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O DESVIO CRIADOR EM CLARICE LISPECTOR: UMA ANÁLISE DA PERSONAGEM E DO NARRADOR DE PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM
Maiara Cristina Segato (UTFPR)
Resumo: Clarice Lispector, em sua prosa inicial, Perto do coração selvagem, publicada em 1944, “vira do avesso” a tradição romanesca, quanto às categorias narrativas, sendo apontada pela crítica como a primeira experiência definida que se faz no Brasil do moderno romance lírico. Clarice, por meio de um narrador situado em um espaço literário de introspecção, questiona a capacidade de expressão pela linguagem na relação entre o sujeito e a realidade. Desse modo, o próprio lugar onde fala o narrador repercute no discurso lírico, pois o centro irradiador de suas reflexões filosóficas é a poesia. Uma vez que uma narrativa no molde tradicional não daria conta dos conteúdos mais profundos da personagem Joana, a autora opta por uma postura estilística permeada por reflexões instauradas pela linguagem poética, quebrando, assim, a linearidade da diegese narrativa. Nesse sentido, nosso trabalho propõe-se a analisar essa ruptura com os conceitos narrativos tradicionais, a partir do estudo da personagem e do narrador de Perto do coração selvagem. 
Palavras-chave: Clarice Lispector; Perto do coração selvagem; Categorias narrativas.
Introdução
O surgimento de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro com o romance Perto do coração selvagem, publicado em 1944, representou um verdadeiro impacto para os críticos da época, desestabilizando as referências romanescas instituídas até então. Com Clarice, temos uma expressão literária notadamente fora do padrão convencionado das décadas de 1930 e 1940, pois sobressaíam a ficção regionalista, o “romance nordestino”, mais afinados com a denúncia social, mais ao gosto do leitor, uma ficção ainda moldada segundo a sintaxe narrativa tradicional, embora também ganhasse força certa ficção psicologista, com o seu rol de obras justamente valorizadas, como A menina morta (1954), de Cornélio Penna, e Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso. Perto do coração selvagem aparece como uma obra completamente inovadora dentro do quadro da produção literária brasileira, mesmo em relação a algumas “transgressões” da ficção modernista da década de 1920, como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade. Clarice Lispector, já em sua estreia, surpreendeu, entre outros fatores, pela reorientação do psicologismo, pela intensificação da “prosa poética” e pelas inovações formais no plano da narrativa. 
O maior impacto da crítica inicial certamente se deu naquilo que concerne à descontinuidade do espaço e do tempo e de personagens mais definidos. No entanto, isso ocorre no romance justamente por tratar da mais profunda sensação de existência, de forma a estruturar o mundo na impossibilidade da linguagem, pois a fragmentariedade do texto mostra a fragmentariedade do sujeito e da própria vida “que valem como sintomas de crise da ficção introspectiva” (BOSI, 1989, p. 474), isto é, uma tensão psicológica que reflete na tensão linguística, uma vez que “o envolvimento do personagem com a linguagem expressa um ritual presente” nas narrativas clariceanas (SANT’ANNA, 1973, p. 196). Desse modo, os críticos tinham em mãos um novo tipo de romance, não só por apresentar reflexões de caráter psicológico e existencial, mas também por apresentar caracteres da linguagem poética.
Clarice Lispector insere-se numa tradição de escritores que, indubitavelmente, contribuíram para a consolidação dos padrões estético-literários, que se instituíram no Brasil, a partir da primeira metade do século XX. Com importância inestimável para a literatura nacional, em meio a outros grandes escritores de sua época, como, por exemplo, Guimarães Rosa, a escritura da autora singulariza uma técnica de composição, até então, inédita em nosso país, qual seja, a adoção de um ponto de vista diferenciado do tradicional, tanto no domínio formal quanto no de conteúdo. Clarice e Rosa, conforme Candido (1989, p. 207), deram novo fôlego à narrativa romanesca brasileira, a partir de 1940, introduzindo o múltiplo transitório inerente à contemporaneidade, pela retomada de mitos, pela transfiguração do mundo por meio da linguagem, pela consciência filosófica, pelas relações entre local e universal, pela instauração da “modernidade da escrita” (CANDIDO, 1989, p.207). Com eles, percebemos uma revolução linguística no romance, entrelaçada às adversidades provenientes dos sentimentos filosóficos de estar e não estar no mundo, a partir de espaços domésticos ou de vastidões sertanejas. 
