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MINUTA ACP Malha Sul - Esteio

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1º Ofício Geral
MERITÍSSIMO JUÍZO Federal da __Vara Federal da subseção judiciária de canoas - Seção Judiciária do Estado do Rio Grande do Sul
PAJ Coletivo nº 2020/101-00049
A DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, instituição essencial à função jurisdicional do Estado, a quem incumbe a promoção dos direitos humanos e a defesa individual e coletiva dos necessitados e grupos vulneráveis, ao final representada por seu membro que a esta subscreve, no exercício de suas atribuições constitucionais e legais, vem perante Vossa Excelência, com fundamento no artigo 5º, incisos LXXIV e XXXV, e artigo 134, ambos da Constituição da República; no artigo 5º, inciso II, da Lei nº 7.347/85 (com redação dada pela Lei nº 11.448/07); e no artigo 4º, inciso VII, da Lei Complementar nº 80/1994 (com redação dada pela Lei Complementar nº 132/2009), propor a presenteAÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA PROVISÓRIA DE URGÊNCIA
em face de RUMO MALHA SUL S.A., empresa privada inscrita no CNPJ sob o nº 01.258.944/0001-26, com endereço na Rua Emílio Bertolini, nº 100, sala 02, bairro Vila Oficinas, Curitiba/PR, CEP 82920-030, do DEPARTAMENTO NACIONAL DE INFRAESTRUTURA DE TRANSPORTES - DNIT, da UNIÃO, do ESTADO DO RIO GRANDE SUL e do MUNICÍPIO DE ESTEIO, pelos fatos e fundamentos jurídicos a seguir aduzidos.
“[...] Aliás, provavelmente é ao direito à moradia – bem mais do que ao direito de propriedade – que melhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar – numa tradução livre – que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa (Sphare ihrer Freiheit). Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se a si próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de sua intimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com um mínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a sua dignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria existência física, e, portanto, o seu direito à vida.”[footnoteRef:1] [1: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 15, 2009. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/370724/mod_resource/content/1/direito-fundamental-c3a0-moradia-ingo-sarlet.pdf.] 
Ingo Wolfgang Sarlet
 I. DOS FATOS
No ano de 2017, o Núcleo de Canoas da Defensoria Pública da União deparou-se com um crescente número de pessoas buscando assistência para defesa em processos de reintegração de posse movidos pela Rumo Malha Sul S.A., que, à época da propositura das ações, denominava-se ALL - América Latina Logística Malha Sul S.A. 
Houve o deferimento da assistência jurídica para quatro pessoas assistidas por esta DPU, a saber: Juriclia Lima (830.698.950-34), Vanderlei Borges Santos (943.843.040-72), Osmilda Brambilla (573.816.900-04) e Ailson Correa Dahmer (038.998.790-58) que residem entre os metros 445 e 508 do Km 3 da linha férrea em Esteio, ao lado esquerdo da malha ferroviária, sentido Ramal Gerdau.
As ações propostas pela concessionária de serviços públicos visam a reintegração da empresa na posse de diversas áreas que circundam os trilhos ferroviários. Em todas as ações possessórias citadas foram requeridas audiência de conciliação, o que, todavia, não ocorreu. 
A Rumo Malha Sul argumenta que os moradores estariam ocupando área de domínio da União. Veja-se imagens do Google Maps em que fica evidente a localização das linhas férreas.
Linha Férrea
Imagem 1 – Localização da rua na qual instalaram-se as comunidades. Em laranja situa-se a linha férrea.
Diante do impacto potencial que o grande número de demandas possessórias poderia causar naquela comunidade, instaurou-se na Unidade de Canoas da DPU o PAJ Coletivo nº 2020/101-00049, com o objetivo de analisar a situação daqueles assistidos sob o viés de uma comunidade, e não apenas pelas ações individuais propostas pela Rumo Malha Sul S.A.
Linha Férrea
Imagem 2 – Visão do satélite. Em laranja está a linha férrea e em vermelho onde habitam as pessoas que sofrem ações possessórias movidas pela parte ré.
Viu-se, primeiramente, que a comunidade que ocupa aquela área é diversificada, constituídas por casais com filhos pequenos, idosos, famílias monoparentais, a exemplo da Sra. Osmilda Brambilla, idosa que reside só com a filha de 22 anos, dentre outras configurações. São, em sua esmagadora maioria, pessoas simples, de parcos conhecimentos, algumas das quais adquiriram os terrenos de forma onerosa (vide contrato de compra e venda anexo) por indivíduos que se diziam proprietários dos terrenos, os quais são hoje objeto das referidas ações possessórias.
Ademais, aqueles que buscaram o auxílio da Defensoria Pública da União são comprovadamente hipossuficientes do ponto de vista econômico. A maioria recebe auxílio do Programa Bolsa Família para obter o mínimo de subsistência, outros coletam lixo para ajudar na economia familiar e há, ainda, quem labore informalmente e logra a alcançar o montante de um salário mínimo ao mês.
Os moradores da dita área ocupam-na por pelo menos seis anos, podendo chegar a uma década. Não obstante as famílias tenham estabelecido domicílio na área supracitada e convivam em comunidade, é latente sua vulnerabilidade social frente ao precário ambiente onde habitam, o que será posteriormente demonstrado.
I.I. Da Visita in loco realizada pela Defensoria Pública da União (DPU)
Com vistas a adquirir maior compreensão do contexto social da referida comunidade, a Defensoria Pública da União realizou uma visita in loco à área objeto de ações reintegratórias. O que se pôde notar é que, de fato, é impossível que qualquer trem circule naquelas linhas férreas, pelas seguintes razões: 
a) há anos a área não vem sendo utilizada, motivo pelo qual os trilhos por onde passariam os trens – o caracterizaria o local como de “risco” – está permeado de vegetação e terra, o que torna impossível mesmo sua diferenciação em determinadas partes; 
b) a área está rodeada de casas de madeira onde lá residem pessoas por pelo menos dez anos (como se pode comprovar pelo contrato de compra e venda de um dos terrenos que data de Janeiro de 2010) sem jamais ter tido contato com qualquer trem que possa um dia ter passado ali; 
c) os moradores têm acesso a serviços públicos básicos, em que pese a saliente precariedade do local, tal como demonstra extratos de fornecimento de água da CORSAN anexos, o que demonstra a ciência pública dos residentes daquele local há algum tempo. Além disso, nota-se que há fácil acesso a transporte público, escola, igreja e comércio.
Percebe-se, pois, que já há algum tempo há famílias residindo naquele local justamente pela facilidade de acesso a serviços essenciais e aparente abandono por parte do poder público, o que propiciou, inclusive simulações de venda de terreno e a compra por um dos residentes afetados pelas ações reintegratórias. As imagens que seguem corroboram o relatado:
Imagem 3: Itinerário da Linha de Ônibus Circular Novo Esteio retirado do aplicativo de transporte coletivo “Moovit”. Nota-se que o ônibus perpassa a Rua Arlindo Baierle nos exatos trechos onde aparece “BR 448” cerca de onde residem os assistidos. 
Linha Férrea
Imagem 4 – Extraída do “Google Maps”. vermelho está a comunidade e em amarelo está a linha férrea. Evidencia-se comércio, escola e igreja cerca da comunidade.
O local onde residem os moradores da área objeto da contenda é acessível através de um pequeno corredor ao lado do muro da casa nº 480 da Rua Arlindo Baierle. Nesta rua, há diversas residências, e acesso à ponto de ônibus, inclusive. Ao final desta passagem, vislumbra-se os trilhos abandonados e os humildes lares dos moradores afetados.
CASA Nº 480 Ao final deste corredor há o acesso aos trilhos e à residência da Sra. Osmilda Brambilla.
PASSAGEM
Imagem 5 – Extraída do “Google Maps”. Passagem ao lado da casa 480 na Rua Baierle, Esteio, através da qual tem-se acesso à comunidade. Nota-seos postes de luz que a atendem.
. PASSAGEM
Imagem 6 – Visita in loco. Corredor que dá acesso à casa de fundo construída cerca dos trilhos, identificada como “482 fundos” à Rua Arlindo Baierle.
PASSAGEM
Imagem 7 – Visita in loco. Passagem estreita que permite o acesso da Rua Arlindo Balerle às casas de fundo, onde residem os assistidos.
MURO DA PASSAGEM
RESIDÊNCIAS AFETADAS
Imagem 8 – Visita in loco. Após passar pela travessia, esta é a imagem que se tem das residências em frente aos trilhos abandonados.
CARRINHO ABANDONADO
RESIDÊNCIAS AFETADAS
MURO PASSAGEM
Imagem 9 – Visita in loco. Imagem das residências afetadas sob outro ângulo, em frente aos trilhos.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
CARRINHO ABANDONADO
Imagem 10 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação natura e detritos ao lado das residências afetadas.
A conclusão foi de que, de plano, os integrantes da comunidade que aí se encontram sobrevivem em um ambiente extremamente precário. Boa parte deles mora em pequenos casebres de madeira e sobrevive com coleta de lixo e de material reciclável. Nas redondezas das residências, os trilhos estão à mostra e em questionável estado de conservação. 
