ninguém na escola comentou a guerra acompanhada tão fielmente na minha sala de estar. Continuamos a estudar a Revolução Americana e aprendemos sobre a injustiça dos impostos sem representação e memorizamos passagens da Declaração de Independência. Durante o intervalo, os meninos se dividiram em dois grupos, um perseguindo loucamente o outro em torno dos balanços e gangorras, Casacos Vermelhos contra as colônias. Na classe, nossa professora, a sra. Kenyon, apontava com frequência um mapa que descia como uma tela de cinema por cima do quadro-negro, mostrando a rota do Mayflower, ou mostrando a localização do Sino da Liberdade. Toda semana, dois alunos da classe faziam um relatório sobre um aspecto específico da Revolução e então, um dia, fui mandada à biblioteca da escola com minha amiga Dora para pesquisar sobre a rendição em Yorktown. A sra. Kenyon me entregou um papel com o nome de três livros para procurar no catálogo de fichas. Logo encontramos os livros e sentamos a uma mesa redonda baixa para ler e tomar notas. Mas eu não conseguia me concentrar. Voltei às estantes de madeira clara, a um setor que eu tinha notado, com a identificação de “Ásia”. Vi livros sobre a China, a Índia, a Indonésia, a Coreia. Por fim, encontrei um intitulado Paquistão: uma terra e seu povo. Sentei num banquinho e abri o livro. A sobrecapa estalou em meus dedos. Comecei a virar as páginas, cheias de fotos de rios, campos de arroz, homens fardados. Havia um capítulo sobre Daca e comecei a ler sobre as chuvas e a produção de juta. Estava estudando a tabela populacional quando Dora apareceu no corredor. — O que você está fazendo aí? A senhora Kenyon está na biblioteca. Veio ver a gente. Fechei o livro com ruído demais. A sra. Kenyon apareceu, o aroma de seu perfume dominando o corredor minúsculo, e ergueu o livro pela lombada comose fosse um fio de cabelo no meu suéter. Olhou a capa, depois para mim. — Este livro faz parte do relatório, Lilia? — Não, senhora. — Então, não vejo razão para você estar consultando isto — disse, recolocando-o no espaço da estante. — Você vê? Com o passar das semanas, foi ficando cada vez mais raro ver imagens de Daca no noticiário. A reportagem vinha depois do primeiro intervalo comercial, às vezes do segundo. A imprensa tinha sido censurada, removida, restringida, redirecionada. Alguns dias, muitos dias, só anunciavam o número de mortos, precedido por uma reiteração da situação geral. Mais poetas foram executados, mais aldeias incendiadas. Apesar de tudo, noite após noite, meus pais e o sr. Pirzada faziam longas e demoradas refeições. Depois que a televisão era desligada, os pratos lavados e secos, eles brincavam, contavam histórias, molhavam biscoitos no chá. Quando se cansavam de discutir política, discutiam os progressos do livro do sr. Pirzada sobre as árvores decíduas da Nova Inglaterra, a estabilidade no emprego de meu pai, os hábitos alimentares estranhos das colegas americanas de minha mãe no banco. Por fim, me mandavam subir para fazer a lição de casa, mas através do carpete eu ouvia que tomavam mais chá e escutavam fitas cassete de Kishore Kumar, jogavam palavras cruzadas na mesinha de centro, rindo e discutindo até tarde da noite a grafia de palavras em inglês. Eu queria ficar com eles, queria, acima de tudo, consolar o sr. Pirzada de alguma forma. Mas, além de comer um pedaço de doce pela família dele e rezar por sua segurança, eu não podia fazer nada. Eles jogavam palavras cruzadas até o noticiário das onze horas e depois, às vezes por volta da meia-noite, o sr. Pirzada voltava a pé para seu alojamento. Por isso eu nunca via quando ele ia embora, mas toda noite, quando deslizava para o sono, eu os ouvia na expectativa do nascimento de uma nação do outro lado do mundo. Um dia, em outubro, o sr. Pirzada perguntou logo ao chegar: — O que são esses legumes grandes cor de laranja nos degraus de entrada das pessoas? Uma espécie de moranga. — São abóboras — minha mãe respondeu. — Lilia, me lembre de comprar uma no supermercado. — E para que isso? Indica o quê? — Para fazer uma lanterna de careta — eu disse, abrindo um sorriso feroz. — Assim. Para assustar as pessoas. — Sei — o sr. Pirzada respondeu, sorrindo de volta. — Muito útil. No dia seguinte minha mãe comprou uma abóbora de cinco quilos, gorda, redonda, e colocou na mesa de jantar. Antes da