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Introdução à clinica psicanalítica com crianças Conteúdo programático Eixos: a constituição psíquica e o método clínico ▪ A constituição psíquica na teoria lacaniana ▪ Avaliação e diagnóstico diferencial: neurose, psicose e autismo ▪ O início do tratamento com crianças psicóticas e autistas ▪ Entrevistas com pais e orientação ▪ O contato inicial com a criança ▪ O brincar como técnica ▪ Critérios para início de uma análise com criança A técnica apropriada “As regras técnicas que estou apresentando aqui alcancei-as por minha própria experiência (...) Devo, contudo, tornar claro que o que estou asseverando é que esta técnica é a única apropriada à minha individualidade; não me arrisco a negar que um médico constituído de modo inteiramente diferente possa ver-se levado a adotar atitude diferente em relação a seus pacientes e à tarefa que se lhe apresenta” (Freud, 1912, p.125). Surgimento de um novo campo: a psicanálise com crianças “Hermine von Hug-Hellmuth, primeira analista depois de Freud a aplicar a análise infantil, divergia da ideia da confluência pai-analista (...) buscava conciliar os objetivos psicanalíticos com os da família, escola e sociedade (...) Propunha que o analista não precisava explicitar os impulsos inconscientes (...) O analista deveria ser ao mesmo tempo terapeuta e educador” (Camarotti, 2010, p. 51). Áustria,1871- 1924 Surgimento do brincar como técnica na psicanálise com crianças “Em 1919, quando iniciei meu primeiro caso, algum trabalho psicanalítico com crianças já havia sido feito, particularmente pela Dra. Hug-Hellmuth (1921). No entanto, ela não empreendeu a psicanálise de crianças menores de seis anos e, embora usasse desenhos e ocasionalmente o brincar como material, não os desenvolveu em uma técnica específica” (Klein, 1955[1953], p. 150). Viena, 1882 – Londres, 1960 Surgimento do brincar como técnica na psicanálise com crianças “Esta análise [de Fritz] representou o início da técnica psicanalítica através do brincar, porque desde o início a criança expressou suas fantasias e ansiedades principalmente através do brincar, e eu interpretava consistentemente seu significado para ela, com o resultado de que material adicional aparecia em seu brincar. Isto quer dizer que eu já utilizava com este paciente, em essência, o método de interpretação que se tornou característico de minha técnica. Esta abordagem corresponde a um princípio fundamental da psicanálise – a associação livre” (Klein, 1955[1953], p. 151). O brincar como agente facilitador No caso de crianças, “falta no quadro clínico tudo aquilo que parece indispensável no caso do paciente adulto: a consciência (insight), de enfermidade, a decisão voluntária e a vontade de curar-se” (A. Freud, 1971, p. 22) : Viena,1895 - 1982 ▪ Período preparatório → brincar como agente facilitador ▪ “ela [Klein] procura encontrar por detrás de cada coisa executada no brinquedo a sua função simbólica subjacente”. “Não é fácil determinar ... se a equiparação entre o brincar da criança e a associação livre do adulto é válida ou não” (A. Freud, 1971, p.53,55). O primeiro contato - Quem solicitou o horário - Os pais juntos - A criança - Os pais e a criança - Não especificar Algumas considerações: - Quem faz o pedido de ajuda? - Escutar diferentes perspectivas do problema - Atravessamento do discurso dos pais. - Observar a interação familiar - Pais: “ponte” transferencial Quem recebemos no primeiro contato? Contato com a criança ▪ O brincar e os brinquedos ▪ Tipos de brinquedos ▪ O motivo da consulta ▪ O sigilo Estrutura da entrevista - roteiro estruturado - entrevista não direcionada - “roteiro mental” - entrevista não direcionada + entrevista dirigida → elaboração da história clínica (Arzeno, 1995). “Tratamos com sujeitos do inconsciente, mas encarnados e históricos” (Reinoso, 2002, p. 20) Estrutura da entrevista - exemplos -Dados de identificação -Configuração Familiar -Motivos da consulta -Gestação -Nascimento -Desenvolvimento -Saúde geral -Socialização -Vida escolar -Sexualidade -Ambiente Familiar e rotina -Práticas educativas -Contexto familiar/conjugal antes da gestação Etc Vida escolar: -Está em que série escolar? -Onde estuda? -Com que idade começou a freqüentar escola? -Como foi o período de adaptação? -Já houve troca de