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Jhumpa Lahiri - Intérprete de Males

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Intérprete	de	males
contos
Jhumpa	Lahiri
Tradução
José	Rubens	Siqueira
Copyright	©	1999	by	Jhumpa	Lahiri
Copyright	da	tradução	©	2014	by	Editora	Globo
Todos	os	direitos	reservados.	Nenhuma	parte	desta	edição	pode	ser	utilizada	ou	reproduzida	—	em	qualquer	meio	ou	forma,	seja	mecânico	ou
eletrônico,	fotocópia,	gravação	etc.	—	nem	apropriada	ou	estocada	em	sistema	de	banco	de	dados	sem	a	expressa	autorização	da	editora.
Texto	fixado	conforme	as	regras	do	novo	Acordo	Ortográfico	da	Língua	Portuguesa	(Decreto	Legislativo	no	54,	de	1995).
Título	original:	Interpreter	of	Maladies
Editor	responsável:	Ana	Lima	Cecilio
Editores	assistentes:	Erika	Nogueira	Vieira	e	Juliana	de	Araujo	Rodrigues
Editor	digital:	Erick	Santos	Cardoso
Preparação	de	texto:	Maria	Fernanda	Alvares
Revisão:	Rogério	Trentini
Capa:	Adriana	Bertolla
Diagramação:	Jussara	Fino
Imagem	de	capa:	“Gazing	at	the	Moon”,	de	Rani	Jha
cip-brasil.	catalogação	na	publicação
sindicato	nacional	dos	editores	de	livros,	rj
L185i
Lahiri,	Jhumpa
Intérprete	de	males/Jhumpa	Lahiri;
tradução	José	Rubens	Siqueira.
1.	ed.	–	São	Paulo:	Biblioteca	Azul,	2014
209	p.;	21	cm.
Tradução	de:	Interpreter	of	maladies
isbn	978-85-250-5770-9
1.	Conto	inglês.	i.	Siqueira,	José	Rubens.	ii.	Título.
14-13031	cdd:	823
cdu:	821.111-3
Direitos	exclusivos	de	edição	em	língua	portuguesa	para	o	Brasil	adquiridos	por	editora	globo	s.a.
Av.	Jaguaré,	1485
05346-902	São	Paulo-SP
www.globolivros.com.br
Sumário
Capa
Folha	de	rosto
Créditos
Dedicatória
Uma	questão	temporária
Quando	o	senhor	Pirzada	vinha	jantar
Intérprete	de	males
Um	durwan	de	verdade
Sexy
A	senhora	Sen
Esta	casa	abençoada
O	tratamento	de	Bibi	Haldar
O	terceiro	e	último	continente
Notas
Para	meus	pais	e	para	minha	irmã
Uma	questão	temporária
A	 notificação	 informava	 que	 era	 uma	 questão	 temporária:	 por	 cinco	 dias	 a	 eletricidade	 seria	 cortada
durante	uma	hora,	a	partir	das	oito	da	noite.	Uma	linha	caíra	na	última	tempestade	de	neve	e	os	operários
iam	aproveitar	as	noites	mais	brandas	para	arrumá-la.	O	trabalho	afetaria	apenas	as	casas	da	tranquila
rua	arborizada	na	qual	Shoba	e	Shukumar	moravam	havia	três	anos,	de	onde	se	podia	ir	a	pé	até	as	lojas
com	fachada	de	tijolos	e	o	ponto	do	bonde.
—	Bondade	deles	ter	avisado	—	Shoba	admitiu	depois	de	ler	a	notificação	em	voz	alta,	mais	para	si
mesma	 que	 para	 Shukumar.	 Deslizou	 dos	 ombros	 a	 alça	 da	 mochila	 de	 couro,	 recheada	 de	 pastas,	 e
deixou-a	no	corredor	ao	entrar	na	cozinha.	Usava	uma	capa	de	chuva	de	popelina	azul-marinho	por	cima
da	calça	de	moletom	cinza	e	 tênis	branco,	com	a	aparência	do	 tipo	de	mulher	que	um	dia	havia	 jurado
nunca	ser	em	seus	trinta	e	três	anos.
Estava	voltando	da	academia.	O	batom	vermelho-escuro	só	era	visível	no	contorno	externo	da	boca	e	o
delineador	 deixara	 marcas	 escuras	 debaixo	 dos	 cílios	 inferiores.	 Shukumar	 pensou	 que	 ela,	 às	 vezes,
ficava	com	essa	cara	de	manhã	depois	de	uma	festa	ou	de	uma	noite	no	bar,	quando	sentia	preguiça	de
lavar	o	rosto,	louca	para	cair	nos	braços	dele.	Ela	jogou	uma	pilha	de	correspondência	em	cima	da	mesa
sem	nem	olhar.	Ainda	estava	atenta	ao	comunicado	em	sua	outra	mão.
—	Mas	eles	deviam	fazer	isso	durante	o	dia.
—	Quando	eu	estou	em	casa,	você	quer	dizer	—	disse	Shukumar.	Pôs	a	tampa	de	vidro	na	panela	com
o	cordeiro,	ajeitou	para	que	ficasse	saindo	só	um	pouquinho	do	vapor.	Desde	janeiro,	estava	trabalhando
em	casa,	tentando	terminar	os	capítulos	finais	de	sua	dissertação	sobre	as	revoltas	agrárias	da	Índia.	—
Quando	começa	o	conserto?
—	 Diz	 aqui	 que	 em	 dezenove	 de	 março.	 Hoje	 é	 dezenove?	 —	 Shoba	 foi	 até	 o	 painel	 de	 cortiça
pendurado	ao	 lado	da	geladeira,	 sem	nada	além	de	um	calendário	com	padrões	de	papel	de	parede	da
William	Morris.	Olhou	aquilo	como	se	fosse	a	primeira	vez,	estudando	cuidadosamente	o	padrão	do	papel
de	 parede	 da	 parte	 superior	 antes	 de	 baixar	 os	 olhos	 para	 o	 quadriculado	 embaixo.	 Uma	 amiga	 havia
mandado	 por	 correio	 o	 calendário	 como	 presente	 de	 Natal,	 embora	 Shoba	 e	 Shukumar	 não	 tivessem
comemorado	o	Natal	naquele	ano.
—	É	hoje	então	—	Shoba	anunciou.	—	Aliás,	você	tem	dentista	sexta-feira	que	vem.
Ele	 passou	 a	 língua	 pela	 ponta	 dos	 dentes:	 tinha	 esquecido	 de	 escová-los	 de	 manhã.	 Não	 era	 a
primeira	 vez.	Não	 saíra	de	 casa	o	dia	 inteiro,	nem	no	dia	 anterior.	Quanto	mais	Shoba	 ficava	 longe	de
casa,	quanto	mais	horas	extras	pegava	no	trabalho	e	em	projetos	adicionais,	mais	ele	queria	ficar	em	casa,
sem	 sair	 nem	 para	 pegar	 a	 correspondência,	 ou	 comprar	 frutas	 ou	 vinho	 nas	 lojas	 perto	 do	 ponto	 do
bonde.
Seis	meses	antes,	em	setembro,	Shukumar	estava	numa	conferência	acadêmica	em	Baltimore	quando
Shoba	entrou	em	trabalho	de	parto,	três	semanas	antes	da	data.	Ele	não	queria	ir	à	conferência,	mas	ela
insistira;	era	importante	para	fazer	contatos	e	ele	iria	entrar	no	mercado	profissional	no	ano	seguinte.	Ela
dissera	que	tinha	o	telefone	do	hotel,	uma	cópia	dos	horários	dele,	os	números	de	voos,	e	combinara	com
sua	amiga	Gillian	para	levá-la	ao	hospital	no	caso	de	emergência.	Quando	partiu	para	o	aeroporto	naquela
manhã,	Shoba	ficou	dando	adeus	em	seu	roupão,	um	braço	apoiado	no	volume	da	barriga	como	se	fosse
uma	parte	absolutamente	natural	de	seu	corpo.
Toda	vez	que	ele	pensava	nesse	momento,	o	último	momento	em	que	vira	Shoba	grávida,	era	do	táxi
que	mais	se	lembrava,	uma	perua	pintada	de	vermelho	com	letras	brancas.	Era	ampla	comparada	com	seu
carro.	 Embora	 Shukumar	medisse	 um	metro	 e	 oitenta,	 com	mãos	 grandes	 demais	 até	 para	 acomodar
confortavelmente	 nos	 bolsos	 da	 calça	 jeans,	 ele	 se	 sentira	 pequeno	 no	 banco	 de	 trás.	 Enquanto	 o	 táxi
corria	pela	Beacon	Street,	pensara	no	dia	em	que	ele	e	Shoba	talvez	tivessem	de	comprar	uma	perua	para
levar	 os	 filhos	 para	 aulas	 de	 música	 e	 consultas	 no	 dentista.	 Ele	 se	 imaginara	 agarrado	 à	 direção,
enquanto	Shoba	virava	para	 trás	para	distribuir	as	caixinhas	de	 suco	para	as	crianças.	Uma	vez,	essas
imagens	de	paternidade	haviam	perturbado	Shukumar,	 somando-se	à	ansiedade	de	ainda	ser	estudante
aos	trinta	e	cinco	anos.	Mas	naquela	manhã	de	outono,	bem	cedo,	as	árvores	ainda	pesadas	com	folhas	de
bronze,	ele	deu	as	boas-vindas	à	imagem	pela	primeira	vez.
Um	 funcionário	 o	 havia	 encontrado	 de	 algum	 jeito	 entre	 as	 salas	 de	 convenções	 idênticas	 e	 lhe
entregara	um	quadrado	de	papel	cartonado.	Era	apenas	um	número	de	telefone,	mas	Shukumar	sabia	que
era	 do	 hospital.	 Quando	 voltou	 para	 Boston,	 já	 estava	 tudo	 terminado.	 O	 bebê	 nascera	 morto.	 Shoba
estava	deitada,	dormindo,	num	quarto	individual	tão	pequeno	que	mal	havia	espaço	para	ficar	parado	ao
lado	dela,	numa	ala	do	hospital	que	não	haviam	visitado	em	sua	expedição	de	pais	grávidos.	A	placenta
havia	enfraquecido	e	ela	fora	submetida	a	uma	cesariana,	embora	não	com	a	devida	urgência.	O	médico
explicou	 que	 essas	 coisas	 aconteciam.	 Seu	 sorriso	 foi	 o	 mais	 gentil	 possível	 para	 pessoas	 que	 só	 se
conhece	profissionalmente.	Em	poucas	semanas,	Shoba	estava	de	novo	em	atividade.	Nada	indicava	que
não	pudesse	ter	filhos	no	futuro.
Agora,	sempre	que	Shukumar	acordava,	Shoba	já	havia	saído.	Ele	abria	os	olhos,	via	os	longos	fios	de
cabelo	preto	que	ficavam	no	travesseiro	e	pensava	nela,	vestida,	tomando	já	sua	terceira	xícara	de	café	no
escritório	na	cidade,	onde	procurava	erros	tipográficos	em	livros	didáticos,	que	marcava	com	um	código
que	um	dia	explicara	a	ele,	com	uma	coleção	da	lápis	coloridos.	Ela	prometera	que	faria	o	mesmo	com	a
dissertação	dele,	quando	estivesse	pronta.	Ele	invejava	a	especificidade	do	trabalho	dela,	tão	diferente	da
natureza	 difusa	 do	 dele.	 Era	 um	 estudante	medíocre	 que	 tinha	 facilidade	 para	 absorver	 detalhes	 sem
curiosidade.	 Até	 setembro	 tinha	 sido	 diligente,	 se	 não	 dedicado,	 resumindo	 capítulos,	 esboçando
argumentações	em	cadernos	de	papel	amarelo	pautado.	Mas	agora	ficava	deitado	na	cama	até	se	entediar,
olhando	 seu	 ladodo	 armário,	 que	 Shoba	 sempre	 deixava	meio	 aberto,	 a	 fileira	 de	 paletós	 de	 tweed	 e
calças	 de	 veludo	 que	 nem	 precisaria	 escolher	 para	 dar	 suas	 aulas	 neste	 semestre.	 Depois	 que	 o	 bebê
morreu,	era	tarde	demais	para	desistir	de	seu	compromisso	com	as	aulas.	Mas	seu	orientador	arranjou	as
coisas	de	 forma	que	ele	 ficasse	 livre	no	semestre	da	primavera.	Shukumar	estava	no	sexto	ano	de	pós-
graduação.
—	 Isso	e	 o	 verão	 vão	dar	um	bom	 impulso	—	o	orientador	dissera.	—	Até	 setembro	 você	 consegue
fechar	tudo.
Mas	nada	 impulsionava	Shukumar.	Em	vez	disso,	pensava	em	como	ele	e	Shoba	haviam	se	 tornado
peritos	em	evitar	um	ao	outro	na	casa	de	três	quartos,	passando	o	máximo	de	tempo	possível	em	andares
separados.	Pensou	que	não	ficavam	mais	esperando	os	fins	de	semana,	quando	ela	passava	horas	sentada
no	sofá	com	seus	lápis	coloridos	e	pastas,	e	ele	temia	que	botar	uma	música	em	sua	própria	casa	pudesse
ser	rude.	Pensou	quanto	tempo	fazia	que	ela	não	olhava	nos	olhos	dele	e	sorria,	ou	sussurrava	seu	nome
nas	raras	ocasiões	em	que	ainda	buscavam	um	o	corpo	do	outro	antes	de	dormir.
No	começo,	ele	havia	acreditado	que	isso	ia	passar,	que	ele	e	Shoba	iriam	superar	de	alguma	forma.
Ela	estava	com	trinta	e	três	anos	apenas.	Era	forte,	disposta	outra	vez.	Mas	 isso	não	consolava.	Muitas
vezes,	já	era	quase	hora	do	almoço	quando	Shukumar	finalmente	saía	da	cama	e	descia	até	o	bule	de	café
para	tomar	o	resto	que	Shoba	deixara	para	ele,	ao	lado	de	uma	caneca	vazia,	em	cima	da	bancada.
Shukumar	 recolheu	as	cascas	de	cebola	com	a	mão	e	deixou	que	caíssem	na	 lata	de	 lixo,	em	cima	das
fatias	de	gordura	que	havia	tirado	do	carneiro.	Abriu	a	torneira	da	pia,	limpou	a	faca	e	a	tábua	de	cortar,
esfregou	metade	de	um	limão	na	ponta	dos	dedos	para	tirar	o	cheiro	de	alho,	truque	que	havia	aprendido
com	 Shoba.	 Eram	 sete	 e	 meia.	 Pela	 janela,	 via	 o	 céu,	 como	 piche	 negro	 e	 macio.	 Montes	 de	 neve
irregulares	 ainda	 se	 acumulavam	 sobre	 as	 calçadas,	 embora	 estivesse	 suficientemente	 quente	 para	 as
pessoas	saírem	sem	chapéu	nem	luvas.	Na	última	tempestade	caíra	quase	um	metro	de	neve,	de	 forma
que	durante	uma	semana	as	pessoas	tiveram	de	andar	em	fila	indiana,	em	trincheiras	estreitas.	Durante
uma	semana,	essa	foi	a	desculpa	de	Shukumar	para	não	sair	de	casa.	Mas	agora	as	trincheiras	estavam	se
ampliando,	a	água	drenava,	constante,	para	as	grelhas	de	escoamento.
