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UM ESTUDO SOBRE A DEFECTOLOGIA NA PERSPECTIVA VIGOTSKIANA: A APRENDIZAGEM DO DEFICIENTE INTELECTUAL EM REFLEXÃO SILVA, Fabrícia Gomes da1 - UESPI MENEZES, Helena Cristina Soares2 - UESPI OLIVEIRA, Daiana Araujo de3 - URCA Grupo de Trabalho - Diversidade e Inclusão Agência Financiadora: não contou com financiamento Resumo O estudo apresentado tem como foco a aprendizagem da criança com deficiência intelectual em uma perspectiva da defectologia vygotskyana. Trata-se de um ensaio teórico- metodológico, com suporte em L. S. Vygotsky. No início do século XX notável interesse social sobre o desenvolvimento e possibilidades de aprendizagem da criança com deficiência ganham efervescência, cenário propício para o nascedouro da “defectologia”. O termo se refere ao estudo de crianças com algum tipo de deficiência, na época chamada de “defeito”, fosse física ou intelectual. Vygotsky foi um de seus precursores e sua proposta estava baseada no trabalho das potencialidades das crianças. Sua preocupação estava no sentido de modificar a forma de compreensão da deficiência, libertando-a do viés biologizante e limitador. Embora reconhecesse a base orgânica da deficiência argumentava que a questão maior, consistia na forma como a cultura lidava com ela. Para ele, a aprendizagem da criança com deficiência intelectual está relacionada aos estímulos oferecidos pelo meio social. Na escola a relação com professores e colegas, vai permitir ao sujeito um maior desenvolvimento, mediado por instrumentos e signos que o ajudam a dinamizar sua aprendizagem. Palavras-chave: Defectologia. Deficiência Intelectual. Aprendizagem. 1 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Professora Assistente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. E-mail: fabriciagomess@hotmail.com. 2 Mestre em Educação pela Universidade Estadual do Ceará – UECE. Professora Assistente da Universidade Estadual do Piauí – UESPI. E-mail: helenacristinam@yahoo.com.br. 3 Especialista em Educação Profissional e Tecnológica. Especialista em Desenvolvimento Sustentável do Semi- Árido e Educação do Campo. Pedagoga pela Universidade Regional do Cariri – URCA. 20218 Reflexões introdutórias: a defectologia Os estudos defectológicos foram escritos por Vygotsky no início do século XX, relatando reflexões e análises a cerca da possibilidade de desenvolvimento e aprendizagem de crianças com deficiência, fosse de natureza física ou intelectual. A deficiência era entendida como um defeito, uma característica que inferiorizava o indivíduo. Segundo Van der Veer e Valsiner (1996) as crianças a quem eram atribuídos estes “defeitos”, recebiam o diagnóstico a partir da avaliação de especialistas nas áreas de psicologia, pedagogia, medicina pediátrica e clínica, estando entre elas, crianças surdas-mudas, cegas, não-educáveis e deficientes intelectuais. Vygotsky foi um dos precursores no estudo da defectologia e apesar deste termo ser olhado de maneira negativa na atualidade, soando com preconceito, sua proposta estava baseada no trabalho das potencialidades das crianças e não em seus defeitos (VALDÉS, 2002). Ele define a defectologia como: “[...] uma esfera de conhecimento teórico e do trabalho científico-prático [...] refere-se à criança cujo desenvolvimento se há complicado com o defeito” (VYGOTSKY, 1987, p. 2-3). A atuação de Vygotsky no campo da defectologia trouxe enorme contribuição aos estudos sobre a Educação Especial. Para ele o neurobiológico é transformado de forma qualitativa pela e na cultura, desta forma a deficiência não pode ser constituída como uma insuficiência, mas uma organização peculiar das funções psicológicas superiores (PADILHA, 2001). O meio social e os estímulos que proporciona, são assim, fundamentais para o desenvolvimento do indivíduo. Ao iniciar seus estudos defectológicos, Vygotsky percebeu que os métodos psicológicos de investigação com maior representatividade na avaliação da deficiência constituíam-se de base quantitativa, como os de Binet e as escalas de psicometria, sendo por ele, amplamente contestados: [...] as crianças em desenvolvimento tornavam-se não mais desenvolvidas, mas desenvolvidas de um modo diferente, fazendo uso de um outro conjunto de instrumentos. Vygotsky, consequentemente opunha-se a todos os procedimentos diagnósticos que fossem baseados em uma abordagem puramente quantitativa. (VAN DER VEER; VALSINER, 1996, p. 84). O defeito as colocava em uma situação de descrédito social, o que poderia provocar um sentimento de inferioridade. Como veremos adiante, este sentimento, de