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Sobre o Fundamento da Moral

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Sobre o·_;Eundamento 
da Moral-
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1 SBN 85- 336- 1495- O 
1 1 
911788533 614956 
Martins Fontes 
Parece que o autor de O mundo como 
vontade e representação finalmente saiu 
do esquecimento a que o haviam relega­
do, desde há mais de meio século, não 
apenas a filosofia universitária, que ele já 
vilipendiava em seu tempo, como tam­
bém essa posteridade européia em que 
ele depositava tantas esperanças. Pode­
ríamos até nos perguntar se o advento de 
um "novo" pessimismo e o entusiasmo 
pelas "6.losofias" orientais não irão res­
tituir a Schopenhauer a atualidade e o 
prestígio que desfrutava no início do sé­
culo. 
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SOBRE O 
FUNDAMENTO 
DA MORAL 
SOBRE O 
FUNDAMENTO 
DA MORAL 
Arthur Schopenhauer 
Tradução 
MARIA LÚCIA MELLO OLIVEIRA CACCIOLA 
Martins Fontes 
São Paulo 200 J 
Título origüwl: UIJER DAS F(INOAMEIVT IHH. \/Off-\1. 
Copyn.�ht © /97R. Fl<1111m,mo11 /Hlm o pu.ft.íâo 
Copyright© /995. Ln rnria Mwr;n:,, Fo11u,., Editora Lula .. 
Seio Pmdo. para" f'll'H'llle ediçlio. 
1 1 edição 
j1111ho tf,, /995 
21 ediç:iu 
omubro ti<• 200/ 
Tr.1duçfiu 
MA/1/A LÚCIA MELLO OU\ EIRA Ct\CCIOLA 
Traduç:iu do prefücio 
Eduardo /Jmmlüo 
Preparação da lraduç:10 
\ át/1111 \ 'aleminm·uc/1 Ni{ir111 
U.c,-'is�o i:tn"llic a 
R,•11mo tia Rmha Cario.\ 
Produção gráfica 
Geraldo Ah'('.\ 
Paginaçf10 
Amomo Nemon Afre.\" Q11int11w 
Dados lnlernacion:1is de Catnlog::i�·,io n:l Publicação (CIP) 
(Câmara Urasileira do Lh ro, SP. Hrasil) 
Schopcnh:mcr. Anhur. 1788· 1860. 
Sohrc n fundamcmo da moral/ J\nhur Schopenhauer: 1r:1duç.:i.o 
Maria Lúcia Mello QJi..,cira Cacciola. 2ª ed. São Paulo: M:mins 
Fomes, 2001. - (Coleção clá,sicos) 
Título original: Uber das fundameni der moral. 
ISBN 85-336-1495·0 
1. Ética 2. Filo"ofi,1 ;1lcmà .l Schopenhauer. A11hur, 1788-1860. 
1. Título. li. Série. 
O 1-4886 CDD-193 
Índices pnrn catálogo sislcmálico: 
1. Moral : Filmofia .:1Jemii 193 
Todos os direitos desra ediriio para a /fngua portuguesa resen·ados à 
Livraria Martins Fontes Editora Lida_ 
Rua Couselheiro l?amalho. 3301340 01325-000 Sãa Paulo SP Brasil 
Te/. (li/ 3241 .3677 F(1-1 (li) 3105.6867 
l'·mail: i11fo@marti11.ifon1es.com.br l11tp:/h,•ww.martin.ifomes.com.h1· 
Índice 
Prefácio: Atualidade de Schopenhauer ............. . 
"A filosofia deve permanecer cosmologia e 
não se tornar teologia" .................................. . 
O "pensamento único" e a quadripartição 
de O mundo ................................................... . 
O princípio de razão suficiente e a herança 
kantiana. O "parricídio" ................................. . 
O pantelismo schopenhaueriano .................. . 
Sobre o fundamento ela moral ...................... . 
A crítica de Kant ............................................ . 
Dedução da compaixão ................................ . 
O fundamento metafísico .............................. . 
Adão e Jesus .................................................. . 
Cronologia ele Schopenhauer ............................. . 
I. Introdução ...................................................... . 
1. Sobre o problema .................................... . 
2. Visão geral retrospectiva ......................... . 
II. Crítica do fundamento dado à moral por. Kant.
3. Visão geral ............................................... . 
4. Sobre a forma imperativa da ética de Kant.
5. Sobre a admissão cios deveres em rela-
ção a nós próprios, em especial. ............ . 
VII 
XV 
XXV 
XXXIV 
XLV 
LI 
LIV 
LX 
LXXII 
LXXVII 
LXXXIII 
5 
5 
11 
19 
19 
23 
30 
6. Sobre o fundamento ela ética kantiana .... . 
Observação .............................................. . 
7. Do princípio máximo da ética kantiana .. .
8. Das formas derivadas do princípio máxi-
mo da ética kantiana ............................... . 
9. Doutrina kantiana da consciência .......... . 
10. Doutrina kantiana do caráter inteligí-
vel e empírico. Teoria da liberdade ....... . 
Observação .............................................. . 
11. A ética de Fichte como espelho de au-
mento dos erros da ética kantiana ......... . 
IH. Fundação da ética .......................................... . 
12. Exigências ................................................ . 
13. Visão cética .............................................. . 
14. Motivações antimorais ............................. . 
15. Critério das ações dotadas de valor moral ..
16. Estabelecimento e prova da única mo-
tivação moral genuína ............................. . 
17. A virtude da justiça .................................. . 
18. A virtude da caridade .............................. . 
19. Confirmação do fundamento da moral
que foi apresentado ................................. . 
20. Sobre a diferença ética dos caracteres ... .
IV. A explicação metafísica do fenômeno éti-
co originário ..................................................... . 
21. Esclarecimento sobre esse suplemento ..... . 
22. Fundamento metafísico .............................. . 
Apêndice: Julgamento da Sociedade Real Di-
namarquesa de Ciências ......................................... . 
34 
63 
67 
75 
86 
93 
98 
101 
107 
107 
108 
120 
129 
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141 
159 
165 
190 
205 
205 
210 
225 
Prefácio* 
Atualidade de Schopenhauer 
Alain Roger 
A inscrição de Schopenhauer no programa da "agré­
gation" de filosofia, a reedição de seus ensaios morais1 , 
os recentes trabalhos de E. Sans2 parecem indicar que o 
autor de O mundo com.o vontade e representação final­
mente saiu do esquecimento a que o haviam relegado, 
desde há mais de meio século, não apenas a filosofia 
universitária, que ele já vilipendiava em seu tempo, como 
também essa posteridade européia em que ele deposita­
va tantas esperanças. Poderíamos até nos perguntar se o 
advento de um "novo" pessimismo e o entusiasmo pelas 
• Ver na p. 1 a relação das abreviaturas utilizadas neste Prefácio. As pá­
ginas citadas referem-se às edições francesas. 
1. Os dois proble111asfi111da111elllais da ética (Die beiden G11111dprobleme
der Ethik), publicado em 1841, compreende a memória "Sobre a liberdade da 
vontade" ("Über die Freiheil eles \Xlillens"), traduzido [para o francês] por S. 
l!einach com o título infeliz ele Essai s11r le libre arbitre [Ensaio sobre o livre­
:irbítrio] (Alcan, 1877) e reeditado pelas Éclitions cl'Aujourd'hui ( 1977), assim 
rnmo Sobre o f1111damento da moral ( Über c/ie Gm ndlage der Moral), cuja tra­
dução [francesa] por A. Burdeau (Alcan, 1879) é reproduzida a seguir. 
2. Devemos a E. Sans a primt'ira tradução [francesa] de Über den fflilfen 
i11 der Natur 0836), De la uolonté dans la nature [Da· vontade na natureza] 
(l'.U.F., 1969), precedido ele uma substancial apresentação e um imponente 
c�tuclo. Richard \Vagner et la pensée schopenhauerie1111e [Richard Wagner e o 
pensamento schopenhaueriano] (Klincksieck, 1969). 
VíT 
-
---------Arlb11r Schopenbauer ________ _
"filosofias" orientais não irão restituir a Schopenhauer aatualidade e o prestígio que desfrutava no início do sé­culo e que levavam Ruy.ssen a escrever: "Ainda hoje,bem na hora em que a glória de Nietzsche parece ten­der para o declínio (sic), Schopenhauer permanece noprimeiro plano dos escritores propriamente filósofoscio século XTX alemão; (. .. ) todos o.s historiadores reco­nhecem que sua estrela parece crescer em clareza nohorizonte do passado, em que tantas outras constela­ções, há pouco reluzentes, .se eclipsaram; muito inais,reconhecem nele um dos mestres da l1ora presente, atémesmo uma das forças espirituais mais vivas e__Jnaisfecundas em que o pensamento de amanhã poderá ins­pirar-se. ".l 
Por que essas décadas ele desprestígio? Não há dúvi­da quanto à resposta: a doutrina de Schopenhauer pare­ce desenvolver-se à margem, se não contra as grandescorrentes de pensamento que compartilham o favor con­temporâneo. Deve-se deduzir daí, desde já, que as críti­casrepetidas sofridas por Freud e Marx servirão a Scho­penhauer? É cedo demais para afirmá-lo, e não cabe aquidiscuti-lo. Como quer que seja, a filosofia ele O mundoparecerá para muitos antiquada. Schopenhauer, que nun­ca cita Marx - lacuna surpreendente, quando se sabe desua erudição e ele sua hostilidade aos hegelianos de es­querda -, não tem filosofia política. Sua doutrina do Es­tado é rudimentar, suas considerações econômicas rara­mente superam o nível da anedota. Seu pensamento éanti-histórico; sua divisa "eadem, sed aliter" (M. p. 1184)supõe o "retorno contínuo elas mesmas situações" ("stets
3. Th. Ruyssen, Scbope11ba11e1; Alcan, 1911, p. 367.
VIII 
---------- Sobre u Ji111damento da mora/ _________ _ 
wieclerkehrenden Lagen")'; de sorte que "os hegelianos, 
para quem a filosofia da história se torna inclusive o ob­
jetivo principal ele toda filosofia, devem ser remetidos a 
Platão" (M. p. 1183). Ele odeia o socialismo, e buscaría­
mos em vão nessa obra, que vê na compaixão o funda­
mento ela moral e cuja última palavra é a resignação, al­
guma veleidade ele insurreição. Seus adversários não 
deixaram de sublinhar que Schopenhauer reserva sua 
indignação aos "três sofistas", Hegel, Fichte, Schelling, e 
a quem maltrata os animais. Se ele evoca "a escravlaão 
dos negros" ou o trabalho de uma criança "de cinco anos 
numa fiação" (M. p. 1341), não é para reclamar justiça 
ou gritar sua revolta, mas para justificar seu pessimismo 
e a "eutanásia da vontade". Quanto às iniciativas da es­
querda hegeliana e dos socialistas ingleses, Schopenhauer 
por elas só tem desprezo e a condescendência ele um 
burguês ele Zola: "vemos, hoje mesmo (1844), na Ingla­
terra, entre operários de fábrica pervertidos, os socialis­
tas, e na Alemanha, entre estudantes corrompidos, os jo­
vens hegelianos se rebaixarem a doutrinas de todo ma­
teriais, que têm como fórmula Ciltima 'edite, bibite, post 
morrem nulla voluptas' [comam, bebam, depois da mor­
te já não há prazer] e podem ser caracterizadas com o 
nome de bestialidade" (M. p. 1204)'. 
4. A tradução por "eterno retorno" (M. p. 319) é errada, pois Scho­
penhauer não antecipa em absoluto o "pensamento abissal" de Zaratustra. 