Nota-se a quantidade de lixo que tomou a região, o que inclui um carrinho que aparenta ser da própria Rumo Malha Sul completamente abandonado, bem como um aparente equipamento queimado e jogado na linha férrea.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
CARRINHO ABANDONADO
Imagem 11 – Visita in loco. Lixo espalhado pelos trilhos, há anos em desuso, ao lado de uma das casas objeto de ação possessória.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
CARRINHO ABANDONADO
Imagem 12 – Visita in loco. Lixo espalhado pelos trilhos, há anos em desuso, entre as casas objeto de ações possessórias.
CARRINHO ABANDONADO
Imagem 13 – Visita in loco. Imagem evidencia carrinho abandonado, detritos e vegetação que dominam o local dos trilhos.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
CARRINHO ABANDONADO
Imagem 14 – Visita in loco. Relação entre trilhos e terrenos, tomados pelo lixo.
Afastando-se das residências, nota-se que para ambos os lados os trilhos estão totalmente tomados pela vegetação. Não somente grama, mas também capim e folhas de árvores maiores, ocupam quase que por completo os caminhos por onde passariam os trens. Tal fato corrobora o relato dos habitantes de que há pelo menos cinco anos os trilhos não são utilizados.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
MURO PASSAGEM
LADO DIREITO
Imagem 15 – Visita in loco. Relação entre trilhos e terrenos, lado direito de quem passa pela travessia. 
LADO DIREITO
Imagem 16 – Visita in loco. Relação entre trilhos e terrenos, lado direito de quem passa pela travessia.
LADO DIREITO
Imagem 17 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação, lado direito de quem passa pela travessia. 
LADO DIREITO
Imagem 18 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação, lado direito de quem passa pela travessia.
Imagem 19 – Visita in loco. Trilhos tomados por terra, lama e detritos.
Imagem 20 – Visita in loco. Trilhos tomados por terra, lama e detritos.
RESIDÊNCIAS AFETADAS
LADO ESQUERDO
Imagem 21 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação, lado esquerdo de quem passa pela travessia.
LADO ESQUERDO
Imagem 22 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação, lado esquerdo de quem passa pela travessia.
Em outra área, mais distante das residências dos assistidos, percebe-se ainda mais claramente que os trilhos foram abandonados. Abaixo de um viaduto inacabado, ao início da Rua Arlindo Baierle, a própria terra sedimentou-se sobre os trilhos, escondendo-os. Em outro ponto, a grama tomou os trilhos e alguns metros à frente há mais vegetação cobrindo totalmente a linha férrea.
Imagem 23 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação e terra, afastando-se das residências.
ÂNGULO 2
ÂNGULO 1
TRILHOS
Imagem 24 – Visita in loco. Foto do viaduto abandonado, localizado no início da Rua Arlindo Baierle.
ÂNGULO 1
Imagem 25 – Visita in loco. Trilhos que desaparecem meio ao excesso de terra, em frente ao viaduto sob ângulo (1).
ÂNGULO 1
Imagem 27 – Visita in loco. Trilhos que desaparecem meio ao excesso de barro e terra, em frente ao viaduto sob ângulo (1).
ÂNGULO 2
Imagem 27 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação e terra, em frente ao viaduto sob ângulo (2).
ÂNGULO 2
Imagem 28 – Visita in loco. Trilhos tomados pela vegetação e terra, em frente ao viaduto sob ângulo (2).
ABAIXO DO VIADUTO
Imagem 29 – Visita in loco. Trilhos que desaparecem meio ao excesso de terra abaixo do viaduto.
Percebe-se que não há quaisquer cercados separando os trilhos férreos. Não há, tampouco, sinalização das áreas de domínio da concessionária pública e nem dos limites da área non aedificandi. Ao visualizar a área, não se pode imaginar que passaria algum trem em trilhos que há tanto tempo estão em desuso. 
Se uma pessoa é abordada por quem afirme ser proprietário da área, não tem motivos para desconfiar desta afirmação, de modo que os negócios jurídicos celebrados que abarquem aquelas áreas próximas aos trilhos teriam aparente regularidade se vistos por alguém alheio às especialidades do Código Civil e da Lei de Registros Públicos. É importante notar que a população da área é predominantemente simples, possuidora de parcos conhecimentos jurídicos.
Em suma, a comunidade é composta por pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e, também, social, as quais, caso sejam removidas do local onde hoje residem, não possuem condições de alcançar um imóvel de forma regular em uma cidade como Esteio. As ações possessórias movidas pela Rumo Malha Sul S.A. afetam diretamente a vida dessas pessoas, e ameaçam desabrigar diversas famílias constituídas por adultos, idosos e crianças.
I.II. Das Ações da Rumo Malha Sul e atual situação
A Rumo Malha Sul vem abarrotando o Poder Judiciário com um grande número de ações semelhantes àquelas em que atua a Unidade de Canoas da Defensoria Pública da União. Uma simples pesquisa no site do TRF4, cujo resultado acompanha a inicial, demonstra que são setecentos e setenta e sete ações de reintegração ou manutenção de posse em andamento na Seção Judiciária do Rio Grande do Sul envolvendo a concessionária pública. 
Dentre estes processos, dizem respeito à presente Ação Civil Pública, por questão de competência territorial da Unidade do Defensor Público Federal que subscreve a presente peça, as ações possessórias propostas na Subseção Judiciária de Canoas. Conforme lista que acompanha a peça vestibular, obtida através dos dados do sistema e-proc, há oitenta e três ações possessórias propostas pela Rumo Malha Sul tramitando na Subseção de Canoas (sob código “RSCAN”). Uma lista com informações sobre estes processos também segue anexa à exordial. 
O modus operandi da concessionária pública nestes processos é, via de regra, o mesmo: apresenta (a) o contrato de concessão pública que lhe daria o domínio das áreas objeto das ações; (b) mapas que definem as áreas de domínio e non aedificandi; (c) e boletins de ocorrência através dos quais pretende comprovar o suposto esbulho possessório sofrido. 
A concessionária cinge-se a afirmar que teria justo título lhe garantindo o domínio da área e que os moradores da região estariam esbulhando sua alegada posse. Olvida, no entanto, de enfrentar a questão social que envolve as contendas; de mencionar a quantidade de pessoas efetivamente afetadas pelas inúmeras ações propostas; o vasto tempo em que os moradores se instalaram em suas residências; e o fato de que falta, nas áreas objeto das ações, quase em sua totalidade, sinalização acerca das áreas que estariam, no plano jurídico, sob seu domínio. 
Todos os feitos que tramitam na Subseção Judiciária de Canoas vêm sendo tratados de maneira razoavelmente uniforme. Não obstante a ausência de maiores cuidados acerca dos efeitos das ações propostas em massa, a concessionária pública requereu, em todas, a concessão de tutela provisória de urgência, para que fosse reintegrada, de imediato, na posse de suas alegadas áreas de domínio, e, com isso, autorizada a demolir quaisquer construções feitas sobre as áreas àsquais seria reintegrada (o que significa, em outras palavras, destruir todas as residências de todos os demandados nas referidas ações possessórias).
Nos processos movidos em face de Juriclia Lima (nº 5006351-60.2017.4.04.7112), Vanderlei Borges Santos (nº 5006392-27.2017.4.04.7112), Osmilda Brambilla (nº 5006403-56.2017.4.04.7112) e Ailson Correa Dahmer (nº 5006397-49.2017.4.04.7112) em maio de 2017, a tutela provisória requerida em todas as ações movidas pela parte ré foi indeferida pelo juízo. Dentre as razões apontadas para o indeferimento, cita-se que a área objeto das ações supracitadas faz parte de uma comunidade formada por um número significativo de famílias, com residências e pontos de comércio, e que notavelmente ali residem há tempo considerável.
Constatou o juízo que o boletim de ocorrência acostado pela parte ré nos referidos autos não atesta o tempo que as famílias efetivamente estiveram na área, período este que certamente ultrapassa um ano, tal como se pode contatar da análise do Ofício n. 069/2016, enviado pela Agência Nacional de Transportes Terrestres - ANTT (Vide Evento 1 - OUT9 das ações ajuizadas). Neste, verificou-se que a existência de irregularidades na área já havia sido registrada em maio de 2016, mediante o Relatório n. 013/COFER/URRS/2016, e que à época nenhuma movimentação foi feita pela Rumo Malhas Sul S.A.
Em processo similar, o Meritíssimo Juízo da 2ª Vara Federal tomou a louvável atitude de visitar um trecho da ferrovia na cidade de Nova Santa Rita, que também é objeto das diversas demandas possessórias. Veja-se as palavras do mencionado juízo federal, proferidas na decisão do evento 19 do processo que tramita sob o nº 5015441-97.2014.4.04.7112 na 2ª Vara Federal de Canoas:
Por tal razão, na qualidade que lhe confere o art. 440 do Código de Processo Civil e a fim de analisar as condições fáticas descritas pela parte autora em sua exordial, na data de 06 de novembro de 2014 este Juiz compareceu na área objeto de discussão do feito [....]
Por ocasião da referida diligência informalmente realizada, constatou-se a existência de uma comunidade formada por um número significativo de famílias, com residências e pontos de comércio aparentemente construídos há vários anos, dado o desgaste das construções e o estado da vegetação no local. Verificou-se, ainda, a existência de um completo sistema de iluminação pública, de uma Escola Municipal e de uma linha de transporte coletivo para atender diariamente a população em comento.