acordo com a 20219 defectologia antiga, em alguns casos, poderia ajudar a impulsionar a superação desta criança diante de sua dificuldade. Segundo Van der Veer e Valsiner (1996), os primeiros escritos de Vygotsky, concentraram-se nos problemas das crianças surdas-mudas, cegas e deficientes intelectuais, culminando em sua viagem a Alemanha, Holanda, França, Inglaterra, no verão de 1925. Uma das ênfases dadas nos primeiros escritos do autor, diz respeito à educação social e a potencialidade da criança para o desenvolvimento normal. Ele afirmava que o defeito afetava antes as relações sociais da criança e não sua reação direta com o ambiente físico. O defeito orgânico faz com que a criança receba por parte de pais, parentes e colegas uma maneira diferente de tratamento, seja no aspecto positivo ou negativo (VAN DER VEER; VALSINER, 1996). A preocupação de Vygotsky, estava ainda no sentido de modificar a forma de compreender a deficiência, libertando-a do viés biologizante e limitador. Assim, embora reconhecesse a base orgânica da deficiência argumentava que a questão maior, consistia na forma como a cultura lidava com essa diferença. Como afirmam Van der Veer e Valsiner (1996) para ele, entre o ser humano e sua estrutura física, coloca-se o meio social, o qual estabelece as relações que serão desenvolvidas do indivíduo com o ambiente em que vive. As barreiras impostas pela deficiência são assim, condicionadas pelas relações que a sociedade estabelece como padrões ao convívio social. A criança só percebe o peso de sua deficiência a partir do momento que é confrontada a ser como uma criança normal. Segundo Vygotsky a criança nasce apenas com recursos biológicos, mas a partir de sua a convivência em sociedade, ligada a sua cultura e aos valores, é concretizado o processo de humanização, essencialmente, possível pelo ensino e aprendizagem. Pino (2005) chamou este fenômeno de duplo nascimento, um biológico e outro cultural, a relação entre eles, possibilita o desenvolvimento e a apropriação dos conhecimentos produzidos culturalmente na história (PLETSCH; BRAUN, 2008). Ao se referir à deficiência intelectual (DI), na época chamada de deficiência mental, Vygotsky afirmava que devido ao enfoque clínico com que era tratada, esta deficiência foi colocada como uma “coisa” e não como um processo. Isso tende a limitar a pessoa com DI a uma situação de estagnação, que foi por ele combatida. Assim, por mais características parecidas que algumas crianças deficientes possam ter, cada uma tem particularidades e sofre influência do meio social de forma diferente. Desta forma, há que se considerar a deficiência 20220 como um processo que toma formas distintas para cada criança. Considerar a deficiência como uma “coisa” constitui o principal entrave na compreensão do seu desenvolvimento. Para compreendermos as bases da defectologia, é importante reconhecer que os fenômenos estão em constante movimento, em permanente transformação. Transpor esta reflexão para a educação significa estudar o fenômeno em sua origem e no curso de seu desenvolvimento. Implica que a história do homem é caracterizada por mudanças, em aspectos quantitativos e qualitativos, estas mudanças estão relacionadas a mudanças na vidamaterial e na sociedade (VALDÉS, 2002). Vygostsky considerava que a sociedade é dinâmica. Assim suas relações são instáveis. Uma característica que possa ser considerada como inferior hoje, pode sofrer alterações sociais que a coloquem como superior em outro momento histórico. Desta forma a deficiência alcança status de inferior, por estar assim colocada pelo meio social. Os estudos defectológicos criticavam também a maneira como as escolas especiais tratavam as crianças, afirmando que inviabilizavam o seu convívio com outras da mesma idade, acarretando prejuízo para seu desenvolvimento social e psicológico. Na época destes estudos era forte o enfoque terapêutico, o que conduzia a escola a receber da clínica as primeiras informações sobre a criança e com base nestes dados organizar suas ações pedagógicas, acarretando uma situação de estigmatização, em que a criança passava a ser vista como limitada a algumas atividades e apta a outras. Era negado a ela o direito de tentar desenvolver suas potencialidades através de atividades desafiadoras, poderíamos falar em uma timidez forçada, em que a criança era destinada a atividades exclusivamente restritas a sua deficiência. Vygotsky (1997) trata essa situação como uma seleção, em que de um lado são escolhidos os alunos que podem frequentar a escola normal e dela usufruir e, do outro, aqueles que não têm condições de participar desta instituição, sendo a eles destinada a Escola Especial, com todas as restrições que a deficiência poderia justificar. Afirma, ainda que isto acarretava a separação de crianças em grupos, trazendo danos a sua formação social e psíquica. 