—	O	carneiro	ainda	não	vai	estar	pronto	às	oito	—	disse	Shukumar.	—	Talvez	a	gente	tenha	de	comer
no	escuro.
—	Podemos	acender	velas	—	Shoba	sugeriu.	Ela	soltou	o	cabelo,	preso	na	nuca	durante	o	dia,	e	tirou
os	tênis	sem	desamarrar.	—	Vou	ver	se	tomo	uma	ducha	antes	que	acabe	a	força	—	disse	ela,	indo	para
escada.	—	Desço	logo.
Shukumar	 empurrou	 a	 mochila	 e	 os	 tênis	 para	 longe	 da	 geladeira.	 Ela	 não	 era	 assim	 antes.
Costumava	 pendurar	 o	 casaco	 num	 cabide,	 deixar	 os	 tênis	 no	 armário	 e	 pagar	 as	 contas	 assim	 que
chegavam.	Mas	agora	tratava	a	casa	como	se	fosse	um	hotel.	O	fato	de	a	poltrona	de	chintz	amarela	da
sala	entrar	em	choque	com	o	tapete	turco	azul	e	marrom	não	a	incomodava	mais.	Na	varanda	fechada	dos
fundos	da	casa,	em	cima	de	uma	poltrona	de	vime,	ainda	estava	um	saco	branco	cheio	de	renda	que	ela
um	dia	planejara	transformar	em	cortinas.
Enquanto	Shoba	tomava	banho,	Shukumar	foi	ao	banheiro	do	andar	térreo	e	debaixo	da	pia	encontrou
uma	escova	de	dentes	nova	ainda	na	caixa.	As	cerdas	baratas,	duras,	machucavam	a	gengiva	e	ele	cuspiu
um	pouco	de	sangue	na	pia.	Shoba	comprara	aquela	escova	numa	promoção,	para	o	caso	de	alguma	visita
resolver	passar	a	noite	na	casa	no	último	minuto.
Típico	dela.	Era	do	tipo	que	se	prepara	para	surpresas,	boas	ou	más.	Se	encontrava	uma	saia	ou	uma
bolsa	de	que	gostava,	comprava	duas.	Guardava	os	bônus	de	seu	trabalho	em	outra	conta	bancária	em	seu
nome.	Isso	não	o	incomodava.	A	mãe	dele	havia	despencado	quando	seu	pai	morrera,	abandonando	a	casa
em	que	ele	crescera	e	se	mudando	para	Calcutá,	deixando	Shukumar	sozinho	para	providenciar	tudo.	Ele
gostava	que	Shoba	fosse	diferente.	Ficava	perplexo	com	sua	capacidade	de	se	antecipar.	Quando	ela	fazia
as	 compras,	 a	 despensa	 estava	 sempre	 equipada	 com	 embalagens	 extras	 de	 azeite	 de	 oliva	 e	 óleo	 de
milho,	 dependendo	 da	 comida	 que	 estivessem	 fazendo,	 italiana	 ou	 indiana.	 Havia	 inúmeras	 caixas	 de
massa	de	todas	as	formas	e	cores,	sacos	lacrados	de	arroz	basmati,	cortes	inteiros	de	carneiro	e	cabrito
dos	 açougues	 muçulmanos	 de	 Haymarket,	 congelados	 em	 incontáveis	 sacos	 plásticos.	 Em	 sábados
alternados,	 circulavam	pelo	 labirinto	de	barracas	que	Shukumar	acabou	conhecendo	de	cor.	Ele	 ficava,
sem	 poder	 acreditar,	 vendo-a	 comprar	mais	 comida,	 arrastando	 sacolas	 de	 lona	 ao	 passar	 no	meio	 da
multidão,	 discutindo	 com	 rapazinhos	 jovens	 demais	 para	 se	 barbear,	 mas	 já	 com	 dentes	 faltando,	 que
fechavam	retorcendo	sacos	de	papel	pardo	com	alcachofras,	ameixas,	gengibre	e	inhames,	que	jogavam
na	balança	e	atiravam	para	Shoba,	um	a	um.	Ela	não	se	importava	com	empurrões,	mesmo	quando	estava
grávida.	Era	alta,	de	ombros	largos,	com	quadris	que	sua	obstetra	garantira	serem	feitos	para	parir.	Ao
voltar	de	carro	para	casa,	na	curva	ao	 longo	da	Charles,	 eles	 invariavelmente	 se	deslumbravam	com	a
quantidade	de	comida	que	haviam	comprado.
E	 que	 nunca	 desperdiçavam.	 Quando	 apareciam	 amigos,	 Shoba	 servia	 refeições	 que	 parecia	 ter
levado	dias	para	preparar,	com	coisas	que	ela	havia	congelado	e	embalado,	não	coisas	baratas	de	latas,
mas	 pimentões	 que	 ela	 mesma	 havia	 marinado	 com	 alecrim,	 e	 chutneys	 que	 ela	 fazia	 aos	 domingos,
mexendo	 panelas	 de	 tomates	 e	 ameixas	 secas.	 Seus	 vidros	 de	 boca	 larga	 ocupavam	 as	 prateleiras	 da
cozinha	em	pirâmides	lacradas,	suficientes,	ambos	concordavam,	para	seus	netos	provarem.	Agora	tinham
comido	tudo.	Shukumar	recorrera	ao	suprimento	para	preparar	refeições	para	os	dois,	medindo	xícaras	de
arroz,	descongelando	sacos	de	carne	dia	após	dia.	Ele	espiava	os	livros	de	receitas	dela	todas	as	tardes,
obedecendo	suas	instruções	anotadas	a	lápis	para	usar	duas	colheres	de	coentro	moído	em	vez	de	uma,	ou
lentilha	vermelha	em	vez	de	amarela.	Cada	receita	tinha	sua	data,	revelando	a	primeira	vez	que	tinham
comido	 juntos	 aquele	 prato.	 Dois	 de	 abril,	 couve-flor	 com	 erva-doce.	 Catorze	 de	 janeiro,	 frango	 com
passas	 e	 amêndoas.	 Ele	 não	 se	 lembrava	 de	 ter	 comido	 nenhum	 daqueles	 pratos,	 mas	 lá	 estavam,
registrados	na	linda	letra	de	revisora	de	provas	de	sua	mulher.	Shukumar	agora	gostava	de	cozinhar.	Era
a	única	coisa	que	o	fazia	se	sentir	produtivo.	Sabia	que,	se	não	fosse	ele,	Shoba	era	capaz	de	comer	uma
tigela	de	cereal	no	jantar.
Essa	noite,	sem	luz,	iam	ter	de	jantar	juntos.	Havia	meses	serviam-se	no	fogão,	ele	levava	seu	prato
para	o	estúdio	e	deixava	a	comida	esfriar	em	cima	da	mesa	antes	de	engolir	tudo	sem	pausa,	enquanto
Shoba	levava	seu	prato	para	a	sala	de	estar	e	assistia	a	programas	de	esporte	ou	lia	suas	provas	com	o
arsenal	de	lápis	coloridos	à	mão.
Em	algum	momento	da	noite,	ela	o	visitava.	Quando	ele	a	ouvia	chegando,	deixava	de	lado	o	romance
e	começava	a	digitar	frases.	Ela	pousava	as	mãos	nos	ombros	dele	e	olhava	junto	com	ele	a	luminosidade
azulada	da	tela	do	monitor.	“Não	trabalhe	demais”,	ela	dizia	depois	de	um	ou	dois	minutos,	e	 ia	para	a
cama.	Era	 o	 único	momento	 do	 dia	 em	que	 o	 procurava	 e,	 no	 entanto,	 ele	 passara	 a	 abominar	 aquilo.
Sabia	 que	 era	 uma	 coisa	 que	 ela	 se	 forçava	 a	 fazer.	 Ele	 olhava	 as	 paredes	 do	 estúdio,	 que	 tinham
decorado	juntos	no	verão	anterior,	com	uma	borda	de	patinhos	marchando	e	coelhos	tocando	cornetas	e
tambores.	 No	 final	 de	 agosto,	 havia	 um	 berço	 de	 cerejeira	 debaixo	 da	 janela,	 uma	 cômoda-trocador
branca	 com	 puxadores	 verde-claros	 e	 uma	 cadeira	 de	 balanço	 com	 almofadas	 xadrez.	 Shukumar
desmontara	 tudo	 antes	de	 trazer	Shoba	de	 volta	 do	hospital,raspando	os	 coelhos	 e	 os	patos	 com	uma
espátula.	 Por	 alguma	 razão,	 o	 quarto	 não	 o	 incomodava	 tanto	 como	 incomodava	 Shoba.	 Em	 janeiro,
quando	parou	de	trabalhar	em	seu	cubículo	na	biblioteca,	instalou	a	escrivaninha	ali	deliberadamente,	em
parte	porque	o	quarto	o	acalmava,	em	parte	porque	era	um	lugar	que	Shoba	evitava.
Shukumar	voltou	à	cozinha	e	começou	a	abrir	gavetas.	Tentou	encontrar	uma	vela	no	meio	das	tesouras,
batedores	de	ovos,	espátulas,	pilões	e	uma	mão	de	pilão	que	ela	havia	comprado	num	bazar	em	Calcutá	e
que	usava	para	amassar	dentes	de	alho	e	bagas	de	cardamomo	na	época	em	que	cozinhava.	Encontrou
uma	lanterna,	mas	sem	pilhas,	e	uma	caixa	de	velinhas	de	aniversário	pela	metade.	Shoba	havia	lhe	dado
uma	festa	de	aniversário	surpresa	em	maio	passado.	Cento	e	vinte	pessoas	se	acotovelaram	na	casa,	todos
os	amigos	e	amigos	dos	amigos	que	eles	agora	evitavam	sistematicamente.	Garrafas	de	vinho	verde	numa
cama	de	gelo	na	banheira.	Shoba	no	quinto	mês	de	gravidez,	bebendo	refrigerante	numa	taça	de	martíni.
Ela	havia	feito	um	bolo	de	creme	de	baunilha	com	cobertura	e	açúcar	de	confeiteiro.	A	noite	inteira	ficara
com	os	dedos	entrelaçados	com	os	de	Shukumar,	se	deslocando	entre	os	convidados.
Desde	setembro,	a	única	visita	havia	sido	da	mãe	de	Shoba.	Ela	viera	do	Arizona	e	ficara	dois	meses
com	 eles,	 depois	 que	 Shoba	 voltou	 do	 hospital.	 Fazia	 o	 jantar	 toda	 noite,	 ia	 de	 carro	 sozinha	 ao
supermercado,	lavava	as	roupas	deles,	guardava.	Era	uma	mulher	religiosa.	Instalou	um	altarzinho,	uma
imagem	emoldurada	de	uma	deusa	de	cara	arroxeada	e	um	prato	de	pétalas	de	flor	na	mesa	de	cabeceira
do	 quarto	 de	 hóspedes,	 e	 rezava	 duas	 vezes	 ao	 dia	 por	 netos	 saudáveis	 no	 futuro.	 Ela	 era	 gentil	 com
Shukumar,	 sem	 ser	 amigável.	 Dobrava	 os	 suéteres	 dele	 com	 uma	 habilidade	 que	 aprendera	 em	 seu
trabalho	 numa	 loja	 de	 departamentos.	 Substituiu	 um	 botão	 que	 faltava	 em	 seu	 casaco	 de	 inverno	 e
tricotou	para	ele	um	cachecol	marrom	e	bege,	com	que	o	presenteou	sem	a	menor	cerimônia,	como	se	ele
tivesse	acabado	de	derrubá-lo	no	chão	sem	notar.	Nunca	falava	com	ele	sobre	Shoba;	uma	vez,	quando	ele
mencionou	a	morte	do	bebê,	ela	ergueu	os	olhos	do	tricô	e	disse:
—	Mas	você	nem	estava	lá.
Ele	achou	estranho	não	haver	velas	de	verdade	na	casa.	Que	Shoba	não	 tivesse	 se	preparado	para
uma	ocorrência	tão	simples.	Procurou	então	algo	em	que	fixar	as	velas	de	aniversário	e	escolheu	a	terra
de	 um	 vaso	 de	 hera	 que	 normalmente	 ficava	 no	 peitoril	 da	 janela	 em	 cima	 da	 pia.	 Mesmo	 estando	 a
centímetros	 da	 torneira,	 a	 terra	 estava	 tão	 seca	 que	 ele	 teve	 de	molhá-la	 antes	 para	 espetar	 as	 velas.
Empurrou	 as	 coisas	 da	mesa	 da	 cozinha,	 a	 pilha	 de	 correspondência,	 os	 livros	 da	 biblioteca	 não	 lidos.
Lembrou	da	primeira	refeição	deles	ali,	quando	estavam	tão	felizes	de	estar	casados	e	vivendo	juntos	na
mesma	casa	afinal,	que	simplesmente	se	procuravam	por	qualquer	motivo	bobo,	mais	dispostos	a	 fazer
amor	do	que	comer.	Estendeu	duas	toalhinhas	bordadas,	presente	de	casamento	de	um	tio	de	Lucknow,	e
pôs	os	pratos	e	os	cálices	que	normalmente	guardavam	para	visitas.	Colocou	a	hera	no	meio,	as	folhas	em
forma	de	estrela,	debruadas	de	branco,	engalanadas	com	dez	velinhas.	Ligou	o	rádio-relógio	e	sintonizou
uma	estação	de	jazz.
—	 O	 que	 é	 tudo	 isso?	 —	 Shoba	 perguntou	 ao	 descer.	 Estava	 com	 o	 cabelo	 enrolado	 numa	 toalha
branca	grossa.	Desenrolou	a	toalha	e	pendurou	no	encosto	de	uma	cadeira,	deixando	o	cabelo	molhado	e
escuro	 cair	pelas	 costas.	Ao	 caminhar	distraída	para	o	 fogão,	 desembaraçou	alguns	nós	 com	os	dedos.
Estava	com	uma	calça	de	moletom	limpa,	camiseta,	um	velho	roupão	de	flanela.	A	barriga	lisa	outra	vez,	a
cintura	fina	acima	da	expansão	dos	quadris,	o	cinto	do	roupão	amarrado	num	nó	frouxo.
Eram	quase	oito	horas.	Shukumar	pôs	o	arroz	na	mesa	e	a	lentilha	da	noite	anterior	no	micro-ondas,
apertando	os	números	do	painel.
—	Você	 fez	 rogan	 josh	—	Shoba	observou,	 olhando	através	da	 tampa	de	 vidro	o	 colorido	 cozido	de
páprica.