Em contato com algumas pessoas residentes da região, sobreveio a informação de que há anos a própria ALL e a Prefeitura Municipal vêm acompanhando a situação das famílias que lá habitam, mostrando-se plenamente cientes da situação das construções efetuadas e de suas respectivas ocupações. Um dos moradores afirmou, inclusive, que reside com sua família na localidade há vários anos e que a área em questão já foi objeto de disputa judicial com a autora na esfera estadual, apresentando alguns documentos indicativos de que teria sido vencedor na lide [...] (grifos nossos)
A complexidade do contexto fático, como também era o caso acima destacado, supera a mera discussão acerca de posse. Frisa-se que há muito a ALL detinha o conhecimento da ocupação irregular de inúmeras famílias e, ciente dessa situação, nada fez para repará-la à época de seu surgimento. Trata-se, a bem da verdade, de problema de envergadura constitucional e de contenda cujo resultado poderá ter drásticas consequências sociais. 
Em face das decisões que indeferiram a tutela provisória, a Rumo Malha Sul S.A. interpôs agravo de instrumento, pugnando pela reforma das decisões e requerendo efeito suspensivo ativo aos recursos. A tutela provisória recursal, todavia, foi indeferida em todas as ações reintegratórias, sob o mesmo argumento do juízo a quo, o qual, sensível ao contexto fático da comunidade, considerou que a situação deve ser sopesada com o risco de dano que a ordem liminar de desocupação em um prazo tão exíguo pode ocasionar às inúmeras famílias da região. 
Com isso, o Juízo Federal de primeira instância prosseguiu normalmente os feitos. Não obstante o pedido Ministerial por tratativas conciliatórias em todos os processos mencionados no ano de 2018, todavia aguarda-se designação de Audiências de Conciliação, mesmo após o cumprimento de todas as diligências requeridas pelo juízo. Diante disso, mostrou-se oportuna e necessária a propositura da presente Ação Civil Pública. 
I.III. Da Tentativa de Solução Administrativa junto ao Município
A Defensoria Pública da União protocolou o Ofício nº 20 de 2019, anexo à presente peça, endereçado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano e Habitação em Esteio - RS, através do qual a instituição defensória solicitava esclarecimentos sobre a possibilidade de assistência da prefeitura à quem reside na área litigada, através da inclusão ao programa habitacional do município de Esteio. 
A Prefeitura, então, respondeu através do Ofício nº 039/2019, também anexo, informando que estão inscritos e aguardam ser beneficiados em torno de quatro mil famílias no Programa Minha Casa Minha Vida e que não há previsão de novos empreendimentos no referido Programa, dada a ausência de repasses do Governo Federal. 
A resposta da Prefeitura, como será demonstrado, foi mais um dos motivos para a propositura da presente Ação Civil Pública. 
II. DAS RAZÕES PRELIMINARES DE DIREITO
Do ponto de vista social, é inegável a necessidade de se solucionar a situação dos moradores que hoje habitam a área próxima aos trilhos férreos, de uma forma que transcenda a simples discussão acerca de posse, detenção e domínio à qual se limitam as mais de oitenta ações possessórias interpostas pela Rumo Malha Sul S.A. 
Do ponto de vista jurídico, chega-se à mesma conclusão. São diversos os dispositivos legais que permitem e mesmo exigem uma solução razoável mediante forte atuação dos entes públicos. Outros dispositivos, ainda, legitimam a propositura da presente ação, conforme demonstrar-se-á a seguir:
II.I. Da Ação Civil Pública e do Princípio da Economia Processual
O poder legislativo, com vistas a desafogar o Judiciário e, com isso, contribuir para a celeridade processual, vem editando uma série de normas processuais, ora simplificando procedimentos processuais, ora criando novos mecanismos de apreciação unificada de questões similares. Neste contexto, as ações coletivas apresentam um importante papel pacificador, e, de maneira gradual, o rol de legitimados para a sua propositura ampliou-se, o que se coaduna perfeitamente com o caráter democrático da República Federativa do Brasil.
Portanto, não se justifica a interposição de inúmeras ações judiciais para tratar do mesmo tema, em havendo instrumento processual que representa indiscutível economia para o Judiciário e maior eficácia para o jurisdicionado, além de conferir plena eficácia à norma que garante o amplo acesso ao Poder Judiciário, tal como assegurado por norma constitucional (artigo 5º, inciso XXXV, da Carta Magna).
A ação civil pública mostra-se, ademais, como a medida ideal para tratar de forma homogênea uma situação que atinge uma coletividade de pessoas, em respeito à segurança jurídica e ao impacto social da situação a ser apreciada no presente feito. É, portanto, além de medida de economia processual, um instrumento que efetiva uma coerente prestação jurisdicional e está conforme aos fins sociais expostos pelo artigo 8º do Código de Processo Civil[footnoteRef:2]. [2: Art. 8º Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.
] 
II.II. Da Legitimidade da Defensoria Pública da União
A Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado justamente por garantir o direito fundamental à assistência e orientação jurídica integral e gratuita aos carentes, conforme assegura o artigo 5º, inciso LXXIV, daConstituição Federal, ligado ao direito fundamental do acesso à justiça, consagrado no aludido artigo 5º, inciso XXXV, da Lei Maior. As atribuições da Defensoria Pública estão previstas no artigo 134 da Carta Magna, cabendo-lhe a defesa, em todos os graus de jurisdição, dos necessitados. 
A Lei Complementar 80/94, em seu artigo 4º, inciso VII, estabelece como função institucional a promoção da ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes. 
O inciso XI do referido diploma legal ainda lhe incumbe de exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado. 
De acordo com o artigo 5º, inciso II, da Lei 7.347/85, com redação dada pela Lei 11.448/07, atribuiu-se legitimidade à Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública. Aliás, com a promulgação da Lei Complementar 132/2009, que organiza a Defensoria Pública, não resta mais qualquer dúvida acerca da atribuição da instituição também à defesa dos direitos humanos, inclusive na forma coletiva. Veja a respeito: 
Art. 1º A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, assim considerados na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal. [...]
Art. 4º São funções institucionais da Defensoria Pública, dentre outras: [...]
III – promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico; [...]
VII – promover ação civil pública e todas as espécies de ações capazes de propiciar a adequada tutela dos direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos quando o resultado da demanda puder beneficiar grupo de pessoas hipossuficientes; [...]
VIII – exercer a defesa dos direitos e interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos e dos direitos do consumidor, na forma do inciso LXXIV do art. 5º da Constituição Federal; […] 
X – promover a mais ampla defesa dos direitos fundamentais dos necessitados, abrangendo seus direitos individuais, coletivos, sociais, econômicos, culturais e ambientais, sendo admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela; [...]
XI – exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado; [...]
XVII – atuar nos estabelecimentos policiais, penitenciários e de internação de adolescentes, visando a assegurar às pessoas, sob quaisquer circunstâncias, o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais; [...]
XVIII – atuar na preservação e reparação dos direitos de pessoas vítimas de tortura, abusos sexuais, discriminação ou qualquer outra forma de opressão ou violência, propiciando o acompanhamento e o atendimento interdisciplinar das vítimas; [...]
 Art. 15-A. A organização da Defensoria Pública da União deve primar pela descentralização, e sua atuação deve incluir atendimento interdisciplinar, bem como a tutela dos interesses individuais, difusos, coletivos e individuais homogêneos. (Incluído pela Lei Complementar nº 132, de 2009). (grifos nossos)
Não fosse suficiente, merece ser mencionado o § 1º do artigo 554 do Código de Processo Civil que define importante papel para a Defensoria Pública em ações possessórias na defesa de pessoas hipossuficientes economicamente. Em especial, às instituições defensórias é outorgado o poder-dever de exercer suas prerrogativas na seara da regularização fundiária, (art. 14, IV, Lei 13.465/2017) no zelo do direito à moradia daqueles economicamente vulneráveis. 
Assim, a leitura da legitimação conferida pela Lei da Ação Civil Pública sob a ótica constitucional da atuação atribuída à Defensoria Pública permite a conclusão de que, para a assistência jurídica integral em favor dos necessitados, este Órgão pode valer-se de instrumento coletivo para a defesa de quaisquer direitos ou interesses dos hipossuficientes, sejam difusos, coletivos ou individuais homogêneos de qualquer espécie.
Não reconhecer a legitimidade ativa da Defensoria Pública para propor ação civil pública seria inviabilizar o próprio acesso à justiça daqueles que não têm condições econômicas de se fazerem representar em juízo, entendimento corroborado pela Excelentíssima Senhora Ministra Carmen Lúcia em seu voto no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3943, em que o STF julgou e considerou, por unanimidade, que a atribuição da Defensoria Pública em propor Ação Civil Pública é constitucional.
Portanto, não há dúvida de que esse instrumento processual é um dos mais eficazes à garantia do direito à razoável duração do processo e à celeridade da sua tramitação (Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXXVIII), e de que a Defensoria Pública da União é, no presente caso, legitimada para sua propositura.
II.III. Do Litisconsórcio Passivo entre Rumo Malha Sul, União, DNIT, Estado do Rio Grande do Sul e Município de Esteio
É inquestionável o dever da União, do Estado e do Município de assegurarem aos seus administrados o direito à moradia. É direito (do cidadão) e dever (do estado) de origem constitucional, imposto pela Carta Magna no caput do artigo 6º e no inciso IX do artigo 23. 