escola? Por quais motivos? -Gosta da escola? Apresenta queixas sobre a escola? -Apresenta dificuldades de aprendizagem? Já houve reprovação? -É assíduo? -Faz o dever de casa sozinho? -É organizado com os materiais escolares? -Há queixas disciplinares? -Solicitar ao entrevistado, de forma não dirigida, que fale sobre a vida escolar da criança. O que abordar/ao que se atentar nas entrevistas iniciais ▪ Começamos pelo motivo manifesto, pelo que é mais urgente ou tolerável ▪ Motivo manifesto da consulta e motivo latente ▪ História do sintoma ▪ Fantasia de doença e cura implícita ▪ Além dos dados cronológicos... - “Os dados cronológicos exatos são importantes, mas mais importante ainda é a versão que os pais ou o paciente trazem sobre esta história” (Arzeno, 1995, p. 26). - tom afetivo, esquecimentos, repetições, fuga do tema, nível de angústia... O que abordar/ao que se atentar nas entrevistas iniciais ▪ Cuidado para não nos perdermos na “novela” familiar ▪ O pai no discurso da mãe e vice-versa ▪ A conversa dos pais com a criança sobre o atendimento ▪ Perguntas que podem ser precipitadas, invasivas ▪ Esquecer a teoria no encontro clínico ▪ Enquadre: objetivos, frequência, horários, honorários, o papel de cada um... ▪ Estabelecimento do contrato para esta etapa do trabalho A queixa, o sintoma e o pedido de ajuda ▪ Não tomar o pedido ao pé da letra ou apressadamente (furor curandis). “Ao reeducarmos um sintoma que era para o menino [Simon – dislexia] uma forma de linguagem, isto é, o único meio de que dispunha para exprimir as suas dificuldades, nós o pusemos em perigo, e é de outra maneira que, desde então, as suas defesas vão organizar-se – à custa, dessa vez, de todo despertar intelectual” (Mannoni, 1981, p. 45). ▪ A criança tem consciência da doença? “A. Freud dizia que a criança não tem consciência de doença e Melanie Klein dizia que sim. A. Freud estava certa, já que a maioria das crianças respondem que estão bem e não sabem o que ocorre com elas (...) Melanie Klein falava, no entanto, da fantasia inconsciente de doença, que pode ser encontrada em todo sujeito que consulta” (Arzeno, 1995, p. 38). A queixa, o sintoma e o pedido de ajuda ▪ “A solicitação existe tão-somente a propósito de objetos de caráter negativo para o meio social” (Dolto, 1981, p. 11). ▪ “Para o psicanalista, o que importa não são os sintomas aparentemente positivos ou negativos em si mesmos” (Dolto, 1981, p. 12). ▪ “Uma criança ideal para seu meio, submissa, obediente, passiva adaptada às normas dos adultos, com uma vida de fantasia limitada, com um nível de jogo que elude o ‘turbulento’ é, do ponto de vista da psicanálise, um neurótico grave. No entanto, é muito difícil que um pai consulte por problemas desse tipo, pois há uma maior tolerância aos sintomas com predomínio de inibição e uma menor tolerância aos sintomas em que predomina a descarga” (Aberastury, 1996, p. 32). Avaliação inicial - Entrevistas com pais/responsáveis - Contatos lúdicos com a criança - Entrevista familiar - Possibilidade de outros recursos: aplicação de testes, visita à escola... - Entrevista devolutiva para os pais ▪ O fechamento da avaliação/início da análise de criança não requer que se tenha chegado a um diagnóstico conclusivo. ▪ Uma das particularidades da análise com criança: trata-se de um sujeito em constituição psíquica. ▪ Diagnóstico na infância: “algo não está bem” (J. Jerusalinsky, comunicação oral, Sedes, 2018). ▪ A indicação pode não coincidir com o pedido dos pais. Indicativos de saúde mental ou dificuldades ▪ sujeito é efetivamente criativo ▪ comunicação verbal, afetiva e psicomotora de acordo com sua idade ▪ está à vontade no trato comcompanheiros ▪ apto a amar, ser amado, comunicar seus sentimentos ▪ enfrenta as frustrações e dificuldades cotidianas sem descompensar (Dolto, 1981, p. 12) ▪ inibições no brincar e estereotipias ▪ falta de curiosidade ▪ submissão exagerada ▪ tendência a bater-se, machucar-se gravemente, adoecer com frequência ▪ tendência ao isolamento ▪ incapacidade de tolerar frustrações ▪ pobreza da vida de fantasia (Aberastury, 1996, p. 33-34). Lugar dos pais ▪ Nenhuma escolha é inócua ▪ Articulação entre teoria e técnica: O peso do intersubjetivo na formação da subjetividade e do sintoma O lugar dos pais na análise de crianças Lugar dos pais ▪ De Melanie Klein a