Shukumar	 tirou	 um	 pedaço	 do	 carneiro,	 beliscou	 depressa	 entre	 os	 dedos	 para	 não	 se	 queimar.
Cutucou	um	pedaço	maior	com	a	colher	de	servir	para	ter	certeza	de	que	a	carne	estava	soltando	fácil	do
osso.
—	Está	pronta	—	anunciou.
O	micro-ondas	apitou	bem	no	momento	em	que	as	luzes	se	apagaram	e	a	música	sumiu.
—	Timing	perfeito	—	disse	Shoba.
—	Só	 encontrei	 velinhas	 de	 aniversário.	—	Ele	 acendeu	 a	 hera,	mantendo	 o	 resto	 das	 velas	 e	 uma
caixa	de	fósforos	ao	lado	do	prato.
—	Não	tem	importância	—	ela	disse,	deslizando	o	dedo	pela	haste	do	cálice	de	vinho.	—	Ficou	lindo.
No	escuro,	ele	sabia	como	ela	se	sentava,	um	pouco	para	a	frente	na	cadeira,	os	tornozelos	cruzados
na	 travessa	mais	baixa	da	cadeira,	o	cotovelo	esquerdo	apoiado	na	mesa.	Durante	a	procura	das	velas,
Shukumar	havia	encontrado	uma	garrafa	de	vinho	num	engradado	que	achava	estar	vazio.	Ele	prendeu	a
garrafa	entre	os	joelhos	enquanto	girava	o	saca-rolhas.	Preocupado	em	não	derramar,	pegou	os	cálices	e
segurou-os	bem	perto	enquanto	vertia	o	vinho.	Serviram-se,	mexendo	o	arroz	com	seus	garfos,	olhando
com	atenção	para	remover	folhas	de	louro	e	cravos	do	cozido.	A	cada	poucos	minutos,	Shukumar	acendia
mais	velinhas	e	as	espetava	na	terra	do	vaso.
—	É	como	na	Índia	—	disse	Shoba,	observando	enquanto	ele	arrumava	o	candelabro	improvisado.	—
Às	vezes,	a	força	acabava	durante	horas.	Uma	vez,	tive	de	participar	de	uma	cerimônia	do	arroz	inteirinha
no	escuro.	O	bebê	chorava	e	chorava.	Devia	estar	com	muito	calor.
O	bebê	deles	nunca	havia	chorado,	Shukumar	pensou.	O	bebê	deles	nunca	 teria	uma	cerimônia	do
arroz,	muito	embora	Shoba	já	tivesse	feito	uma	lista	de	convidados	e	resolvido	a	qual	de	seus	três	irmãos
ia	pedir	 para	dar	 ao	bebê	a	primeira	 comida	 sólida,	 aos	 seis	meses	 se	 fosse	menino,	 aos	 sete	 se	 fosse
menina.
—	Está	com	calor?	—	ele	perguntou.	Empurrou	o	vaso	de	hera	iluminado	para	a	outra	ponta	da	mesa,
mais	perto	da	pilha	de	livros	e	da	correspondência,	dificultando	ainda	mais	para	eles	se	enxergarem.	De
repente,	ele	ficou	irritado	por	não	poder	subir	e	sentar	na	frente	do	computador.
—	Não.	Isto	aqui	está	uma	delícia	—	ela	falou,	batendo	no	prato	com	o	garfo.	—	Bom	mesmo.
Ele	completou	o	vinho	do	cálice	dela.	Ela	agradeceu.
Não	 eram	 assim	 antes.	 Agora,	 ele	 tinha	 de	 fazer	 um	 esforço	 para	 dizer	 alguma	 coisa	 que	 a
interessasse,	alguma	coisa	que	a	fizesse	erguer	os	olhos	do	prato,	ou	de	suas	provas	de	texto.	Ele	acabou
desistindo	de	diverti-la.	Aprendera	a	não	se	importar	com	os	silêncios	dela.
—	Lembro	que,	durante	as	falhas	de	energia	na	casa	da	minha	avó,	todo	mundo	tinha	de	dizer	alguma
coisa	—	Shoba	continuou.	Ele	mal	conseguiu	ver	o	rosto	dela,	mas	pelo	tom	sabia	que	ela	estava	com	os
olhos	semicerrados,	como	se	tentasse	focalizar	um	objeto	distante.	Era	um	costume	dela.
—	Como	o	quê?
—	Não	sei.	Um	poeminha.	Uma	piada.	Um	acontecimento	do	mundo.	Por	alguma	razão,	meus	parentes
sempre	queriam	que	eu	contasse	o	nome	dos	meus	amigos	da	América.	Não	sei	por	que	essa	informação
era	tão	interessante	para	eles.	Da	última	vez	que	vi	minha	tia,	ela	me	perguntou	de	quatro	meninas	que
tinham	ido	à	escola	comigo	em	Tucson.	Mal	me	lembro	delas	agora.
Shukumar	não	tinha	passado	tanto	tempo	na	Índia	como	Shoba.	Os	pais	dele,	que	se	instalaram	em
New	Hampshire,	costumavam	voltar	para	lá	sem	ele.	A	primeira	vez	que	voltou,	em	criança,	quase	morreu
de	 disenteria	 amebiana.	 Seu	 pai,	 um	 tipo	 nervoso,	 ficou	 com	 medo	 de	 levá-lo	 de	 novo,	 no	 caso	 de
acontecer	alguma	coisa,	e	o	deixava	com	a	tia	e	o	tio	em	Concord.	Na	adolescência,	ele	preferia	velejar
em	acampamentos	ou	tomar	sorvete	durante	o	verão	a	ir	para	Calcutá.	Só	depois	da	morte	do	pai,	quando
estava	no	último	ano	da	faculdade,	foi	que	começou	a	se	interessar	pelo	país	e	estudou	sua	história	nos
livros	 do	 curso	 como	 se	 fosse	 outra	 matéria	 do	 currículo.	 Agora,ele	 gostaria	 de	 ter	 tido	 sua	 própria
história	de	infância	na	Índia.
—	Vamos	fazer	isso	—	ela	disse,	de	repente.
—	Fazer	o	quê?
—	Falar	alguma	coisa	um	para	o	outro,	no	escuro.
—	Como	o	quê?	Não	sei	nenhuma	piada.
—	Não,	piada	não.	—	Ela	pensou	um	momento.	—	Que	tal	a	gente	contar	uma	coisa	que	nunca	contou
para	o	outro?
—	Eu	brincava	disso	na	escola	—	Shukumar	lembrou.	—	Quando	ficava	bêbado.
—	Você	está	pensando	no	jogo	da	verdade.	Isto	é	diferente.	Tudo	bem,	eu	começo.	—	Ela	tomou	um
gole	de	vinho.	—	A	primeira	vez	que	fiquei	sozinha	no	seu	apartamento,	olhei	sua	agenda	de	endereços
para	ver	se	eu	estava	nele.	Acho	que	a	gente	se	conhecia	fazia	duas	semanas.
—	Onde	eu	estava?
—	Você	tinha	ido	atender	o	telefone	na	outra	sala.	Era	sua	mãe	e	eu	percebi	que	ia	ser	uma	ligação
demorada.	Queria	saber	se	você	tinha	me	promovido	da	margem	do	seu	jornal.
—	Eu	tinha?
—	Não.	Mas	não	desisti	de	você.	Agora	é	sua	vez.
Ele	 não	 conseguiu	 pensar	 em	 nada,	 mas	 Shoba	 ficou	 esperando	 que	 falasse.	 Ela	 não	 parecia	 tão
determinada	 havia	meses.	 O	 que	mais	 tinha	 para	 dizer	 a	 ela?	 Ele	 pensou	 no	 primeiro	 encontro	 deles,
quatro	 anos	 antes,	 no	 salão	 de	 palestras	 em	 Cambridge,	 onde	 um	 grupo	 de	 poetas	 bengaleses	 estava
dando	 um	 recital.	 Acabaram	 lado	 a	 lado	 em	 cadeiras	 desmontáveis	 de	 madeira.	 Shukumar	 logo	 se
entediou;	não	decifrava	a	dicção	literária	e	não	conseguia	acompanhar	o	resto	da	plateia,	que	suspirava	e
balançava	 a	 cabeça	 solenemente	 em	 certas	 frases.	 Espiando	 o	 jornal	 dobrado	 em	 seu	 colo,	 estudou	 as
temperaturas	de	cidades	do	mundo	todo.	Trinta	e	 três	graus	em	Cingapura	ontem,	onze	em	Estocolmo.
Quando	 virou	 a	 cabeça	 para	 a	 esquerda,	 viu	 uma	mulher	 a	 seu	 lado	 fazendo	 uma	 lista	 de	 compras	 no
verso	de	um	folheto	e	ficou	pasmo	ao	descobrir	que	era	linda.
—	Tudo	bem	—	ele	disse,	 lembrando.	—	A	primeira	vez	que	nós	saímos	para	 jantar,	no	restaurante
português,	 eu	 esqueci	 de	 dar	 gorjeta	 para	 o	 garçom.	Voltei	 na	manhã	 seguinte,	 descobri	 o	 nome	dele,
deixei	o	dinheiro	com	o	gerente.
—	Você	voltou	até	Somerville	só	para	dar	gorjeta	para	o	garçom?
—	Peguei	um	táxi.
—	Por	que	você	esqueceu	da	gorjeta?
As	velinhas	de	aniversário	tinham	se	apagado,	mas	ele	percebia	o	rosto	dela	claramente	no	escuro,	os
grandes	olhos	fundos,	os	lábios	cheios	cor	de	uva,	a	queda	da	cadeirinha	alta	aos	dois	anos	ainda	visível
numa	vírgula	em	seu	queixo.	Shukumar	notava,	todos	os	dias,	que	a	beleza	dela,	que	um	dia	o	fascinara,
parecia	fenecer.	Os	cosméticos	que	antes	pareciam	supérfluos	eram	necessários	agora,	não	para	melhorá-
la,	mas	para	defini-la	de	certa	forma.
—	 No	 fim	 do	 jantar,	 eu	 tive	 uma	 estranha	 sensação	 de	 que	 podia	 casar	 com	 você	 —	 ele	 disse,
admitindo	o	fato	para	si	mesmo,	tanto	quanto	para	ela,	pela	primeira	vez.	—	Isso	deve	ter	me	distraído.
Na	noite	seguinte,	Shoba	voltou	para	casa	mais	cedo	que	o	normal.	Havia	um	resto	de	carneiro	da	noite
anterior,	que	Shukumar	aqueceu,	de	 forma	que	conseguiram	comer	por	volta	das	 sete	horas.	Ele	havia
saído	esse	dia,	pela	neve	derretendo,	e	comprado	na	loja	da	esquina	um	pacote	de	velas	e	pilhas	para	a
lanterna.	Estava	com	as	velas	prontas	na	bancada,	presas	em	suportes	de	latão	em	forma	de	lótus,	mas
comeram	sob	a	luz	do	lustre	de	cobre	pendurado	no	teto	sobre	a	mesa.
Quando	terminaram,	Shukumar	se	surpreendeu	ao	ver	Shoba	pôr	seu	prato	em	cima	do	dele	e	levar
os	dois	para	a	pia.	Ele	achara	que	ela	ia	se	retirar	para	a	sala,	para	trás	da	sua	barricada	de	pastas.
—	Não	se	preocupe	com	os	pratos	—	ele	disse,	pegando-os	da	mão	dela.
—	Parece	bobagem	não	 lavar	—	ela	 respondeu,	pingando	detergente	na	esponja.	—	São	quase	oito
horas.
O	coração	dele	bateu	mais	rápido.	O	dia	inteiro	Shukumar	aguardara	o	momento	em	que	as	luzes	se
apagassem.	Pensou	no	que	Shoba	havia	dito	na	noite	anterior,	sobre	olhar	sua	agenda	de	endereços.	Era
gostoso	 lembrar	 dela	 como	 tinha	 sido	 naquela	 época,	 como	 tinha	 sido	 ousada	mesmo	 que	 nervosa	 no
primeiro	 encontro,	 tão	 cheia	 de	 esperança.	 Ficaram	 lado	 a	 lado	 diante	 da	 pia,	 as	 lembranças	 se
encaixando	 na	moldura	 da	 janela.	 Sentiu-se	 intimidado,	 como	 se	 sentira	 da	 primeira	 vez	 que	 pararam
juntos	diante	de	um	espelho.	Não	conseguia	lembrar	a	última	vez	que	tinham	sido	fotografados.	Tinham
parado	de	ir	a	festas,	não	iam	juntos	a	lugar	nenhum.	O	filme	que	estava	na	câmera	ainda	continha	fotos
de	Shoba	no	quintal,	grávida.
Ao	terminarem	os	pratos,	se	encostaram	no	balcão,	enxugando	as	mãos	um	em	cada	ponta	da	toalha.
Às	 oito	 horas,	 a	 casa	 ficou	 escura.	 Shukumar	 acendeu	 as	 velas,	 impressionado	 com	 as	 chamas	 longas,
firmes.
—	Vamos	lá	para	fora	—	Shoba	disse.	—	Acho	que	ainda	está	quente.
Cada	um	levou	uma	vela	e	se	sentaram	nos	degraus.	Parecia	estranho	sentar-se	 lá	 fora	com	o	chão
ainda	 coberto	 por	 manchas	 de	 neve.	 Mas	 estava	 todo	 mundo	 fora	 de	 casa	 essa	 noite,	 o	 ar	 fresco	 o
bastante	para	deixar	as	pessoas	 inquietas.	Portas	de	correr	abriam	e	 fechavam.	Um	pequeno	desfile	de
vizinhos	passou	com	lanternas.
—	Vamos	até	a	livraria	dar	uma	olhada	—	disse	o	homem	de	cabelo	grisalho.	Estava	andando	ao	lado
da	 esposa,	 uma	 mulher	 magra	 de	 casaco	 quebra-vento,	 levando	 um	 cachorro	 pela	 coleira.	 Eram	 os
Bradford	 e	 tinham	 deixado	 um	 cartão	 de	 condolências	 na	 caixa	 de	 correio	 de	 Shoba	 e	 Shukumar	 em
setembro.	—	Ouvi	dizer	que	eles	têm	gerador.
—	Melhor	mesmo	—	disse	Shukumar	—,	senão	vocês	vão	olhar	no	escuro.
A	mulher	riu,	deslizando	o	braço	na	curva	do	cotovelo	do	marido.
—	Vamos	com	a	gente?
—	 Não,	 obrigado	 —	 Shoba	 e	 Shukumar	 disseram	 juntos.	 Ele	 se	 surpreendeu	 de	 suas	 palavras
coincidirem	com	as	dela.
Perguntou-se	o	que	Shoba	iria	lhe	dizer	no	escuro.	As	piores	possibilidades	já	haviam	lhe	passado	pela
cabeça.	Que	ela	tinha	um	caso.	Que	não	o	respeitava	por	ter	 trinta	e	cinco	anos	e	ainda	ser	estudante.