5. ·'Na filosofia evolucionista de Hegel fermentava. a despeito do seu au­
tor, um levedo revolucionário. A de Schopenhauer é toda impregnada do 
consc1Yadorismo reacionário da Santa Aliança. Seu renome( ... ) começou a di­
fundir-se na Alemanha depois ela decepção de 1841:3; alcançou a França logo 
após a guerra e a Comuna:· .J. Bourdeau, em Schopenhauer. Pe11sées et Ji·ag­
menls [Pensamentos e fragmentos]. Alcan, 1881, pp. 234-5. Ribot já o assinala­
ra cm La pbilosopbie de Schopenba11er [A filosofia de Schopenhauer], Gcrmer 
Bailliere, 1874, p. 9. 
IX 
___________ Arthu.r Schopenhau.er __________ _ 
Já com Freud é diferente - ou deveria ser. Se a origi­
nalidade da psicanálise consiste, em primeiro lugar, em 
ter articulado o desejo e o inconsciente pela mediação 
do recalque6, Schopenhauer merece tanto quanto seu dis­
cípulo E. voo Hartmann7 , se não mais, o título de precur­
sor, na medida em que sua Vontade, inconsciente por um 
lado, é fortemente sexualizada por outro. A sexualidade 
é o "foco" (Brennpunkt) da vontade (M. pp. 261, 416, 
1265). "O apetite sexual (. .. ) é o desejo que constitui a 
própria essência do homem" (M. p. 1263); "o homem é 
um instinto sexual que tomou corpo" (M. p. 1265) - fór­
mulas que antecipam as famosas páginas de O ser e o na­
da, em que, contra "as filosofias existenciais (que) acha­
ram que não deveriam preocupar-se com a sexualidade", 
Sartre se pergunta se o sexo não é apenas "o instrumen­
to e como que a imagem de uma sexualidade fundamen­
tal"8, questão à qual Schopenhauer, mais ele um século 
antes, já respondera. 
Objetar-se-á que a Vontade schopenhaueriana não é 
o recalque, que esse conceito central da psicanálise está
ausente de O 1nundo. Não é essa, justamente, a opinião
de Freud, que num texto de 1914 - Contribuição para a
história do movimento psicanalítico - concorda com a
prioridade de Schopenhauer: "Com certeza, quando con-
6. "Nossa noção do inconsciente é, assim, clecluzicla da teoria cio recal­
que." Freud, le moi e/ /e ça [O ego e o icl], tracl. fr. em Essais de psycbanalyse, 
Payot, 1973, p. 181. Sobre essa questão, ver .J. Lacan, Posilion de /'inconscient 
[Posição do inconsciente], em Écrils [Escritos], Seuil, 1966, pp. 829 ss. 
7. Ao mesmo tempo que sua Filosofia do inconsciente(1869), E. von Hart: 
mann publica Scbellú1gs positive Pbifosopbie ais Einbeit uon Hegel und Scbo­
penbauer [A filosofia positiva de Schelling como unidade ele Hegel e Scho­
penhauer]. 
8. Sartre, L'être et /e 11éanl [O ser e o nada], Gallimard, 1943, pp. 451-452.
X 
Sobre 0Ji117da111e11/o da mora/ _________ _ 
cebi essa dourina do recalque, minha independência era 
total. Nenhurn:1 influência, que eu saiba, me havia incli­
nado para ela. Portanto, considerei minha idéia original, 
até o dia em que O. Rank me mostrou, em O mu.ndo co-
1no vontade erepresentação, a passagem em que o filó­
sofo se esforça por explicar a loucura. ( ... ) O que, no 
texto que Rank me mostrava, Schopenhauer diz sobre a 
maneira come nos obstinamos em recusar a admitir uma 
realidade penosa pode ser rigorosamente superposto à 
minha teoria do recalque. Era ao fato ele ter lido tão pou­
co que eu devia, mais uma vez, a originalidade ela mi­
nha doutrina.'9 Mais ainda, Uma d{ficuldade da psicaná­
lise (1917) tenlina com este elogio: "Eminentes filósofos 
podeff\ ser citados corno seus precursores (da psicanáli­
se), antes de rnais nada o grande pensador Schopenhauer, 
cuja 'vontade' inconsciente equivale aos instintos psíqui­
cos da psicanálise. Aliás, foi esse mesmo pensador que, 
em palavras ele inesquecível vigor, lembrou aos homens 
a importânci:l sempre subestimada das aspirações se­
xuais deles." 111 A discrição cios epígonos mostra-se ainda 
9. O texto indicado por Rank é o capítulo XX:Xll elos Suplementos ao
Livro Ili de O 1111111do, ·'Da loucura" ('·Über clen Wabnsinn"). Nele abundam as 
fórmulas pré-freudianas: "A verdadeira saúde do espírito consiste na perfeição 
da reminiscência" ("Rückerinnerung'' - M. p. 1130). '·É nessa repugnância 
("Wiclerstrehen" = resistência) ela vontade a deixar acontecer o que lhe é con­
trúrio ã luz cio intelecto que está a brecha pela qual a loucura pode irromper 
("einbrechen'') no espírito'' (M. pp. 1131-2). Algumas linhas abai..xo, Schope­
nhauer emprega o verbo "verdrangen" ("clie Verdrangung" = o recalque freu­
diano), in felizmente atenuado para '·supplanrer·· [suplantar] pela tradução 
rrancesa. 
10. Freud, une dif.licrrflé de la psycbana/ise [Uma· dificuldade ela psicaná-
lise], tracl. fr. em F,ssais de psycba11afyse appliquée, Gallimard, 1973, p. 147. O 
artigo de A. Fauconnet, "Schopenhauer, précurseur ele Freud'·, Mercure , XII, 
1933, pp. 566-77, cita e comenta o texto ele 1914 (O.C., tomo IV, Viena, 1932, 
XI 
------------Artbur Schopenhauer ___________ _ 
mais surpreendente. Se é excessivo sustentar que Scho­
penhauer "prefigura todas as filosofias de tipo genealó­
gico (Nietzsche, Freud, Marx)"'1, não se poderia negar 
/\ 
que foi ele o primeiro na história da filosofia ocidental a 
conceber a necessidade ele uma metafísica cio incons­
ciente e da sexualidade. A O mundo, que define a coisa 
em si como vontade - mas "não renunciamos em âbso-
luto, como Kant, à possibilidade de conhecer a coisa em 
si'' (M. p. 1241) -, faz eco a Metapsicologia de Fr�ud: 
"Assim como Kant nos advertiu para não esquecermos 
que nossa percepção tem condições subjetivas e para 
não a considerarmos idêntica ao percebido inconhecí­
vel, também a psicanálise nos exorta a não colocarmos a 
percepção da consciência no lugar cio processo psíquico 
inconsciente, que é seu objeto. Do mesmo modo que o 
físico, o psíquico não é necessariamente, na realidade, 
tal como nos aparece. Todavia, não tardaremos a ficar 
sabendo com satisfação que a correção da percepção in­
terna não ofereceuma clificuldacle tão grande quanto a 
pp. 420 ss.), mas parece ignorar o de 1917, no entanto célebre, pois expõe as 
'·três humilhações··, cosmológica (Copérnico), biológica (Darwin) e psicológi­
ca (Freud). 
l J. C. Rosset, Scbopenbauer, P.l:.r., J968. p. 23. O emprego, por Scho­
penhauer, dos verbos "deuten" [interpretar] ou '·entziffern·· [decifrar/ - M. pp. 
878 ss. - nào poderia legitimar semelhante afirmaç�o . Eles eram de uso corren­
te na idade clássica - Descartes recorre a eles - e, sobrewdo, pré-clássica [ver 
M. Foucault, Les mots et les cboses, Gallimard, J966, pp. 55-6 (Trad. bras. As
pC1iC1vrC1s e as coisas, B• edição, São Paulo, Martins Fontes, 1999).J. Também não
pa,·ecc que se possa ver em Schopenhauer um "füósofo do absurdo" (C. Rosse1, 
Schopenbauer pbilosopbe de /"absurde [Schopenhauer, filósofo do absurdo],
P.V.F., 1%7). A natureza schopenhaueriana não é absurda, mas "demoníaca", e
Schopenhauer n:1o deixa de citar a frase ele Aristóteles: "e physis cláimona a! u
théia ésti" (a natureza é demoníaca - '·damonisch" - e não divina) (M. p. 1076). 
XIJ 
----- Sobre o fi111dC111ie1110 da mom/ _________ _ 
1 l.1 pvrcepção externa, que o objeto interior é menos in.-
1 011 l wc íl'el do que o mundo exterior. " 12 
<,?uanto a Nietzsche, que fez de Schopenhauer seu 
1111111igo íntimo depois de o ter elogiado como "educa-
1 I< 1r" ( Erzieher) em sua terceira intempestiva, podemos 
..,t 1:-.tl'ntar, sem exagero, que ele praticamente fechou o 
.11 v:-.so a Schopenhauer há meio século. De fato, tudo 
.1n 1ntece como se a leitura de Nietzsche e elas críticas que 
l'll' descarrega em seu ex-mestre dispensasse a dos tex­
tos incriminados, nem que fosse apenas para apreciar a 
l'lickia da acusação. Ora, basta abordar sem prevenção 
quero dizer, sem postular que Nietzsche tem necessa-
1 i:tmente razão, o que, em nossos dias, requer certa au­
< l:1cia - o Livro 11 de O mundo para constatar não só que 
.1 acusação está mal embasada, mas também que o con-
1'L'ito de vontade ele poder, tal como se elabora no 
"Nachlass" nietzschiano, deve muito à vontade schopen-
1 rnieriana: "Ela (a força, 'die Kraft') está fora do tempo, 
l'Stá presente por toda a parte, e dir-se-ia que espreita 
constantemente a chegada das circunstâncias graças às 
11uais pode se manifestar e se apoderar de urna matéria 
dl'terminada, expulsando as outras forças que nela reina­
vam até há pouco." Muitos gostariam de que esse texto 
rosse de Nietzsche, mas é de Schopenhauer 13, entre vin­
te outros, igualmente "agressivos". O subterfúgio, ou, para 
ralar como Nietzsche, a ralsificaçâo, consiste em imputar 
12. Freud, Métapsycbologie [Melapsicologial, trad. fr. Gallimard, 1968. p. 
7 r. Gnfo nosso. 
13. M. p. 182. No capínilo seguime (M., TI, 27), encontramos os termos
"l,onflikl", "sich bemachtigen·· [apoderar-se de], "Streit" [luta], LJberwültigen" 
hl·ncer), "Streben" [esforço], ·'Sieg" [vitória], "untcrwerfen" [submeter], '·\Vicler­
,1,md" [resistência] ele. W., 1, pp. 215-6. 