Indiscutivelmente, a solução desse litígio perpassa pela implantação urgente de políticas públicas habitacionais, razão pela qual é preciso que se instale o contraditório pleno, com a necessária participação de todos os entes estatais concernidos com a garantia do direito à moradia, para que a prestação jurisdicional a ser dada ao término da instrução da presente ação produza efeitos em face de todos os referidos entes federativos. 
Nos autos das diversas reintegrações de posse propostas pela Rumo Malha Sul S.A., a União tem se manifestado apenas para informar que não possui interesse nas demandas. Não é, todavia, questão de interesse. É verdadeiro dever da União e também dos demais entes federativos envolvidos no presente caso participar da lide, pois a presente Ação Civil Pública (assim como todas as referidas ações possessórias) demonstra falhas nas políticas habitacionais promovidas pelos entes federativos. Se o resultado deste processo pode interferir no direito à moradia de comunidades inteiras, deverão, por óbvio, estar presentes os entes federativos que falharam em garantir efetivo direito. 
Ademais, o aludido inciso IX do artigo 23 da Constituição Federal deixa evidente que a competência para promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico é concorrente entre as três instâncias dos entes federativos. Evidenciada, portanto, a legitimidade passiva da União, do Estado do Rio Grande do Sul e do Município de Esteio, já que são todos responsáveis pela promoção e concretização do direito à moradia. 
Sequer há de se argumentar acerca da legitimidade passiva da empresa Rumo Malha Sul S.A., eis que a concessionária pública ingressou com oitenta e três ações na Subseção Judiciária de Canoas para tratar das áreas que são objeto da presente Ação Civil Pública. Além do mais, um dos pedidos da presente ação envolve a suspensão de todas as ações possessórias propostas pela concessionária na Subseção Judiciária de Canoas, de modo que se impõe a sua participação no presente feito. 
Quanto ao DNIT, é importante mencionar que esta autarquia vem atuandonas ações de reintegração de posse interpostas pela Rumo Malha Sul na qualidade de assistente simples da parte autora, o que demostra seu interesse na questão que envolve os metros 445 a 508 do Km 3 Novo Esteio. Ademais, sendo a autarquia responsável por infraestrutura e transportes, resta evidente que deve integrar o polo passivo da presente demanda. 
III. DO MÉRITO
III.I. Do Direito Humano e Fundamental à Moradia
Antes de expor o cerne do que se pleiteia, denota-se um breve esboço das diretrizes legais que fundamentam o direito à moradia a ser tutelado, de forma a destacar a importância de sua proteção e impor ao poder público medidas efetivas a seu cumprimento, em especial no caso em concreto. 
III.I.a. Das Disposições Internacionais
O direito à moradia foi instituído como um direito humano pela primeira vez no ordenamento internacional pela Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 que, em seu artigo XXIV e XXV, dispõe o direito de todo ser humano tem direito ao repouso e lazer, bem como a um “padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em [...] casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”.[footnoteRef:3] [3: ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Assembleia Geral da ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://cutt.ly/syaph9s.] 
Ingo Wolfgang Sarlet[footnoteRef:4] ressalta que foi a partir do mencionado dispositivo que o direito à moradia passou a ter amplo reconhecimento internacional, com sua citação em diversos tratados posteriores, firmados pelo Brasil, que afirmam a sua essencialidade. Destaca-se, em especial, o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC) de 1966, promulgado pelo Decreto nº 591 de 06 de julho de 1992,[footnoteRef:5] que reúne os Estados partes para assegurar a consecução dos direitos transcritos em seu artigo 11, quais sejam, “o direito de toda pessoa a um nível de vida adequando para si próprio e sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como a uma melhoria continua de suas condições de vida”. [4: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 01-46, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/myapfPY. p. 10.] [5: BRASIL. Decreto nº 591 de 06 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Promulgação. Disponível em: https://cutt.ly/VyapSi1.] 
Contêm, ademais, dispositivos que tutelam o direito à moradia a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1965), a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação da Mulher (1979), a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989), a Convenção dos Trabalhadores Migrantes (1990), sem olvidar-se da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 1989) sobre Povos Tradicionais. 
Desta forma, conforme vê-se, o direito à habitação é largamente debatido e protegido em âmbito internacional. Neste interim, frisa-se a Observación General nº 7 do Comitê das Nações Unidas dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1997)[footnoteRef:6] que contém normas protetivas aos que sofrem despejos para impedir com que estes restem desabrigados ou vulneráveis a violações de direitos humanos, garantindo-lhes a adequada compensação por danos que vierem a sofrer. Dentre o disposto no §1º do artigo 11 do PIDESC sobre “El derecho a una vivienda adecuada”, cumpre mencionar os seguintes artigos que tratam da proteção às pessoas vítimas de despejo forçado: [6: ORGANIZAÇÃO DE LAS NACIONES UNIDAS (ONU). Oficina del Alto Comisionado. Observación General nº 7: 16º período de sessiones. 1997. Disponível em: https://cutt.ly/5yap7TU. ] 
3. [...] el término "desalojos forzosos" se define como el hecho de hacer salir a personas, familias y/o comunidades de los hogares y/o las tierras que ocupan, en forma permanente o provisional, sin ofrecerles medios apropiados de protección legal o de otra índole ni permitirles su acceso a ellos. […]
11. […] las autoridades competentes deberán garantizar que los desalojos se lleven a cabo de manera permitida por una legislación compatible con el Pacto y que las personas afectadas dispongan de todos los recursos jurídicos apropiados. 
16.Los desalojos no deberían dar lugar a que haya personas que se queden sin vivienda o expuestas a violaciones de otros derechos humanos. Cuando los afectados por el desalojo no dispongan de recursos, el Estado Parte deberá adoptar todas las medidas necesarias, en la mayor medida que permitan sus recursos, para que se proporcione otra vivienda, reasentamiento o acceso a tierras productivas, según proceda. (Grifos Nossos).
A condição do direito humano e social à moradia, ainda, foi tema principal tratado pela Declaração de Vancouver (Habitat I, 1976) e pela Declaração de Instambul (Habitat II, 1996), que destacam o compromisso estatal no combate ao aumento da pobreza e da população sem-teto e da exclusão social. Por outro viés, o plano de ação aprovado no Equador pela Conferencia de las Naciones Unidas sobre la Vivienda y el Desarrollo Urbano Sostenible (Habitat III, 2016) afirma em seu artigo 31 o compromisso com a “realización progresiva del derecho a una vivienda adecuada para todos como elemento integrante del derecho a un nivel de vida adecuado, que luchen contra todas las formas de discriminación y violencia e impidan los desalojos forzosos arbitrarios”.[footnoteRef:7] [7: ORGANIZAÇÃO DE LAS NACIONES UNIDAS (ONU). Nueva Agenda Urbana: Habitat III. Equador: ONU, 2017. p. 14. Disponível em: https://unhabitat.org/sites/default/files/2019/05/nua-spanish.pdf.] 
Neste interim, resta clara a dupla função do direito à moradia, afirmada em declarações e tratados internacionais e implementados ao ordenamento jurídico pátrio (a seguir exposto). Trata-se, pois, de direito negativo, que exige tutela contra ameaças de desapropriações arbitrárias, por exemplo; e, também, poder-se-ia caracterizá-lo como positivo por seu caráter prestacional, que impõe ao Poder Público medidas efetivas que previnam a precariedade de habitação e assegurem moradia digna a todos os cidadãos, em especial aos assistidos do caso em tela.[footnoteRef:8] [8: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 01-46, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/myapfPY. p. 21-22.] 
III.I.b. Das Disposições Constitucionais
Evidencia-se incorporação do direito à habitação ao ordenamento jurídico interno, sobretudo pela ratificação dos principais tratados internacionais (já citados) que pregam o compromisso de dar proteção e efetividade às condições de moradia adequadas. Como bem lembra Sarlet,[footnoteRef:9] e com fulcro no art. 5º §2º da Constituição Federativa do Brasil (CF), isso por si só já bastaria à reinvindicação de tal direito. [9: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 01-46, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/myapfPY. p. 13.] 
Não obstante, a moradia foi consagrada como um direito social (art. 6º, CF), o que a inclui no rol os Direitos Fundamentais de Segunda Geração. Tais direitos são pautados pela igualdade material, o que impõe ao intérprete ponderar a situação fática de ambos os conflitantes, de modo a conceder especial proteção àquele que, por alguma razão, mostra-se hipossuficiente frente ao outro. Em outras palavras, significa tratar igualmente os iguais e de maneira desigual os desiguais.Apesar da inclusão da habitação como um direito social ser posterior à Emenda nº 26 em 2000, a Constituição de 1988 já o previa tácita ou explicitamente. Alude-se ao artigo 7º, inciso IV, que qualifica a moradia como “necessidade vital básica” que deve ser atendida pelo salário mínimo; ao art. 24, IX, impõe o dever de promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico como competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; além da vinculação social à propriedade (art. 5º, XXIII; 170, III; 182, §2º CF) e usucapião especial urbano (art. 183, CF) e rural (art. 191, CF).[footnoteRef:10] [10: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 01-46, 2009. Disponível em: https://cutt.ly/myapfPY. p. 12.] 
O direito à moradia é, por conseguinte, de ordem constitucional e de importância mister à efetividade de todos os demais direitos sociais motivo pelo qual é utilizado como principal argumento à necessária proteção às famílias que não devem, de maneira alguma, serem desprovidas das condições mínimas de subsistência e segurança, imprescindíveis à manutenção da própria vida.