A experiência estética de Clarice Lispector renova o ato de escrever ficção, uma vez que tende a romper com a entidade tipológica “romance”, superando-a no tecido da linguagem e da estrutura, isto é, no nível da própria matéria da criação literária. A ficção de Clarice Lispector difere das anteriores, psicologistas ou não, já que na “gênese de seus contos e romances há uma exacerbação do momento interior que, a certa altura do seu itinerário, a própria subjetividade entra em crise” (BOSI, 2006, p. 424). 
A linhagem introspectiva na ficção, por um lado, representou a resposta ao avanço que a literatura modernista definiu e traduziu. E, por outro, a angústia que a vida contemporânea brasileira, por conta do desenvolvimento desordenado, caótico e selvagem, das relações capitalistas, passou a representar. A literatura, como potência criativa, respondeu a essa crise produzindo obras literárias que não podem ser vistas como incompletas, tecnicamente mal acabadas, ou coisas que o valham, a não ser se nosso ponto de vista for o da metafísica biológica do começo, do meio e do fim, que era e é o ponto de vista das instituições tradicionais. Sob o ponto de vista da ousadia experimental, Clarice Lispector se torna uma autora que estaria em pé de igualdade em relação a escritores como James Joyce ou Virginia Woof, tornando-se, assim, o “lugar” da novidade no panorama nacional.
Ao romper com o romance regionalista, a autora propõe um estilo inovador para a ficção nacional. O gênero romance deixa seu modelo tradicional para ganhar nova dimensão, problematizando a linguagem e discutindo os próprios limites do gênero. Clarice praticamente extingue essa linha divisória, quando emprega em sua produção literária efusões líricas, evocadas por reflexões sobre a existência humana, pouco explicáveis pelas palavras. Conforme Benedito Nunes (1995, p. 14), Perto do coração selvagem abriu um novo caminho para a nossa literatura, “na medida em que incorporou a mimese centrada na consciência individual como apreensão artística da realidade”. Sendo assim, no decorrer deste trabalho, além de observar a partir da ótica de alguns teóricos da literatura aspectos sobre o gênero romance e alguns conceitos narrativos, analisaremos, ainda que de modo breve, como se configura o narrador de Perto do coração selvagem e como se comporta a personagem principal, Joana, levando em consideração os aspectos que rompem com a narrativa tradicional. 
1 Mais perto do narração selvagem
Acerca do romance, até hoje se buscam respostas que sejam satisfatórias para perguntas em torno do gênero que trouxe inovações ao padrão literário tradicional. O romance transformou-se no decorrer dos últimos séculos, mas, sobretudo, a partir do século XIX, na mais importante e mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos. Os temas foram se aproximando cada vez mais dos acontecimentos de cada época e se transformando em um reflexo da vida cotidiana. A evolução do romance tem se revolucionado também na forma, visto que, por exemplo, o narrador se aproxima cada vez mais do leitor; também a linearidade do enredo dá lugar à fragmentação narrativa, intercalando fatos, agilizando a cronologia. 
Lukács (2000) estabelece como ponto de partida para apresentar o que conhecemos hoje como romance moderno, as duas grandes epopeias Ilíada e Odisseia, de Homero, textos épicos que representariam um mundo em queos valores de um personagem correspondem aos valores da comunidade. Para o crítico húngaro, um determinado tipo de sociedade gerou a epopeia, enquanto outro tipo de sociedade, a burguesa, gerou o romance[footnoteRef:1], ou seja, enquanto as epopeias eram gêneros que representavam um mundo em que os valores de um personagem correspondiam aos valores da comunidade, como no caso de Aquiles e Ulisses, o romance apresenta o foco em um personagem mais individualizado. As transformações pelas quais o romance passou ao longo dos séculos de história, se intensificaram com a consolidação da burguesia e do capitalismo. O romance encontrou condições favoráveis para o seu desenvolvimento, mediante a ampla evolução social, como a invenção da imprensa e a propagação da informação. [1: Rosenfeld (1973, p. 75) afirma que existe uma espécie de espírito unificador que impregna, de certa forma, os vários campos das artes e das ciências, na cultura ocidental, o Zeitgeist. Ou seja, tanto Lukács (2000) quanto Rosenfeld entendem um gênero literário como um resultado de formas sociais de produção e de consumo de um dado momento histórico.] 