Lacan percorreremos um contínuo que coloca cada um deles em pólos opostos (Rosenberg, 2002, p. 57). KLEIN -Ics desde as origens -Conteúdos fantasmáticos -Intrapsíquico -Papel do Outro? Lugar dos pais? LACAN -Intersubjetivo, campo do Outro -Pura continuidade? -Dolto, Mannoni LAPLANCHE - entrecruzamentos: intrapsíquico e campo do O-outro. - O inconsciente da criança não é diretamente o discurso do outro, nem mesmo o desejo do outro. Sintoma da criança x criança como sintoma ▪ “Naquele ponto em que a linguagem termina, é o comportamento que continua a falar e, quando se trata de crianças perturbadas, é a criança que pelos seus sintomas, encarna e presentifica as consequências de um conflito vivo, familiar ou conjugal” (Dolto, 1981, p. 13). ▪ Primeira infância: quase sempre, distúrbios reativos a dificuldades parentais (ambiente). Distúrbios que surgem posteriormente: podem ser devidos apenas aos conflitos dinâmicos intrínsecos da criança ou adolescente (Dolto, 1981, p. 14). ▪ “É raro, com efeito, que não se perceba por trás de um sintoma, certa desordem familiar. Entretanto, não é certo que esta desordem familiar tenha, por si mesma, uma relação direta de causa e efeito com os distúrbios da criança” (Mannoni, 1981, p. 70). Lugar dos pais: trabalhar só com os pais? ▪ “Alguns analistas, entendendo que o sintoma da criança se origina na conflitiva da sexualidade dos pais, propõem trabalhar só com eles (...)” (Rosenberg, 2002, p. 35). ▪ “Supor que se modifica um sintoma de uma criança trabalhando só com os pais, é tão absurdo como supor que se pode suturar uma ferida uma vez que o tecido tenha cicatrizado (...) se uma picada produziu um vergão, não é matando o mosquito que cessará a coceira (...) é necessário trabalhar as consequências e as próprias condições” (Bleichmar, 2002, p. 161). ▪ “algumas vezes a consulta acaba com uma breve orientação para os pais sem necessidade de tratamento para o filho” (Arzeno, 1995, p. 24). Orientação de pais Qual é o lugar dos pais na análise de crianças? Lugar da orientação de pais? ▪ Compromisso ético do analista com a reflexão sobre os efeitos de seu fazer. ▪ Diante do clamor dos pais, é preciso que o analista de crianças problematize e localize seu lugar. ▪ Recusar uma posição de detentor da verdade não reserva ao analista de crianças tão somente o lugar de silêncio diante dos pais. Conversando com os pais: possibilidades e limites ▪ Exemplo: Dolto conversa com pais por meio de um programa de rádio. O programa consistia em responder às cartas de pais com dúvidas sobre o desenvolvimento e a educação dos filhos. Ex.: uma mãe lhe pergunta se devem deixar o filho chorar ou pegá-lo no colo. “Se devemos deixa-lo chorar? Não por muito tempo. Podemos perfeitamente niná-lo, devolver-lhe o ritmo. Por que ninar o acalma? Porque é o ritmo do corpo da mãe quando ela andava por toda parte carregando-o na barriga. E, sobretudo, ao niná-lo, falar com ele: ‘Pronto. A mamãe está aqui. O papai está aqui. Sim, sim, estamos aqui” (Dolto, 2008, p. 9). Conversando com os pais: possibilidades e limites ▪ Exemplo: Aberastury e os grupos de orientação de mães “As primeiras tentativas de ajudá-las [as mães], orientando a educação da criança com conselhos fracassaram relativamente; enquanto durava minha influência sobre elas, se me viam com frequência, modificavam suas condutas; mas nada que aceitassem num plano consciente chegava a ser genuíno nelas. Compreendi que se sua situação interna não se modificasse previamente, pela compreensão e interpretação do conflito, todo conselho era eficaz apenas transitoriamente.” (Aberastury, 1982, p. 249). À medida que o trabalho avançava, “os outros grupos me foram mais úteis para aperfeiçoar a técnica de manejar as situações práticas, orientando-as [as mães] de maneira a evitar, na medida do possível, o conselho” (Aberastury, 1982, p. 250). “Vamos criar seu filho”: pediatria e educação das mães “Ao longo dos últimos quarenta anos, o mercado editorial de livros e revistas especializadas vem crescendo, talvez na mesma medida que aumenta a insegurança dos pais em relação ao cuidado e à criação dos filhos (...) De um lado vemos uma polifonia de opiniões e de conselhos dos mais diversos especialistas com pediatras, psicólogos e pedagogos. De outro lado, a avidez silenciosa de leitores que admitem nada