)ClII 
1 -----------A1th11r Schopenhauer __________ _
a Schopenhauer uma concepção conservadora e lenifi­cante do querer-viver - no Livro II de Zarat11stra, porexemplo, em que a Vida em pessoa é convocada paraprotestar contra o autor de O niundo'' -, isto é, em to­mar a espécie pelo gênero, ou, mais exatamente, uma desuas manifestações pela essência da vontade, que nãopoderia querer viver, pois, tal como a vontade de podernietzschiana, ela também rege o mundo inorgânico. Como compreender, pois, a extraordinária simpatiaque Schopenhauer desfrutou na segunda metade dõ sé­culo XIX e que pode explicar, em cerca medida, a obsti­nação de Nietzsche? Um estudo sistemático das influên­cias" revela que estas exerceram-se sobretudo sohre osartistas e, se excetuarmos Wagner, sobre escritores: Amiel,Maeterlinck, Tolstói, Mann, D'Annunzio, Maupassant, Zo­la, ITuysmans16, Mirbcau, Barres, Gicle, para citarmos ape­nas os maiores. Seu prestígio foi, portanto, mais estéticodo que propriamente filosófico". Aliás, ele é consecutivoà publicação elas Parerga (1851), cuja composição, umtanto rapsóclica, e cujo estilo, por vezes complacente,convêm mais ao amador cio que ao especialista - e cus­tou um progressivo empobrecimento; seríamos tentados
14. Nietzsche, Ass/111 falou Zara1t1s1ra. li, Do controle de si ("Von derSelbstüberwinclung"). '·Claro, não alcançou a verdade quem pôs em circulaçãoesta fórmula de ·querer viver': esse querer não existe", tracl. fr. Aubier, p. 241. 15. Ver em paiticular A. Baillot, !11jl11e11ce de fc1 philosopbie de Schope11ha11er e11 France fJn!lui?ncia ela filosofia de Schopenhauer na França], AJcan, 1927. 16. Des Esseintes, o herói de À rehours [Às avessas] 0884), tem comomestre Schopenhauer. O fato ele, pouco depois, Huysmans ter aderido ao cris­tianismo apenas confirma a tese nietzschiana, igualmente aplicada a Wagner. 17. Assim E. Seilliere pôde ver em Schopenhauer "o profeta e iniciadorda quarta geração româmica·• 0860-1890). Arllmr Scbope11ba11er, Bloud,1911, p. 7. 
XIV 
-------- Sobre ofundamenlo da moral ________ _ 
:t escrever um verdadeiro aviltamento ela doutrina. As­
sim, a armação teórica de O mundo (Livros I e II) foi des­
prezada, até mesmo ignorada, em benefício das conside­
rações sobre a a1te (Livro III) e a ética (Livro IV), que, 
por mais atraentes que sejam, por certo não constituem 
a parte mais original, nem a mais forte, do sistema. Co­
mo quer que seja, essa "wagnerização", pela qual Nietzs­
che nunca poderia ser tido como único responsável, é 
sem dúvida um dos motivos ela desafeição que Scho­
penhauer não tardaria a conhecer. 
"A HLOSOFJA DEVE PERNJANECER COSMOLOGJl1 
E NÃO SE TORNAR TEOLOGIA" 
Schopenhauer esperou o sucesso durante mais de 
trinta anos. Essa indiferença elos contemporâneos nada 
tem ele surpreendente, na medida em que o pensamen­
to schopenhaueriano é profundamente estranho, quanto 
ao conteúdo, e violentamente hostil, quanto ao estilo, à 
filosofia dominante nessa primeira metade do século XIX 18 
- estamos falando do pós-kantismo -, "cuja época é cita­
da pela história da filosofia sob o título de 'período da
desonestidade'" (L. p. 169, F. pp. 57-8). O fato ele Scho­
penhauer ter-se identificado com Sócrates, às voltas com
as espertezas dos "três sofistas" (Fichte, Schelling e He­
gel), fica claro em numerosos textos polêmicos, em que,
18. Sobre essa '·luta cio grande homem contra s·eu tempo", ver a terceira
das Considerações i11te111peslivas ele Nietzsche, Schopenhauer ed11cado1; trad. 
fr. Aubier. pp. 59 ss. "Gostaria, agora, ele explicar claramente como todos nós 
podemos aprender com Schopenhauer a lutar contra nosso tempo" (ih., p. 61). 
XV 
--------Arlbur Scbope11ba11er _______ _
vituperando contra "os Górgias e os Hípias, mestres daopinião" CM. p. 20), opõe-lhes "esse deslumbrante cará­ter de lealdade e de franqueza com que (suas) obras sãocomo que marcadas na fronte" (M. p. 12). O sistema ele Fichte nada mais é que uma "filosofia debrincadeira" (M. p. 60, "Spiegelfechterei": patacoada); sua"Wissenschaftslehre" (Doutrina-ela-Ciência) uma "Wissens­chaftsleere" (vazio ele ciência. Q. p. 90 e F. p. 104).Schelling é criticado pela "massa pastosa (da) identidadeabsoluta" (F.H. p. 113), sarcasmo que não deixa ele 1ern­brar o de Hegel, quando, em seu Prefácio à Fenome­nologia do espírito, compara o absoluto schellingianocom a "noite em que, corno se costuma dizer, todas asvacas são pretas"'9. Quanto a Hegel, "Caliban intelectual''(M. p. 13), "criatura ministerial" ("Ministerkreatur" - L. p.165), esse "charlatão sem-espírito e grosseiro'' (F. p. 58 -"geistlose", literalmente "sem-espírito", o que tem a suagraça, por se aplicar a um filósofo que faz do "Geist" seuconceito fundamental...), "quem conseguisse ler suaubra mais renomada, A fenomenologia do espírito, semse julgar numa casa de loucos, a ela pertenceria de direi­to" (L. p. 168). Espírito e Natureza são "filosofemas bai­xos" (M. p. 286). "Aliás, a palavra Geist é, como se sabe,parente da palavra gás ... "(L. p. 173). 
No entanto, mais que os insultos, importam as oposi­ções doutrinárias. No essencial, elas se referem à heran­ça kantiana, da qual Schopenhauer se pretende, ao mes-
1 { mo tempo, o único depositário - "foi Kant que introdu­ziu a seriedade em filosofia e sou eu que a mantenho"
19. Hegel, la pbénomé11ologie de /'esprit [A fenomenologia do espírito],tracl. fr. Aubier, 1939, 1, p. 16. 
XVI 
------- Sobre o ji111dame1110 da moral _________ _ 
( V. p. 52) - e o "audacioso continuador" (V. p. 45), opon­
do sua fidelidade, aliás discutível, às traições elos sofistas. 
i'·: verdade que tudo o que ele retém do kantismo é rejei­
t :1do por Hegel, e vice-versa. Por exemplo, e para nos 
:1termos à Primeira Critica (tornaremos mais detalhada­
mente sobre a Segunda), Schopenhauer conserva o dua­
l ismo elo fenômeno e da coisa-em-si, que, em seu pró­
prio sistema, se torna o ela Representação ("Vorstellung") 
<.: da Vontade ("Wille"). Tê-las distinguido é o "maior mé­
rito de Kant" (M. pp. 522 e 879). Assim, a Estética Trans­
cendental representa um dos "dois grandes diamantes 
da coroa da glória kantiana", sendo o outro "a coexistên­
cia da liberdade e ela necessidade" (L. p. 204). Hegel, ao 
contrário, considera a coisa-em-si como a tara do kantis-
11102º. Na Dialética Transcendental, Schopenhauer reto­
ma, com algumas reservas apenas, as críticas da psicolo­
gia e ela teologia racionais; mas, pela ela cosmologia, tem 
apenas desprezo: "acho e declaro que toda a série das 
antinomias nada mais é que um fingimento, um simula­
cro de conflito. Somente as proposições chamadas antí­
teses repousam efetivamente nas formas da nossa facul­
dade de conhecer; ( ... ) em cada uma elas quatro antino­
mias, a demonstração ela tese é ( ... ) um sofisma; ao con­
trário, a demonstração da antítese é uma conseqüência 
incontestável, deduzida pela razão das leis 'a priori' elo 
mundo da representação" (M. pp. 620-1). Hegel, ao con­
trário, reabilita as provas da teologia racional, a começar 
pelo argumento ontológico21 , em que, segundo Kant, 
20. Sobre a crítica hegeliana da coisa-em-si como "caput monuuni'', ,·er. 
por exemplo, a Enciclopédia, parágrafo 44. observacào. 
21. Ver, em particular, as lições sobre a filosofia da religic7o, trad. fr. Vrin,
5 vols., l, A noção da religião ('·Begriff der Religion"), pp. 65, 177-178, 185-l90; 
IV, A religião absoluta, pp. 46-59: V. As provas da existência de Deus, pciss/111. 
XVII 
-----------A11h11r Schopenhauer __________ _ 
repousavam os dois outros. Em compensação, presta tri­
buto às antinomias, que, no elemento da representação, 
prefiguram a dialética do conceito, a do finito e cio infi­
nito em panicular22 . 
Hegel e seus sucedâneos universitários vêem-se 
acusados, pois, de restaurar o Absoluto, cujas preten­
sões teóricas o criticismo kantiano rejeitara, e, portanto, 
de rebaixar a filosofia ao papel de serva, "ancila disfar­
çada" ("verkappte": camuflada) da teologia (V. p. 55). 
"De nada adianta Kant ter demonstrado, com a penetra­
ção e a profundidade mais raras, que a razão teórica 
nunca pode elevar-se até objetos fora da possibilidade 
ela experiência. Esses senhores não se preocupam nem 
um pouco com semelhante coisa, mas ensinam sem he­
sitar, há cinqüenta anos, que a razão tem conhecimen­
tos diretos absolutos, que ela é uma faculdade natural­
mente fundada na metafísica e que, fora de qualquer 
possibilidade ela experiência, ela reconhece diretamente 
e capta seguramente o supra-sensível, o bom Deus e 
tudo o mais" ("und was dergleichen noch weiter" - F.F. 
p. 98). E Schopenhauer caçoa desse "pobre coitado",
submetido à regra universitária cio "primum vivere" e
"disposto a deduzir 'a priori' tudo o que lhe for pedido,
inclusive o diabo e sua mãe, e mesmo, se preciso, a ter
deles a intuição intelectual destes" (V. p. 64). Donde
este imperativo: "a filosofia deve permanecer cosmolo­
gia e não se tornar teologia" (M. p. 1380), menos ainda
22. "Esse pensamento de que a contradiçáo causada no racional pelas
determinações do entendimento é essencial e necessária deve ser considera­
do um cios progressos mais impo11an1es e mais profundos da filosofia moder­
na. Ora, a solução ela contrncliçào é tão trivial quanro é profundo o ponto de 
vista", Hegel, Enciclopédia, parágrafo 48, observação. 
xvm 
---------- Sohre o fu11da111e11to da moral _________ _ 
esse "culto contínuo" e "serviço divino" a que Hegel a 
destina 23. 
Essa condenação acarreta, ou, mais verossimilmente, 
supõe a hostilidade ele Schopenhauer a todas as formas, 
positivas e clericais, ela religião, em particular ao judaís­
mo, tachado de realismo, de otimismo e de monoteísmo, 
ao passo que a lealdade filosófica comanda o id� 
o pessimismo e o ateísmo. "Um filósofo deve ser, antes
de mais nada, um descrente" ("ein Unglaubiger", V. p.
45) e "a filosofia não é feita para levar água ao moinho
da padralhaela" ("den Pfaffen in die Hande zu spielen",
V. p. 48). "Há um só método sadio de filosofar sobre o
universo; há um só capaz de nos fazer conhecer o ser
íntimo elas coisas, ele nos fazer ultrapassar o fenômeno:
aquele que deixa de lado a origem, a finalidade, o por­
quê, e só procura por toda a parte aquilo de que é feito
o universo" ("Welche nicht nach clem Woher und Wohin
und Warum, sondem immer und überall nur nach clem
Was der Welt fragt". M. p. 349).