De acordo com Lukács (2000), o mundo moderno se caracteriza pela elevação da subjetividade. O romance, como gênero que responde à perda da imanência do sentido da vida, tem a função de recriar a totalidade perdida. O herói do romance, à diferença do herói da epopeia, é problemático, ou seja, em lugar de carregar em si o sentido do conjunto social ao qual pertence, luta contra o vazio das estruturas do mundo social que não mais lhe pertencem. Ele se lança no mundo exterior em busca do substrato de ação de sua própria alma. Para Lukács (2000), o romance representa a luta do indivíduo contra o vazio e a nulidade da vida social. Theodor Adorno tem posição semelhante à de Lukács ao afirmar que 
[...] a própria alienação torna-se um meio estético para o romance. Pois quanto mais se alienam uns dos outros os homens, os indivíduos e as coletividades, tanto mais enigmáticos eles se tornam uns para os outros. O impulso característico do romance, a tentativa de decifrar o enigma da vida exterior, converte-se no esforço de captar a essência (ADORNO, 2003, p. 58).
O romance moderno está mais atento à subjetividade do homem, à sua relação com o mundo no qual está inserido e às problemáticas que enfrenta numa realidade paradoxal e, muitas vezes, caótica. Antonio Candido, no ensaio “A personagem do romance”, que integra A personagem de ficção (2000), discorre sobre essa fragmentação do sujeito, ressaltando que, na vida, a visão fragmentária é imanente à própria experiência, é uma condição que independe da vontade do sujeito, mas a qual ele terá que se submeter. Já no romance essa condição é criada, “estabelecida e radicalmente dirigida pelo escritor, que delimita e encerra, numa estrutura elaborada, a aventura sem fim que é, na vida, o conhecimento do outro” (CANDIDO, 2000, p.43). 
[...] o romance, ao abordar as personagens de modo fragmentário, nada mais faz do que retomar, no plano da técnica de caracterização, a maneira fragmentária, insatisfatória, incompleta, com que elaboramos o conhecimento dos nossos semelhantes. Todavia, há uma diferença básica entre uma posição e outra: na vida, a visão fragmentária é imanente à nossa própria experiência; é uma condição que não estabelecemos, mas a que nos submetemos. (CANDIDO, 2000, p. 42-43)
Para esse crítico, o romance moderno procurou, justamente, aumentar cada vez mais esse sentimento de “dificuldade do ser fictício”, diminuir a ideia de esquema fixo, de ente delimitado, que decorre do trabalho de seleção do romancista. Desse modo, a personagem se torna complexa, porque o romancista pode combinar com perícia “os elementos de caracterização, cujo número é sempre limitado se os compararmos com o máximo de traços humanos que pululam, a cada instante, no modo-de-ser das pessoas” (CANDIDO, 2000, p. 44). Sobre esse ponto de vista de Candido, poderíamos dizer que as transformações sofridas pelo romance, no século XVIII, consistiram numa passagem “do enredo complicado com personagem simples, para o enredo simples (coerente, uno) com personagem complicada”. Sendo assim, “o senso da complexidade da personagem, ligado ao da simplificação dos incidentes da narrativa e à unidade relativa de ação, marca o romance moderno” (CANDIDO, 2000, p. 45). Em Joyce e Proust há uma dificuldade em descobrir a coerência e a unidade dos seres, bem como há uma fragmentação das circunstâncias que se reflete, por vezes, na forma de incomunicabilidade das relações. Nesse sentido, Candido observa que
concorrem para isso, de modo direto ou indireto, certas concepções filosóficas e psicológicas voltadas para o desvendamento das aparências no homem na sociedade, revolucionando o conceito de personalidade, tomada em si e com relação ao seu meio. É o caso, entre outros, do marxismo e da psicanálise, que [...] atuam na concepção de homem, e portanto de personagem, influindo na própria atividade criadora do romance, da poesia, do teatro. (CANDIDO, 2000, p.57-58)
Talvez o caso mais saliente dessa nova forma de representar a realidade é o romance psicológico[footnoteRef:2] ou romance de introspecção. À luz ficcional, esse tipo de romance traz a representação de como se processa o fluir da consciência da personagem. Para Rosenfield, com a presença direta do fluxo psíquico, perde-se o contorno nítido dos personagens e desaparece a ordem lógica da frase, bem como a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à sequência dos acontecimentos. Rosenfeld compreende que essa experiência psíquica, o fluxo de consciência, caminha para a radicalização do monólogo interior, característica crucial do romance moderno: [2: O romance psicológico surge sob influência dos estudos de psicologia, na transição entre o século XIX e XX. Assim, muitas narrativas passam a fazer o uso do monólogo interior, técnica que transcreve os pensamentos e os conteúdos psíquicos dos personagens através da narração literária.
] 