refeição, enquanto meu pai e o sr. Pirzada assistiam ao noticiário local, ela me mandou decorar a abóbora com pincéis atômicos, mas eu queria recortar direito, como tinha visto outras no bairro. — É, vamos cortar — o sr. Pirzada concordou, e levantou-se do sofá. — Suspendemos as notícias hoje. — Sem fazer perguntas, ele entrou na cozinha, abriu uma gaveta e voltou com uma longa faca serrilhada. Olhou para mim em busca de aprovação. — Devo? Fiz que sim. Era a primeira vez que nos reuníamos todos em torno da mesa de jantar, minha mãe, meu pai, o sr. Pirzada e eu. Enquanto a televisão transmitia para ninguém, cobrimos a mesa com jornais. O sr. Pirzada pôs o paletó no encosto da cadeira atrás dele, tirou um par de punhos de opala e arregaçou as mangas engomadas da camisa. — Primeiro, tem de cortar em volta da parte de cima — ensinei, mostrando com o indicador. Ele fez um corte inicial e circundou com a faca. Quando terminou o círculo, ergueu a tampa pelo caule. Saiu sem esforço, e o sr. Pirzada se inclinou sobre a abóbora por um momento, para inspecionar e sentir o cheiro do conteúdo. Minha mãe deu a ele uma colher de metal de cabo comprido com a qual ele esvaziou o interior até remover os últimos fios e sementes. Enquanto isso, meu pai separava as sementes da polpa e punha para secar numa toalha de papel, para poder assá-las mais tarde. Na superfície sulcada, desenhei dois triângulos para os olhos, que o sr. Pirzada recortou aplicadamente em duas meias-luas como sobrancelhas, e outro triângulo para o nariz. Só faltava a boca, e os dentes eram um desafio. Hesitei. — Sorrindo ou triste? — perguntei. — Você escolhe — disse o sr. Pirzada. Como concessão, desenhei uma espécie de careta, de um lado a outro, nem triste, nem sorridente. O sr. Pirzada começou a cortar, sem um mínimo de intimidação, como se esculpisse abóboras a vida inteira. Estava quase acabando quando começou o noticiário nacional. O repórter mencionou Daca e nós todos nos viramos para ouvir: uma autoridade indiana anunciou que, a menos que o mundo ajudasse a aliviar o sofrimento dos refugiados do Paquistão Oriental, a Índia teria de entrar em guerra contra o Paquistão. O rosto do repórter pingava suor enquanto ele passava as informações. Não estava de terno e gravata, mas vestido como se ele mesmo fosse participar da batalha. Protegia o rosto queimado com as mãos enquanto gritava as coisas para a câmera. A faca escorregou da mão do sr. Pirzada e fez um corte na direção da base da abóbora. — Por favor, desculpe. — Ele ergueu a mão para o lado do rosto, como se tivesse levado uma bofetada de alguém. — Eu… que horror. Eu compro outra. A gente tenta de novo. — Nada disso, nada disso — meu pai falou. Ele tirou a faca do sr. Pirzada e cortou em torno do corte, nivelando tudo, dispensando de uma vez os dentes que eu tinha desenhado. O resultado foi um buraco desproporcional, do tamanho de um limão, de forma que a lanterna de abóbora ficou com uma expressão de plácida perplexidade, as sobrancelhas não mais ferozes flutuando em congelada surpresa acima de um olhar vazio, geométrico. No Halloween eu era uma bruxa. Dora, minha parceira de “doces ou travessuras”, também era bruxa. Usamos capas pretas feitas com fronhas tingidas e chapéus cônicos com abas largas de papelão. Pintamos o rosto de verde com uma sombra de olhos quebrada que era da mãe de Dora, e para recolher os doces minha mãe nos deu dois sacos de aniagem que um dia contiveram arroz basmati. Nesse ano, nossos pais resolveram que tínhamos idade suficiente para circular pelo bairro desacompanhadas. Nosso plano era andar da minha casa à de Dora; a mãe dela me levaria de carro de volta. Meu pai nos equipou com lanternas e tive de usar um relógio sincronizado com o dele. Não podíamos voltar depois das nove horas. Quando o sr. Pirzada chegou essa noite, me deu de presente uma caixa de chocolate com menta. — Aqui dentro — eu disse, e abri o saco de aniagem. — “Doces ou travessuras”? — Pelo que vejo você não precisa de fato da minha contribuição hoje — disse ele, depositando a caixa. Olhou meu rosto verde e o chapéu preso com um cordão debaixo do queixo. Hesitante, ergueu a barra de minha capa, debaixo da qual eu estava com um suéter e uma jaqueta felpuda fechada com zíper. — Vai estar bem agasalhada? Fiz que sim e o chapéu sacudiu para um lado. Ele o arrumou. — Talvez seja