Que	o	culpava	por	estar	em	Baltimore,	como	a	mãe	dela	culpava.	Mas	ele	sabia	que	essas	coisas	não	eram
verdade.	Ela	era	tão	fiel	quanto	ele.	Acreditava	nele.	Ela	é	que	havia	insistido	que	fosse	para	Baltimore.	O
que	eles	não	sabiam	a	respeito	um	do	outro?	Ele	sabia	que	ela	cerrava	os	dedos	quando	dormia,	que	seu
corpo	 se	 retorcia	 durante	 os	 pesadelos.	 Ele	 sabia	 que	 ela	 gostava	 mais	 de	 melão	 honeydew	 que	 de
cantalupe.	Sabia	que	quando	voltaram	do	hospital	a	primeira	coisa	que	ela	fez	ao	entrar	na	casa	foi	pegar
objetos	deles	e	jogar	numa	pilha	no	corredor:	livros	das	estantes,	plantas	do	peitoril	das	janelas,	quadros
das	paredes,	porta-retratos	das	mesas,	panelas	e	caçarolas	que	ficavam	penduradas	em	ganchos	acima	do
fogão.	Shukumar	tinha	se	afastado,	observando	enquanto	ela	se	movimentava	metodicamente	de	sala	em
sala.	 Quando	 se	 satisfez,	 parou	 para	 olhar	 a	 pilha	 que	 havia	 feito,	 os	 lábios	 distendidos	 com	 tamanho
desagrado	que	Shukumar	achou	que	ela	ia	cuspir.	Então,	ela	começou	a	chorar.
Ele	 estava	 começando	 a	 sentir	 frio	 ali	 na	 escada.	 Sentia	 que	 ela	 precisava	 falar	 primeiro	 para	 ele
responder.
—	Aquela	vez	que	sua	mãe	veio	visitar	a	gente	—	ela	disse,	finalmente.	—	Uma	noite,	eu	falei	que	ia
trabalhar	até	tarde,	mas	saí	com	a	Gillian	e	tomei	um	martíni.
Ele	olhou	seu	perfil,	o	nariz	 fino,	a	posição	 ligeiramente	masculina	do	queixo.	Lembrava	bem	dessa
noite;	jantar	com	sua	mãe,	cansado	por	dar	duas	aulas	seguidas,	querendo	que	Shoba	estivesse	em	casa
para	dizer	as	coisas	certas	porque	ele	só	conseguia	dizer	as	coisas	erradas.	Fazia	doze	anos	que	seu	pai
tinha	morrido	e	a	mãe	passara	duas	semanas	com	ele	e	Shoba	para	que	pudessem	homenagear	juntos	a
memória	do	pai.	Toda	noite	a	mãe	preparava	alguma	comida	de	que	o	pai	dele	gostava,	mas	ficava	muito
aflita	para	comer	o	que	tinha	feito	e	seus	olhos	se	enchiam	de	lágrimas	quando	Shoba	acariciava	sua	mão.
—	É	tão	tocante	—	Shoba	tinha	dito	a	ele	naquele	momento.	Ele	agora	imaginava	Shoba	com	Gillian
num	bar	comsofás	de	veludo	 listrado,	aquele	a	que	costumavam	 ir	depois	do	cinema,	cuidando	para	o
drink	 ter	 uma	 azeitona	 a	 mais,	 pedindo	 um	 cigarro	 a	 Gillian.	 Ele	 a	 imaginava	 reclamando	 e	 Gillian
consolando	a	respeito	das	visitas	de	parentes.	Gillian	é	que	tinha	levado	Shoba	ao	hospital.
—	Sua	vez	—	ela	disse,	interrompendo	os	pensamentos	dele.
No	fim	da	rua,	ouviram	ruído	de	furadeira	e	os	eletricistas	gritando	por	cima.	Ele	olhou	as	fachadas
escuras	das	casas	ao	longo	da	rua.	Na	janela	de	uma	delas	brilhavam	velas.	Apesar	do	calor,	subia	fumaça
da	chaminé.
—	 Eu	 colei	 no	 meu	 exame	 de	 civilização	 oriental	 na	 faculdade	 —	 ele	 disse.	 —	 Era	 meu	 último
semestre,	minha	última	bateria	de	exames.	Meu	pai	tinha	morrido	poucos	meses	antes.	Dava	para	ver	o
caderno	azul	do	cara	ao	meu	 lado.	Era	um	americano,	um	maníaco.	Ele	sabia	urdu	e	sânscrito.	Eu	não
conseguia	lembrar	se	o	verso	que	tinha	de	identificar	era	exemplo	de	gazal	ou	não.	Olhei	a	resposta	dele	e
copiei.
Isso	acontecera	mais	de	quinze	anos	antes.	Ele	se	sentiu	aliviado	naquele	momento,	contando	para
ela.
Ela	se	voltou	para	ele,	sem	olhar	seu	rosto,	mas	seus	sapatos:	os	velhos	mocassins	que	ele	usava	como
chinelos,	 o	 couro	da	parte	de	 trás	 achatado	permanentemente.	Ele	 se	perguntou	 se	 ela	 se	 incomodava
com	o	que	acabara	de	dizer.	Ela	pegou	a	mão	dele	e	apertou.
—	Não	precisava	me	contar	por	que	fez	isso	—	disse,	chegando	mais	para	perto	dele.
Ficaram	sentados	ali,	juntos,	até	as	nove	da	noite,	quando	a	luz	voltou.	Ouviram	pessoas	aplaudirem
na	varanda	do	outro	lado	da	rua	e	começarem	a	ligar	televisões.	Os	Bradford	voltaram	pela	rua,	tomando
sorvete	de	casquinha,	e	acenaram.	Shoba	e	Shukumar	acenaram	de	volta.	Depois	se	 levantaram,	a	mão
dele	ainda	na	dela,	e	entraram	em	casa.
De	 alguma	 forma,	 sem	 dizer	 nada,	 tinha	 se	 transformado	 naquilo.	 Numa	 troca	 de	 confissões	 —	 as
miudezas	 com	 que	 haviam	 magoado	 ou	 decepcionado	 um	 ao	 outro	 e	 a	 si	 mesmos.	 No	 dia	 seguinte,
Shukumar	passou	horas	pensando	no	que	dizer	a	ela.	Estava	dividido	entre	admitir	que	uma	vez	havia
arrancado	a	foto	de	uma	mulher	de	uma	das	revistas	de	moda	que	ela	costumava	assinar	e	levado	dentro
de	seus	livros	durante	uma	semana,	ou	contar	que	não	tinha	realmente	perdido	o	colete	que	ela	comprara
para	ele	como	presente	de	terceiro	aniversário	de	casamento,	mas	sim	trocado	por	dinheiro	na	Filene	e	se
embebedado	 sozinho	 no	meio	 do	 dia	 num	 bar	 de	 hotel.	 No	 primeiro	 aniversário	 de	 casamento,	 Shoba
havia	preparado	um	jantar	de	dez	pratos	só	para	ele.	O	colete	o	deprimia.
—	Minha	 esposa	 me	 deu	 um	 colete	 de	 presente	 de	 aniversário	 de	 casamento	 —	 reclamou	 com	 o
barman,	a	cabeça	pesada	de	conhaque.
—	O	que	você	esperava?	—	respondeu	o	barman.	—	Você	é	casado.
Quanto	à	foto	da	mulher,	ele	não	sabia	por	que	a	havia	pegado.	Ela	não	era	tão	bonita	como	Shoba.
Usava	um	vestido	branco	com	lantejoulas	e	tinha	o	rosto	amuado	e	magro,	pernas	masculinizadas.	Estava
com	os	braços	nus	 erguidos,	 os	 punhos	 fechados	dos	 lados	da	 cabeça,	 como	 se	 fosse	dar	 um	 soco	nas
próprias	 orelhas.	 Era	 uma	 propaganda	 de	meias.	 Shoba	 estava	 grávida	 na	 época,	 a	 barriga	 imensa	 de
repente,	 a	 ponto	 de	 Shukumar	 não	 querer	 mais	 tocá-la.	 Quando	 viu	 a	 foto	 pela	 primeira	 vez,	 estava
deitado	 na	 cama	 ao	 lado	 dela,	 olhando	 enquanto	 ela	 lia.	 Quando	 viu	 a	 revista	 na	 pilha	 de	 recicláveis,
encontrou	a	mulher	e	arrancou	a	página	com	o	máximo	cuidado.	Durante	uma	semana	se	permitiu	dar
uma	olhada	por	dia.	Sentia	um	intenso	desejo	pela	mulher,	mas	era	um	desejo	que	se	transformava	em
desagrado	depois	de	um	ou	dois	minutos.	Foi	o	mais	perto	que	chegou	da	infidelidade.
Na	terceira	noite,	contou	a	Shoba	sobre	o	colete;	na	quarta,	sobre	a	foto.	Ela	não	disse	nada	quando
ele	 falou,	 não	 expressou	 nem	 protesto	 nem	 censura.	 Simplesmente	 ouviu,	 depois	 pegou	 a	mão	 dele	 e
apertou	como	tinha	feito	antes.	Na	terceira	noite,	ela	contou	que	uma	vez,	depois	de	uma	palestra	a	que
assistiram,	ela	deixara	 que	 ele	 conversasse	 com	o	diretor	 de	 seu	departamento	 sem	contar	 que	 estava
com	 o	 queixo	 sujo	 de	 patê.	 Ficara	 irritada	 com	 ele	 por	 alguma	 razão,	 então	 deixara	 que	 continuasse
falando	e	falando	para	garantir	sua	bolsa	para	o	semestre	seguinte,	sem	pôr	um	dedo	no	próprio	queixo
como	sinal.	Na	quarta	noite,	ela	disse	que	não	gostava	do	único	poema	que	ele	havia	publicado	na	vida,
em	uma	revista	literária	de	Utah.	Ele	escrevera	o	poema	depois	de	conhecer	Shoba.	Ela	acrescentou	que
achava	o	poema	sentimental.
Alguma	coisa	acontecia	quando	a	casa	ficava	escura.	Os	dois	conseguiam	conversar	um	com	o	outro
de	 novo.	 Na	 terceira	 noite,	 depois	 do	 jantar,	 eles	 se	 sentaram	 juntos	 no	 sofá	 e	 quando	 escureceu	 ele
começou	a	beijá-la,	desajeitado,	na	testa	e	no	rosto,	e	embora	estivesse	escuro	fechou	os	olhos	e	sabia	que
ela	 tinha	 fechado	 também.	 Na	 quarta	 noite,	 subiram	 cuidadosamente	 a	 escada,	 até	 a	 cama,	 tateando
juntos	 com	 os	 pés	 no	 último	 degrau	 antes	 do	 patamar	 e	 fazendo	 amor	 com	um	desespero	 que	 tinham
esquecido.	Ela	chorou	sem	som	e	sussurrou	o	nome	dele,	e	contornou	as	sobrancelhas	dele	com	o	dedo	no
escuro.	Enquanto	fazia	amor	com	ela,	ele	se	perguntava	o	que	iria	dizer	a	ela	na	noite	seguinte,	e	o	que
ela	diria,	e	a	ideia	o	excitou.
—	Me	abrace	—	ela	disse	—,	me	abrace	apertado.
Quando	as	luzes	voltaram	a	se	acender	no	andar	de	baixo,	eles	estavam	dormindo.
Na	 manhã	 da	 quinta	 noite,	 Shukumar	 encontrou	 na	 caixa	 de	 correspondência	 outro	 comunicado	 da
companhia	de	eletricidade.	A	 linha	 estava	 consertada	 antes	 do	 prazo,	 dizia.	 Ficou	decepcionado.	 Tinha
planejado	 fazer	 malai	 de	 camarão	 para	 Shoba,	 mas	 quando	 chegou	 ao	 mercadinho	 não	 sentia	 mais
vontade	 de	 cozinhar.	 Não	 era	 a	 mesma	 coisa,	 pensou,	 saber	 que	 as	 luzes	 não	 iam	 se	 apagar.	 No
mercadinho,	 o	 camarão	 parecia	 cinzento	 e	 magro.	 O	 leite	 de	 coco	 estava	 empoeirado	 e	 com	 preço
excessivo.	Mesmo	assim,	comprou	tudo,	mais	uma	vela	de	cera	de	abelhas	e	duas	garrafas	de	vinho.
Ela	voltou	para	casa	às	sete	e	meia.
—	Acho	que	é	o	fim	do	nosso	jogo	—	disse,	quando	a	viu	lendo	o	comunicado.
Ela	olhou	para	ele.
—	Ainda	pode	acender	as	velas	se	quiser.
Ela	não	tinha	ido	à	academia	essa	noite.	Estava	com	um	tailleur	debaixo	da	capa.	A	maquiagem	tinha
sido	retocada	recentemente.
Quando	ela	subiu	para	trocar	de	roupa,	Shukumar	se	serviu	de	vinho	e	pôs	um	disco,	um	álbum	de
Thelonious	Monk	que	sabia	que	ela	gostava.
Quando	ela	desceu,	jantaram	juntos.	Ela	não	agradeceu	nem	fez	nenhum	elogio	a	ele.	Simplesmente
comeram	na	sala	escurecida,	à	luz	das	velas	de	cera.	Tinham	sobrevivido	a	um	momento	difícil.	Acabaram
com	o	camarão.	Acabaram	com	a	primeira	garrafa	de	vinho	e	partiram	para	a	segunda.	Ficaram	sentados
até	a	vela	ter	queimado	quase	 inteira.	Ela	se	mexeu	na	cadeira	e	Shukumar	achou	que	 ia	dizer	alguma
coisa.	Em	vez	disso,	ela	soprou	a	vela,	levantou-se,	acendeu	a	luz	e	sentou-se	de	novo.
—	Não	era	melhor	deixar	a	luz	apagada?	—	Shukumar	perguntou.
Ela	empurrou	o	prato	e	pôs	as	mãos	abertas	sobre	a	mesa.
—	Quero	que	você	veja	o	meu	rosto	quando	eu	te	disser	o	que	vou	dizer	—	falou,	delicadamente.
O	coração	dele	começou	a	bater	forte.	No	dia	em	que	ela	lhe	dissera	que	estava	grávida,	tinha	usado
as	mesmas	palavras,	pronunciadas	no	mesmo	tom	suave,	depois	de	desligar	o	jogo	de	basquete	a	que	ele
estava	assistindo	na	televisão.	Ele	não	estava	preparado	na	época.	Agora	estava.
Só	que	ele	não	queria	que	ela	estivesse	grávida	de	novo.	Não	queria	ter	de	fingir	que	estava	contente.
—	Andei	procurando	apartamento	e	encontrei	um	—	disse	ela,	apertando	os	olhos	aparentemente	para
olhar	alguma	coisa	atrás	do	ombro	esquerdo	dele.	A	culpa	não	era	de	ninguém,	ela	continuou.	Tinham
passado	por	muita	coisa.	Ela	precisava	de	algum	tempo	sozinha.	Tinha	economizado	dinheiro	numa	conta
de	poupança.	O	apartamento	ficava	emBeacon	Hill,	de	forma	que	podia	ir	a	pé	para	o	trabalho.	Ela	havia
assinado	o	contrato	essa	noite,	antes	de	voltar	para	casa.