A tentativa de reproduzir este fluxo de consciência – com sua fusão dos níveis temporais – leva à radicalização do monólogo interior. Desaparece ou se omite o intermediário, isto é, o narrador, que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome “ele” e da voz do imperfeito. A consciência da personagem passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance. Ao desaparecer o intermediário, substituído pela presença direta do fluxo psíquico, desaparece também a ordem lógica da oração e a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à sequência dos acontecimentos. (ROSENFELD, 1973, p. 83-84)
Os romances escritos, a partir dessa tendência psicológica, fornecem, acima de tudo, o retrato da vida interior da personagem. A introspecção sintetiza a imersão do sujeito em si mesmo e revela, por consequência, o estado de “alma” dele através do processo de fluxo da consciência. Se parte do romance moderno concretiza-se na radicalização do romance psicológico, tendo como consequência a inversão dos valores tradicionais, temos como exemplo, dessa tentativa de diminuir a distância entre o indivíduo e o mundo, Ulisses (1922), de James Joyce, inovando as técnicas formais da prosa de ficção, ao representar a fragmentação espiritual do mundo em que vivemos. Não podemos deixar de mencionar também Mrs. Dalloway (1925), de Virgínia Woolf, em que a técnica narrativa peculiar da autora está baseada no uso do monólogo interior, “das associações de ideias e de sentimentos que envolvem não só a vida psíquica de um personagem, mas que se transferem de um personagem para outro” (D’NOFRIO, 1990, p. 34). E, em cenário brasileiro, temos como narrativa próxima a dos escritores mencionados, Perto do coração selvagem, de Clarice Lispector. 
O romance Perto do coração selvagem divide-se em duas partes e possuindo cada capítulo um título. Clarice utiliza uma técnica simultânea de capítulos ajuntados desordenadamente,fazendo Joana, a protagonista, saltar da infância para a vida adulta e desta novamente para a infância e adolescência, já que o tempo que importa é o da memória e o da introspecção. Joana, ainda criança, perde os pais e passa a morar com os tios. Contudo, a tia não gosta da presença de Joana e isso se intensifica depois de a menina ter roubado um livro, enquanto elas faziam compras. Assim, Joana é mandada para um internato. Quando já fora do internato, Joana casa-se com Otávio, o qual tinha uma amante, Lídia, sua ex-noiva. Após romper com o marido e o amante, a quem estranhamente surgiu e também estranhamente partiu, Joana resolve fazer uma viagem sem destino, não definida, objetivando resgatar o seu eu. Em meio a esses acontecimentos, que não ocorrem de modo linear, observa-se a todo o momento o fluxo de consciência, uma procura constante de Joana para descobrir e encontrar a razão de ser de sua existência. 
O fio tênue da fábula cria poucos núcleos de ação, como a infância de Joana, a perda do pai, a relação com o professor, o casamento, o amante, a separação entre Joana e o marido, a viagem final, uma vez que a história é feita de erupções e rupturas ocasionadas por reflexões filosóficas em tom poético, cujo único centro é a busca do mistério da própria existência. É na experiência interior da protagonista, Joana, que a ação romanesca está centrada. 
[...] a ênfase recai sobre a ação interior da protagonista que vai ganhando consistência em função dos sentimentos, dos desejos que exprime e dos conflitos íntimos que a opõem aos outros, convertendo-se num processo sem limites, numa busca ansiosa da existência verdadeira e inacessível, removida a cada passo pela introspecção em que se abisma, e que é a matéria ou a substância da narrativa. (WALDMAN, 1983, p. 28-29)
Nesse romance, a personagem Joana expõe o conteúdo mais profundo de sua mente, tendo o presente (do pensamento) como tempo dominante, numa espécie de confidência (direta) ao leitor, como podemos observar no trecho: 
O teto era branco, o teto era branco. Até seus ombros, que ela sempre considerara tão distantes de si mesma, palpitavam vivos, trêmulos. Quem era ela? A víbora. Sim, sim para onde fugir? Não se sentia fraca, mas pelo contrário possuída de um ardor pouco comum, misturado a certa alegria, sombria e violenta. Estou sofrendo, pensou de repente e surpreendeu-se. (LISPECTOR, 1980, p. 54)
Joana absorve os acontecimentos exteriores e os envolve na intensificação de um conflito interior dramático, levando-a à introspecção. A solidão, a paradoxal busca pela liberdadade, a incomunicabilidade, o desencantamento do mundo e os abismos da existência humana são aspectos que corroem o cerne dos conflitos da protagonista. 