melhor ficar quieta. O piso diante da escada estava coberto com cestos de doces em miniatura e, quando o sr. Pirzada tirou os sapatos, não os deixou no lugar onde sempre deixava, mas sim dentro do armário. Ele começou a desabotoar o casaco e esperei para pegar da mão dele, mas Dora me chamou do banheiro para dizer que precisava de ajuda para pintar uma verruga em seu queixo. Quando finalmente estávamos prontas, minha mãe tirou uma foto nossa na frente da lareira e eu abri a porta para sair. O sr. Pirzada e meu pai, que ainda não tinha entrado na sala, rondavam o corredor. Lá fora já estava escuro. O ar tinha cheiro de folha molhada e nossa lanterna de abóbora bruxuleava de um jeito impressionante diante do arbusto ao lado da porta. De longe, vinha o som de pés caminhando e os uivos dos meninos mais velhos que não usavam fantasia nenhuma além de máscaras de borracha e o farfalhar das roupas das crianças mais novas,algumas tão pequenas que tinham de ser carregadas de porta em porta no colo dos pais. — Não entre em nenhuma casa que não conheça — meu pai alertou. O sr. Pirzada franziu as sobrancelhas. — Tem algum perigo? — Não, não — minha mãe garantiu. — Todas as crianças vão estar na rua. É uma tradição. — Talvez a gente devesse acompanhar as duas — o sr. Pirzada sugeriu. De repente, ele parecia cansado e pequeno, parado ali com os pés vestidos de meias, virados para fora, e em seus olhos um pânico que eu nunca tinha visto antes. Apesar do frio, comecei a suar dentro da minha fronha. — Realmente, senhor Pirzada — disse minha mãe —, Lilia vai estar bem segura com a amiga dela. — Mas e se chover? Elas vão se perder? — Não se preocupe — eu disse. Era a primeira vez que eu pronunciava essas palavras para o sr. Pirzada, três palavras simples que eu havia tentado, mas não conseguira dizer a ele havia semanas, dizendo apenas em minhas orações. Naquele momento, fiquei envergonhada de tê-las dito por minha causa. Ele tocou minha bochecha com um dedo grosso, depois apertou nas costas da própria mão, deixando uma ligeira mancha verde. — Se a mocinha insiste — ele concordou e fez uma pequena reverência. Saímos, tropeçando um pouco com nossos sapatos pontudos de loja de bugigangas e, quando viramos no fim da entrada para acenar, o sr. Pirzada estava parado na porta, uma figura baixa entre meus pais, acenando de volta. — Por que aquele homem queria sair com a gente? — Dora perguntou. — Ele não sabe das filhas dele. — Assim que eu disse isso, desejei não ter dito. Senti que, ao dizer, aquilo se tornava verdade, que as filhas do sr. Pirzada realmente haviam desaparecido e que ele nunca mais as veria de novo. — Quer dizer que elas foram sequestradas? — Dora perguntou. — De um parque, de algum lugar? — Não foi isso que eu quis dizer, ele está com saudade delas. Elas moram em outro país e ele não vê as filhas faz muito tempo, só isso. Fomos de casa em casa, entrando pelos jardins e apertando campainhas. Algumas pessoas tinham apagado todas as luzes para fazer mais efeito, ou pendurado morcegos de borracha nas janelas. Na casa dos McIntyre havia um caixão de defunto na frente da porta e o sr. McIntyre se levantou de dentro dele em silêncio, o rosto pintado com giz, para despejar um punhado de balas em nossos sacos. Várias pessoas me disseram que nunca tinham visto uma bruxa indiana. Outras faziam a transação sem comentários. Seguindo nosso caminho com os fachos paralelos de nossas lanternas, vimos ovos quebrados no meio da rua, carros cobertos com espuma de barbear, papel higiênico fazendo guirlandas nos galhos das árvores. Quando chegamos à casa de Dora estávamos com as mãos esfoladas por carregar os sacos de aniagem cheios e os pés doloridos e inchados. A mãe dela nos deu bandagens para os machucados e nos serviu cidra quente e pipoca caramelada. Ela me lembrou de telefonar a meus pais para contar que tínhamos chegado em segurança, e quando liguei dava para ouvir a televisão ao fundo. Minha mãe não pareceu especialmente aliviada de saber de mim. Quando desliguei o telefone, me ocorreu que na casa de Dora a televisão não estava ligada. O pai dela estava deitado no sofá, lendo uma revista, com um copo de vinho na mesinha de centro, e havia música de saxofone tocando no estéreo. Quando Dora e eu arrumamos nossa coleta, contamos, experimentamos e trocamos até ficarmos satisfeitas, a mãe