Não	 conseguia	olhar	para	ele,	mas	ele	 olhava	para	 ela.	Era	evidente	que	ela	havia	 ensaiado	o	que
dizer.	O	tempo	todo,	 tinha	procurado	apartamento,	experimentando	a	pressão	da	água,	perguntando	ao
corretor	 se	 o	 aquecimento	 e	 a	 água	 quente	 estavam	 incluídos	 no	 aluguel.	 Shukumar	 sentia	 enjoo	 ao
pensar	que	ela	havia	passado	as	noites	anteriores	se	preparando	para	uma	vida	sem	ele.	Ficava	aliviado,
mas	ao	mesmo	tempo	enjoado.	Era	isso	que	ela	vinha	tentando	lhe	dizer	nas	últimas	quatro	noites.	Era	o
motivo	do	jogo	dela.
Agora	era	a	vez	dele	falar.	Havia	algo	que	ele	jurara	nunca	dizer	a	ela	e	durante	seis	meses	tinha	feito
o	possível	para	tirar	aquilo	da	cabeça.	Antes	do	ultrassom,	ela	havia	pedido	ao	médico	para	não	contar	o
sexo	do	bebê,	e	Shukumar	havia	concordado.	Ela	queria	que	fosse	surpresa.
Mais	 tarde,	 naquelas	 poucas	 vezes	 em	 que	 conversaram	 sobre	 o	 que	 acontecera,	 ela	 disse	 que	 ao
menos	 haviam	 sido	 poupados	 dessa	 informação.	 De	 certa	 forma,	 ela	 ficava	 quase	 orgulhosa	 de	 sua
decisão,	pois	permitia	que	se	refugiasse	num	mistério.	Ele	sabia	que	ela	achava	ser	um	mistério	para	ele
também.	Ele	havia	 chegado	de	Baltimore	 tarde	demais	—	quando	 já	 estava	 tudo	acabado	e	 ela	dormia
numa	cama	de	hospital.	Mas	não	era	assim.	Ele	chegara	a	 tempo	de	ver	o	bebê	e	segurá-lo	nos	braços
antes	que	fosse	cremado.	De	início,	ele	recuara	diante	da	sugestão,	mas	o	médico	dissera	que	segurar	o
bebê	podia	ajudá-lo	no	processo	do	luto.	Shoba	estava	dormindo.	O	bebê	tinha	sido	limpo,	as	pálpebras
bulbosas	fechadas	para	o	mundo.
—	Nosso	bebê	era	um	menino	—	ele	disse.	—	A	pele	dele	era	mais	vermelha	que	marrom.	Tinha	cabelo
preto.	Pesava	quase	três	quilos.	A	mão	estava	fechada,	como	a	sua	durante	a	noite.
Shoba	olhou	para	ele	então,	o	rosto	contraído	de	tristeza.	Ele	tinha	colado	num	exame	da	faculdade,
tinha	arrancado	a	 foto	de	uma	mulher	de	uma	revista.	Tinha	 trocado	um	colete	e	 ficado	bêbado	com	o
dinheiro	no	meio	do	dia.	Essas	coisas	é	que	havia	contado	para	ela.	Ele	tinha	carregado	seu	filho,	que	só
conhecera	a	vida	dentro	dela,	tinha	apertado	o	bebê	ao	peito	numa	sala	escura	de	uma	ala	desconhecida
de	um	hospital.	Tinha	ficado	com	ele	nos	braços	até	uma	enfermeira	bater	na	porta	e	levá-lo	embora,	e
prometera	a	si	mesmo	naquele	dia	nunca	contar	a	Shoba,	porque	ele	ainda	a	amava	então	e	era	a	única
coisa	na	vida	que	ela	quisera	que	fosse	uma	surpresa.
Shukumar	se	levantou	e	pôs	seu	prato	em	cima	do	dela.	Levou	os	pratos	para	a	pia,	mas,	em	vez	de
abrir	a	torneira,	olhou	pela	janela.	Lá	fora,	a	noite	ainda	estava	quente	e	os	Bradford	passavam	de	braços
dados.	Enquanto	ele	olhava	o	casal,	a	sala	 ficou	escura	e	ele	se	voltou.	Shoba	havia	apagado	a	 luz.	Ela
voltou	à	mesa	e	sentou-se	e	depois	de	um	momento	Shukumar	sentou-se	ao	lado	dela.	Os	dois	choraram
juntos,	pelas	coisas	que	agora	sabiam.
Quando	o	senhor	Pirzada	vinha	jantar
No	outono	de	1971,	um	homem	costumava	vir	a	nossa	casa	 trazendo	balas	nos	bolsos	e	esperanças	de
averiguar	 a	 vida	 e	 a	morte	 de	 sua	 família.	O	nome	dele	 era	 sr.	 Pirzada	 e	 era	 de	Daca,	 hoje	 capital	 de
Bangladesh,	 mas	 na	 época	 parte	 do	 Paquistão.	 Naquele	 ano,	 o	 Paquistão	 estava	 em	 guerra	 civil.	 A
fronteira	 oriental,	 onde	 se	 localizava	 Daca,	 estava	 lutando	 por	 autonomia	 do	 poder	 dominante	 no
Ocidente.	 Em	março,	 Daca	 tinha	 sido	 invadida,	 incendiada	 e	 bombardeada	 pelo	 Exército	 paquistanês.
Professores	foram	arrastados	pelas	ruas	e	mortos	a	tiros,	mulheres	arrastadas	para	quartéis	e	estupradas.
No	final	do	verão,	diziam	que	trezentas	mil	pessoas	haviam	sido	mortas.	Em	Daca,	o	sr.	Pirzada	possuía
uma	casa	de	três	andares,	uma	cadeira	de	botânica	na	universidade,	uma	esposa	havia	vinte	anos	e	sete
filhas	entre	seis	e	dezesseis	anos,	cujos	nomes	todos	começavam	com	a	letra	A.
—	Ideia	da	mãe	delas	—	ele	explicou	um	dia,	tirando	da	carteira	uma	foto	em	preto	e	branco	das	sete
meninas	 num	 piquenique,	 as	 tranças	 amarradas	 com	 fitas,	 sentadas	 de	 pernas	 cruzadas	 numa	 fileira,
comendo	curry	de	frango	em	folhas	de	bananeira.	—	Como	eu	faço	para	distinguir?	Ayesha,	Amira,	Amina,
Aziza,	entende	a	dificuldade?
Toda	semana	o	sr.	Pirzada	escrevia	cartas	à	esposa	e	mandava	revistas	em	quadrinhos	para	cada	uma
das	sete	filhas,	mas	o	correio,	assim	como	tudo	em	Daca,	entrara	em	colapso	e	ele	não	teve	notícias	delas
durante	mais	 de	 seis	meses.	 Nessa	 época,	 o	 sr.	 Pirzada	 estava	 passando	 um	 ano	 nos	 Estados	 Unidos,
porque	havia	ganhado	uma	bolsa	do	governo	do	Paquistão	para	estudar	a	 flora	da	Nova	 Inglaterra.	Na
primavera	 e	 no	 verão,	 ele	 recolhera	 dados	 em	 Vermont	 e	 no	 Maine	 e	 no	 outono	 mudou-se	 para	 uma
universidade	ao	norte	de	Boston,	onde	morávamos,	para	escrever	um	breve	livro	sobre	suas	descobertas.
A	bolsa	era	uma	grande	honra,	mas	quando	convertida	em	dólares	não	era	 tão	generosa.	O	sr.	Pirzada
morava	num	quarto	no	alojamento	dos	graduados	e	não	tinha	fogão	nem	televisão.	Então	vinha	a	nossa
casa	para	jantar	e	assistir	ao	noticiário	noturno.
No	começo,	eu	não	sabia	a	razão	de	suas	visitas.	Tinha	dez	anos	e	não	me	surpreendia	que	meus	pais,
que	eram	indianos	e	tinham	muitos	conhecidos	indianos	na	universidade,	recebessem	o	sr.	Pirzada	para
comer	 conosco.	 Era	 um	 campus	 pequeno,	 com	 calçadas	 estreitas	 de	 tijolos	 e	 edifícios	 brancos	 com
colunas,	localizado	no	limiar	do	que	parecia	ser	uma	cidade	ainda	menor.	O	supermercado	não	tinha	óleo
de	mostarda,	os	médicos	não	atendiam	em	casa,	os	vizinhos	apareciam	sem	ser	convidados,	e	de	quando
em	quando	meus	pais	reclamavam	dessas	coisas.	Em	busca	de	compatriotas,	eles	costumavam,	no	começo
de	 cada	 semestre,	 ler	 acompanhando	 com	 os	 dedos	 as	 colunas	 do	 diretório	 da	 universidade,	 grifando
sobrenomes	 conhecidos	 de	 sua	 parte	 do	mundo.	 Foi	 assim	 que	 descobriram	 o	 sr.	 Pirzada,	 telefonaram
para	ele	e	o	convidaram.
Não	tenho	lembrança	de	sua	primeira	visita,	nem	da	segunda	ou	terceira,	mas	no	final	de	setembro	eu
estava	 tão	 acostumada	 à	 presença	 do	 sr.	 Pirzada	 na	 sala	 de	 casa	 que	 uma	 noite,	 quando	 colocava	 as
pedras	de	gelo	dentro	da	jarra	de	água,	pedi	a	minha	mãe	que	pegasse	um	quarto	copo	no	armário	ainda
alto	 demais	 para	 mim.	 Ela	 estava	 ocupada	 no	 fogão,	 controlando	 uma	 frigideira	 de	 espinafre	 com
rabanete,	e	não	me	escutou	por	causa	do	ruído	do	exaustor	e	da	fúria	com	que	raspava	a	espátula.	Recorri
a	meu	pai,	que	estava	encostado	na	geladeira,	comendo	castanhas	de	caju	na	concha	da	mão.
—	O	que	foi,	Lilia?
—	Um	copo	para	aquele	moço	indiano.
—	O	senhor	Pirzada	não	vem	hoje.	Mais	importante,	o	senhor	Pirzada	não	se	considera	mais	indiano
—	meu	pai	anunciou,	espanando	o	sal	das	castanhas	da	barba	preta	aparada.	—	Desde	a	Partição.	Nosso
país	foi	dividido.	Em	1947.
Quando	 falei	 que	 achava	 que	 essa	 era	 a	 data	 em	 que	 a	 Índia	 se	 tornara	 independente	 da	 Grã-
Bretanha,	meu	pai	disse:
—	Isso	também.	Num	momento	a	gente	estava	livre,	no	outro	partido	em	dois	—	explicou,	fazendo	um
X	com	o	dedo	na	bancada	—,	como	uma	torta.	Hindus	aqui,	muçulmanos	aqui.	Daca	não	pertence	mais	a
nós.
Ele	me	contou	que,	durante	a	Partição,	hindus	e	muçulmanos	punham	fogo	uns	nas	casas	dos	outros.
Para	muitos,	a	ideia	de	comer	um	na	companhia	do	outro	ainda	era	impensável.
Para	mim	 não	 fazia	 sentido.	O	 sr.	 Pirzada	 e	meus	 pais	 falavam	 a	mesma	 língua,	 riam	 das	mesmas
piadas,	pareciam	mais	ou	menos	iguais.	Comiam	picles	de	manga	nas	refeições,	comiam	arroz	com	a	mão
toda	 noite	 no	 jantar.	 Assim	 como	 meus	 pais,	 o	 sr.	 Pirzada	 tirava	 os	 sapatos	 antes	 de	 entrar	 na	 casa,
mascava	sementes	de	erva-doce	como	digestivo	 depois	 da	 refeição,	 não	 tomava	bebida	 alcoólica,	 como
sobremesa	molhava	austeros	biscoitos	em	sucessivas	xícaras	de	chá.	Mesmo	assim,	meu	pai	insistia	para
que	eu	entendesse	a	diferençae	me	levou	até	um	mapa-múndi	que	havia	pregado	na	parede	acima	de	sua
mesa.	Ele	parecia	 temer	que	o	 sr.	Pirzada	pudesse	 se	ofender	 se	eu	acidentalmente	me	 referisse	a	 ele
como	indiano,	embora	eu	não	conseguisse	imaginar	o	sr.	Pirzada	se	ofendendo	muito	com	qualquer	coisa.
—	O	senhor	Pirzada	é	bengalês,	mas	é	muçulmano	—	meu	pai	me	informou.	—	Portanto,	ele	mora	no
Paquistão	 Oriental,	 não	 na	 Índia.	 —	 O	 dedo	 dele	 deslizou	 pelo	 Atlântico,	 atravessou	 a	 Europa,	 o
Mediterrâneo,	o	Oriente	Médio,	e	parou	no	losango	largo	e	alaranjado	que	minha	mãe	havia	me	dito	um
dia	 que	 parecia	 uma	 mulher	 usando	 sári	 com	 o	 braço	 esquerdo	 estendido.	 Várias	 cidades	 estavam
marcadas	com	um	círculo	e	ligadas	por	linhas	indicando	as	viagens	de	meus	pais,	e	o	lugar	de	nascimento
deles,	 Calcutá,	 indicado	 com	 uma	 pequena	 estrela	 prateada.	 Eu	 só	 tinha	 estado	 lá	 uma	 vez	 e	 não	me
lembrava	da	viagem.
—	 Como	 vê,	 Lilia,	 é	 outro	 país,	 de	 outra	 cor	 —	 disse	 meu	 pai.	 O	 Paquistão	 era	 amarelo,	 não
alaranjado.	Notei	que	havia	nele	duas	partes	distintas,	uma	muito	maior	que	a	outra,	separadas	por	uma
extensão	do	território	indiano;	era	como	se	a	Califórnia	e	Connecticut	constituíssem	uma	nação	separada
dos	Estados	Unidos.
Meu	pai	batucou	com	os	nós	dos	dedos	na	minha	cabeça.
—	 Você	 deve	 estar	 informada	 da	 situação	 atual.	 Sabe	 que	 o	 Paquistão	 Oriental	 está	 lutando	 por
soberania?
Balancei	a	cabeça,	ignorando	a	situação.
Voltamos	 para	 a	 cozinha,	 onde	minha	mãe	 estava	 coando	 o	 arroz	 cozido	 num	 escorredor.	Meu	 pai
abriu	a	 lata	sobre	o	balcão	e	olhou	firme	para	mim	por	cima	dos	óculos,	enquanto	comia	mais	algumas
castanhas	de	caju.
—	O	que	exatamente	te	ensinam	na	escola?	Você	estuda	história?	Geografia?
—	Lilia	tem	muita	coisa	para	aprender	na	escola	—	minha	mãe	falou.	—	Nós	agora	moramos	aqui,	ela
nasceu	aqui.	—	Parecia	genuinamente	orgulhosa	do	fato,	como	se	fosse	uma	reflexão	sobre	meu	caráter.