No meu interior encontro o silêncio procurado. Mas nele fico tão perdida de qualquer lembrança de algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de solidão física. Se desse um grito, imagino já sem lucidez minha voz receberia o eco igual e indiferente das paredes da terra. Na solitude branca e limitada onde caio, ainda estou presa entre montanhas fechadas. Onde está a imaginação? Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as palavras que me ocorrem. Não são as verdadeiras, únicas e insubstituíveis, sinto-o Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome. (LISPECTOR, 1980, p. 74)
Joana, aqui, em estado de reflexão, procura captar toda a gama do mundo interior, no mais profundo de sua psique, nas mais íntimas sensações, na luta por encontrar respostas para os seus “porquês” existenciais, diante da liberdade que há em seu eu e a prisão do mundo exterior que a circunda. 
A atmosfera da narrativa desenvolve-se, em todo o seu percurso, sob a forma de uma expectativa de revelação ou de irrupção de uma epifania: “... ‘De profundis’. Sentia-o vacilar, quase perder o equilíbrio e mergulhar para sempre em águas desconhecidas. Ou, senão, a momentos, afastar as nuvens e crescer trêmulo, quase emergir completamente ... Depois o silêncio” (LISPECTOR, 1980, p. 84). O estado de Joana é de querer atingir algo que nunca passa da iminência: 
Um dia já lhe sucedera isso: quando pela primeira vez se preparava para o circo, em pequena. Teve os melhores momentos se preparando para ele. E quando se aproximou do largo campo onde branquejava o barracão redondo e imenso, como uma dessas cúpulas que escondem até certo instante o melhor prato da mesa, quando se aproximou na mão da criada, sentiu o medo e a angústia e a alegria trêmula no coração, queria voltar, fugir. (LISPECTOR, 1980, p. 119) 
Diante de qualquer situação de intensa manifestação de vida, de alegria, o sentimento de medo e de angústia que se apodera de Joana a torna incapaz de vivenciar as sensações, de modo que a personagem está sempre a fugir de si mesma, submetendo-se a situações paradoxais, na busca pelo amor, mas seu distanciamento pela consciência:
Sim, perdida como um ponto, um ponto sem dimensões, uma vez, um pensamento. Ela nascera, ela morreria, a terra ... Veloz, profunda a sensação: um mergulho cego numa cor – vermelha, serena e larga como um campo. A mesma consciência violenta e instantânea que a assaltava às vezes nos grandes instantes de amor, como a um afogado que vê pela última vez. (LISPECTOR, 1980, p. 145) 
O ponto a que se refere a personagem em relação à consciência violenta e instantânea são os lampejos que surgem em determinados instantes “privilegiados” e tendem a se instituir como uma situação epifânica. O poder de refletir, a inquietude e a energia indagativa que domina Joana é maior até mesmo do que sua capacidade para amar, do que sua disposição para se relacionar, pois, até mesmo em momentos conflituosos, como no caso de descobrir uma traição, ela racionaliza e refuta a realidade por meio de seus surtos filosóficos. 
Fez-se muitas perguntas, mas nunca pode se responder: parava para sentir. Como nasceu um triângulo? antes em ideia? ou esta veio depois de executada a forma? um triângulo nasceria fatalmente? as coisas eram ricas. – Desejaria deter seu tempo na pergunta. Mas o amor a invadia. Triângulo, círculo, linhas retas... harmônico e misterioso como o harpejo. Onde se guarda a música enquanto não soa? – indagava-se. E rendida respondia: que façam harpa de meus nervos quando eu morrer. (LISPECTOR, 1980, p. 184)
A melhor definição de Joana talvez seja a que ela própria se dá quando afirma: “Eu toda nado, flutuo, atravesso o que existe com os nervos, nada sou senão um desejo, a raiva, a vaguidão, a impalpável como a energia. Energia? Mas onde está minha força? Na imprecisão, na imprecisão, na imprecisão...” (LISPECTOR, p.154). Uma de suas marcas é a imprecisão de sua resposta “não sei”, aparecendo incessantemente no romance: não sabe dizer o que sente, não sabe o que será quando crescer, não sabe por que casou, não sabe as respostas para as perguntas que lhe fazem ou que ela mesma se faz. Essa incompletude e indefinição é, para Joana, paradoxalmente, um modo de liberdade, marcado pelo lirismo selvagem contido nas linhas do romance.
Diferentemente do romance tradicional, que apresentava uma distância estética fixa, no romance moderno, essa distância estética entre o indivíduo e o mundo é variável, pois há certa dificuldade em elaborar uma história e localizar-se, bem como localizar os personagens no tempo e no espaço como um narrador balzaquiano. Dando ênfase à vida psíquica, focaliza-se apenas uma parcela da realidade, eliminando a distância entre o narrador e o que é narrado.