ou pouco saber sobre a criação dos filhos (...) uma das origens do quadro que estamos comentando foi a constituição, ainda no século XIX, da especialidade médica pediátrica e de seu projeto educativo e formativo, a puericultura, visando melhorar a saúde e as condições de vida das crianças por meio do aconselhamento e educação das mães” (Martins, 2008, p. 136-137). Os médicos pediatras e a educação das mães ▪ Médicos passam a escrever livros para as mães e a comunicar seu saber por meio de jornais, revistas, cursos e rádio. ▪ Relação assimétrica: o especialista e o leigo. ▪ Desqualificação dos saberes maternos transmitidos → solidão das mães. ▪ Culpabilização das mães (ignorância como causa de doenças e mortes). ▪ Resistência das mães. ▪ A mãe cientista (medir, pesar, consultar tabelas, anotar...). ▪ Complexificação das tarefas maternas. ▪ Mães ausentes ou superprotetoras podiam pôr em risco a saúde mental do filho. ▪ O mito da mãe perfeita → ansiedade, insegurança, culpa (Martins, 2008). Opiniões ‘psi’ e o não saber dos pais “Mas há tantas opiniões ‘psi’ e dadores de conselhos aos pais em dificuldade, que se convencem com excessiva facilidade da sua própria incompetência educacional e estão prontos, quando se trata dos seus filhos, a depositar as suas responsabilidades em mãos técnicas, tal como recorrem aos mecânicos quando o objeto em causa são os seus automóveis” (Dolto, 1981, p. 10). Com a palavra: os pais ▪ Ouvir e não orientar a priori: “A priori, jamais, ‘oriento’ e fico sempre espantada com as ‘orientações’ imperativas dadas a algumas pessoas” (Mannoni, 1981, p. 86). ▪ Os efeitos das práticas educativas não estão dissociados da concepção que os próprios pais possuem sobre maternidade/paternidade e das dificuldades, necessidades e crenças de cada família. ▪ Exemplo: debate sobre o quarto/cama compartilhada. Referências bibliográficas ABERASTURY, A. Grupos de orientação de mães. In Psicanálise da criança: teoria e técnica. Porto Alegre: Artes Médicas: 1982. p. 249-265. ABERASTURY, A. Abordagens à psicanálise de crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996. ARZENO, M. E. G. Psicodiagnóstico clínico: novas contribuições. Porto Alegre: Artmed,1995. BLEICHMAR, S. Do discurso parental à especificidade sintomática na psicanálise de crianças. In: ROSENBERG, A. M. S. de (Org.). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Editora Escuta, 2002. p. 133-165. CAMAROTTI, Maria do Carmo. O nascimento da psicanálise de criança: uma história para contar. Reverso, Belo Horizonte, v. 32, n. 60, p. 49-53, set. 2010 . DOLTO, F. Prefácio. In: MANNONI M. A primeira entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro: Campus, 1981. p. 9-30. DOLTO, F. Quando os filhos precisam dos pais: respostas a consultas de pais com dificuldades na educação dos filhos. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008. FREUD, A. O tratamento psicanalítico de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1971. FREUD, S. (1912). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 1996.(Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v.12). KLEIN, M. (1991). A técnica psicanalítica através do brincar: sua teoria e significado. In M. Klein, Inveja e gratidão e outros trabalhos: 1946-1963 (As obras completas de Melanie Klein, Vol. 3, pp. 149-168). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1955). MANNONI M. A primeira entrevista em Psicanálise. Rio de Janeiro: Campus, 1981. MARTINS, Ana Paula Vosne. "Vamos criar seu filho": os médicos puericultores e a pedagogia materna no século XX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, n. 1, p. 135-154, jan-mar. 2008. REINOSO, G. G. Prefácio. In: ROSENBERG, A. M. S. de (Org.). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Editora Escuta, 2002. p. 11-20. ROSENBERG, A. M. S. de. A constituição do sujeito e o lugar dos pais na análise de crianças. In: ______. (Org.). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Editora Escuta, 2002. p. 45-78. ROSENBERG, A. M. S. de. Psicanálise com crianças. A legitimidade de um campo. Os pais, o recalque e a circulação de significantes enigmáticos na condução da cura. In: ______. (Org.). O lugar dos pais na psicanálise de crianças. São Paulo: Editora Escuta, 2002. p. 27-44.
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