Mas a atitude de Schopenhauer para com a religião 
não é desprovida ele equívocos, pois o Livro IV de O 
mundo, em sua apologia das virtudes cristãs, recorre sis­
tematicamente às categorias cio Novo Testamento - peca­
do, graça2 ', conversão, redenção etc. -, laicizadas, é ela-
23. "A filosofia é um culto contínuo··, 1-Icgel, Lições sobre afllosoflu da reli­
Riâo, 1, tr. fr. p. 199. Isto é, uma comunhão contínua. A filosofia ··não tem OLnro 
obj<::to além de Deus; ela é essencialmente teologia e se1viço divino··, Estética, 
trad. fr. Aubier, 1964, A idéia do belo, !, p. 16. 
24. A tradução ele ··tteilsordnung" - título do penúltimo capítulo dos Su­
plementos ao Livro IV - por "A ordem da gra�,t'' (M. p. 1407) é inexata, mas sig­
nifícariva: "1--leil" [s::ilvaçào] não é "Gnacle .. [graça], ti,as o contexto favorece o 
deslocamento. Sobre o "pleno acordo'' da moral schopenhaue1iana com -os 
verdadeiros dogmas cristãos que a contêm em substância e a resumem", ver M. 
pp. 511-2 
XIX 
------------ AJ1h11r Scbope11ha11er ___________ _ 
ro. Mas podemos, com Nietzsche, interrogar-nos sobre a 
verdadeira significação desse retorno ao "espírito do cris­
tianismo", tanto mais que se multiplicam as citações de 
Santo Agostinho, Lutero, Mestre Eckhart, Jakob Boehme, 
Tauler etc., isto é, os mesmos de que se nutre a teologia 
hegeliana. Schopenhauer admite: "poder-se-ia qualificar 
minha doutrina de verdadeira filosofia cristã" (R. p. 164). 
"Ela está para o espinosismo como o Novo Testamento 
está para o Antigo" (M. p. 1419). Variante: "Minha filoso­
fia está para a ética de todas as filosofias européias como 
o Novo Testamento está para o Velho" (R. p. 162). De­
ve-se acaso sustentar, com Seilliere, que "Arthur Scho­
penhauer nada mais é que um místico cristão que rejei­
tou os entraves do dogma e o farelo da disciplina ecle­
siástica" (op. cil., p. 168)? Seria, mais uma vez, reduzir O
mundo à sua ética e amputá-lo dessa cosmologia, que
constitui o vigor da doutrina.
Pelo menos, a crítica ela teologia poderia ser acom­
panhada de um elogio ela ciência e de sua positividade. 
Com efeito, "a filosofia deve ser um conhecimento co­
municável por conseguinte racionalista. Mencionei em 
minha filosofia, ao terminar, é verdade, o domínio do 
iluminismo como existente, mas evitei ele nele aventurar 
um só passo" (FC. p. 140)'5. Do mesmo modo, contra 
Ruclolph Wagner, o "dissecador ele animais carola" que 
os havia atacado, Schopenhauer assume a defesa dos 
"zoólogos honestos que estão distantes da fraclaria, ela 
bajulação e do tartufismo e seguem seu caminho na mão 
ela natureza e ela verdade" (F. p. 185). Essas declarações, 
25. É notávelque essa declaração figure num artigo das Parerga intitula­
do "Sobre a filosofia e seu método''. 
XX 
---------- Sobre o jtllldamenlo da mora/ _________ _ 
contudo, não devem criar ilusões: nem a doutrina nem o 
método de Schopenhauer têm grande coisa a ver com o 
positivismo ele um Comte, que, aliás, ele nunca cita e 
não parece ter lido, se bem que as obras cios dois sejam 
contemporâneas. 
Convém sublinhar, primeiramente, que Schopenhauer, 
ao contrário ele Nietzsche, possui formação científica. 
Durante quatro anos, de 1809 a 1813, em Góttingen, de­
pois em Berlim, e paralelamente aos cursos ele Schulze, 
Fichte e Schleiermacher, ele fez os cursos cios anatomis­
tas Tiempel e Blumenbach, do astrônomo Bode, do na­
turalista lichcenstein, elos fisiologistas Horkel e Rosen­
thal; isso poderia explicar o erro ele sua mãe, que achou, 
segundo se conta, que a Quádrupla raiz (1813) fosse 
uma tese ele odontologia. Sua segunda obra, Da visão e 
das cores (1816), é um tratado científico em que, partin­
do da Farben./ehre de Goethe, ele opõe à concepção 
newtoniana sua "teoria fisiológica das cores" (V. p. 72 e 
F.C. p. 174). As diferenças entre elas não provêm nem
dos graus de refratividade dos raios (Newton) nem cios
meios atravessados (Goethe), mas da atividade retiniana
- belo exemplo do "materialismo idealista" de que falará
Frauenstadt. A esse respeito, é significativo que o nome
cio filósofo tenha sido citado primeiro nas revistas cientí­
ficas. Ulteriormente, Schopenhauer não cessou de com­
pletar sua informação, que por vezes chega às raias da
erudição, como atesta Da vontade na natureza (1836), e
não se limita às ciências físicas e biológicas, pois, no do­
mínio ela matemática, por exemplo, ele propõe a cons­
trução ele uma geometria intuitiva (Q. parágrafo 39) e
''dá exemplos luminosos desse gênero de demonstração
(. .. ) antecipando em quase um século as recentíssimas
XXT 
------------A11bur Scbope11ba11er ___________ _ 
teorias ele Mérey" (Th. Ruyssen, op. cit., p. 170), para não 
evocarmos as ele Brouwer. 
No entanto, sua cultura não o torna favorável aos gran­
des movimentos científicos ele seu tempo, nos quais cri­
tica o que hoje chamaríamos sua ideologia. Assim, recu­
sa o "materialismo tão grosseiro quanto estúpido" (V. p. 
41) de Büchner e Moleschott2<>, "uma filosofia de ajudan­
tes ele cabeleireiro e aprendizes de farmacêutico" (M. p.
872). A matéria é fenomenal e, como tal, não poderia
constituir o princípio último de explicação. "Por maiÕres
que sejam os progressos da física (. .. ), eles não contri­
buirão para nos fazer avançar um só passo em direção à
metafísica, assim como uma superfície, por mais que a
prolonguemos, jamais adquirirá um conteúdo em volu­
me" (M. p. 872). "Assim, nos dias de hoje, a casca da na­
tureza é minuciosamente estudada, conhecem-se nos
mais ínfimos detalhes os intestinos dos vermes intestinais
e os parasitas cios parasitasi-. Mas apareça um filósofo
26. Sobre Mok:schou e sua obra, Da circ11/açâo da vicia: "fe;:-se muito
bem cm retirar desse sujeito o direito ele dar um curso, não se podia tolerar 
tal coisa. À mesma escola. pertence um novo volume do Dr. Büchner sobre 
Força e matéria, totalmente no mesmo espírito. Conto com que esse outro 
camarada seja impedido ele dar seu curso". Carlct a fra11enstâdt de 29 de 
j1111bo de 1855. "Em minha última carta, cu lhe escrevia que esperava ver o 
Dr. J3üchner suspenso por causa ele seu livro Força e mctléria. Para minha 
grande satisfação, vejo pelo jornal de ontem que isso já está feito . ., Carta a 
Fme1111stiid1 de 15 dej11/ho de 1855. 
27. "Mas o domínio em que sou espedalista e tornei-me mestre é o cére­
bro da sanguessuga. ( ... ) Minha consciência cientffica exige que cu saiba uma 
só coisa e nada mais. Tenho horror ele todos os meio-sábios, dos espíritos 
nebulosos, flutuante�. exaltados." :\lictzsche, Assim falou Zara111stra, IV, '·A 
sanguessuga'", trad. fr. Aubier, p. 485. A crítica nietzschiana da ciência, cio ma­
terialismo e cio atomismo pouco acrescenta à de Schopenhauer, de que rcpro­
clu;: com freqüência até mesmo o estilo. 
XXII 
_ _______ Sobre o fundamento da mom/ ________ _ 
como eu, que fale do cerne íntimo da natureza, e essas 
pessoas já não se dignarão a ouvi-lo, estimando que esse 
estudo é estranho à ciência, e continuarão a descascar 
sua casca" (M. p. 873). Uma física ela vontade (1836) po­
de, sem dúvida, corroborar sua metafísica (1819), mas 
não poderia pretender a prioridade. 
Schopenhauer não é mais indulgente para com o ato­
mismo, "um absurdo revoltante (. .. ) uma idéia fixa elos 
cientistas franceses (. .. ) conseqüência do atraso em que 
ficou entre eles a metafísica28, tão desprezada em seu país" 
(M. p. 1019). Eles ainda estão em Locke e Condillac, não 
se submeteram à "operação de catarata" praticada por 
Kant na Alemanha. 
Quanto ao transformismo de Darwin, ele que Scho­
penhauer tomou conhecimento, ao menos em parte - o 
que prova a prontidão ele sua informação, pois A origem 
das espécies foi publicada em 1859, um ano antes ela sua 
morte-, "é um empirismo raso, totalmente insuficiente no 
assunto, uma pura variação sobre a teoria de Lamarck"29• 
De fato, "a obra nada tem em comum com (sua) teoria" 
(ib.), em que a vontade indestrutível exclui a possibilida­
de ele uma história ela vidaj() ; é inclusive um dos raros 
pontos acerca dos quais Hegel e Schopenhauer estão de 
acordo, por motivos diferentes, é verdade. "Em qualquer 
momento dado do tempo, todas as raças de animais ('alle 
28. A mesma página condena "a pouca profuncliclacle e a pobreza de
juízo ele V. Cousin". Maine de Biran, a quem, erradamente, se comparou 
Schopenhauer, não recebe melhor tratamento: sua concepção ela causaliclaclc 
é errada (M. pp. 709-10 e Q. p. 55). 
29. Ct111a a Von Doss de 10 de março de 1860.
30. Sobre a eternidade elas espécies. ver M. pp. 1221 ss., R. pp. 139 ss., F.C.
pp. 95 ss. 
XXJIT 
-----------Artb11r Scbopenbm1er __________ _ 
Tiergeschlechter'), desde a mosca até o elefante, coexis­
tem por completo" (M. p. 1231). Mas, ignorando o kantis­
mo, como seus compatriotas, "Lamarck não podia chegar 
a pensar que a vontade cio animal, enquanto coisa-em-si, 
pudesse situar-se fora cio tempo" (V. p. 101). 
A crítica schopenhaueriana ela ciência parece, pois, 
reduzir-se à oposição secular da metafísica às pretensões 
da física, cujo exercício, fora ela esfera fenomenal, sub­
metida à jurisdição do princípio de razão suficiente (e�pa­
ço + tempo + causalidade), toma-se ilegítimo. Mas Scho­
penhauer vai mais longe, ou antes, diz algo totalmente 
diferente, quando, nas Parerga, desenvolve uma con­
cepção estética ela filosofia, inscrevendo-se assim naque­
la linhagem ele pensadores alemães que, ele Schelling a 
Spengler, tendem a considerar os grandes sistemas como 
ohras de arte. "O filósofo nunca deve esquecer que pra­
tica uma arte, não uma ciência" (F.F. p. 120). "Sem dúvi­
da, essa filosofia enquanto arte será muito inoportuna 
para muita gente. Mas acho que o fracasso ele toda filo­
sofia enquanto ciência, isto é, segundo o princípio de 
razão suficiente, tal como há três mil anos se tenta fazê­
la, poderia bastar para nos levar a concluir historicamen­
te que não a fundaremos por esse meio" (F.F. pp. 134-5) 
- determinação artística e aristocrática3' do exercício filo-
31. "Ela será arte e, como esta, só existirá para alguns. De fato, para a
maioria das pessoas, nem Moza,1, nem Rafael, nem Shakespeare jamais existi­
ram; um abismo intransponível os separa para sempre ela multidão, cio mesmo 
modo que é impossível para a populaça aproximar-se dos príncipes" (F.F .. pp. 