O narrador, no afã de apresentar a “realidade como tal” e não aquela realidade lógica e bem comportada do narrador tradicional, procura superar a perspectiva tradicional, submergindo na própria corrente psíquica da personagem ou tomando qualquer posição que lhe parece menos fictícia que as tradicionais e “ilusionistas”. (ROSENFELD, 1973, p. 84)
Perto do coração selvagem guarda, na sua configuração narrativa, a marca de fragmentação, de modo semelhante a muitos romances modernos, e suas partes são construídas pelo movimentode várias vozes (como a protagonista Joana, Otávio, o marido de Joana, Lídia, a amante de Otávio), com as quais a narradora vai por vezes se confundindo. Embora o narrador transporte principalmente o mundo interior caótico de Joana e a utilize para direcionar a perspectiva da narração, o que, de acordo com Norman Friedman, em seu ensaio “O Ponto de vista na ficção” (2002), denomina-se onisciência seletiva, esse mesmo narrador tem o potencial para focalizar o subterrâneo dos outros personagens, tornando, assim, sua onisciência seletiva múltipla. Ou seja, nesse procedimento, o autor traduz os pensamentos, percepções e sentimentos, filtrados pela mente das personagens:
A estória vem diretamente das mentes dos personagens à medida que lá deixa suas marcas. [...] A aparência dos personagens, o que eles fazem e dizem, o cenário – todos os materiais da estória, portanto – podem ser transmitidos ao leitor unicamente através da mente de alguém presente. (FRIEDMAN, 2002, p. 176)
É através de monólogos e do fluxo de consciência que o leitor passa a conhecer os sentimentos, as mágoas, os desejos, os questionamentos existenciais dos personagens, em especial os de Joana, a protagonista. A cena seguinte exterioriza a passagem da voz do narrador para a de Joana sem que haja marcas diretas para isso. O leitor desatento talvez não perceba o momento em que o discurso do narrador dá lugar ao de Joana:
O que nela se elevava não era a coragem, ela era substância apenas, menos do que humana, como poderia ser herói e desejava vencer as coisas? [...] Ela notou que ainda não adormecera, pensou que ainda haveria de estalar em fogo aberto. Que terminaria uma vez a longa gestação da infância e de sua dolorosa imaturidade rebentaria seu próprio ser, enfim, enfim livre! Não, não, nenhum Deus, quero estar só. (LISPECTOR, 1980, p.154)
O trecho seguinte também expõe a exemplificação dessa alternância de ponto de vista, agora com o foco em Otávio, marido de Joana. Podemos perceber uma coincidência entre a constituição do drama dos dois personagens:
Música pura desenvolvendo-se numa terra sem homens, sonhava Otávio. [...] É a música sem apoio em coisas, em espaço ou tempo, da mesma cor que a vida e a morte. Vida e morte em ideias, isoladas do prazer e da dor. Tão distantes das qualidades humanas que poderiam se confundir com o silêncio. O silêncio. [...] O que sou hoje, nesse momento? Uma folha plana, muda, caída sobre a terra. (LISPECTOR, 1980, p. 88-89).
Podemos notar que o narrador onisciente, ao utilizar o monólogo interior e fluxo de consciência, transferindo da personagem o discurso sobrecarregado de emoção para a sua voz, promove certa desestruturação da narrativa. Essa forma direta de monólogo, sem marcas de introdução de discurso, sem aspas ou qualquer obediência à “normalidade” gramatical é comum na narrativa de Clarice Lispector, conforme podemos observar:
O piano foi atacado deliberadamente em escalas fortes e uniformes. Exercícios, pensou. Exercícios... Sim, descobriu divertida... Por que não? Por que não tentar amar? Por que não tentar viver? (LISPECTOR, 1980, p. 60)
Ademais, a radicalização dessa sondagem interior da mente acaba provocando um verdadeiro fluxo de pensamentos que se exprime numa linguagem cada vez mais frágil, em relação à linearidade e “logicidade” das construções linguísticas. Temos, assim, o monólogo interior que desliza em direção ao fluxo da consciência. O trecho abaixo, retirado de Perto do coração selvagem, mostra esse processo:
Poderia dar-lhe um pensamento qualquer e então criaria uma nova relação entre ambos. Isso é o que mais lhe agradava, junto das pessoas. Ela não era obrigada a seguir o passado, e com uma palavra podia inventar um caminho de vida. Se dissesse: estou no terceiro mês de gravidez, pronto! Entre ambos viveria alguma coisa. Se bem que Otávio não fosse particularmente estimulante. Com ele a possibilidade mais próxima era a de ligar-se ao que já acontecera. Mesmo assim, sob o seu olhar “me poupe, me poupe”, ela abria a mão de quando em quando e deixava um passarinho subitamente voar (LISPECTOR, 1980, p. 21).
O narrador aproxima-se de tal forma do ponto de vista da protagonista Joana que ocorre quase uma fusão entre ele e a personagem. Essa proposta enunciativa de fusão entre pontos de vista (do narrador e da protagonista) é explicada por Benedito Nunes, que identifica o papel da protagonista como aquele que