Eu	 sabia	 que,	 na	 avaliação	 dela,	 tinha	 garantidas	 uma	 vida	 segura,	 uma	 vida	 facilitada,	 uma	 boa
educação,	 todas	 as	 oportunidades.	 Nunca	 teria	 de	 comer	 comida	 racionada,	 nem	 respeitar	 toques	 de
recolher,	nem	assistir	a	 tumultos	de	cima	do	 telhado,	nem	esconder	vizinhos	nos	 tanques	de	água	para
impedir	 que	 fossem	 fuzilados,	 como	 ela	 e	meu	 pai	 tinham	 feito.	—	 Imagine	 ela	 ter	 de	 frequentar	 uma
escola	decente.	Imagine	ela	ter	de	ler	à	luz	do	lampião	de	querosene	nos	cortes	de	energia.	Imagine	as
pressões,	 os	 professores,	 os	 exames	 constantes.	 —	 Ela	 passou	 a	 mão	 pelo	 cabelo,	 cortado	 com
comprimento	conveniente	para	seu	emprego	de	meio	período	como	caixa	de	banco.	—	Como	você	quer
que	ela	saiba	da	Partição?	Chega	de	comer	castanha.
—	Mas	o	que	ela	sabe	do	mundo?	—	Meu	pai	chacoalhou	a	lata	de	castanhas	na	mão.	—	O	que	ela	está
aprendendo?
Nós	aprendíamos	história	americana,	claro,	e	geografia	americana.	Naquele	ano	e	em	todos	os	anos,
aparentemente,	começávamos	estudando	a	Revolução	Americana.	Éramos	levados	em	ônibus	da	escola	a
excursões	 para	 visitar	 Plymouth	 Rock	 e	 caminhar	 pela	 Trilha	 da	 Liberdade,	 escalar	 até	 o	 alto	 do
monumento	 Bunker	 Hill.	 Construíamos	 dioramas	 com	 papel	 colorido	 mostrando	 George	 Washington
atravessando	 as	 águas	 encapeladas	 do	 rio	 Delaware	 e	 fazíamos	 fantoches	 do	 rei	 George	 usando	 calça
branca	apertada	e	um	arco	preto	no	cabelo.	Nas	provas,	nos	davam	mapas	em	branco	das	treze	colônias
para	colocarmos	os	nomes,	as	datas	e	as	capitais.	Eu	sabia	fazer	tudo	isso	de	olhos	fechados.
Na	noite	seguinte,	o	sr.	Pirzada	chegou	como	sempre	às	seis	da	tarde.	Embora	não	fossem	mais	estranhos,
ao	se	cumprimentarem,	ele	e	meu	pai	mantinham	o	costume	de	apertarem	as	mãos.
—	Entre.	Lilia,	o	casaco	do	senhor	Pirzada,	por	favor.
Ele	entrava	na	sala,	com	terno	 impecável	e	cachecol,	com	uma	gravata	de	seda	no	colarinho.	Cada
noite	aparecia	com	um	conjunto	diferente	em	tons	de	ameixa,	oliva,	marrom,	chocolate.	Era	um	homem
compacto	 e,	 embora	 os	 pés	 fossem	 virados	 para	 fora	 e	 a	 barriga	 ligeiramente	 grande,	 mantinha	 uma
postura	 eficiente,	 como	 se	 levasse	nas	duas	mãos	malas	de	pesos	 iguais.	As	 orelhas	 eram	 isoladas	por
tufos	de	pelos	grisalhos	que	pareciam	abafar	o	ruído	desagradável	do	tráfego	da	vida.	Tinha	cílios	fartos
delineados	 com	 um	 traço	 de	 cânfora,	 um	 bigode	 generoso	 torcido	 de	 um	 jeito	 divertido	 com	 as
extremidades	 para	 cima	 e	 uma	 verruga	 na	 forma	 de	 uva-passa	 achatada	 bem	 no	 meio	 da	 bochecha
esquerda.	Usava	na	cabeça	um	fez	preto	de	lã	de	carneiro	persa,	preso	com	grampos	de	cabelo,	e	nunca	o
vi	sem	ele.	Embora	meu	pai	sempre	se	oferecesse	para	ir	buscá-lo	com	nosso	carro,	o	sr.	Pirzada	preferia
vir	 a	 pé	 de	 seu	 alojamento	 até	 nosso	 bairro,	 distante	 uns	 vinte	 minutos,	 estudando	 as	 árvores	 e	 os
arbustos	do	caminho,	e	quando	entrava	em	casa	os	nós	dos	dedos	dele	estavam	vermelhos	por	causa	do	ar
fresco	do	outono.
—	Mais	um	refugiado,	eu	acho,	em	território	indiano.
—	Estão	estimando	em	nove	milhões,	pela	última	contagem	—	disse	meu	pai.
O	sr.	Pirzada	me	entregou	seu	casaco,	uma	vez	que	era	minha	função	pendurá-lo	no	cabide	debaixo	da
escada.	Era	feito	de	lã	com	um	xadrez	miúdo	cinza	e	azul,	o	forro	listrado	e	os	botões	de	chifre,	com	um
ligeiro	 aroma	 de	 limão	 na	 trama	 do	 tecido.	Não	 havia	 etiquetas	 visíveis	 na	 parte	 interna,	 apenas	 uma
pregada	à	mão	com	as	palavras	Z.	Sayeed,	Confecção	bordadas	em	manuscrito	com	linha	preta	brilhante.
Às	vezes,	havia	uma	folha	de	bétula	ou	de	bordo	enfiada	num	bolso.	Ele	desamarrava	os	sapatos,	deixava-
os	encostados	ao	rodapé;	uma	pasta	dourada	grudada	na	ponta	do	calcanhar,	resultado	de	andar	em	nosso
gramado	úmido	 e	não	 rastelado.	 Livre	de	 seus	 atavios,	 ele	 tocava	meu	pescoço	 com	os	dedos	 curtos	 e
inquietos,	 como	 uma	 pessoa	 que	 investiga	 a	 solidez	 da	 parede	 antes	 de	 pregar	 um	 prego.	 Depois,
acompanhava	meu	 pai	 até	 a	 sala,	 onde	 a	 televisão	 estava	 ligada	 no	 noticiário	 local.	 Assim	que	 eles	 se
sentavam,	minha	mãe	vinha	da	cozinha	com	um	prato	de	kebab	de	carne	moída	com	chutney	de	coentro.
O	sr.	Pirzada	punha	um	inteiro	na	boca.
—	 Só	 podemos	 esperar	 —	 disse	 ele,	 pegando	 outro	 —	 que	 os	 refugiados	 de	 Daca	 sejam	 bem
alimentados.	Isso	me	lembra...	—	Ele	procurou	no	bolso	do	paletó	e	me	deu	um	ovinho	plástico	cheio	de
corações	 de	 canela.	—	Para	 a	 dama	 da	 casa	—	disse	 com	uma	 reverência	 quase	 imperceptível,	 os	 pés
virados	para	fora.
—	Realmente,	senhor	Pirzada	—	minha	mãe	protestou.	—	Noite	após	noite	o	senhor	mima	a	menina.
—	Só	mimo	crianças	que	não	são	mimadas.
Era	um	momento	estranho	para	mim,	momento	que	eu	esperava	em	parte	com	receio,	em	parte	com
prazer.	Ficava	encantada	com	a	presença	da	rotunda	elegância	do	sr.	Pirzada,	e	lisonjeada	com	a	ligeira
teatralidade	de	 suas	atenções,	 ao	mesmo	 tempo	 inquieta	 com	a	 soberba	 facilidade	de	 seus	gestos,	que
faziam	com	que	eu	me	sentisse	por	um	momento	como	uma	estranha	em	minha	própria	casa.	Tinha	se
transformado	num	ritual	nosso	e,	durante	várias	semanas,	antes	que	estivéssemos	mais	à	vontade	um	com
o	 outro,	 era	 o	 único	 momento	 em	 que	 ele	 falava	 diretamente	 comigo.	 Eu	 não	 tinha	 resposta,	 não
comentava	nada,	não	traía	nenhuma	reação	visível	ao	fluxo	constante	de	balas	recheadas	de	mel,	trufas
de	framboesa,	rolinhos	de	pastilhas	azedinhas.	Não	conseguia	nem	agradecer	a	ele,	pois	uma	vez,	quando
o	fiz,	por	um	pirulito	de	menta	especialmente	espetacular	embrulhado	numa	nuvem	de	celofane	roxo,	ele
me	perguntou:
—	Agradecer	por	quê?	A	moça	do	banco	me	agradece,	o	caixa	da	loja	me	agradece,	a	bibliotecária	me
agradece	quando	devolvo	um	 livro	 fora	do	prazo,	a	 telefonista	 internacional	me	agradece	quando	 tenta
fazer	 uma	 ligação	 para	 Daca	 e	 não	 consegue.	 Se	 eu	 for	 enterrado	 neste	 país,	 com	 certeza	 vão	 me
agradecer	no	meu	enterro.
Na	minha	opinião,	era	inadequado	consumirde	qualquer	jeito	os	doces	que	o	sr.	Pirzada	me	dava.	Eu
esperava	cada	tesouro	noturno	como	uma	joia,	ou	uma	moeda	de	um	reino	soterrado,	e	o	colocava	numa
caixinha	de	guardados	feita	de	sândalo	entalhado,	ao	lado	de	minha	cama,	na	qual,	muito	tempo	antes,	na
Índia,	a	mãe	de	meu	pai	costumava	guardar	as	nozes	de	areca	moídas	que	comia	depois	do	banho	matinal.
Era	minha	única	lembrança	de	uma	avó	que	não	conheci	e	até	o	sr.	Pirzada	entrar	em	nossas	vidas	não
encontrei	nada	para	guardar	nela.	De	vez	em	quando,	antes	de	escovar	os	dentes	e	aprontar	minha	roupa
para	a	escola	do	dia	seguinte,	eu	abria	a	tampa	da	caixa	e	comia	uma	das	delícias.
Nessa	noite,	como	todas	as	noites,	não	comemos	na	mesa	de	jantar,	porque	não	dava	para	ver	direito
a	 tela	da	 televisão.	Em	vez	disso,	nos	 reunimos	em	 torno	da	mesa	de	centro,	 sem	conversar,	 os	pratos
apoiados	nos	 joelhos.	Da	cozinha,	minha	mãe	trouxe	uma	sucessão	de	pratos:	 lentilha	com	cebola	 frita,
feijão-verde	com	coco,	peixe	cozido	com	passas	em	molho	de	iogurte.	Eu	acompanhava	com	os	copos	de
água,	 um	 prato	 de	 limões	 cortados	 em	 quatro	 e	 pimentas	 chili	 compradas	 em	 excursões	 mensais	 a
Chinatown	e	guardadas	no	freezer,	que	eles	gostavam	de	abrir	e	amassar	junto	com	a	comida.
Antes	de	comer,	o	sr.	Pirzada	sempre	fazia	uma	coisa	curiosa.	Tirava	um	relógio	de	prata	simples	sem
correia	 que	 guardava	 no	 bolso	 do	 peito,	 segurava-o	 brevemente	 a	 uma	 das	 orelhas	 com	 seus	 tufos	 de
pelos	e	dava	corda	com	três	movimentos	rápidos	de	polegar	e	indicador.	Ao	contrário	de	seu	relógio	de
pulso,	o	relógio	de	bolso,	ele	me	explicou,	marcava	a	hora	de	Daca,	onze	horas	à	frente.	Durante	toda	a
refeição,	 o	 relógio	 ficava	 em	cima	de	 seu	guardanapo	de	papel	 na	mesinha	de	 centro.	Ele	parecia	não
consultá-lo	nunca.
Agora	que	eu	sabia	que	o	sr.	Pirzada	não	era	indiano,	comecei	a	estudá-lo	com	mais	cuidado,	tentando
entender	o	que	o	tornava	diferente.	Resolvi	que	o	relógio	de	bolso	era	uma	coisa.	Quando	o	vi	essa	noite,
e	ele	deu	corda	e	o	pôs	na	mesinha,	fui	tomada	por	uma	inquietação;	me	dei	conta	de	que	a	vida	era	vivida
em	Daca	primeiro.	Imaginei	as	filhas	do	sr.	Pirzada	acordando	cedo,	amarrando	fitas	no	cabelo,	à	espera
do	café	da	manhã,	se	preparando	para	a	escola.	Nossas	refeições,	nossas	ações	eram	apenas	sombras	do
que	já	tinha	acontecido	lá,	um	lerdo	fantasma	da	terra	real	do	sr.	Pirzada.
Às	seis	e	meia,	hora	em	que	começava	o	noticiário	nacional,	meu	pai	aumentava	o	volume	e	ajustava	a
antena.	 Geralmente	 eu	 me	 ocupava	 com	 um	 livro,	 mas	 nessa	 noite	 meu	 pai	 insistiu	 que	 eu	 prestasse
atenção.	Na	 tela,	 vimos	 tanques	 rodando	por	 ruas	poeirentas,	 edifícios	destruídos,	 florestas	de	árvores
desconhecidas	onde	os	refugiados	paquistaneses	orientais	tinham	de	se	abrigar,	buscando	segurança	além
da	fronteira	indiana.	Vi	barcos	com	velas	em	forma	de	hélice	flutuando	em	largos	rios	cor	de	café,	uma
universidade	barricada,	sedes	de	jornais	queimadas	de	alto	a	baixo.	Virei	para	olhar	para	o	sr.	Pirzada;	as
imagens	 passavam	 em	 miniatura	 nos	 olhos	 dele.	 Ao	 assistir,	 ele	 tinha	 uma	 expressão	 fixa	 no	 rosto,
controlado,	mas	alerta,	como	se	alguém	estivesse	lhe	dando	orientação	para	um	destino	desconhecido.
Durante	o	comercial,	minha	mãe	foi	à	cozinha	buscar	mais	arroz,	e	meu	pai	e	o	sr.	Pirzada	deploraram
a	política	de	um	general	chamado	Yahya	Khan.	Discutiram	intrigas	que	eu	não	conhecia,	uma	catástrofe
que	eu	não	conseguia	entender.
—	Está	vendo,	crianças	da	sua	idade,	o	que	precisam	fazer	para	sobreviver	—	meu	pai	disse	enquanto
me	servia	outro	pedaço	de	peixe.	Mas	eu	não	conseguia	mais	comer.	Só	conseguia	dar	uma	olhadela	ao	sr.
Pirzada,	sentado	a	meu	lado	com	seu	paletó	verde-oliva,	criando	calmamente	um	poço	em	seu	arroz	para
acomodar	 uma	 segunda	 porção	 de	 lentilha.	 Não	 era	 assim	 que	 eu	 imaginava	 um	 homem	 tomado	 por
graves	 preocupações.	 Eu	 me	 perguntava	 se	 a	 razão	 para	 ele	 estar	 sempre	 tão	 bem-vestido	 seria	 em
preparação	para	suportar	com	dignidade	qualquer	notícia	que	lhe	viesse,	talvez	mesmo	para	comparecer
a	um	funeral	sem	aviso	prévio.	Me	perguntava	também	o	que	aconteceria	se	de	repente	suas	sete	filhas
aparecessem	na	televisão,	sorrindo,	acenando	e	atirando	beijos	para	o	sr.	Pirzada,	do	alto	de	uma	sacada.