III.II. Da Regularização Fundiária de Núcleos Informais Irregulares
Em que pese o amplo rol normativo que impõe ao Estado o dever de assegurar moradia adequada a todas as pessoas, o rol abstrato de direitos vai de encontro aos dados fáticos da situação vivenciada no Brasil. Estima-se que há um déficit habitacional de 6.355 (seis mil e trezentos e cinquenta e cinco) milhões de domicílios, dos quais quase noventa por cento localizam-se em áreas urbanas.[footnoteRef:11] Somente no estado do Rio Grande do Sul, há 29.821 casos de habitações precárias nas regiões urbanas.[footnoteRef:12] São nestas estatísticas que se enquadram os moradores dos metros 445 e 448 do Km 3 de Novo Esteio. [11: FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO (FJP). Diretoria de Estatística e Informações. Déficit habitacional no Brasil 2015. Belo Horizonte: FJP, 2018. p. 31. Disponível em: < http://www.bibliotecadigital.mg.gov.br/consulta/verDocumento.php?iCodigo=76871&codUsuario=0>. Acesso em: 25 mai. 2020.] [12: Idem, ibidem, p. 37.] 
Considera-se pertencente a núcleo urbano informal irregular “no qual não foi possível realizar, por qualquer modo, a titulação de seus ocupantes” (art. 11, II, Lei nº 13.465/2017). Não há lastro de clandestinidade, dada a boa-fé dos moradores da dita comunidade na ocupação do local, fato atestado pelo contrato de compra e venda contraído por um dos residentes. Considerado o vasto tempo da ocupação e a prestação de serviços públicos na área, é possível conformá-lo, ainda, ao núcleo urbano informal consolidado, isto é, “aquele de difícil reversão” (art. 11, III, Lei nº 13.465/2017). 
Ambos os conceitos estão inseridos no âmbito das regras para a Regularização Fundiária Urbana (Reurb), mais especificamente de Interesse Social (Reurb-S) por tratar-se de população de baixa renda, à luz da Lei 13.465 de 2017. “Regularizar” significa conformar algo disforme, enquanto “fundiário” aplica-se à terra, o que remete a “trazer terras urbanas à situação de conformidade quanto aos aspectos jurídicos relativos à propriedade e posse, aspectos urbanísticos ambientais e também sociais”.[footnoteRef:13] Vê-se na Regularização Fundiária, pois, uma alternativa ao desalojamento arbitrário destas famílias. [13: METROPOLO, Ana Paula Rodrigues. As moradias irregulares e a regulação fundiária na Lei 13.465/2017. Dissertação (Mestre em Direito Ambiental) – Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Católica de Santos - UNISANTOS, Santos (SP), 2018. p. 13-14.] 
III.II.a. Dos Objetivos e Requisitos da Regularização Fundiária
A Lei 13.465 estabelece que a Reurb pode ser realizada em núcleos urbanos informais comprovadamente ocupados até 22 de dezembro de 2016 (art. 9º, §2º Lei 13.465/2017), em que pese há entendimento no sentido de que tal prazo violaria o princípio da isonomia, o que tornaria a norma mais abrangente.[footnoteRef:14] De todas as formas, o contrato de compra e venda anexo atesta a permanência da comunidade na área há mais tempo e, logo, é passível de regularização. [14: VELOSO, Luiza Lins. Legitimação fundiária: uma visão constitucional no contexto da segregação socioespacial das cidades brasileiras. Cadernos da DPE-SP. São Paulo, v. 3 n.17 p.114, ago. 2018.] 
De outra parte, o caput do art. 9º do referido diploma legal define a Reurb como "medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais destinadas à incorporação dos núcleos urbanos informais ao ordenamento territorial urbano e à titulação de seus ocupantes”. Comprovada a existência de tais núcleos, possibilita-se requerer a Reurb junto ao órgão público municipal competente e, em sede judicial, pleitear a suspensão do cumprimento de ordem para remoção.[footnoteRef:15] [15: AVANCI, Juliana Lemes. Defesa do direito à moradia e permanência – análise da lei 13.465/17 sob a ótica do possuidor em núcleo informal na cidade de São Paulo. Cadernos da DPE-SP. São Paulo, v. 3, n.17, p.67, ago. 2018.
] 
Isso porque dentre os objetivos alçados pela normatização da Reurb, a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 10, caput, Lei 13.465/2017) está: 
[...] III - ampliar o acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, de modo a priorizar a permanência dos ocupantes nos próprios núcleos urbanos informais regularizados; 
IV - promover a integração social e a geração de emprego e renda; 
[...] VI - garantir o direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas; 
VII - garantir a efetivação da função social da propriedade; 
VIII - ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes; [...] (grifos nossos).
Ora, todos os interesses mencionados nestes incisos coadunam-se às pretensões veiculadas na presente Ação Civil Pública. A procedência dos pedidos aqui veiculados, portanto, nada mais é do que a efetivação das políticas públicas definidas em lei e sancionadas pelo Poder Executivo. Ademais, veja-se que o caput do dispositivo deixa claro que os objetivos deste diploma legal são de responsabilidade de todos entes federativos.
Agrega-se, ademais, que o art. 15 da Lei nº 13.465 define os meios de efetivação da regularização fundiária, dentre os quais cita-se a possibilidade de legitimação fundiária (art. 15, I, Lei nº 13.465/2017) e concessão do direito especial de uso para fins de moradia (art. 15, XIII, Lei nº 13.465/2017), que serão posteriormente abordadas. Seu caput ao dispor “sem prejuízo de outros que se apresentem adequados,” demonstra que o rol de incisos é exemplificativo, do que se extrai, portanto, que a administração pública deve se utilizar de quaisquer meios possíveis para garantir o direito à moradia aos seus administrados. 
III.II.b. Da Adequação ao Caso Concreto: da Necessidade de Realocação
Pois bem. Da disposição dos fatos descritos ao princípio da exordial, tem-se que há uma comunidade de número impreciso de pessoas que residem à área de domínio e possivelmente à área non aedificandi, entre os metros 445 e 508 do Km 3 da linha férrea de Novo Esteio. Denota-se, ainda, que se trata de um núcleo informal irregular, não clandestino, e precário. É latente o quadro nocivo à saúde dos moradores pela carência de saneamento observada no local.
Destarte, convém destacar o instituto de concessão especial para fins de moradia (art. 15, XIII, Lei nº 13.465/2017), em especial no que tange à garantia deste exercício em outro local. Tal instituto, além de previsto constitucionalmente (art. 183, §1º, CF), foi versado na Medida Provisória n. 2.220 em 2001 e substituída pela MP n. 759 de 2016 (que foi convertida na Lei n. 13.465/2017). Assim prevê a MP n. 759 de 2016 com a nova redação:
Art. 1º Aquele que, até 22 de dezembro de 2016, possuiu como seu, por cincoanos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área com características e finalidade urbanas, e que o utilize para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural.
Art. 2º Nos imóveis de que trata o art. 1º, com mais de duzentos e cinquenta metros quadrados, ocupados até 22 de dezembro de 2016, por população de baixa renda para sua moradia, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, cuja área total dividida pelo número de possuidores seja inferior a duzentos e cinquenta metros quadrados por possuidor, a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma coletiva, desde que os possuidores não sejam proprietários ou concessionários, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. (grifos nossos)
Poderá, então, a comunidade de baixa renda que residiu por cinco anos (de forma contínua e pacífica) em bens imóveis públicos cuja área dividida pelo número de possuidores seja inferior 250m² por possuidor ter direito à concessão de uso especial para fins de moradia. A nova Lei, entretanto, manteve o texto do art. 4º da MP n. 2.220 em 2001, que assim prevê: “No caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, o Poder Público garantirá ao possuidor o exercício do direito de que tratam os arts. 1o e 2o em outro local.”
Roga-se, pois, pela concessão de uso especial de imóvel público para fins de moradia concedida em local diverso daquele contaminado. Ressalta-se que, em que pese as inúmeras ações da Rumo Malha Sul apontem para suposto “risco” aos moradores pela “circulação de trens”, frisa-se a ausência de veracidade nas alegações, já que conforme fotos anexas resta mais que evidente o estado de abandono do local. Inexistentes, portanto, são os alegados riscos.
Apresenta-se, pois, a resolução da contenda não impede a Rumo Malha Sul a possibilidade de prosseguir no seu intuito de reativar a linha férrea (há anos abandonada), desde que atendida a condição de reassentar as famílias residentes em suas proximidades de forma a lhes assegurar condições dignas de moradia e evitar a arbitrariedade na desocupação da área em litígio, fazendo cumprir preceitos constitucionalmente tutelados.
Ante o exposto, pugna-se pela condenação dos entes federativos à regularização das áreas consideradas como ocupações irregulares, seja pela concessão especial para fins de moradia nos termos do aludido artigo 4º da Medida Provisória nº 2.220, ou por qualquer outro meio hábil de que disponham os entes federativos, somada à realocação dos moradores para outra área.