excede a função de um primeiro agente, que apenas conduz ou centraliza a ação. Ela é origem e limite da perspectiva mimética, o eixo através do qual se articula o ponto de vista que condiciona a forma do romance como narrativa monocêntrica, isto é, como narrativa desenvolvida em torno de um centro privilegiado que o próprio narrador ocupa. Em suma, a posição do narrador se confunde ou tende a fundir-se, nessa forma, com a posição da personagem (NUNES, 1995, p. 28-9)
A narrativa de Clarice Lispector é tão complexa, que, em um primeiro instante, temos a impressão de que estamos diante de um texto em primeira pessoa, no entanto, logo nos deparamos com um narrador mais distante, que abre passagem ao discurso direto da protagonista, para em seguida revelar-se como narrador onisciente, lançando mão do discurso indireto livre[footnoteRef:3]. Podemos dizer, assim, que, em muitos momentos, a terceira pessoa é um simulacro da primeira. Arnaldo Franco Junior esclarece que o “narrador clariciano é uma instância complexa, de múltiplas perspectivas...” (2011, p. 98) e frequentemente se identifica “com a perspectiva das personagens protagonistas”, mas pode romper, “em algum momento, com essa adesão para, à distância, avaliar criticamente a personagem e seus valores...” (FRANCO JUNIOR, 2011, p. 98). Notemos o trecho a seguir, referente ao momento da infancia de Joana: [3: Norman Friedman não utiliza essa terminologia, mas sabemos que o discurso indireto livre está associado ao narrador onisciente. ] 
A máquina do papai batia tac-tac... tac-tac-tac... O relógio acordou em tin-dlen sem poeira. O silêncio arrastou-se zzzzzz. O guarda-roupa dizia o quê? Roupa-roupa-roupa. Não, não. [...]
Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-iam-morrer. [...].
Então subitamente olhou com desgosto para tudo como se tivesse comido demais daquela mistura. “Oi, oi, oi...”, gemeu baixinho cansada e depois pensou: o que vai acontecer agora agora agora? E sempre no pingo do tempo que vinha nada acontecia se ela continuava a esperar o que ia acontecer, compreende? Afastou o pensamento difícil distraindo-se com um movimento [...] (LISPECTOR, 1980, p. 19-20)
Essas alternancias de pontos de vistas, que muitas vezes se misturam é recorrente em toda a narrativa. Não há uma continuidade linear de eventos, não há um foco narrativo que se estabeleça por todos os capítulos, não há personagens definidos, quase tudo o que sabemos deles é a respeito de sua interioridade, de seus pensamentos. A escritora Clarice Lispector põe em discussão a construção narrativa que intenta dar expressão aos estados mais profundos da consciência.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme abordamos neste trabalho, a situação histórica mundial da série romanesca nos faz compreender a complexidade do romance, de modo geral, e da narrativa de Clarice Lispector. O romance é um gênero dinâmico, em que seus temas, sua estrutura se moldam aos acontecimentos de cada época, estando o romance moderno mais atento à subjetividade. 
Mais de meio século após a publicação de Perto do coração selvagem, podemos dizer que Clarice Lispector cumpriu à risca o seu propósito literário inicial, o qual, por meio do discurso permeado de reflexões, não consistia em dar unidade aos fragmentos de sua prosa. Sendo assim, a autora renovou os ideais literários e exerceu significativa contribuição para a Literatura Brasileira, pois inaugurou uma outra linha de tradição literária, sendo provavelmente a origem das tendências “desestruturantes”, no âmbito da elaboração estilísticada linguagem. Ao analisarmos Perto do coração selvagem, podemos notar que o cerne da narrativa se centra na busca da identidade, em especial da personagem Joana. O foco narrativo é o recurso utilizado para deixar evidente esse propósito. Embora o narrador selecione Joana para direcionar a perspectiva da enunciação, acaba rompendo com essa perspectiva, quando sonda a vida subjetiva de outros personagens como Otávio. Clarice, rompendo com o modelo das narrativas de seu tempo, propõe a representação de estados mentais em diferentes perspectivas. Nesse sentido, podemos dizer, conforme já exposto no início deste trabalho, que Clarice Lispector renova o ato de escrever ficção, rompendo com a tipologia “romance”, ao lançar mão de uma linguagem complexa, de um narrador peculiar e de personagens difusos. 
REFERÊNCIAS
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O DESVIO CRIADOR EM CLARICE LISPECTOR: 
UMA ANÁLISE DA 
PERSONAGEM E DO NARRADOR DE 
PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM
 