Imaginei	como	ele	iria	ficar	aliviado.	Mas	isso	nunca	aconteceu.
Nessa	noite,	quando	guardei	o	ovo	plástico	cheio	de	corações	de	canela	dentro	da	caixa	ao	 lado	de
minha	cama,	não	senti	a	satisfação	cerimoniosa	que	normalmente	sentia.	Tentei	não	pensar	no	sr.	Pirzada,
em	 seu	 sobretudo	 com	 cheiro	 de	 limão,	 ligado	 àquele	mundo	 convulso,	 sufocante,	 que	 tínhamos	 visto
horas	 antes	 em	 nossa	 sala	 clara	 e	 acarpetada.	 E,	 no	 entanto,	 durante	 muitos	 momentos	 só	 consegui
pensar	 naquilo.	 Sentia	 um	 nó	 no	 estômago	 pensando	 se	 a	 mulher	 e	 as	 sete	 filhas	 dele	 eram	 agora
membros	 daquela	multidão	 clamorosa	 e	 perdida	 que	 aparecera	 em	 flashes	 na	 tela.	 Num	 esforço	 para
eliminar	 a	 imagem,	 olhei	 ao	 redor	 de	 meu	 quarto,	 a	 cama	 amarela	 de	 dossel,	 a	 cortina	 de	 babados
combinando,	as	fotos	de	classe	emolduradas	nas	paredes	forradas	de	papel	branco	e	violeta,	as	anotações
a	lápis	na	porta	do	armário	em	que	meu	pai	registrava	minha	altura	a	cada	aniversário.	Mas,	quanto	mais
eu	 tentava	 me	 distrair,	 mais	 começava	 a	 me	 convencer	 de	 que	 a	 família	 do	 sr.	 Pirzada	 muito
provavelmente	estava	morta.	Por	fim,	peguei	um	quadrado	de	chocolate	branco	da	caixa,	desembrulhei	e
fiz	uma	coisa	que	nunca	tinha	 feito	antes.	Pus	o	chocolate	na	boca,	deixei	que	amolecesse	até	o	último
momento	possível	e	então	mastiguei	devagar,	rezando	para	a	 família	do	sr.	Pirzada	estar	sã	e	salva.	Eu
nunca	havia	rezado	por	nada	antes,	nunca	tinha	aprendido	nem	sido	orientada	a	rezar,	mas	resolvi,	diante
das	 circunstâncias,	 que	 era	 o	 que	 devia	 fazer.	 Essa	 noite,	 quando	 fui	 ao	 banheiro,	 só	 fingi	 escovar	 os
dentes,	por	medo	de	remover	a	oração	também.	Molhei	a	escova	e	arrumei	o	tubo	de	pasta	de	dentes	para
meus	pais	não	fazerem	perguntas	e	dormi	com	o	açúcar	na	língua.
Ninguém	na	escola	comentou	a	guerra	acompanhada	tão	fielmente	na	minha	sala	de	estar.	Continuamos	a
estudar	 a	 Revolução	 Americana	 e	 aprendemos	 sobre	 a	 injustiça	 dos	 impostos	 sem	 representação	 e
memorizamos	passagens	da	Declaração	de	Independência.	Durante	o	intervalo,	os	meninos	se	dividiram
em	 dois	 grupos,	 um	 perseguindo	 loucamente	 o	 outro	 em	 torno	 dos	 balanços	 e	 gangorras,	 Casacos
Vermelhos	contra	as	colônias.	Na	classe,	nossa	professora,	a	sra.	Kenyon,	apontava	com	frequência	um
mapa	que	descia	como	uma	tela	de	cinema	por	cima	do	quadro-negro,	mostrando	a	rota	do	Mayflower,	ou
mostrando	a	 localização	do	Sino	da	Liberdade.	Toda	semana,	dois	alunos	da	classe	 faziam	um	relatório
sobre	um	aspecto	específico	da	Revolução	e	então,	um	dia,	fui	mandada	à	biblioteca	da	escola	com	minha
amiga	Dora	para	pesquisar	sobre	a	rendição	em	Yorktown.	A	sra.	Kenyon	me	entregou	um	papel	com	o
nome	de	três	 livros	para	procurar	no	catálogo	de	fichas.	Logo	encontramos	os	 livros	e	sentamos	a	uma
mesa	redonda	baixa	para	ler	e	tomar	notas.	Mas	eu	não	conseguia	me	concentrar.	Voltei	às	estantes	de
madeira	clara,	a	um	setor	que	eu	tinha	notado,	com	a	identificação	de	“Ásia”.	Vi	 livros	sobre	a	China,	a
Índia,	a	Indonésia,	a	Coreia.	Por	fim,	encontrei	um	intitulado	Paquistão:	uma	terra	e	seu	povo.	Sentei	num
banquinho	e	abri	o	livro.	A	sobrecapa	estalou	em	meus	dedos.	Comecei	a	virar	as	páginas,	cheias	de	fotos
de	rios,	campos	de	arroz,	homens	fardados.	Havia	um	capítulo	sobre	Daca	e	comecei	a	ler	sobre	as	chuvas
e	a	produção	de	juta.	Estava	estudando	a	tabela	populacional	quando	Dora	apareceu	no	corredor.
—	O	que	você	está	fazendo	aí?	A	senhora	Kenyon	está	na	biblioteca.	Veio	ver	a	gente.
Fechei	 o	 livro	 com	 ruído	 demais.	 A	 sra.	 Kenyon	 apareceu,	 o	 aroma	 de	 seu	 perfume	 dominando	 o
corredor	minúsculo,	e	ergueu	o	livro	pela	lombada	comose	fosse	um	fio	de	cabelo	no	meu	suéter.	Olhou	a
capa,	depois	para	mim.
—	Este	livro	faz	parte	do	relatório,	Lilia?
—	Não,	senhora.
—	 Então,	 não	 vejo	 razão	 para	 você	 estar	 consultando	 isto	 —	 disse,	 recolocando-o	 no	 espaço	 da
estante.	—	Você	vê?
Com	 o	 passar	 das	 semanas,	 foi	 ficando	 cada	 vez	 mais	 raro	 ver	 imagens	 de	 Daca	 no	 noticiário.	 A
reportagem	 vinha	 depois	 do	 primeiro	 intervalo	 comercial,	 às	 vezes	 do	 segundo.	 A	 imprensa	 tinha	 sido
censurada,	 removida,	 restringida,	 redirecionada.	Alguns	dias,	muitos	dias,	 só	 anunciavam	o	número	de
mortos,	 precedido	 por	 uma	 reiteração	 da	 situação	 geral.	 Mais	 poetas	 foram	 executados,	 mais	 aldeias
incendiadas.	 Apesar	 de	 tudo,	 noite	 após	 noite,	 meus	 pais	 e	 o	 sr.	 Pirzada	 faziam	 longas	 e	 demoradas
refeições.	 Depois	 que	 a	 televisão	 era	 desligada,	 os	 pratos	 lavados	 e	 secos,	 eles	 brincavam,	 contavam
histórias,	molhavam	biscoitos	no	chá.	Quando	se	cansavam	de	discutir	política,	discutiam	os	progressos
do	livro	do	sr.	Pirzada	sobre	as	árvores	decíduas	da	Nova	Inglaterra,	a	estabilidade	no	emprego	de	meu
pai,	 os	 hábitos	 alimentares	 estranhos	 das	 colegas	 americanas	 de	 minha	 mãe	 no	 banco.	 Por	 fim,	 me
mandavam	subir	para	 fazer	a	 lição	de	casa,	mas	através	do	carpete	eu	ouvia	que	 tomavam	mais	 chá	e
escutavam	 fitas	 cassete	 de	 Kishore	 Kumar,	 jogavam	 palavras	 cruzadas	 na	 mesinha	 de	 centro,	 rindo	 e
discutindo	até	tarde	da	noite	a	grafia	de	palavras	em	inglês.	Eu	queria	ficar	com	eles,	queria,	acima	de
tudo,	consolar	o	sr.	Pirzada	de	alguma	forma.	Mas,	além	de	comer	um	pedaço	de	doce	pela	família	dele	e
rezar	por	 sua	segurança,	eu	não	podia	 fazer	nada.	Eles	 jogavam	palavras	cruzadas	até	o	noticiário	das
onze	horas	e	depois,	às	vezes	por	volta	da	meia-noite,	o	sr.	Pirzada	voltava	a	pé	para	seu	alojamento.	Por
isso	eu	nunca	via	quando	ele	 ia	embora,	mas	 toda	noite,	quando	deslizava	para	o	sono,	eu	os	ouvia	na
expectativa	do	nascimento	de	uma	nação	do	outro	lado	do	mundo.
Um	dia,	em	outubro,	o	sr.	Pirzada	perguntou	logo	ao	chegar:
—	O	que	são	esses	legumes	grandes	cor	de	laranja	nos	degraus	de	entrada	das	pessoas?	Uma	espécie
de	moranga.
—	São	abóboras	—	minha	mãe	respondeu.	—	Lilia,	me	lembre	de	comprar	uma	no	supermercado.
—	E	para	que	isso?	Indica	o	quê?
—	Para	fazer	uma	lanterna	de	careta	—	eu	disse,	abrindo	um	sorriso	feroz.	—	Assim.	Para	assustar	as
pessoas.
—	Sei	—	o	sr.	Pirzada	respondeu,	sorrindo	de	volta.	—	Muito	útil.
No	dia	seguinte	minha	mãe	comprou	uma	abóbora	de	cinco	quilos,	gorda,	redonda,	e	colocou	na	mesa
de	jantar.	Antes	da	refeição,	enquanto	meu	pai	e	o	sr.	Pirzada	assistiam	ao	noticiário	local,	ela	me	mandou
decorar	 a	 abóbora	 com	 pincéis	 atômicos,	 mas	 eu	 queria	 recortar	 direito,	 como	 tinha	 visto	 outras	 no
bairro.
—	É,	vamos	cortar	—	o	sr.	Pirzada	concordou,	e	levantou-se	do	sofá.	—	Suspendemos	as	notícias	hoje.
—	Sem	fazer	perguntas,	ele	entrou	na	cozinha,	abriu	uma	gaveta	e	voltou	com	uma	longa	faca	serrilhada.
Olhou	para	mim	em	busca	de	aprovação.	—	Devo?
Fiz	que	sim.	Era	a	primeira	vez	que	nos	reuníamos	todos	em	torno	da	mesa	de	jantar,	minha	mãe,	meu
pai,	o	sr.	Pirzada	e	eu.	Enquanto	a	televisão	transmitia	para	ninguém,	cobrimos	a	mesa	com	jornais.	O	sr.
Pirzada	pôs	o	paletó	no	encosto	da	cadeira	atrás	dele,	 tirou	um	par	de	punhos	de	opala	e	arregaçou	as
mangas	engomadas	da	camisa.
—	Primeiro,	tem	de	cortar	em	volta	da	parte	de	cima	—	ensinei,	mostrando	com	o	indicador.
Ele	 fez	 um	 corte	 inicial	 e	 circundou	 com	 a	 faca.	 Quando	 terminou	 o	 círculo,	 ergueu	 a	 tampa	 pelo
caule.	Saiu	sem	esforço,	e	o	sr.	Pirzada	se	inclinou	sobre	a	abóbora	por	um	momento,	para	inspecionar	e
sentir	o	cheiro	do	conteúdo.	Minha	mãe	deu	a	ele	uma	colher	de	metal	de	cabo	comprido	com	a	qual	ele
esvaziou	o	interior	até	remover	os	últimos	fios	e	sementes.	Enquanto	isso,	meu	pai	separava	as	sementes
da	polpa	e	punha	para	secar	numa	toalha	de	papel,	para	poder	assá-las	mais	tarde.	Na	superfície	sulcada,
desenhei	dois	triângulos	para	os	olhos,	que	o	sr.	Pirzada	recortou	aplicadamente	em	duas	meias-luas	como
sobrancelhas,	e	outro	triângulo	para	o	nariz.	Só	faltava	a	boca,	e	os	dentes	eram	um	desafio.	Hesitei.
—	Sorrindo	ou	triste?	—	perguntei.
—	Você	escolhe	—	disse	o	sr.	Pirzada.
Como	concessão,	desenhei	uma	espécie	de	careta,	de	um	lado	a	outro,	nem	triste,	nem	sorridente.	O
sr.	Pirzada	começou	a	cortar,	sem	um	mínimo	de	intimidação,	como	se	esculpisse	abóboras	a	vida	inteira.
Estava	quase	acabando	quando	começou	o	noticiário	nacional.	O	 repórter	mencionou	Daca	e	nós	 todos
nos	viramos	para	ouvir:	uma	autoridade	indiana	anunciou	que,	a	menos	que	o	mundo	ajudasse	a	aliviar	o
sofrimento	dos	refugiados	do	Paquistão	Oriental,	a	Índia	teria	de	entrar	em	guerra	contra	o	Paquistão.	O
rosto	do	repórter	pingava	suor	enquanto	ele	passava	as	informações.	Não	estava	de	terno	e	gravata,	mas
vestido	como	se	ele	mesmo	fosse	participar	da	batalha.	Protegia	o	rosto	queimado	com	as	mãos	enquanto
gritava	as	coisas	para	a	câmera.	A	faca	escorregou	da	mão	do	sr.	Pirzada	e	fez	um	corte	na	direção	da
base	da	abóbora.
—	Por	favor,	desculpe.	—	Ele	ergueu	a	mão	para	o	lado	do	rosto,	como	se	tivesse	levado	uma	bofetada
de	alguém.	—	Eu…	que	horror.	Eu	compro	outra.	A	gente	tenta	de	novo.
—	Nada	disso,	nada	disso	—	meu	pai	falou.	Ele	tirou	a	faca	do	sr.	Pirzada	e	cortou	em	torno	do	corte,
nivelando	 tudo,	dispensando	de	uma	vez	os	dentes	que	eu	 tinha	desenhado.	O	resultado	 foi	um	buraco
desproporcional,	do	tamanho	de	um	limão,	de	forma	que	a	lanterna	de	abóbora	ficou	com	uma	expressão
de	plácida	perplexidade,	as	sobrancelhas	não	mais	ferozes	flutuando	em	congelada	surpresa	acima	de	um
olhar	vazio,	geométrico.
No	Halloween	 eu	 era	 uma	bruxa.	Dora,	minha	 parceira	 de	 “doces	 ou	 travessuras”,	 também	era	 bruxa.