126-7). "Ora, o mesmo se clarú com a minha filosofia: será uma filosofia en­
quanto ane. Cada um só compreenderá exatamente dela o que merece com­
preender; prn1amo, em seu conjunto, ela só agradará a uma pequena minoria. 
será a coisa 'paucorum hominum', o que é um grande elogio" (F.F. p. 134). 
XXIV 
----------Sobre o fimdamento da mora/ _________ _ 
sófico, que parececontradizer a injunção, no entanto con­
temporânea, de que "a filosofia deve ser um conheci­
mento comunicável por conseguinte racionalista" (F.C. p. 
140). Dir-se-á que essas considerações tardias (1851) não 
são, como a apresentação e o estilo das Parerga, mais que 
concessões sem conseqüência a um público que se gosta­
ria, apesar de tudo, de ver ampliado além do círculo dos 
"pauci homines"? Não é impossível, embora Schopenhauer 
tenha expressado essa convicção já em 1814: "Minha filo­
sofia deve se distinguir de todas as precedentes, com ex­
ceção daquela de Platão, pelo fato de não ser uma ciên­
cia, mas uma arte.":12 Como quer que seja, tais declarações 
sem dúvida contribuíram bastante para firmar, junto à 
"quarta geração romântica", a imagem errônea de um 
Schopenhauer hostil a toda e qualquer forma de raciona­
lidade, opondo-se-lhe as armas, não muito pesadas ele se 
brandir, do estetismo e do misticismo. 
O "PENSAMENTO ÚNICO" EA QUADRIPART!ÇÃO 
DEO MUNDO 
·'O que aqui se propõe ao leitor é um pensamento
único" ("ein einziger Gedanke" - M. p. 1). Essa afirma-
32. Nacblass, ed. Griesebach. Leipzig, 1892, IV, p. 21. Comparar com es­
sa passagem elas Parerga: "Minha filosofia distinguir-se-á em sua essência 
íntima ele todas as outras - com exceção. até certo pomo. da filosofia de Pla­
tão - na medida em que não é( ... ) uma ciência, e sim uma arte" (r.F. pp. 126-
7). Os Suplementos a O mundo também esboçam essa concepção estética ela 
filosofia: "Ela eleve ser considerada o baLxo fundamental ('Grunclbass') ele 
todas as ciências, mas é de essência superior a estas e parente quase tanto ela 
arte como ela ciência" (M. p. 813). 
X)..'V 
-----------Arthur Scbopenbauer __________ _ 
ção liminar e de aparência modesta é constantemente 
renovada: "todas as minhas teorias são perpassadas por 
um pensamento principal que aplico à guisa de chave 
(Schlüssel) a todos os fenômenos do mundo" (M. p. 
881; ver também M. p. 471). A chave nada mais é, como 
sabemos, do que a célebre distinção kantiana, mas defi­
nida e, com isso, transformada, pois o fenômeno passa 
a ser denominado "representação", ao passo que a 
coisa-em-si torna-se a Vontade, una, universal, indestru­
tível e livre. Essa segunda determinação é, evidentemen­
te, a mais original - e a mais problemática -, ainda que, 
como Schopenhauer gosta de ressaltar, esteja em germe 
no kantismo: "admito, conquanto me seja impossível 
mostrá-lo, que Kant, cada vez que fala da coisa-em-si, já 
se representava vagamente ("undeutlich") e nas profun­
dezas mais obscuras de seu espírito a vontade livre" (M. 
p. 635). E, de maneira mais categórica: "Cada vez que
ele examina mais detidamente a coisa-em-si, ela apare­
ce sempre através de seu véu, sob a forma de vontade"
(F.II. p. 165). Portanto, o conceito de vontade não é
mais limitado à ética, nem mesmo à antropologia - em­
bora, em Kant, ele já se estendesse a "todos os seres ra­
cionais" -; ele não institui somente uma metafísica dos
costumes, mas funda uma metafísica da natureza, ou,
como bem indica o título da obra (Die We!t ais ... ), uma
cosmologia: "Kant não havia levado seu pensamento 
até o fim; simplesmente continuei sua obra. Por conse­
guinte, estendi (übertragen) a todo fenômeno, em geral, 
o que Kant dizia unicamente do fenômeno humano"
(M. p. 631). Simples continuação ou extensão exorbi­
tante: é este todo o problema do "pós-kantismo" scho­
penhaueriano.
XXVI 
_ ________ Sobre ojitndamento da mora/ ________ _ 
A "característica fundamental" (V. p. 76) desse dualis­
mo é que ele rompe brutalmente com a tradição carte­
siana e, mais geralmente, racionalista. A Vontade não é 
mais simples atributo ou "função" (ih.) do pensamento. 
Separa-se dele, sem com isso cair na extensão, e "essa 
separação ('Zersetzung') ( ... ) em duas componentes he­
terogêneas é, para a filosofia, o que foi para a química a 
análise ('Zersetzung') da água" (ib.). Se Kant disse ser o 
Copérnico da filosofia, Schopenhauer prentende ser seu 
Lavoisier. Se o realismo é ptolomaico, o dualismo carte­
siano é alquímico. Mas, nunca seria demais insistir nisso, 
os dois pares não são simétricos. "Essa divisão cartesiana 
de todas as coisas em espírito e matéria não é, pois, filo­
soficamente exata; a única divisão verdadeira é aquela 
em vontade e representação, que não funciona em abso­
luto em linha paralela" (F.C. pp. 33-4). A "res extensa" 
reúne-se à "res cogitans" elo lado da representação, de 
sorte que a matéria, longe de ser coisa-em-si, vê-se dota­
da de um estatuto puramente fenomenal. Tal remaneja­
mento é evidentemente acompanhado de uma inversão 
da ordem das prioridades e superioridades: a vontade, 
metafísica, é "o 'prius' do organismo" (V. p. 76), de que 
o intelecto, físico, não é mais que o "posterius" (ih.). De
resto, o próprio cartesianismo não representa mais que
um estado tardio da filosofia ocidental, obnubilada pelo
primado da racionalidade, "esse velho erro fundamental
que todos partilharam" (M. p. 894), que data de Anaxá­
goras33 e de que o "pensamento único" pretende ser a
33. "Assim direi ele passagem qt1e, entre os filósofos, met1 antípoda dire­
to é Anaxágoras. Pois ele considerou arbitrariamente como elemento primei­
ro e original, ele que deri\-a o resto, um 'not1s', t1ma inteligência, um sujeito 
XXVll 
--------Arth11rScbope11ba11er _______ _ 
reparação, de modo que, para falar como Nietzsche, ahistória seria "quebrada em dois" pela publicação de Omundo ... 
"Dado que a presente obra, como eu já disse, nadamais é que o desenvolvimento de um só pensamento,todas as suas partes têm a mais íntima ligação entre si"(M. p. 363). Além disso, convém justificar a quadripartição,isto é, a adoção de quatro pontos ele vista ("Betrach­tungen") que se opõem termo a termo, estando o tercei­ro ("a representação considerada independentementedo princípio de razão") para o primeiro ("a representa­ção submetida ao princípio de razão suficiente") assimcomo o quarto ("conseguindo se conhecer, a vontade deviver se afirma, depois se nega") está para o segundo ("aobjetivação ela vontade"). A simetria, aliás, não é absolu­ta, pois o quarto ponto de vista por sua ve� se desdobra;e, mesmo admitindo-se que a "afirmação" do Livro IV selimita a repetir e especificar, para melhor negar, a "obje­tivação" do Livro II, ele sorte que os Livros pares se opo­riam, ele fato, como "Bcjahung" e "Verneinung" da von­tade, essa articulação não é idêntica nem na forma, nemno espírito à dos Livros ímpares, em que a submissão dálugar à independência. Como quer que seja, o "pensa-
representante, e passa por ter sido o primeiro a estabelecer essa maneira de ver·• (M. pp. 979-80). Recordem-se as palavras de Sócrates: "Mas um dia, ten­do ouvido alguém ler num livro, cujo autor era, dizia ele, Anaxágoras, que oespírito ('nous') é o organizador e a causa de todas as coisas, a idéia dessacausa encantou-me e pareceu-me que era, de cena forma, perfeito que o es­pírito fosse a causa de tudo. ( ... ) Mas, camarada, não tardei a cair cio alto des­sa maravilhosa esperança. Pois, avançando em minha leitura, vejo um homemque não faz nenhum uso ela inteligência e que, em vez ele atribuir causas reais à ordenação cio mundo, considera como causas o ar, o éter, a água e váriasoutras coisas estranhas", Fédon, 97 b e 98 b-c, tracl. fr. Chambry.
XXVIII 
_ _______ Sobre o.fundamento da mora/ _________ _ 
rnento único" funciona sem dúvida como uma chave, 
ou, para continuarmos a metáfora, uma gazua, mas não 
poderia, tal qual, explicar a estrutura de O mundo. Para 
tanto, podemos sugerir várias explicações, mais comple­
mentares do que exclusivas. 
A primeira, pedagógica, é dada por Schopenhauer -
"sem dúvida para a comodidade da exposição, ele (o 
pensamento único) precisa ser dividido em pa1tes" (M. 
p. 1) -, que, depois de declarar essa ordem "orgânica"
("organisch" - ih.), acaba por convir que "este não é,
para ele, um estado natural ('wesentlich': essencial), mas
antes um estado totalmente artificial" ("künstlich" - M. p.
364), oque, de resto, nada nos diz sobre a composição
desse artifício. Poder-se-ia, é verdade, invocar a ordem
dos assuntos, isto é, as divisões tradicionais da filosofia,
como sugere Schopenhauer já no começo de seu pri­
meiro Prefácio: "Esse pensamento que tenho a comuni­
car aqui aparece sucessivamente, conforme o ponto de
vista de que seja considerado como sendo o que se cha­
ma metafísica, o que se chama ética e o que se chama
estética" (M. p. 1). No entanto, além de a ordem real es­
tar aqui invertida, pois a estética ocupa o Livro III, tería­
mos três assuntos·i" para quatro livros, e seria necessário
considerar, sem dúvida, que a metafísica, no sentido em
que é entendida aqui, abarca os dois primeiros. Um tex­
to das Parerga parece confirmá-lo, ao distinguir quatro
momentos na ordem filosófica: I2) a "investigação da fa­
culdade ele conhecimento, de suas formas e de suas leis,
bem como de sua validade e de seus limites" (F.C. p.