20221 Cualquer persona comprende que no hay nada más indeseable que la selección de acuerdo con las particularidades negativas. Cuando realizamos esta selección nos arriesgamos a separar y a unir em un grupo de niños que tendrán poco en común en el aspecto positivo [...]. (VYGOTSKY, 1997, p. 101).4 Reconheceu que os avanços começavam a ser percebidos no enfoque pedagógico da escola, quando ela enxerga a insuficiência das diretrizes teóricas do funcionamento científico em que se apoiava a educação da criança deficiente. O autor afirma que a partir desta mudança se procura trabalhar as habilidades da criança. Ao enfoque científico, afirma que uma das mudanças ocorre no sentido de tentar desvendar o desenvolvimento da criança deficiente intelectual e as leis que regem este desenvolvimento. Buscou entender como o desenvolvimento da criança pode contribuir para que ela lide com deficiência e como este processo de elevação é constituído. Um dos pontos fundamentais para se entender o desenvolvimento, é perceber que a deficiência, como já argumentado anteriormente, não é produto apenas de causas biológicas, é antes disto, produto de causas sociais. De acordo com Pletsch e Braun (2008, p. 4) a compreensão de Vygotsky aponta que: [...] a criança cujo desenvolvimento foi comprometido por alguma deficiência, não é menos desenvolvida do que as crianças ‘normais’, porém é uma criança que se desenvolve de outra maneira. Isto é, o desenvolvimento, fruto da síntese entre os aspectos orgânicos, socioculturais e emocionais, manifesta-se de forma peculiar e diferenciada em sua organização sociopsicológica. Assim, não podemos avaliar suas ações e compará-las com as demais pessoas, pois cada pessoa se desenvolve de forma única e singular. Acreditar que as crianças se desenvolvem apenas por linhas biológicas é desconsiderar que o indivíduo é um ser histórico e social, que vai se constituindo em interação com o meio em que vive. Nesse cenário, se a deficiência fosse um resultado apenas biológico, não haveria diferença entre crianças que recebem maior e menor estímulo pedagógico, tornando o ato educativo algo meramente mecânico e com resultados previsíveis. A aprendizagem da perspectiva vygotskyana Vygotsky (1997) afirma que o desenvolvimento das crianças com Deficiência Intelectual é igual ao desenvolvimento de crianças com outro tipo de “defeito”. A sua deficiência estimula o organismo e a personalidade a desencadearem processos de 4 “Qualquer pessoa compreende que não há nada mais desagradável, do que a seleção de acordo com as particularidades negativas. Quando está seleção nos arriscamos a separar e a unir em um só grupo crianças que tem poucos aspectos positivos em comum” (tradução nossa). 20222 compensação. Estes processos formam funções que compensam ou nivelam a deficiência, tornando a criança mais ativa ao meio. Enfatiza que o importante não constitui a ênfase na deficiência, mas na reação que a personalidade da criança apresenta diante da dificuldade imposta pelo que a defectologia chama de defeito. Deixa claro que a criança deficiente não é formada apenas de dificuldades. Como outras crianças, é dotada de um organismo que responde às suas necessidades e a compensação representa uma das formas que a deficiência usa para responder aos desafios que o meio social lhe impõe. Segundo Vygotsky (1997) a personalidade se equilibra, se compensa, com os processos de desenvolvimento da criança. É imprescindível, desta forma, mais que conhecer a deficiência, visualizar a criança deficiente, sua personalidade, o meio em que vive, assim poderemos ter um estudo mais fiel sobre o desenvolvimento desta criança. O processo de compensação O próprio organismo luta contra a enfermidade, o que desencadeia sintomas de ordem dupla, de uma parte as alterações de funções e de outro a luta do organismo contra os transtornos. Afirma, ainda que para compreendermos o desenvolvimento de crianças normais, é preciso lançar um olhar sobre os transtornos ocorridos ao longo de seu processo de desenvolvimento. Estes transtornos podem ter sido a mola mestra para o surgimento de funções compensatórias no organismo da criança. O entendimento sobre os processos compensatórios se constitui em algo complexo, caso deixemos de considerar que seu desencadeamento pode ser duplo: a emocional, com o sentimento de