III.II.b.1. Da Inserção dos Moradores no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)
Sem embargo, as soluções práticas alçadas pelo dever ser ignoram as razões materiais e determinantes ao desequilíbrio gerador da lide. O intérprete não se pode olvidar do contexto social que levaram estas pessoas a instalarem-se em terrenos baldios em primeiro lugar. Atenta-se a diversos atos do poder público que, para aquecer o mercado formal, deu início a um processo de exclusão e estigmatização de populações humildes no Brasil – o que nos remete à política conhecida como “Bota-abaixo” de Pereira Campos, que expulsou pessoas de parcos recursos dos centros da cidade (daí o surgimento das grandes favelas no morro carioca) e deixou lotes à mercê da especulação imobiliária.[footnoteRef:16] [16: FERREIRA, Allan Ramalho. Uma concepção topofílica de regularização fundiária. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. São Paulo, v. 3 n.17 p.11-12, ago. 2018.] 
Esse esboço histórico ajuda a compreender o não enquadramento destas pessoas que, desamparadas pelo Estado, são incapazes de arcar com os elevados custos de aluguel, este que chega a superar o valor do salário mínimo nas grandes cidades.[footnoteRef:17] Aliás, os residentes de Novo Esteio que integram o polo passivo das ações de reintegração de posse movidas pela Rumo Malha Sul S.A. sequer auferem meio salário mínimo per capita, muitas das quais dependem unicamente do Bolsa-Família a sua subsistência. É neste contexto que se questiona: Como planejar o reassentamento destes moradores em novo local sem que os custos de sua manutenção ultrapassem sua própria renda? [17: “Se se considera que o ideal, também usado pelo próprio mercado imobiliário, é não exceder entre 30% a 35% do salário com moradia – somando aluguel, condomínio e IPTU -, a situação se torna ainda mais discrepante: o salário mínimo vigente é menos da metade do necessário”. Em Porto Alegre, o salário teria que perfazer em torno de R$4.244,00 conforme dados da pesquisa. LESINA, Eduardo. Salário mínimo é menor que o custo médio do aluguel nas grandes cidades brasileira. EditorialJ (PUCRS), Porto Alegre, 2017. Disponível em: https://cutt.ly/iysdYIj.] 
Sabe-se que a Lei nº 11.977 de 2009 regulamenta o Programa Minha Casa Minha Vida e a Regularização Fundiária das áreas urbanas (esta revogada pela Lei 13.465 de 2017). O objetivo do Programa é justamente “criar mecanismos de incentivo à produção e aquisição de novas unidades habitacionais ou requalificação de imóveis urbanos e produção ou reforma de habitações rurais, para famílias com renda mensal de até R$ 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta reais)” (art. 1º, redigido pela Lei nº 12.424/2011). Apresenta-se, pois, uma alternativa viável às famílias de parcos recursos que poderão contar com subsídio governamental à aquisição de um imóvel.
Com efeito, haja vista a hiper vulnerabilidade social e financeira da comunidade residente às proximidades da linha férrea de Novo Esteio, pleiteia-se pela inclusão dos integrantes de dita comunidade ao Programa Minha Casa Minha Vida com recursos advindos Fundo de Arrendamento Residencial (FAR, Lei nº 10.188/2001) por meio da integralização de cotas e transferirá recursos ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS, Lei nº 10.188/1993), destinado justamente à necessidade de moradia de população de baixa renda. Essa possibilidade está prevista pelo art. 2º, II e 6º-A da Lei nº 11.977 de 2009 (redigido pela Lei nº 12.424/2011), vide:
Art. 2º Para a implementação do PMCMV, a União, observada a disponibilidade orçamentária e financeira
II – participará do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), mediante integralização de cotas e transferirá recursos ao Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) de que tratam, respectivamente, a Lei no 10.188, de 12 de fevereiro de 2001, e a Lei no 8.677, de 13 de julho de 1993;    
Art. 6º-A. As operações realizadas com recursos advindos da integralização de cotas no FAR e recursos transferidos ao FDS, conforme previsto no inciso II do caput do art. 2o, são limitadas a famílias com renda mensal de até R$ 1.395,00 (mil trezentos e noventa e cinco reais), e condicionadas a: 
I - exigência de participação financeira dos beneficiários, sob a forma de prestações mensais;
II - quitação da operação, em casos de morte ou invalidez permanente do beneficiário, sem cobrança de contribuição do beneficiário; e 
III - cobertura de danos físicos ao imóvel, sem cobrança de contribuição do beneficiário. [...]
Ainda, no que diz respeito às condições previstas nos incisos I e III do art.6º-A do diploma legal supramencionado, nota-se que tais condições são excepcionadas em seu §3º em casos de remanejamento, reassentamento ou substituição de unidades habitacionais vinculadas ao setor público. 
§ 3o  Serão dispensadas, na forma do regulamento, a participação financeira dos beneficiários de que trata o inciso I do caput e a cobertura a que se refere o inciso III do caput nas operações com recursos advindos da integralização de cotas no FAR, quando essas operações:
I – forem vinculadas às programações orçamentárias do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e demandarem reassentamento, remanejamento ou substituição de unidades habitacionais;
II - forem vinculadas a intervenções financiadaspor operações de crédito ao setor público, conforme hipóteses definidas no regulamento, e demandarem reassentamento, remanejamento ou substituição de unidades habitacionais; 
III - forem destinadas ao atendimento, nos casos de situação de emergência ou estado de calamidade pública reconhecidos pela União, a famílias desabrigadas que perderam seu único imóvel; ou
IV - forem vinculadas a reassentamentos de famílias, indicadas pelo poder público municipal ou estadual, decorrentes de obras vinculadas à realização dos Jogos Rio 2016, de que trata a Lei nº 12.035, de 1º de outubro de 2009. [...]
Embora as hipóteses para tal dispensa estejam tipificadas em lei, nota-se que o objetivo do legislador é fazer cumprir os tratados internacionais e preceitos constitucionais no sentido de, em caso de necessária intervenção pública em imóveis que constituam única moradia das pessoas, prevenir a situação de rua e completo desamparo destas famílias a partir do fornecimento de subsídios para o financiamento de novo imóvel com recursos FAR, garantido pelo programa PMCMV.
Ademais, para a inserção dos residentes da área objeto da lide ao PMCMV com recursos FAR, é imprescindível a regularização fundiária do imóvel pleiteada e prevista à Lei 13.465 de 2017, conforme dispõe §7º do art. 6º-A da Lei nº 11.977 de 2009:
§ 7o Nas operações previstas no § 3o, a subvenção econômica será concedida, no ato da contratação da unidade habitacional, exclusivamente para o beneficiário que comprovar a titularidade e regularidade fundiária do imóvel do qual será removido, do imóvel que foi destruído ou do imóvel cujo uso foi impedido definitivamente, quando nele esteja ou estivesse habitando, na forma do regulamento. [...]
Conforme a exposição dos fatos, esta Defensoria Pública da União (DPU) submeteu ofício ao Município de Esteio em uma tentativa frustrada de inserir um dos assistidos no Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV). Sem embargo, observa-se que os residentes da área objeto da lide, além de preencher todos os requisitos exigidos para integrarem o referido Programa, também devem ser atendidos com prioridade de atendimento famílias residentes em áreas de risco, insalubres, que tenham sido desabrigadas” (Art. 3º, III, Lei nº 11.977 de 2009). 
Dito isto, pugna-se pela necessária regularização fundiária das ocupações ditas irregulares e posterior inclusão das famílias residentes do local ao Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), de forma a prover uma alternativa ao desalojamento arbitrário intencionado pela administração pública.
III.II.b.2. Subsidiariamente: Da Manutenção das Moradias 
Como afirmou-se acima, a solução que se apresenta como a melhor para os ocupantes daquelas áreas objeto dos litígios possessórios é a realocação dos moradores, mediante esforços dos entes federativos. Não obstante, é pertinente requerer, no presente feito, de forma subsidiária, a manutenção dos moradores em suas residências, pela própria concessão especial de uso para fins de moradia ou a por meio da legitimação fundiária.
No que tange especificamente à concessão de uso especial para fins de moradia, a Medida Provisória n. 2.220de 2001 define os requisitos para a concessão deste instituto entre os artigos 1º e 6º. Sabe-se da possibilidade deste tipo de regularização tanto em forma individual quanto coletiva, preenchidos os requisitos já explanados. De outra parte, é possível garantir o direito à habitação àqueles que residem às proximidades da linha férrea mediante a Legitimação Fundiária: 
Art. 23. A legitimação fundiária constitui forma originária de aquisição do direito real de propriedade conferido por ato do poder público, exclusivamente no âmbito da Reurb, àquele que detiver em área pública ou possuir em área privada, como sua, unidade imobiliária com destinação urbana, integrante de núcleo urbano informal consolidado existente em 22 de dezembro de 2016. 
§ 1º Apenas na Reurb-S, a legitimação fundiária será concedida ao beneficiário, desde que atendidas as seguintes condições: 
I - o beneficiário não seja concessionário, foreiro ou proprietário de imóvel urbano ou rural; 
II - o beneficiário não tenha sido contemplado com legitimação de posse ou fundiária de imóvel urbano com a mesma finalidade, ainda que situado em núcleo urbano distinto; e 
III - em caso de imóvel urbano com finalidade não residencial, seja reconhecido pelo poder público o interesse público de sua ocupação. (grifos nossos) 
Desta forma, se por alguma razão for inviável o reassentamento da dita comunidade, não resta outra alternativa ao deslinde da contenda senão a manutenção dos moradores em suas residências, protegendo-os de grave violação a direito tão essencial como a habitação que, tal como descrito por Sarlet,[footnoteRef:18] “constitui um existencial humano”. [18: SARLET, Ingo Wolfgang. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações a respeito de seu contexto, conteúdo, e possível eficácia. Revista Eletrônica sobre a Reforma do Estado (RERE), Salvador, n. 20, p. 16, 2009. Disponível em: https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/370724/mod_resource/content/1/direito-fundamental-c3a0-moradia-ingo-sarlet.pdf.] 