150), ou seja, a "philosophia prima",. ou metafísica no
34. Os mesmos que cotTesponclem - e na ordem! - às três Clíticas de Kant.
XXIX 
Artb11r Schopenbauer ________ _ 
sentido estrito, que, por sua vez, se subdivide em "dia­noiologia" ou exame das representações primárias (in­tuitivas: doutrina do entendimento) e "lógica" ou examedas representações secundárias (abstratas: doutrina darazão). Ela ocupa o Livro I; 22) a "metafísica da natureza"(Livro II); 3º) a "metafísica cio belo" (Livro III); 42) a"metafísica dos costumes" (Livro IV). · Essa segunda explicação apresenta um inconvenien­te: a ordem elos assuntos parece sintética. Ora, Scho­penhauer pretende seguir "uma marcha ascendente eanalítica" ("den aufsteigenclen, analystichen Gang" - M.p. 1418), afirmação retomada nas Parerga: "Minha filoso­fia nasceu e é exposta por via analítica, e não sintética"(F.H. p. 163). Além disso, seria necessário indagar se aprogressão de O mundo é verdadeiramente analítica, seSchopenhauer não associa seqüências analíticas, aptas à"resolução" de problemas precisos - em particular, noLivro II-, no âmbito geral que, este sim, seria antes sin­tético. Recolocada em seu contexto (polêmico), a indica­ção metodológica de O mundo não contradiz essa inter­pretação: "Parto da experiência e da consciência de sinatural, dada a cada um, para chegar à vontade, meuúnico elemento metafísico; sigo assim (isto é, no come­ço do Livro II - acrescentamos) um caminho ascendentee analítico. Já os panteístas, ao contrário ele mim, seguemo caminho descendente e sintético: partem do Deus de­les ... " (M. p. 1418), alusão evidente à Ética ele Espinosa.Mas, sem dúvida, convém não se mostrar demasiado deta­lhista quanto a esse ponto, pois o próprio Schopenhauerexplicita, em seu primeiro Prefácio, que "o começo su­põe o fim mais ou menos como o fim supõe o começoe, até mesmo, que cada parte supõe cada uma das se-
XXX 
--------- Sobre o fundamento da moral ________ _ 
guintes mais ou menos como estas a supõem por sua 
vez" (M. p. 2). Como quer que seja, a inversão dos pon­
tos de vista permanece inexplicada. Trata-se de uma dia­
lética abastardada, vagamente inspirada em Fichte ou 
Hegel? Certas expressões poderiam nos dar a ilusão dis­
so: "a vontade, como coisa-em-si, com sua liberdade, 
pode se manifestar de uma maneira que ponha o fenô­
meno em contradição consigo mesmo ('in einem gewis­
sen Widerspruch mit sich selbst tritt'); é essa contradição 
que a palavra abnegação ('Selbstverleugnung'3s) expri­
me; com isso, a própria essência de nosso ser se supri­
me" ("sich aufhebt" - M. p. 382). A presença do verbo 
"aufheben", a insistência no pronominal e o recurso à 
"contradição" não devem enganar; a doutrina de Scho­
penhauer é fundamentalmente dualista, e sua negação, 
desprovida de negatividade (negação da negação), o 
que basta para impedir, se necessário fosse, que se "he­
gelianize" O mundo. 
Mais positiva se mostra a explicação pelas fontes: 
"Não creio, confesso, que minha doutrina pudesse cons­
tituir-se antes que os Upanixades, Platão e Kant pudes­
sem lançar juntos seus raios no espírito de um homem" 
(Nachlass, IV, p. 343; 1816). É o que confirma o Prefácio 
de 1819, que solicita ao leitor que conheça as "obras 
principais ele Kant" (M. p. 4), isto é, que já se tenha sub­
metido à "operação ele catarata" (ih.). Schopenhauer 
chega inclusive a lhe recomendar que "comece por ler o 
Apêndice" (M. p. 5), ou seja, a sua Crítica da filosofia 
kantiana. Mas o leitor estará ainda mais bem preparado 
35. A tradução por "abnegação'· comete um falso sentido, pois, para pro­
duzir um jogo ele palavras. ela sacrifica o pronominal. 
XXXJ 
Artb11rScbopenba11er _______ _ 
se, além disso, tiver "freqüentado a escola do divino Pla­tão" e "recebido o benefício do conhecimento dos Ve­das' (ib.). Ora, aos olhos ele Schopenhauer, esses três en­sinamentos têm como único objeto a oposição entre ailusão fenomenal e a verdade metafísica, de sorte que, aconsiderar o plano de O mundo, o "pensamento único"que o anima receberia uma tríplice especificação: kan­tiana (Livro I), platônica (Livro III) e védica (Livro IV),fazendo cio seu autor, "cum grano saJis", o primeiro filó­sofo indo-europeu-16 da história ...
Mas de onde vem o Livro II? Seu início é kantiano,mas Schopenhauer nele comete seu "parricídio" - o aces­so à coisa-em-si, considerada inconhecível -, e o fim éplatônico, mas introduz a teoria das Idéias como "grausdeterminados e fixos da objetivação da vontade" CM. p.175), o que não deixaria de surpreender o leitor, que,seguindo o conselho precedente, Livesse freqüentado aescola do divino Platão e hesitasse em identificar essavontade com o Bem ela República. Deve-se concluir daíque esse Livro II representa a contribuição pessoal eleSchopenhauer de que o pensamento único seria, por con­seguinte, apenas uma espécie ele resultante? Isso não émuito duvidoso, mesmo que o filósofo tenha feito ques­tão ele indicar a quarta das suas fontes.
36. Em 1819, Schopenhauer leu os cinqüenta Upanixaclcs rracluzidos em larim por Anquctil-Duperron: Oup11ekba1, /d est secretum lege11d11111, 2. vol., Esrrasburgo, 1801-1802. Essa rradução lhe fora recomendada pelo oriemalistaamador Fr. Maier, a quem conhecera em Weimar, no círculo de Go<::the, em 1813. Sobre as outras leituras indianistas de Schopenhauer entre 1814 e 1818,ver M. p. 487, nota. Lembremos que o budismo, descoberto em seguida, nãodesempenhou papel algum na elaboração da doutrina. Quanto a Kant e Pla­tão, Schopenhauer os leu par a par a conselho ele Schulze. 
XXX1I 
----
--- Sobre o fw1dame11to da moml ________ _ 
"No desenvolvimento de minha filosofia, os escritos
l lc Kant, tanto quanto os livros sagrados dos hindus e
Platão, foram, depois do espetáculo vivo da natureza
r ,
meus mais preciosos inspiradores" (M. p. 521) - "nachst
dem Eindrucke der anschaulischen Welt", literalmente,
logo após a impressão do mundo visível, visão impres­
sionante, a julgar pelas descrições dramáticas da vonta­
de "esfaimada", mas também científica, a do estudante
de Góttingen e Berlim, como nos confirma um texto mais
tardio: "Justamente por causa da influência da filosofia
kantiana e, logo, por causa do efeito simultâneo dos
processos inigualáveis do conjunto das ciências naturais,
em vista do que toda a época anterior aparece diante da
nossa como sendo a infância, e, finalmente, graças à fa­
miliaridade com a literatura sânscrita, com o Bramanis­
mo e com o Budismo (estas religiões mais antigas e mais
expandidas tanto no tempo como no espaço, portanto
as mais eminentes da humanidade, que também são a
religião pátria originária de nosso conhecido tronco asiá­
tico, o qual, agora, em pátria estrangeira, dá conhecimen­
to tardio delas) - por meio de tudo isso, digo que, no cor­
rer dos últimos cinqüenta anos, as convicções filosóficas
fundamentais dos intelectuais europeus sof
reram uma re­
viravolta, que alguns apenas admitem hesitantemente, mas
que não pode ser negada." (F. pp. 11-2). Não deve cau­
sar espanto a ausência de Platão, pois se trata do últimomeio século. Quanto às ciências físicas, ou, mais exata­
mente, às "ciências da natureza" ("Natu1wissenschaften"),
convém esclarecer que nem as Relações entre o físico e o
37. O grifo é nosso. A tradução acentua exageradamente, mas não incor­
retamente, o --naturalismo· da fórmula. 
xxxm 
-----------Al1bur Scbope11ba11er __________ _ 
nioral do homem, de Cabanis, nem as Pesquisas fisiológi­
cas sobre a vida e a morte, de Bichat, exerceram a menor 
influência sobre a gênese de O mundo, pois, como a do 
budismo, sua descoberta é posterior a 1819. Assim, não 
nos devemos deixar enganar quando Schopenhauer de­
clara "ter tido Kant e Cabanis como precursores" (F.H. p. 
89). Se o primeiro exerceu uma influência metafísica so­
bre a formação do sistema, o segundo apenas lhe pro­
porcionou uma confirmação física, formidável, é verda­
de, aos olhos de Schopenhauer. O mesmo vale pa-ra Bi­
chat38 : "Nada é mais adequado para confirmar e esclare­
cer a tese que nos ocupa no presente capítulo do que a 
obra justamente célebre de Bichat, Sobre a vida e a mor­
te. Suas considerações e as minhas se sustentam recipro­
camente, as suas fornecendo o comentário fisiológico às 
minhas, e estas sendo o comentário filosófico das suas" 
(M. p. 970). 
O PRINCÍPIO DE RAZÃO SUFICIENTE E A HERANÇA 
KANTIANA. O "PARRICÍDIO" 
O Livro I de O mundo começa com esta afirmação: 
"O mundo é minha representação" (M. p. 25), juízo ele 
evidência ("Se há uma verdade que possamos afirmar 'a 
priori', é essa", ih.) que enuncia uma relação indisso!C1-
vel entre o objeto e o sujeito: "nosso ponto de partida 
38. Sobre Bichat, ver cm particular M. pp. 970 ss. Sobre Cabanis, M. p. 984 
e V. p. 77. Sobre o conjunto da questão. Paul Janet, Scbopenbcwer et la pby­
sio!ogie française: Cabanis, Bicbat [Schopenhauer e a fisiologia francesa]. Re­
vue des Deux-Mondes, lº de maio de 1880, e a introdução de E. Sans a De la 
volo111é dans la 11ature [Da vontade na natureza], pp. 19 ss. 
XXXIV 
_ ________ Sobre o Jundamell/o da mora/ ________ _ 
não foi extraído nem do objeto nem do sujeito, mas da 
representação, fenômeno em que esses dois termos já es­
tão contidos e implicados" (M. p. 52; ver também p. 63). 
"Assim como não há objeto sem sujeito, não há sujeito 
sem objeto" (M. p. 898). "Uma consciência sem objeto 
não é uma consciência" (M. p. 684), isto é, a idealidade 
da representaçãow : "O verdadeiro filósofo deve ser, pois, 
idealista; deve sê-lo para ser simplesmente honesto" (M. 
p. 673). Mas não se trata do "idealismo simples ('einfach')
ele I3erkeley" (M. p. 677), menos ainda do idealismo ab­
soluto dos pós-kantianos. "O verdadeiro idealismo (é) o
idealismo transcendental" (ih.), que repousa, como se
sabe, na dualidade cio fenômeno e da coisa-em-si.
A despeito elas proclamações - "Ódio a Kant, ódio a 
mim. Ódio à verdade" (V. p. 55) -, essa fidelidade ao cri­
ticismo é menos estrita do que parece, na medida em 
que, antes de cometer o '·parricídio" do Livro II e, aliás, 
independentemente e.las objeções que lhe dirige, Scho­
penhauer faz a doutrina sofrer um duplo deslizamento, 
que altera perigosamente seu sentido. 
O primeiro, fisiológico, consiste em identificar sub­
repticiamente, ou, pelo menos, serenamente, o entendi­
mento ("Verstand", "Intellekt") e o cérebro ("Gehirn"). 
"Dessa filosofia (a ele Kant) resulta ainda que o mundo 
39. "Podemos dizer que, diferentemente de Descartes, que sustenta ao
mesmo tempo a realidade do objeto e a realidade do sujeito, diferentemente 
de Berkeley. que ensina ao mesmo tempo a realidade do sujeito e a idealida­
de cio objeto, diferentemente de Sartre, que professa ao mesmo tempo a rea­
lidade cio objeto e a idealidade do sujeito (pois o-Para Si é nada, e o Ego nada
mais é que um ponto focal, uma somb,J projetada), Schopenhauer afirma ao 
mesmo tempo a idealidade do objeto e a idealidade do sujeito: só é real a 
Vontade.'' M. Piclin, Schopenhauer, Scghers, 1974, p. 15. 