inferioridade e a social, com os estímulos recebidos pelo ambiente de que a criança faz parte. O próprio Vygotsky (1997) afirmou que houve momentos em que pensou ser suficiente ver, compreender e fundamentar os processos de compensação. Mas após estudos constatou que é preciso analisar a natureza do fenômeno considerando que ele pode ser duplo. Explica, ainda, que para alguns a base exclusiva que desencadeia o processo compensatório é a reação subjetiva da personalidade da própria criança, diante da situação em que se vê por consequência da deficiência. Segundo essa teoria a fonte única de surgimento do processo compensatório de desenvolvimento é o início de um sentimento de inferioridade na criança por causa da deficiência. 20223 A este sentimento o autor chama de “sentimento de menos valia”, a partir do qual ocorre o reconhecimento da própria deficiência e de sua inferioridade e a reação de tentar vencer esta limitação, eliminando a deficiência interiorizada, alcançando, até mesmo, um nível de superioridade. Para os defensores desta teoria, em alguns casos era desenvolvida uma superestrutura5 pela criança para vencer ou substituir o defeito. “O desenvolvimento do raciocínio dos defectólogos é assim: para o surgimento da compensação é necessário que a criança interiorize e sinta sua deficiência” (VYGOTSKY, 1997, p. 105, tradução nossa). Neste sentido, não se trata de negar a diferença, mas de considerá-la como parte do sujeito que está inserido em processos de aprendizagem que irão impulsionar o seu desenvolvimento. Van der Veer e Valsiner (1996) afirmam que o sentimento de inferioridade motivava as crianças a serem iguais aos adultos, nos caso das crianças com deficiência, as motivava a vencer seus limites. Lembremos, porém, que esta é só uma das esferas do fenômeno da compensação,o que facilita o nosso entendimento ao colocarmos o problema que esta primeira teoria tem se falarmos de deficiência intelectual. Para as crianças que apresentem Deficiência Intelectual, o sentimento de autovalorização constitui fator de destaque na maioria nos casos, e segundo Vygotsky (1997) inibe o surgimento do sentimento de inferioridade, sem o qual não há o desencadear de um sistema de compensação. Desta forma “no retardo mental a dificuldade consiste em que ele assume uma atitude não crítica para si mesmo para interiorizar sua própria deficiência e extrair uma conclusão eficaz para vencer o seu retardo” (p. 105, tradução nossa). A criança com Deficiência Intelectual demonstra, segundo Vygotsky (1997), um aumento de satisfação em relação a ela mesma, assim não percebe sua deficiência, não experimenta o sentimento de inferioridade, o que inibe ou dificulta o processo de compensação, isto se aceitarmos a primeira teoria explicitada como única. Apesar de Vygotsky usar a expressão “sentimento de inferioridade” o que vale nesta perspectiva é ajudar a pessoa com DI a compreender (reconhecer) suas condições e descobrir os caminhos que podem levá-la a aprender mais. Tais caminhos não estão postos, mas são uma construção da criança com o suporte da cultura, ou seja, dos adultos e da escola. Trata-se da construção de uma consciência de si, que possa levar a criança a entender melhor a si mesma e assim organizar-se para lidar com os obstáculos sociais. Ocorre, com isso, a 5 O uso da palavra superestrutura foi deliberadamente usado por Vygotsky para estabelecer uma semelhança entre com os conceitos econômicos e sociológicos de Marx (VAN DER VEER; VALSINER, 1996). 20224 possibilidade das pessoas com DI também se organizarem como sociedade civil e se apropriar do conhecimento socialmente acumulado pela humanidade. A outra esfera da possibilidade do processo compensatório, para Vygotsky (1997) é a que mais se relaciona com a realidade. Para ele esta nova teoria explica como este processo pode ser desencadeado em crianças que não tem na anormalidade da função o surgimento do sentimento de inferioridade. Esta teoria coloca que o convívio da criança com meio social, vai fazer surgir uma série de dificuldades corriqueiras que vai ter que vencer. A superação das dificuldades vai empurrar o surgimento do processo compensatório. Desta forma, torna-se importante para a criança estar em interação social, principalmente, com outras de sua mesma faixa etária, deficientes e não deficientes. O grau de desenvolvimento do processo de compensação, nessa perspectiva, está ligado ao meio em que a criança vive. Importa verificar se oferece desafios e quais limites a criança é chamada a superar. Tal fato deve ser analisado de acordo com a posição que a criança ocupa na