Este entendimento coaduna-se à ideia de que “evitar remoções, e colocá-las como alternativa extrema, além de ser uma recomendação de tratados internacionais, pode ser mais uma forma de reconhecer os espaços por suas características”[footnoteRef:19]. Não se está a pleitear qualquer “espaço”, pois a formação de identidade da comunidade está diretamente relacionada ao lugar onde habitam, construído por experiências e sentidos, sentimentos e entendimento, que refletem a relação afetiva do vivente com o meio (topofilia).[footnoteRef:20] [19: AMORE, Caio Santo. “Gelo não é pedra!”: informalidade urbana e alguns aspectos da regularização fundiária de interesse social na lei 13.465/2017.Cadernos da DPE-SP. São Paulo, v. 3 n.17 p.79, ago. 2018. ] [20: FERREIRA, Allan Ramalho. Uma concepção topofílica de regularização fundiária. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. São Paulo, v. 3 n.17 p. 15, ago. 2018.] 
Agrega-se a interpretação aplicada em julgado do Tribunal Regional Federal da 5ª Região, no qual o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis - IBAMA - pretendia a demolição de casas construídas por pessoas de baixa renda em uma área de proteção ambiental. A decisão apontou para a desproporcionalidade do pleito de demolição, e acrescentou: “apresentando-se a solução dada pela sentença - proibição de realizar novas construções, reformar, ampliar ou modificar os imóveis irregularmente construídos em tal área - como a solução mais equânime diante da situação posta”[footnoteRef:21]. [21: Tribunal Regional Federal da 5ª Região. AC 436166/PB. Rel. Edilson Pereira Nobre Júnior. Julgado em: 27/09/2011.] 
Ora, se o próprio direito a um meio ambiente equilibrado deve ser sopesado com o direito à moradia de pessoas socialmente vulneráveis, não há como haver tratamento mais gravoso no presente caso, eis que a ocupação da área em questão não traz prejuízo algum à administração pública ou à sociedade. Se, portanto, uma ocupação presumidamente prejudicial ao meio ambiente teve seu direito de moradia garantido em detrimento das normas ambientais, os possuidores dos imóveis às proximidades dos trilhos, inofensivo ao meio ambiente, ao Estado e às atividades da Rumo Malha Sul S.A. (que há anos exerce suas atividades convivendo com as ocupações), deve ter seu direito à moradia garantido.
Diante do exposto, na hipótese de não provimento e efetivação do pedido feito no item anterior, que seja, então, garantido o direito de permanência dos moradores daquela área naquela região, e que os entes federativos sejam condenados a regularizar as ocupações, por quaisquer dos meios legais de que dispuser, abstendo-se, todavia, de qualquer ato de oposição às ocupações. Pugna-se, ainda, pelo saneamento do local para cumprir a medida requerida, reiterando-se que não existerisco maior e mais latente do que àquele inerente ao desalojamento arbitrário, a ponto de deixar famílias submetidas à fome, ao frio e à violência urbana.
III.III. Das Ações Movidas pela Rumo Malhas Sul S.A.
Inobstante o comprovado dever dos entes públicos em proteger e prestar condições de habitação dignas a todas as pessoas, em especial àquelas consideradas hipossuficientes, não se pode ignorar os argumentos lançados nas oitenta e três ações pleiteadas pela concessionária Rumo Malha Sul. É neste sentido que importa salientar precedentes que contrariam os motivos que “justificariam” a arbitrariedade da desapropriação da forma como se pretende realizar.
É fato notório a existência que são múltiplos os casos semelhantes ao presente, onde uma população de baixa renda ocupa as margens dos trilhos das ferrovias por haver sido alijada de políticas públicas de moradia conforme um planejamento urbano adequado. Dentre essa pluralidade de violações ao direito de moradia dessas populações, sobressai, por sua semelhança ao caso em voga, a questão dos “beira trilhos” no Estado do Rio Grande do Sul.
Em solo rio-grandense, especificamente no município de Passo Fundo, vê-se reproduzida situação idêntica à tratada nestes autos: em razão de uma série de fatores de exclusão social, há mais de quatro décadas ocorre um intenso e continuado processo de ocupação habitacional das áreas (não operacionais e operacionais) da rede ferroviária que cruza o perímetro urbano[footnoteRef:22]. Não obstante haja casas erguidas na área não-operacional, a grande maioria dessas ocupações concentra-se nas faixas de domínio vinculadas à operação ferroviária da concessionária América Latina Logística (ALL), atualmente denominada Rumo Malha Sul S.A. [22: Veja-se importante matéria abordando acerca do “beira trilhos”: https://onacional.atavist.com/beira-trilho.] 
Assim como ocorre no caso de Esteio, em Passo Fundo o processo de ocupação dessas áreas próximas à via férrea deu-se em vista de jamais terem sido erguidas as chamadas “cercas da ferrovia”, isto é, o cercado que separa a faixa de domínio da ferrovia, dos terrenos marginais, estradas e outras propriedades. Por isso, a faixa de terra que margeia os trilhos passou a ser pacífica, pública e paulatinamente ocupada pela população de baixíssima renda.
E por mais que ali (assim como aqui) as ocupações já tenham se dado há muitos anos, nunca foram tomadas quaisquer providências eficazes e sérias para retirada das famílias. Ocorreu, de fato, o contrário: consolidando-se o assentamento de Passo Fundo durante esses anos, as famílias passaram a contar com serviços públicos de fornecimento de água, energia elétrica, telefonia, rede de esgoto. 
No âmbito do Judiciário, contudo, a questão foi posta em discussão. Com efeito, foi apenas em Juízo que a concessionária do transporte ferroviário se mostrou interessada em resolver o problema da população dos “beira trilhos”, fazendo-o, contudo, de forma a esperar do Judiciário uma resposta rápida e drástica para a questão que há décadas vinha sendo negligenciada pelo Estado e pela própria demandante daquele feito.
No Rio Grande do Sul, a Rede Ferroviária Federal Sociedade Anônima (RFFSA) ajuizou, em 11 de março de 1993, uma ação de reintegração de posse contra famílias residentes na faixa de domínio do leito da ferrovia que cruza a cidade de Passo Fundo. Esta ação judicial foi distribuída na 1ª Vara Cível da Comarca de Passo Fundo sob o processo nº 21193003486 cujo pedido de reintegração de posse restou improcedente pelo Juízo de primeira instância em 03.09.2001. 
Em seguida, após a interposição de recurso, os autos do processo foram remetidos ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, sendo distribuída na 20ª Câmara Cível a apelação cível sob o nº 70004800553). Pondo fim ao processo, o acórdão, publicado em 27.12.2004, confirmou, por unanimidade, a improcedência do pedido de reintegração. Eis, em suma, o que foi consignado pelo Egrégio Tribunal:
Busca o autor a reintegração de posse de área dita esbulhada por aproximadamente quinhentas famílias que teriam invadido área da Rede Ferroviária Federal de Passo Fundo e ali construíram suas casas. 
 [...] Estas questões dependem de políticas sociais a serem implantadas, de acordo com as necessidades, a disponibilidade e o interesse político dos governos. No entanto, não se pode fechar os olhos diante da situação aqui existente. De um lado o autor que detêm o domínio da referida área – área da RFFSA – e, de outro, 500 famílias de baixa renda, que não encontraram outro local para morar senão no terreno público ali existente e ali estão há muito tempo (décadas). Ocorre que numa demanda possessória o que se discute é a melhor posse, tendo uma percepção mais direta, ou seja, restrita à questão da posse, diversamente de uma ação petitória, em que a cognição é mais ampla, entrando na questão do domínio.
[...] No caso destes autos, muito embora na inicial tenha, o autor, amparado seus pedidos na alegação de que possui o domínio do imóvel dito esbulhado pelos ocupantes, não há provas da data do esbulho, ônus que lhe cabia, disposição do artigo 333, I, do Código de Processo Civil. 
Segundo se depreende dos autos, os moradores instalaram-se ali há muitos anos, tendo sido realizada a instalação de luz, água, e outras benfeitorias pelo próprio Município, o que demonstra o largo tempo de ocupação. A posse dos requeridos pode até ser precária. No entanto não há demonstração da clandestinidade ou da má-fé quando da ocupação. Se a ocupação se dá ao longo de vários anos sem qualquer atitude por parte da autora, é plausível que tenha permitido a ocupação, o que gerou o somatório de vários outros até que se chegou a 500 famílias, incluindo crianças, jovens, adultos e velhos sem qualquer destinação caso dali forem retirados.
[...] Na verdade deixou de exercer a posse durante décadas, antes do ajuizamento da ação. Os primeiros demandados ali se instalaram e outros mais, até formarem uma comunidade sem nenhuma oposição até então. Criou-se uma situação de fato difícil de modificar, ante a complacência da própria autora por várias décadas (35 anos, aproximadamente).
Esta Câmara já julgou situação semelhante em processo oriundo da Comarca de Carazinho (Apelação Cível n. 599401106 – rel. Des. Rubem Duarte)[...]