Usamos	capas	pretas	feitas	com	fronhas	tingidas	e	chapéus	cônicos	com	abas	largas	de	papelão.	Pintamos
o	rosto	de	verde	com	uma	sombra	de	olhos	quebrada	que	era	da	mãe	de	Dora,	e	para	recolher	os	doces
minha	mãe	nos	deu	dois	sacos	de	aniagem	que	um	dia	contiveram	arroz	basmati.	Nesse	ano,	nossos	pais
resolveram	que	 tínhamos	 idade	 suficiente	para	 circular	pelo	bairro	desacompanhadas.	Nosso	plano	era
andar	 da	minha	 casa	 à	 de	 Dora;	 a	 mãe	 dela	me	 levaria	 de	 carro	 de	 volta.	Meu	 pai	 nos	 equipou	 com
lanternas	e	tive	de	usar	um	relógio	sincronizado	com	o	dele.	Não	podíamos	voltar	depois	das	nove	horas.
Quando	o	sr.	Pirzada	chegou	essa	noite,	me	deu	de	presente	uma	caixa	de	chocolate	com	menta.
—	Aqui	dentro	—	eu	disse,	e	abri	o	saco	de	aniagem.	—	“Doces	ou	travessuras”?
—	Pelo	que	vejo	você	não	precisa	de	fato	da	minha	contribuição	hoje	—	disse	ele,	depositando	a	caixa.
Olhou	meu	rosto	verde	e	o	chapéu	preso	com	um	cordão	debaixo	do	queixo.	Hesitante,	ergueu	a	barra	de
minha	capa,	debaixo	da	qual	eu	estava	com	um	suéter	e	uma	jaqueta	felpuda	fechada	com	zíper.	—	Vai
estar	bem	agasalhada?
Fiz	que	sim	e	o	chapéu	sacudiu	para	um	lado.
Ele	o	arrumou.
—	Talvez	seja	melhor	ficar	quieta.
O	piso	diante	da	 escada	 estava	 coberto	 com	cestos	de	doces	 em	miniatura	 e,	 quando	o	 sr.	 Pirzada
tirou	os	sapatos,	não	os	deixou	no	lugar	onde	sempre	deixava,	mas	sim	dentro	do	armário.	Ele	começou	a
desabotoar	o	casaco	e	esperei	para	pegar	da	mão	dele,	mas	Dora	me	chamou	do	banheiro	para	dizer	que
precisava	de	ajuda	para	pintar	uma	verruga	em	seu	queixo.	Quando	finalmente	estávamos	prontas,	minha
mãe	tirou	uma	foto	nossa	na	 frente	da	 lareira	e	eu	abri	a	porta	para	sair.	O	sr.	Pirzada	e	meu	pai,	que
ainda	não	tinha	entrado	na	sala,	rondavam	o	corredor.	Lá	fora	já	estava	escuro.	O	ar	tinha	cheiro	de	folha
molhada	e	nossa	lanterna	de	abóbora	bruxuleava	de	um	jeito	impressionante	diante	do	arbusto	ao	lado	da
porta.	De	 longe,	 vinha	 o	 som	de	pés	 caminhando	 e	 os	 uivos	 dos	meninos	mais	 velhos	que	não	usavam
fantasia	 nenhuma	 além	 de	 máscaras	 de	 borracha	 e	 o	 farfalhar	 das	 roupas	 das	 crianças	 mais	 novas,algumas	tão	pequenas	que	tinham	de	ser	carregadas	de	porta	em	porta	no	colo	dos	pais.
—	Não	entre	em	nenhuma	casa	que	não	conheça	—	meu	pai	alertou.
O	sr.	Pirzada	franziu	as	sobrancelhas.
—	Tem	algum	perigo?
—	Não,	não	—	minha	mãe	garantiu.	—	Todas	as	crianças	vão	estar	na	rua.	É	uma	tradição.
—	 Talvez	 a	 gente	 devesse	 acompanhar	 as	 duas	 —	 o	 sr.	 Pirzada	 sugeriu.	 De	 repente,	 ele	 parecia
cansado	e	pequeno,	parado	ali	com	os	pés	vestidos	de	meias,	virados	para	fora,	e	em	seus	olhos	um	pânico
que	eu	nunca	tinha	visto	antes.	Apesar	do	frio,	comecei	a	suar	dentro	da	minha	fronha.
—	Realmente,	senhor	Pirzada	—	disse	minha	mãe	—,	Lilia	vai	estar	bem	segura	com	a	amiga	dela.
—	Mas	e	se	chover?	Elas	vão	se	perder?
—	Não	 se	 preocupe	—	 eu	 disse.	 Era	 a	 primeira	 vez	 que	 eu	 pronunciava	 essas	 palavras	 para	 o	 sr.
Pirzada,	 três	 palavras	 simples	 que	 eu	 havia	 tentado,	 mas	 não	 conseguira	 dizer	 a	 ele	 havia	 semanas,
dizendo	 apenas	 em	 minhas	 orações.	 Naquele	 momento,	 fiquei	 envergonhada	 de	 tê-las	 dito	 por	 minha
causa.
Ele	tocou	minha	bochecha	com	um	dedo	grosso,	depois	apertou	nas	costas	da	própria	mão,	deixando
uma	ligeira	mancha	verde.
—	Se	a	mocinha	insiste	—	ele	concordou	e	fez	uma	pequena	reverência.
Saímos,	tropeçando	um	pouco	com	nossos	sapatos	pontudos	de	loja	de	bugigangas	e,	quando	viramos
no	fim	da	entrada	para	acenar,	o	sr.	Pirzada	estava	parado	na	porta,	uma	figura	baixa	entre	meus	pais,
acenando	de	volta.
—	Por	que	aquele	homem	queria	sair	com	a	gente?	—	Dora	perguntou.
—	Ele	não	sabe	das	filhas	dele.	—	Assim	que	eu	disse	isso,	desejei	não	ter	dito.	Senti	que,	ao	dizer,
aquilo	se	 tornava	verdade,	que	as	 filhas	do	sr.	Pirzada	realmente	haviam	desaparecido	e	que	ele	nunca
mais	as	veria	de	novo.
—	Quer	dizer	que	elas	foram	sequestradas?	—	Dora	perguntou.	—	De	um	parque,	de	algum	lugar?
—	Não	foi	isso	que	eu	quis	dizer,	ele	está	com	saudade	delas.	Elas	moram	em	outro	país	e	ele	não	vê
as	filhas	faz	muito	tempo,	só	isso.
Fomos	 de	 casa	 em	 casa,	 entrando	 pelos	 jardins	 e	 apertando	 campainhas.	 Algumas	 pessoas	 tinham
apagado	todas	as	luzes	para	fazer	mais	efeito,	ou	pendurado	morcegos	de	borracha	nas	janelas.	Na	casa
dos	McIntyre	havia	um	caixão	de	defunto	na	frente	da	porta	e	o	sr.	McIntyre	se	levantou	de	dentro	dele
em	silêncio,	o	rosto	pintado	com	giz,	para	despejar	um	punhado	de	balas	em	nossos	sacos.	Várias	pessoas
me	 disseram	 que	 nunca	 tinham	 visto	 uma	 bruxa	 indiana.	 Outras	 faziam	 a	 transação	 sem	 comentários.
Seguindo	nosso	caminho	com	os	fachos	paralelos	de	nossas	lanternas,	vimos	ovos	quebrados	no	meio	da
rua,	carros	cobertos	com	espuma	de	barbear,	papel	higiênico	fazendo	guirlandas	nos	galhos	das	árvores.
Quando	chegamos	à	casa	de	Dora	estávamos	com	as	mãos	esfoladas	por	carregar	os	sacos	de	aniagem
cheios	e	os	pés	doloridos	e	 inchados.	A	mãe	dela	nos	deu	bandagens	para	os	machucados	e	nos	serviu
cidra	quente	e	pipoca	caramelada.	Ela	me	 lembrou	de	 telefonar	a	meus	pais	para	contar	que	 tínhamos
chegado	em	segurança,	 e	quando	 liguei	 dava	para	ouvir	 a	 televisão	 ao	 fundo.	Minha	mãe	não	pareceu
especialmente	aliviada	de	saber	de	mim.	Quando	desliguei	o	telefone,	me	ocorreu	que	na	casa	de	Dora	a
televisão	não	estava	ligada.	O	pai	dela	estava	deitado	no	sofá,	lendo	uma	revista,	com	um	copo	de	vinho
na	mesinha	de	centro,	e	havia	música	de	saxofone	tocando	no	estéreo.
Quando	 Dora	 e	 eu	 arrumamos	 nossa	 coleta,	 contamos,	 experimentamos	 e	 trocamos	 até	 ficarmos
satisfeitas,	a	mãe	dela	me	levou	de	volta	para	casa.	Agradeci	a	carona	e	ela	ficou	esperando	na	entrada
até	 eu	 chegar	 à	 porta.	 À	 luz	 dos	 faróis	 vi	 que	 nossa	 abóbora	 tinha	 sido	 despedaçada,	 a	 casca	 grossa
espalhada	 aos	 pedaços	 pelo	 gramado.	 Senti	 os	 olhos	 picarem	 com	 as	 lágrimas	 e	 uma	 dor	 súbita	 na
garganta,	como	se	estivesse	cheia	de	pedrinhas	que	trituravam	cada	passo	de	meus	pés	doloridos.	Abri	a
porta,	 achando	 que	 os	 três	 estariam	 parados	 no	 corredor,	 esperando	 para	 me	 receber,	 e	 lamentar	 a
abóbora	destruída,	mas	não	havia	ninguém.	Na	sala,	o	sr.	Pirzada,	meu	pai	e	minha	mãe	estavam	sentados
lado	a	lado	no	sofá.	A	televisão	desligada	e	o	sr.	Pirzada	com	a	cabeça	entre	as	mãos.
O	que	tinham	ouvido	essa	noite	e	muitas	noites	depois	dessa	era	que	a	Índia	e	o	Paquistão	estavam
chegando	cada	vez	mais	perto	da	guerra.	Tropas	de	ambos	os	 lados	 se	alinhavam	na	 fronteira,	 e	Daca
insistia	em	nada	menos	que	a	 independência.	A	guerra	seria	 travada	em	solo	do	Paquistão	Oriental.	Os
Estados	Unidos	estavam	do	lado	do	Paquistão	Ocidental,	a	União	Soviética	do	lado	da	Índia	e	do	que	logo
seria	Bangladesh.	A	guerra	foi	declarada	oficialmente	em	4	de	dezembro	e,	doze	dias	depois,	o	Exército
paquistanês,	enfraquecido	por	ter	de	lutar	a	quase	cinco	mil	quilômetros	de	sua	fonte	de	suprimentos,	se
rendeu	em	Daca.	Esses	fatos	todos	eu	só	sei	agora,	porque	estão	disponíveis	para	mim	em	qualquer	livro
de	história,	 em	qualquer	biblioteca.	Mas	na	época	eram,	em	sua	maior	parte,	um	mistério	 remoto	com
pistas	fortuitas.	O	que	eu	me	lembro	daqueles	doze	dias	de	guerra	é	que	meu	pai	não	me	pedia	mais	para
assistir	ao	noticiário	com	eles,	que	o	sr.	Pirzada	parou	de	me	trazer	doces,	que	minha	mãe	se	recusava	a
servir	qualquer	outra	coisa	além	de	ovos	cozidos	com	arroz	no	 jantar.	Me	lembro	de	ter	ajudado	minha
mãe	a	estender	um	lençol	e	um	cobertor	no	sofá	para	o	sr.	Pirzada	poder	dormir	ali,	e	de	vozes	agudas
gritando	no	meio	da	noite	quando	meus	pais	 telefonavam	para	nossos	parentes	em	Calcutá	para	 saber
mais	detalhes	da	situação.	Acima	de	tudo,	me	lembro	dos	três	agindo	durante	essa	época	como	se	fossem
uma	só	pessoa,	compartilhando	uma	única	refeição,	um	único	corpo,	um	único	silêncio,	um	único	medo.
Em	 janeiro,	 o	 sr.	 Pirzada	 voou	 de	 volta	 para	 sua	 casa	 de	 três	 andares	 em	Daca,	 para	 descobrir	 o	 que
restava	 dela.	 Não	 estivemos	 muito	 com	 ele	 naquelas	 últimas	 semanas	 do	 ano;	 ele	 estava	 ocupado
terminando	seu	manuscrito	e	fomos	à	Filadélfia	passar	o	Natal	com	amigos	de	meus	pais.	Assim	como	não
tenho	 lembrança	da	primeira	visita	dele,	não	tenho	 lembrança	da	última.	Meu	pai	o	 levou	ao	aeroporto
uma	 tarde,	 enquanto	 eu	 estava	na	 escola.	Durante	 um	 longo	 tempo,	 não	 tivemos	notícias	 dele.	Nossas
noites	continuavam	iguais,	com	o	jantar	na	frente	das	notícias.	A	única	diferença	era	que	o	sr.	Pirzada	e
seu	 relógio	 extra	 não	 estavam	 lá	 para	 nos	 acompanhar.	 Segundo	 as	 reportagens,	 Daca	 estava	 se
recuperando	devagar,	com	um	governo	parlamentar	recém-formado.	O	novo	líder,	xeique	Mujib	Rahman,
recentemente	 libertado	 da	 prisão,	 pediu	 aos	 países	 material	 de	 construção	 para	 refazer	 mais	 de	 um
milhão	 de	 casas	 destruídas	 na	 guerra.	 Refugiados	 incontáveis	 voltaram	 da	 Índia,	 recebidos,	 pelo	 que
ficamos	sabendo,	com	desemprego	e	ameaça	de	fome.	De	quando	em	quando,	eu	estudava	o	mapa	acima
da	mesa	de	meu	pai	e	 imaginava	o	 sr.	Pirzada	naquele	pedacinho	amarelo,	 transpirando	 intensamente,
imaginava	 que	 estava	 usando	 um	 de	 seus	 ternos,	 procurando	 a	 família.	 Claro,	 o	 mapa	 estava
desatualizado	na	época.
Finalmente,	 vários	 meses	 depois,	 recebemos	 um	 cartão	 do	 sr.	 Pirzada,	 comemorando	 o	 ano-novo
muçulmano,	 junto	 com	 uma	 carta	 breve.	 Ele	 escreveu	 que	 havia	 reencontrado	 a	 esposa	 e	 as	 filhas.
Estavam	todas	bem,	tendo	sobrevivido	aos	acontecimentos	do	ano	anterior	numa	propriedade	dos	pais	de
sua	esposa	nas	montanhas	de	Shillong.	As	 sete	 filhas	 estavam	um	pouco	mais	 altas,	 escreveu	ele,	mas
continuavam	as	mesmas,	e	ele	ainda	não	conseguia	lembrar	seus	nomes	na	ordem.	No	fim	da	carta,	ele
agradecia	 nossa	 hospitalidade,	 acrescentando	 que,	 embora	 entendesse	 agora	 o	 sentido	 das	 palavras
“muito	obrigado”,	elas	ainda	não	eram	adequadas	para	expressar	sua	gratidão.	Para	comemorar	a	notícia,
minha	mãe	preparou	um	 jantar	especial	 essa	noite,	 e	quando	nos	 sentamos	para	comer	na	mesinha	de
centro	brindamos

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