XXXV 
-----------Arlbur Scbopenba11er _________ _ _ 
objetivo, tal como o conhecemos, não é a coisa-em-si; 
ele nada mais é que um fenômeno dela, fenômeno con­
dicionado por essas mesmas formas que residem 'a 
priori' no entendimento humano, em outras palavras, no 
cérebro" ("im menschlichen Intellekt:', d.h. Gehirn - M. 
p. 527). Ver também M. p. 677, em que Schopenhauer,
depois de ter exposto a doutrina kantiana, admite "que a
palavra 'cérebro' não intervém nela", sem contudo se
inquietar com essa ausência: "( ... ) o cérebro ou o enten­
dimento ( ... )" ("Gehirn oder Verstand", Q. p. 91). "Assim
como é nosso olho que produz o verde, o vermelho e o
azul, é nosso cérebro que produz o tempo, o espaço e a
causalidade" (F.H. p. 101, nota 1). Se essa materialização
do transcendental, que constitui, de fato, urna verdadei­
ra subversão do idealismo kantiano, não parece preocu­
par Ribot - "o curioso ele se notar é que Schopenhauer
faz as doutrinas de seu mestre passarem por uma trans­
formação fisiológica; ele identifica facilmente as formas
da inteligência com a constituição do cérebro. ( ... ) Essa
transformação era, aliás, de todo natural (sic) e é prová­
vel que, se Kant tivesse vivido meio século mais tarde,
em pleno desenvolvimento das ciências biológicas, ele
mesmo a teria realizado" (op. cit., p. 55) -, em compen­
sação provoca a indignação de Guéroult, que vê nela,
não sem razão, um "escândalo filosófico". "A substitui­
ção pela palavra e pela noção de cérebro da palavra e
da noção de faculdade de conhecer, que Schopenhauer
realiza com a tranqüilidade da inconsciência teria consti­
tuído um absurdo aos olhos de Kant."'º
40. M. Guéroult, Scbopenbauer et Ficbte, em Publications ele la Faculté
eles Lettrcs de l'Université ele Strasbourg, J\lélangcs, 1945, IV, Ét11des pbilosophi­
ques, p. 125. 
XXXVI 
----------Sobre o j,111dame1110 da mora/ _________ _ 
O segundo, platônico e védico, consiste em assimilar 
o fenômeno ("Erscheinung") a uma aparência ("Schein").
"Fazendo essa distinção, Kant tira de seu próprio fundo,
exprime de uma maneira totalmente original, descobre
sob um novo ponto de vista e por um novo método a
mesma verdade que, antes dele, Platão não se cansava
de repetir e que ele exprime na maioria das vezes, em
sua linguagem, da seguinte maneira: o mundo que im­
pressiona nossos sentidos não possui verdadeiramente o
ser; ele nada mais é que um devir incessante, indiferen­
te ao ser ou ao não-ser; percebê-lo é menos um conhe­
cimento cio que uma ilusão" ("nicht sowohl eine Erkennt­
nis ais ein Wahn" - M. p. 524). "É ainda a mesma verda­
de, sempre sob uma forma diferente, que constitui esse
fundo cio ensinamento cios Vedas e cios Puranas é a dou­
trina da Maia. Sob esse mito, eleve-se ver exatamente o
que Kant chama ele fenômeno, em oposição à coisa-em­
si" (M. pp. 524-5). Temos aí um segundo "absurdo", que
faz pouco caso da "legislação para a natureza" e do
"Princípio supremo de todos os juízos sintéticos 'a prio­
ri'", em suma, ela Analítica Transcendental, depreciada, é
verdade, por Schopenhauer, em benefício da Estética. A
representação nada mais é que um "encanto" ("Zauber"),
uma "aparência inconsistente, inessencial" ("ein bestan­
dloser, an sich wesenloser Schein"), uma "ilusão de ótica"
("optische Illusion"), um "véu" ("Schleier"), um "sonho"
("Traum" - M. p. 525). Esse recurso à imagem onírica é tão
freqüente quanto inquietante: "A afinidade ('VeIWands­
chaft') de um mundo desse gênero com o sonho é evi­
dente" (Q. p. 32; ver também M. pp. 31, 41, 43, 672 etc.).
Pelo menos, não se poderia sustentar que esse se­
gundo deslizamento se efetua com "a tranqüilidade da 
XXXVII 
------------A11/mr Schopenba11er ___________ _ 
inconsciência". Mas, invenendo a ordem e confirmando, 
assim, que esta não é analítica, ele supõe a experiência 
metafísica, que, no início do Livro II, nos dá acesso à coi­
sa-em-si. Enquanto esta última continuasse sendo aquilo 
de que não se podia falar, os fenômenos, bem ligados 
pela causalidade, mantinham sua consistência. Assim 
que é conhecida como Vontadeuniversal, a representa­
ção tende a se desagregar em "wesenloser Schein", so­
nho cavernícola ou véu ele Maia. Em outras palavras, o 
"parricídio" do Livro TI é como que antecipado, ou co­
metido furtivamente, desde o Livro I, ali mesmo onde a 
filiação é afirmada com maior insistência e solenidade. 
O mundo - minha representação - é submetido ao 
princípio ele razão suficiente, "Satz vom zureichenclen 
Grunde", freqüentemente abreviado corno "Satz vom G run­
cle". Esse princípio, analisado na tese ele 1813, cuja leitu­
ra Schopenhauer também recomenda como propedêuti­
ca ao Livro T de O mundo, é, quanto à forma, tornado da 
tradição leibniziana 11 e quanto ao conteúdo, do transcen­
dental kantiano. No entanto, Kant distinguia com rigor as 
formas "a priori" da intuição sensível, espaço e tempo, 
que, estritamente falando, não são instâncias transcen­
dentais, e as doze categorias do entendimento, verdadei­
ras condições de possibilidade cios "objetos" da expe­
riência. Essa distinção e a multiplicidade categorial são 
denunciadas por Schopenhauer: 
12) Não há duas fontes. "A intuição não é de ordem
puramente sensível, mas intelectual" ("alle Anschauung 
nicht bloss sensual, sondem, intellektual" - M. p. 37; ver
41. Schopenhauer consiclern a fórmula ele Wolff "a mais geral: 'Nihil es1
sinc mtione cur potius sil qua,n non sit'" (Q. p. 18). 
XXXVIII 
----------Sobre oji111da111e1110 da moral---
também M. p. 556). Ao contrário, "o entendimento deve­
ria ser (em Kant) uma faculdade de intuiçãa'' (M. p. 553 -
ver também Q. p. 61);
2º) A causalidade é "a única forma do entendimen­
to; quanto às onze outras categorias, são corno que ja­
nelas falsas numa fachada" (M. p. 560). De resto, "rodas
as vezes que, para se explicar melhor Kant quer dar um
exemplo, quase sempre toma a teo/ia da causalidade"
(ib.). "Eis por que quero que, elas doze categorias, se­
jam rejeitadas onze, conservando-se apenas a causalida­
de" (M. p. 562) íi. 
Pertencente à mesma instância - o entendimento -,
nenhuma das três determinações do princípio de ra.z:ão é
isolável. A causalidade "forma o vínculo entre o tempo e
o espaço" ("vereinigt den Raum mit der Zeit" - M. P· 33),
ou, mais precisamente, sua "limitação recíproca" ("Wech­
selclurchdringung" - R. p. 141) esboça uma dedução ge­
nética que Schopenhauer não quis, ou não pôde reali­
zar'3. Quanto à oposição kantiana entre entenclirriento
("Verstand") e razão ("Vernunft"), que Hegel acentuava
ao extremo, ela é reduzida ao mínimo, pois os conceitos
racionais não são mais que "representações de represen­
tações" (M. pp. 70-1), "representações tiradas de repre-
42. Sobre "a complicada engrenagem das doze categorias kanria!'la�··, ver
também Q. p. 84 e, sobretudo, M. p. 539: "essas subdivisões tornar-se-ao um
instrumento temível, um verdadeiro leito de Procusto: ela faz caber nele, por
bem ou por mal, lodos os objetos cio mundo ( ... ); não recuará diante de ne­
nhuma violência, não enrubescerá com nenhum sofisma. contanto qoe possa
reproduzir em toda a parte a simetria cio quadro". . . 
43. "( ... ) nào deduz, propriamente falando, ele maneira genética as dif
e­
rentes faculclacles da faculdade represemativa, como Reinholcl e Ficnte, p
or­
que esse método repugna em demasia ao que seu gênio tem ele con
creto
( ... )", M. Guéroult, ar/. cit., p. 103. 
xxxrx 
____________ Arth11r Scbope11bauer ___________ _ 
sentações" (Q. p. 104), que "servem apenas para classifi­
car, estabelecer e combinar os conhecimentos imediatos 
elo entendimento, sem nunca produzir qualquer conhe­
cimento propriamente dito" (M. p. 47). "Há algo de femi­
nino na natureza da razão; ela só dá quando recebe. Por 
si mesma, contém apenas as formas vazias de sua ativi­
dade" (M. p. 83 - mesma "misoginia" p. 125 e Q. p� 120). 
A ruptura efetiva com Kant, o "parricídio", para reto­
marmos a expressão platônica 11, vai se consumar no co­
meço do Livro II de O mundo, em que, contra seu-mes­
tre, Schopenhauer afirma a cognoscibilidade ela coisa­
em-si4\ ressaltando ao mesmo tempo, contra Hegel, que 
esta última deve ser mantida enquanto tal, paradoxo que 
constitui "o procedimento mais original e mais importan­
te ela (sua) filosofia" (M. p. 885). 
Esse procedimento ("Schritt"), essa passagem ("Über­
gang") supõem, é verdade, uma concepção não-kantia­
na da metafísica, como experiência ("Erfahrung"), por um 
lado, interpretação ("Deutung") e decifração ("Entziffe­
rung"), por outro (M. pp. 876 ss.). "Kant cometeu uma 
real petição de princípio (. .. ) quando afirmou que a me­
tafísica não pode extrair ela experiência seus conceitos e 
seus princípios fundamentais. ( ... ) quando se trata de de­
cifrar a experiência, isto é, o mundo que está diante de 
nossos olhos, não será inverter o método natural fazer 
44. Plarào, Sojista, 241d, onde o Estrangeiro pede a Teeteto que não o
veja como "uma espécie de parricida", ainda que sejamos "forçados a questio­
nar a tese ele Parmênicles, nosso pai, e empregar a violência para provar que, 
ele certo ponto de vista, o Não-Ser existe e que, em compensação, o Ser, por 
sua vez, não existe". Tracl. f
r. Robin. 
45. O primeiro capítulo dos Suplementos ao Livro II tem por título "Da
cognoscibiliclade ela coisa em si" ("Von der Erkennbarkeit des Dinges an sich"). 
XL 
__________ Sobre o fundamento da mora/ _________ _ 
abstração dessa experiência, ignorar seu conteúdo, para 
apegar-se apenas a formas vazias que nos são conhecidas 
'a priori'? Não será mais natural, ao contrário, que a ciên­
cia da experiência enquanto tal beba nas fontes dessa 
experiência?" ("class die Wissenschaft von der Erfahrung 
überhaupt und ais solcher eben auch aus der Erfahrung 
schopfe?" - M. p. 876). "O dever da metafísica não é pas­
sar por cima da experiência ('die Erfahrung zu überflie­
gen') na qual, e somente nela, consiste o mundo, mas, ao 
contrário, conseguir compreender a fundo a experiência" 
("sie von Grund aus zu verstehen" - M. p. 536). 