dela me levou de volta para casa. Agradeci a carona e ela ficou esperando na entrada até eu chegar à porta. À luz dos faróis vi que nossa abóbora tinha sido despedaçada, a casca grossa espalhada aos pedaços pelo gramado. Senti os olhos picarem com as lágrimas e uma dor súbita na garganta, como se estivesse cheia de pedrinhas que trituravam cada passo de meus pés doloridos. Abri a porta, achando que os três estariam parados no corredor, esperando para me receber, e lamentar a abóbora destruída, mas não havia ninguém. Na sala, o sr. Pirzada, meu pai e minha mãe estavam sentados lado a lado no sofá. A televisão desligada e o sr. Pirzada com a cabeça entre as mãos. O que tinham ouvido essa noite e muitas noites depois dessa era que a Índia e o Paquistão estavam chegando cada vez mais perto da guerra. Tropas de ambos os lados se alinhavam na fronteira, e Daca insistia em nada menos que a independência. A guerra seria travada em solo do Paquistão Oriental. Os Estados Unidos estavam do lado do Paquistão Ocidental, a União Soviética do lado da Índia e do que logo seria Bangladesh. A guerra foi declarada oficialmente em 4 de dezembro e, doze dias depois, o Exército paquistanês, enfraquecido por ter de lutar a quase cinco mil quilômetros de sua fonte de suprimentos, se rendeu em Daca. Esses fatos todos eu só sei agora, porque estão disponíveis para mim em qualquer livro de história, em qualquer biblioteca. Mas na época eram, em sua maior parte, um mistério remoto com pistas fortuitas. O que eu me lembro daqueles doze dias de guerra é que meu pai não me pedia mais para assistir ao noticiário com eles, que o sr. Pirzada parou de me trazer doces, que minha mãe se recusava a servir qualquer outra coisa além de ovos cozidos com arroz no jantar. Me lembro de ter ajudado minha mãe a estender um lençol e um cobertor no sofá para o sr. Pirzada poder dormir ali, e de vozes agudas gritando no meio da noite quando meus pais telefonavam para nossos parentes em Calcutá para saber mais detalhes da situação. Acima de tudo, me lembro dos três agindo durante essa época como se fossem uma só pessoa, compartilhando uma única refeição, um único corpo, um único silêncio, um único medo. Em janeiro, o sr. Pirzada voou de volta para sua casa de três andares em Daca, para descobrir o que restava dela. Não estivemos muito com ele naquelas últimas semanas do ano; ele estava ocupado terminando seu manuscrito e fomos à Filadélfia passar o Natal com amigos de meus pais. Assim como não tenho lembrança da primeira visita dele, não tenho lembrança da última. Meu pai o levou ao aeroporto uma tarde, enquanto eu estava na escola. Durante um longo tempo, não tivemos notícias dele. Nossas noites continuavam iguais, com o jantar na frente das notícias. A única diferença era que o sr. Pirzada e seu relógio extra não estavam lá para nos acompanhar. Segundo as reportagens, Daca estava se recuperando devagar, com um governo parlamentar recém-formado. O novo líder, xeique Mujib Rahman, recentemente libertado da prisão, pediu aos países material de construção para refazer mais de um milhão de casas destruídas na guerra. Refugiados incontáveis voltaram da Índia, recebidos, pelo que ficamos sabendo, com desemprego e ameaça de fome. De quando em quando, eu estudava o mapa acima da mesa de meu pai e imaginava o sr. Pirzada naquele pedacinho amarelo, transpirando intensamente, imaginava que estava usando um de seus ternos, procurando a família. Claro, o mapa estava desatualizado na época. Finalmente, vários meses depois, recebemos um cartão do sr. Pirzada, comemorando o ano-novo muçulmano, junto com uma carta breve. Ele escreveu que havia reencontrado a esposa e as filhas. Estavam todas bem, tendo sobrevivido aos acontecimentos do ano anterior numa propriedade dos pais de sua esposa nas montanhas de Shillong. As sete filhas estavam um pouco mais altas, escreveu ele, mas continuavam as mesmas, e ele ainda não conseguia lembrar seus nomes na ordem. No fim da carta, ele agradecia nossa hospitalidade, acrescentando que, embora entendesse agora o sentido das palavras “muito obrigado”, elas ainda não eram adequadas para expressar sua gratidão. Para comemorar a notícia, minha mãe preparou um jantar especial essa noite, e quando nos sentamos para comer na mesinha de centro brindamos
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