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Histórias_de_quem_gosta_de_ensinar

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Alves, Rubem. Histórias de quem gosta de ensinar. 17ª ed. São Paulo:Cortez, 1994. Pp. 45-48 
Os hábitos alimentares da ciência 
Eu gosto de contar histórias. É que elas dizem o que tem a dizer de forma curta e 
descomplicada. Não precisam de muitas explicações E qualquer um entende. Isto, além de se 
darem ao luxo de permitir que se junte uma pitada de humor ao que se conta. O que provoca o 
riso numa das partes da torcida, que irá repeti-las muitas vezes daqui para frente... Uma boa 
risada vale mais que muitos argumentos. A outra parte da torcida, é claro, vai ficar danada da 
vida, como o rei que se descobriu de cuecas no meio da parada... E aqui vai mais uma... 
Muitos anos atrás um cordeiro, totalmente comprometido com o ideal do conhecimento objetivo, 
decidiu que já era tempo de se descobrir a verdade sobre os lobos. Até aquele momento só ouvira 
estórias escabrosas, sempre contadas por testemunhas suspeitas, gente que tinha preconceito 
contra os pobres bichos. Quem eram os lobos? Ele decidiu que, para se ter a verdade, seria 
necessário abandonar, como indignos de confiança, os testemunhos de terceiros. Ninguém 
conhecia os lobos melhor que os lobos. Que se fosse diretamente a eles. O Cordeiro escreveu 
então uma carta ao filósofo-lobo com uma questão simples e direta: O que são os lobos? O 
filósofo-lobo respondeu imediatamente, como convém a alguém que pertence à comunidade do 
saber. E disse tudo. As formas dos lobos, tamanhos, cores, hábitos sociais, tendências estéticas... 
Vez por outra ele parava para pensar se a cozinha dos lobos e suas predileções alimentares eram 
questões de interesse filosófico e ontológico. E sempre riscava a primeira linha do relatório. Afinal 
de contas, ele dizia, os hábitos alimentares dos lobos são acidentais, culturalmente condicionados. 
Não pertencem à nossa essência. O Cordeiro, ao receber a carta, deu pulos de alegria. Ele estava 
certo. Quantas mentiras tinham sido espalhadas acerca dos lobos. Mas, agora, testemunha de 
primeira mão, sabia finalmente quem eram os lobos, almas irmãs, animais de carne e osso neste 
mundo de Deus. E até resolveu visitar lobo, para debates filosóficos face a face. E foi só então 
que ele aprendeu, tarde demais, que alguma coisa não fora dita no relato do lobo. Ah! Faltavam 
as informações sobre os seus hábitos alimentares. Descobria agora, de forma final e irremediável 
que, para um cordeiro, um lobo é, antes de mais nada, um bicho cuja comida favorita é churrasco 
de cordeiro... 
 
Toda história tem uma moral... A desta é muito simples: se você quiser saber quem são 
os loucos, não pergunte a eles. É mais seguro acreditar nos cordeiros. 
Esta moral não é novidade. Sabedoria da velha, a “arte da desconfiança”. Não me 
entendam mal. Não estou denegrindo a moral dos lobos. E nem estou dizendo que eles têm 
más intenções. O problema é pior. Na realidade eles não possuem alternativas... Os lobos 
estão condenados a ver o mundo como lobos... Maneira única de ver o universo, metafísica 
própria, ontologia singular: os deuses são sempre lobos e os cordeiros, por ordenação divina, 
estão destinados (ó nobre vocação!) a ser comidos pelos lobos. Não adianta aos lobos 
expandir sua ciência: os resultados confirmaram sempre a sua hipótese de trabalho. E é por 
isso que é necessário ouvir o outro lado, as vítimas... 
Para minha surpresa, quando comtei esta história pela primeira vez, a aplicação de sua 
moral provocou um inesperado tumulto e protestos indignados. Vou explicar. Tudo aconteceu 
numa reunião internacional em que cientistas, técnicos, estudantes e representantes de credos 
religiosos se reuniram para conversar sobre o futuro incerto deste belo mundo em que vivemos. 
E, como não poderia deixar de ser, especialmente considerando-se o lugar, o MIT, santuário da 
técnica, a coisa começou com uma fala sobre a Ciência. Discurso lindo, gerado em 
observatório astronômico, no êxtase da contemplação de galáxias distantes, vistas e pensadas 
em meio à abundância de ciência de observatório de país rico, protegido das coisas 
mesquinhas e efêmeras da Terra. Ah! Como é belo e tranquilizante contemplar o Universo, 
impassível e misterioso... Também eu amo os céus estrelados e, se pudesse, trataria de fazer 
algo para que a meninada de nossas escolas aprendesse a ouvir as vozes do firmamento. Elas 
nos fazem mais modestos e humildes. Talvez mais sábios. Mas o problema apareceu 
justamente aí: aquele homem astrônomo, íntegro no seu trabalho, apaixonado pelo seu saber, 
acima dos demais mortais, estava condenado a falar sobre a Ciência a partir da beleza pura de 
sua bolha de sabão. E suas palavras foram descrevendo a Ciência, maravilhosa e livre de 
enganos, madona virginal, ser angelical... Nenhuma palavra sobre os seus hábitos 
alimentares... 
E foi aqui que apareceu o desdobramento perverso da primeira parte da moral da estória. 
Se você quiser saber quem são os lobos, não pergunte a eles. É mais seguro acreditar nos 
cordeiros. Se você quiser saber o que é a Ciência, não pergunte aos cientistas. Pergunte às 
vítimas. 
Foi então que o pandemônio se estabeleceu. Claro que me assustei. Porque pensei que 
não estava dizendo nada de insólito. Tratava-se apenas de uma pequena pitada de sabedoria 
que não inventei, coisa já velha, que tem a ver com a teoria das ideologias e com a psicanálise, 
para não nos referirmos a textos Sagrados milenares, que dizem que devemos prestar pouca 
atenção aquilo que as pessoas dizem e observar com atenção o que elas fazem. Pobre 
cordeiro: se tivesse sabido disto, não teria virado churrasco... O que ofendeu a todos foi 
imaginar que a ciência pudesse ter hábitos alimentares... 
Todos concordam em que, para se conhecer a polícia, é preciso não levar muito a sério 
as declarações oficiais que seus altos funcionários produzem. É necessário ouvir falar dos que 
sofrem porque equívocos e não-equívocos. E se se deseja saber sobre os bancos, será sábio 
não acreditar nos comerciais de televisão, com xícaras de café e gerentes sorridentes, chaves 
mágicas e celebrações de ações de graças. Há outras histórias para serem contadas. E se se 
deseja saber sobre as instituições religiosas, que se procurem, do outro lado das Celebrações, 
os testemunhos dos equívocos, das intolerâncias e das inquisições... Isto é procedimento 
científico que vale para todas as instituições. Seria ridículo que a Ciência apenas não quisesse 
aplicar a si mesma a “arte da desconfiança” que ela aplica, como o cirurgião, sobre as outras 
instituições. Afinal de contas, a receita do purgante é dela mesma. Que ela não tenha medo da 
cura que ela mesma receita.

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