Desta forma, não comprovado o esbulho possessório, exigência do art. 927, do Código de Processo Civil, não há como prosperar o pedido do autor. Não cabe ação possessória quando a posse deixou de existir há muito tempo, criando-se situação de fato que não pode deixar de ser reconhecida, embora as partes demandadas (apeladas) não tenham direito à usucapião.[footnoteRef:23] (grifos nossos) [23: TJRS. Apelação Cível Nº 70004800553, 20ª Câmara Cível. Des. Rubem Duarte. Julgado em: 10/11/2004] 
O presente caso compartilha de grande parte dos detalhes referidos pelo Relator no julgado da ementa acima colacionada: (1) o longo lapso temporal da ocupação e a posse precária, mas de boa-fé e sem clandestinidade dos ocupantes (questão da “melhor posse”); (2) a omissão do poder público, que por vários anos deixou de se opor à ocupação, permitindo o estabelecimento de uma comunidade no local; (3) e o impacto social da situação e sua extrema dificuldade de modificação. 
III.III.a. Do Impacto Social da Desocupação Forçada e do Princípio da Função Social
Cabe salientar, inicialmente, o estado de abandono e tamanho desleixo evidenciados pelas fotos acostadas. Trata-se de terrenos décadas inutilizados, que não cumpriam com qualquer função. Um homem médio que passasse distraído pelo local objeto da lide e se deparasse com uma linha férrea tomada por grama, terra e detritos e um “projeto” de estação inacabado, achará que é fruto de uma promessa política há muito esquecida e pensará que está na posse de “ninguém”.
Diz-se, pois, que a propriedade não estava cumprindo com sua função social, princípio fundamental previsto no inciso XXIII, art. 5º da Constituição pátria. Suas raízes remetem à Lei das Sesmarias (Lei do Pão) no período colonial,em que os agricultores para que pudessem manter-se em suas glebas de terra no Brasil eram obrigados a cumprir as condições da Coroa Portuguesa e tornar produtiva a terra para a exportação.[footnoteRef:24] [24: FISCILETTI, Rossana Marina de Seta; COSTA, André Luiz. O valor da função social em tempos incertos: panaceia ou utopia. Cadernos da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. São Paulo, v. 3 n.17 p.95, ago. 2018.] 
Embora o sentido tenha se alterado ao longo do tempo, o dever de dar efetivo uso ao bem se manteve, desta vez com finalidade social. Neste sentido, quando a lei institui a legitimação fundiária somente em núcleos urbanos informais, ou seja, em áreas abandonadas pelos respectivos titulares registrais e ocupadas por pessoas que dão função social à propriedade, ela cria também um instrumento fiscalizador do uso abusivo da propriedade[footnoteRef:25]. [25: VELOSO, Luiza Lins. Legitimação fundiária: uma visão constitucional no contexto da segregação socioespacial das cidades brasileiras. Cadernos da DPE-SP. São Paulo, v. 3 n.17 p.111, ago. 2018.] 
Os bens imóveis, sejam eles públicos ou privados, passam a ter valor constitucional e ultrapassam os meros interesses do proprietário que, por sua vez, passa a ter responsabilidade de zelar por aquele bem e dar-lhe efetivo uso. Com efeito, o enunciado 492 da Jornada de Direito Civil prevê que "a posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela". É por esta razão que se discute a prevalência do direito à moradia em relação ao direito à propriedade – embora este também tenha cunho fundamental – pelo primeiro integrar o mínimo existencial, de caráter essencial, enquanto o segundo é prescindível.[footnoteRef:26] [26: CALIXTO, Juliano dos Santos; DIAS, Maria Tereza Fonseca. A efetividade do direito à moradia adequada a partir da segurança na posse no direito internacional e no direito brasileiro. Revista de Direito Urbanístico, Cidade e Alteridade. Minas Gerais. v. 1, n. 2, p. 307, Jul./Dez. 2015.] 
É este olhar constitucional que deve pousar sobre o caso em tela, senão veja-se: de um lado, depara-se com “terra de ninguém”, às proximidades de uma linha férrea tomada por vegetação e terra, em evidente desuso; de outro, pessoas humildes que, seja pelas dificuldades de arcar com os custos e tributações inerentes ao mercado formal ou pela aparente legalidade de transações de compra e venda naquele local (contrato anexo), constroem casa e passam a dar efetivo uso ao bem para suas próprias moradias. Dado o exposto, resta claro que a função social está efetivamente sendo cumprida por aqueles que lá habitam, e não pelo titular do domínio que, por anos, deixou de zelar por aquele bem.
Quando se trata de bem público, a responsabilidade é ainda maior, pois, inobstante a imprescritibilidade de sua posse, é de interesse público não somente o resguardo daquele bem mas o impacto gerado pelo desalojamento de inúmeras famílias que lá se alocaram e permaneceram por anos, sem oposição dos entes federativos e com fruição de serviços públicos essenciais. Independente da finalidade que se queira dar àqueles terrenos, não se pode desprezar a configuração de uma ocupação duradoura e coletiva, portanto, de difícil reversão.
A posse dos residentes às redondezas da linha férrea, embora precária, é de boa-fé e não clandestina, constituída há anos e, portanto, deve ser considerada justa frente às peculiaridades do caso em concreto. A complacência da administração pública, que fomentou a permanência das comunidades no local, e o estado de desleixo com o qual deixou os bens de seu domínio à mercê das inúmeras ocupações irregulares (haja vista as mais de 80 ações reintegratórias pleiteadas) retiram sua legitimidade de pleitear, de maneira abrupta e tardia, a retomada de sua posse.
III.III.b. Da Responsabilidade dos Entes Públicos
Nada obstante o bem ocupado pela comunidade seja de natureza pública, nota-se que os entes federativos descumpriram com o seu dever de zelar, proteger e vigiar o bem. Ora, se os moradores do caso em tela residem há uma década no local (vide contrato de compra e venda anexo), é inegável a omissão por parte do poder público. Se, por um lado, o poder público pecou por inação de um lado, de outro fomentou a utilização do espaço por particulares mediante a prestação de determinados serviços públicos à região, em conduta evidentemente contraditória. 
III.III.b1. Da Omissão da Administração Pública frente à Ocupação Irregular
Aqueles que confiaram no reconhecimento de sua comunidade por parte da administração pública, que há anos lhes presta serviço, não podem arcar sozinhos com os ônus de uma ocupação desordenada e mal planejada da cidade, pois são eles, antes de tudo, vítimas da ausência de políticas públicas habitacionais adequadas e da omissão negligente da Administração Pública, que, após uma década de conivência, somente agora houve por bem resolver o problema aqui versado, fazendo-o, entretanto, com imediatismo e reducionismo absolutamente incompatíveis com a natureza e a dimensão da questão. 
Neste sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui entendimento de que diante de moradias construídas em local que seria espaço público, mas que, de fato, trata-se de área de difícil acesso e sem qualquer urbanização, é incabível a pretensão demolitória, salvo se o Poder Público cumprir com o seu dever constitucional de promoção do direito à moradia. Vide ementa:
Apelação cível. Ação demolitória. Edificação em via pública. Local não urbanizado. Direito constitucional à moradia assegurado. Recurso não provido.
1. Todos têm direito constitucional à moradia e o Estado deve adotar ações positivas para que os economicamente menos favorecidos tenham um local para morar. Pode, ainda, ter conduta negativa no sentido de não impedir que o particular, por si mesmo, concretize o mencionado direito.
2. Feita a edificação de habitações em local que, abstratamente, seria via pública mas, na concretude da vida, é área de difícil acesso e sem qualquer urbanização, revela-se inacolhível a pretensão demolitória. Entender o contrário violaria o direito constitucional à moradia.
3. Apelação cível conhecida e não provida.[footnoteRef:27] (grifo nosso) [27: TJMG. Apelação Cível 1.0105.00.001435-4/001. 2ª Câmara Cível. Des. Caetano L. Lopes. Julgado: 12/04/2005.] 
Compunha o polo ativo da referida apelação uma autarquia municipal que pleiteava a demolição de edificações construídas em via pública. A ré daquele processo havia adquirido a área através instrumento particular, o que a motivou, inclusive, a denunciar à lide o alienante. O relator daquele recurso, embora ciente de que a aquisição da área por instrumento particular não teria validade jurídica, realizou importantes apontamentos em seu voto. Tais considerações, pela pertinência ao presente caso, merecem ser transcritos: 
No caso em tela, verifico que os apelados são pessoas de baixa renda. As fotografias do local, bem como o laudo pericial, revelam esta realidade. Então, o apelante tem o dever positivo de promover ações que possibilitem aos recorridos terem uma moradia pelo meio que entender mais adequado ou, então, o dever de agir negativamente não impedindo que estas pessoas garantam sua residência.
Acrescento que não impressiona o argumento no sentido de que as edificações foram feitas em via pública. Abstratamente o local deveria ser via pública. Na palpitante realidade da vida, entretanto, a perícia é clara quanto ao estado de abandono que se encontra o local. E esta circunstância patenteia ser correta a orientação adotada em primeiro grau de jurisdição porque, diante da omissão do apelante em cumprir seu dever constitucional, não se justifica mesmo a demolição pretendida.
Ressalvo que, urbanizada a área e propiciada moradia para os recorridos, é claro que poderá haver a demolição. Mas, no momento, destruir as edificações não é solução para a conduta omissiva do recorrente.

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