 
 
Maiara Cristina Segato (UTFPR)
 
 
 
Resumo:
 
Clarice Lispector, em sua prosa inicial, 
Perto do coração selvagem
, 
publicada em 1944, “vira do aves
so” 
a tradição romanesca, quanto às categorias 
narrativas
, sendo apontada pela crítica como a primeira experiência definida que se 
faz no Brasil do moderno romance lírico. Clarice, por meio de um narrador situado em 
um espaço literário de introspecção, questio
na a capacidade de expressão pela 
linguagem na relação entre o sujeito e a realidade. Desse modo, o próprio lugar onde 
fala o narrador repercute no discurso lírico, pois o centro irradiador de suas reflexões 
filosóficas é a poesia. Uma vez que uma n
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Joana, a autora opta por uma postura 
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assim, a linearidade da diegese narrativa. Nesse sentid
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analisar essa ruptura com os conceitos narrativos tradicionais, a partir do estudo da 
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Perto do coração selvagem
. 
 
 
Palavras
-
chave:
 
Clarice Lispector; 
Perto do coração selvagem
; Categorias 
narrativas
.
 
 
 
Introdução
 
 
O surgimento de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro com o 
romance 
Perto do coração selvagem
, publicado em 1944, representou um verdadeiro 
impacto para os críticos da época, desestabilizando as referências romanescas 
instituídas até então. 
Com Clarice
,
 
t
emos uma expressão literária notadamente fora 
do padrão convencionado das décadas de 1930 e 1940, pois sobr
essaíam a ficção 
regionalista, o “romance nordestino”, mais afinados com a denúncia social, mais ao 
gosto do leitor, uma ficção ainda moldada segundo a sintaxe narrativa tradicional, 
embora também ganhasse força certa ficção psicologista, com o seu rol de 
obras 
justamente valorizadas, como 
A menina morta
 
(1954), de Cornélio Penna, e 
Crônica 
da casa assassinada
 
(1959), de Lúcio Cardoso. 
Perto do coração selvagem
 
aparece 
como uma obra completamente inovadora dentro do quadro da produção literária 
brasileira, 
mesmo em relação a algumas “transgressões” da ficção modernista da 
década de 1920, como 
Macunaíma
 
(1928), de Mário de Andrade, e 
Memórias 
sentimentais de João Miramar
 
(1924), de Oswald de Andrade. Clarice Lispector, já em 
O DESVIO CRIADOR EM CLARICE LISPECTOR: UMA ANÁLISE DA 
PERSONAGEM E DO NARRADOR DE PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM 
 
 
Maiara Cristina Segato (UTFPR) 
 
 
Resumo: Clarice Lispector, em sua prosa inicial, Perto do coração selvagem, 
publicada em 1944, “vira do avesso” a tradição romanesca, quanto às categorias 
narrativas, sendo apontada pela crítica como a primeira experiência definida que se 
faz no Brasil do moderno romance lírico. Clarice, por meio de um narrador situado em 
um espaço literário de introspecção, questiona a capacidade de expressão pela 
linguagem na relação entre o sujeito e a realidade. Desse modo, o próprio lugar onde 
fala o narrador repercute no discurso lírico, pois o centro irradiador de suas reflexões 
filosóficas é a poesia. Uma vez que uma narrativa no molde tradicional não daria conta 
dos conteúdos mais profundos da personagem Joana, a autora opta por uma postura 
estilística permeada por reflexões instauradas pela linguagem poética, quebrando, 
assim, a linearidade da diegese narrativa. Nesse sentido, nosso trabalho propõe-se a 
analisar essa ruptura com os conceitos narrativos tradicionais, a partir do estudo da 
personagem e do narrador de Perto do coração selvagem. 
Palavras-chave: Clarice Lispector; Perto do coração selvagem; Categorias 
narrativas. 
 
 
Introdução 
 
O surgimento de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro com o 
romance Perto do coração selvagem, publicado em 1944, representou um verdadeiro 
impacto para os críticos da época, desestabilizando as referências romanescas 
instituídas até então. Com Clarice, temos uma expressão literária notadamente fora 
do padrão convencionado das décadas de 1930 e 1940, pois sobressaíam a ficção 
regionalista, o “romance nordestino”, mais afinados com a denúncia social, mais ao 
gosto do leitor, uma ficção ainda moldada segundo a sintaxe narrativa tradicional, 
embora também ganhasse força certa ficção psicologista, com o seu rol de obras 
justamente valorizadas, como A menina morta (1954), de Cornélio Penna, e Crônica 
da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso. Perto do coração selvagem aparececomo uma obra completamente inovadora dentro do quadro da produção literária 
brasileira, mesmo em relação a algumas “transgressões” da ficção modernista da 
década de 1920, como Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, e Memórias 
sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade. Clarice Lispector, já em

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