Longe de exaltar essa experiência metafísica da coi­
sa-em-si como uma operação de alto nível, à maneira dos 
pós-kantianos, Schopenhauer descobre nela "um cami­
nho subterrâneo ('ein unterirdischer Gang'), uma comu­
nicação secreta ('eine geheime Verbindung') que, por 
uma espécie de traição ('Verrat'), nos introduzirá de re­
pente na fortaleza·•6, contra a qual vieram se chocar to­
dos os ataques desferidos ele fora" (M. p. 890; ver tam­
bém Q. pp. 89-90 e F.H. pp. 110-1). Esse cavalo de Tróia, 
para desenvolver a metáfora militar, é o "conhecimento" 
("Erkenntnis") que cada um tem de seu querer ("Wollen" 
- M. p. 891). Mas tratar-se-á de um verdadeiro conheci­
mento'7? Não, se entendermos com isso uma intuição, ou
representação, submetida ao princípio de razão: "esse co-
46. Aquele que procede "ele fora'' é "semelhante a alguém que contor­
nasse um castelo para encontrar a entrada e que, não a encontrando, dese­
nhasse a fachada. Foi esse o caminho que seguiram todos os filósofos antes 
ele mim" (M. p. 140). 
47. A terminologia de Schopenhauer, aliás, é vacilante, pois ele emprega
sucessivamente "Erkenntnis'' e "Wahrnehmung", "conhecimento" e '·percep­
çào" (W. 11, p. 254; M. p. 892). 
XLI 
------------A1tb11r Scbope1Jba11er ___________ _ 
nhecimento não é uma intuição" (M. p. 891). Qual é, en­
tão, a instância cognitiva? Essa dificuldade, já assinalada 
por Ruyssen (op. cit., pp. 198-9), foi intensamente subli­
nhada por Guéroult: "ou, aplicando-se à vontade, o inte­
lecto só nos dará dela, como elas coisas exteriores, uma 
representação fenomenal, e nesse caso não poderemos 
ter nessa consciência refletida nada que se pareça com 
um conhecimento íntimo, imediato, ela coisa-em-si; ou te­
rnos efetivamente tal conhecimento, e então a faculdade 
que o proporciona a nós eleve ser diferente cio intélecto 
representativo. Schopenhauer recusa-se a escolher entre 
as duas teses; ele coloca ambas simultaneamente" (art. 
cit., p. 114). Se excetuarmos uma passagem, aliás insóli­
ta, em que é "a própria coisa-em-si" que "torna consciên­cia de si" ("dass es selbst sich seiner hewusst wircl" '8 - M. 
p. 891), parece, ele fato, que Schopenhauer adota uma
posição média - não ousaremos escrever bastarda; tratar­
se-ia, apesar ele tudo, de uma intuição, mas "dois terços"
independente do princípio ele razão, pois "esse conheci­
mento interior é emancipado de duas formas inerentes
ao conhecimento exterior, a saber, da forma cio espaço e
ela forma da causalidade, mediadora de toda intuição sen­
sível. O que permanece é a forma do tempo, e a relação
entre o que conhece e o que é conhecido. Por conseguin­
te, nesse conhecimento interior, a coisa-em-si sem dúvi­
da desvencilhou-se de grande número de seus véus, sem
todavia apresentar-se totalmente nua e sem invólucro" (M.
48. \Y/ .. li, p. 253. Grifo de Schopenhauer. '·Nesse caso, chegaríamos a
um raracloxo clesconcenance, rois a vontade, a coisa a conhecer, que não é 
uma faculdade ele conhecer, poderia, no entanto, conhecer-se ela mesma.·• M. 
Guéroult, cm. cit., r. 116. 
XLH 
----------Sobre o fundame1110 da 111ora/ _________ _ 
p. 892). "O ato de vontade, portanto, nada mais é, sem
dúvida, que o fenômeno mais próximo e mais preciso ela
coisa-em-si" ("Demnach ist zwar der Willensakt nur die
nachste uncl deurlische Erscheinung eles Dinges an sich"
- sublinhado por Schopenhauer. M. p. 893; ver também
p. 1242). Isso quer dizer que a coisa-em-si é finalmente in­
conhecível? Só o é "absolutamente" ("nur nicht schlech­
thin uncl von Gruncl erkennbar" - ih.). Schopenhauer ain­
da assim sustenta que a vontade é, "ele todas as coisas
possíveis, a mais bem conhecida de nós ('elas uns am ge­
nauesten Bekannte'), a única imediatamente dada a nós
e, por conseguinte, a única capaz de explicar todas as
outras" (M. p. 1417; ver também pp. 1009 e 1540), o que
lhe valerá o sarcasmo ele Nietzsche'9• 
Problemática ou não, a experiência metafísica de mi­
nha vontade vai ser estendida ao conjunto elo mundo, 
na medida em que "vamos utilizá-la como uma chave 
para penetrar até a essência de todos os fenômenos" (M. 
p. 146). "Esse conhecimento direto que cada um tem da
essência de seu próprio fenômeno, que só lhe é igual­
mente dado, como todos os outros, na intuição objetiva,
eleve em seguida ser transferido analogicamente ('analo­
gisch übertragen') para os outros fenômenos" (F.H. p.
111). Mais precisamente, "nós os julgaremos por analo­
gia a nosso corpo e suporemos que, se, por um lado, são
semelhantes a ele, enquanto representações, e se, por
49. ··o grande erro ele Schopenhauer, considerando o querer como a 
coisa mais hem conhecida cio mundo, até mesmo a úni<:a verdadeiramente 
conhecida, parece menos louco e menos arbitrário; ele arenas retomou, exa­
gerando-o. segundo o costume cios fílósofos, um monstruoso preconceito ele 
todos os filósofos anteriores, um preconceito popular." Nietzsche, A vonJade 
de podei; 1. 202, p. 261. 
XLlll 
-----------Artb11r Scbope11ba11er __________ _ 
outro lado, deixarmos de lado ('beiseire serze') sua exis­
tência enquanto representações do sujeito'º, o resto ('das 
dann noch Übrigbleibencle'), por sua essência, deve 
('muss') ser o mesmo que chamamos em nós de vonta­
de" (M. pp. 146-7). Essa transferência analógica, que tem 
suas semelhanças com a "Sinnesübertragung" da Quin­
ta Meditação cartesiana de Husserl' 1, coloca urna <..lupla 
questão: 1º) Por que deveria haver um "resto"? A respos­
ta está no idealismo transcendental, que nos impõe a 
coisa-em-si; 2º) Mas por que seria ele idêntico à minha 
vontade? "Tocamos aqui o vício ordinário de toda meta­
física, que consiste em dizer: isso pode ser, logo isso é" 
(Hibot, op. cit., p. 153). "Essa analogia é puramente gra­
tuita. Sua justificação repousa num apelo ao bom senso, 
à verossimilhança. ( ... ) Mas esse apelo ao bom senso, à 
razão sadia, não nos reporta aos procedimentos dos filó­
sofos do senso comum?" (Guéroult, art. cit., p. 122). Ao 
que poderíamos acrescentar uma terceira objeção: trans­
ferida para a universalidade dos fenômenos - homens, 
animais, vegetais, minerais, magnetismo, "afinidades" quí­
micas, atração física ele. (M. p. 152) -, minha vontade não 
50. A tradução francesa - "si on leur ajoute l'existence ( ... )" [se lhes 
acrescentarmos a existência] - constitui um contra-senso inadmissível nu111a 
passage111 tão capital. 
51. "Se na 111inha esfera primordial aparece, como objeto clislimo, um
corpo que 'se parece' com o meu, isto é, se ele tem u111a estrntura graças à 
qual eleve suportar com o meu o fenô111eno ele e111parelhamento (Paamng),
parece imediatamente claro que deve adquirir a significação de organismo 
que lhe é transferida pelo meu." llusserl, Meditaçóes cartesia1ws, parágrafo 
51, tracl. fr. Vrin, p. 96. (A tradução ele '·Paarung" por ·'accouplement" [acasa­
lamento! não nos parece muito feliz. de modo que a substituímos por "appa­
riement" [emparelhamento]). É verdade que Husserl evita produzir um racio­
cínio por analogia. 
xuv 
_ _________ Sobre ofunda111e11to da moral _________ _ 
corre o risco de perder cm compreensão o que adquire 
em extensão, para, ao cabo da transferência, não ser mais 
que um conceito vazio, em suma, esse x desconhecido e 
essa coisa-em-si de que se partira? 
O PANTELISMO SCHOPENHA UERIANO
"Pantelismo" é o feliz neologismo cunhado por E. 
von Hartmann para opor essa cosmologia da vontade ao 
panlogismo ele Hegel. Quanto a Schopenhauer, ele ne­
gava que seu sistema fosse um panteísmo e o definia 
antes como um "macrantropismo": "desde os tempos 
mais remotos, o homem foi proclamado um microcos­
mo; inverti a proposição e mostrei no mundo um ma­
crantropo ('Makranthropos'), pois vontade e representa­
ção esgotam a essência tanto de um como do outro" (M. 
p. 1417). Mas, como se acaba de sugerir, o que dizer
dessa vontade? Não terá ela se extenuado ao ritmo de sua
expansão? Parece que a objeção não escapou a Scho­
penhauer, que se esforça, sobretudo nos Suplementos a
O mundo, por definir a vontade, se não por descrevê-la.
Note-se, todavia, que se trata quase sempre de caracte­
rísticas negativas, ou, mais precisamente, que sua positi­
vidade reifica a abolição das qualidades fenomenais. As­
sim, o atributo essencial da vontade é sua "Grundlosig­
keit", sua incondicionalidade: a negação do Princípio de
Razão ("Satz vom Grunde" - M. pp. 148-9, 155-6 etc.).
Deduzem-se daí três determinações principais'2. 
52. Ribot distingue "três caracteres essenciais: a identidade, a indestniti­
bilidade e a liberdade" (op. cit., p. 75). Omite apenas o fundo, ou, antes, o 
"sem fundo" ("gnindlos") que os "funda". 
XLV 
-----------Arthur Schopenhauer ______ _ 
A primeira é a unidade ela vontade, que designa a 
suspensão cio Princípio de Razão do ponto de vista do 
espaço, unidade metafísica que se opõe tanto à unidade 
física do indivíduo quanto à unidade abstrata cio concei­
to. Mas de onde provém, então, a multiplicidade? A cliver­
siclacle fenonemal depende, por definição, do Princípio 
ele Razão; mas e a das idéias, esses "atos isolados e sim­
ples em si da vontade" (M. p. 204)? E como pensar sem 
contradição que essa vontade se objetiva na hierarquia 
dos seres naturais, até produzir o cérebro, definido; por 
outro lado, como órgão e.lo Princípio ele Razão, isto é, cio 
múltiplo? Sem dúvida, a série natural só existe "aos olhos 
e.lo cérebro ele que ela é a intuição" (M. p. 968), ele sorte 
que a última palavra cabe ao idealismo�� (V. passim, F.C. 
pp. 78 ss.). Não obstante, subsiste um círculo epistemo­
lógico com que inúmeros comentaristas se inquietaram-;' 
e que condensa bem as dificuldades de um sistema que 
Frauenstadt definia, judiciosamente, como um "materia­
lismo idealista". "Por um lado, a existência do mune.lo 
inteiro depende cio primeiro ser pensante, por mais im­
perfeito que ele tenha sido; por outro, não é menos evi­
dente que esse primeiro animal supõe necessariamente, 
antes dele, uma longa cadeia ele causas e efeitos, da qual 
ele mesmo forma um pequeno elo. Esses dois resultados 
53. "( ... ) daí resultaria que a pluralidade

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