sociedade. Esconder a criança ou proporcionar a interação com outras pode ser um ponto central no entendimento do desenvolvimento de funções compensatórias. O contato com outras crianças lhes proporciona um avanço não apenas em relação à ativação das funções compensatórias. Vai mais além, permite um desenvolvimento de sua conduta coletiva e em sua função psicológica própria. Fugindo do olhar biologizante, percebemos como a deficiência se destaca na esfera mais social. São as relações impostas desse convívio que irão colocar a criança em um papel de desvio ou de normalidade. Vigotsky (1997, p. 10) enfatizava que “el proceso de desarrollo del niño con deficiencias está condicionado socialmente”.6 Carvalho (2006, p. 37) afirma que há desenvolvimento ao: [...] desafiar a pessoa com deficiência, estabelecer para ela as mesmas metas educacionais que para os demais, assegurar o acesso efetivo aos bens culturais, mesmo que isso implique a necessidade de uso de recursos especiais, mesmo que isso demande uma ação mais intensiva do outro. Assim, compreendemos que se o ambiente oferece à criança condições de desafiar seus próprios limites, e de avançar em seu potencial de desenvolvimento com estímulos e instrumentos, ela pode conseguir superar os desafios impostos pela sociedade. 6 “O processo de desenvolvimento da criança com deficiência está condicionado socialmente” (tradução nossa). 20225 Ao enveredarmos em uma reflexão sobre a aprendizagem, urge ainda, entender como o homem é visto na concepção Vygotskyana, tendo por base que é ele o nosso elemento de maior investigação no processo histórico, o protagonista das formas sociais culturalmente determinadas. O homem cria cultura, organiza socialmente os contextos para satisfazer suas necessidades. O processo de aprendizagem representa a construção humana e tem como baliza a intencionalidade e a ideia de transformação da criança em membro da cultura a qual está vinculada por ocasião de seu nascimento. Vygotsky (2010), ao traçar algumas das características humanas, afirmava que o que nos diferencia de forma fulcral dos outros animais é a experiência histórica e a consciência dela. Esta é transmitida não por herança biológica, mas pela trajetória social, pelo contato, pelo convívio. Coloca em acento, ainda, que aprendemos com a experiência coletiva, em que aquilo repassado de geração para geração não é uma mera transmissão individual, mas uma aprendizagem coletiva, com a experiência do outro, suas descobertas, vitórias, acertos e erros. Destaca, ainda, como o homem faz uso de invenções para sua adaptação ao meio em que vive, por intermédio do trabalho. Portanto, diferentemente dos outros animais que mudam o seu próprio corpo para permanecer em um ambiente, o homem modifica o espaço com ferramentas e instrumentos de forma mais radical. Neste sentido afirma sobre tal diferença: Antes de mais nada, no comportamento do homem, comparado ao comportamento dos animais, observamos o emprego ampliado da experiência das gerações passadas. O homem usa a experiência das gerações passadas não só naquelas proporções em que tal experiência está consolidada e é transmitida por herança física. Todos nós usamos na ciência, na cultura e na vida uma enorme quantidade de experiências que foi acumulada pelas gerações anteriores e não se transmite por herança física. Em outros termos, à diferença do animal o homem tem história, e essa experiência histórica, isto é, essa herança não física, mas social difere-o do animal [...] Este utiliza não só aquelas reações condicionadas que se formam na sua experiência individual, como acontece com o animal, mas também aqueles vínculos condicionados que se estabeleceram na experiência social de outros homens [...]. Por último, o traço mais importante que difere o comportamento do animal são as novas formas de adaptação que encontramos pela primeira vez no homem. (VYGOTSKY, 2010, p. 41-42). O trabalho se destaca, então, como elemento de transição na história da humanidade. Trabalho aqui entendido como uma ação planejada e estruturada, a partir da qual, o homem consegue modificar processos naturais a favor de suas próprias necessidades. É possível encontrar formas embrionárias de adaptação nos animais, como feituras de ninhos e moradas de castores que nos lembram do exercício do trabalho, mas não o são a partir de uma 20226 atividade racional de planejamento como podemos encontrar no trabalho humano. “O trabalho do pior tecelão ou arquiteto constitui formas mais ativas de adaptação por ser trabalho consciente” (VYGOTSKY, 2010, p. 43). A experiência do homem se configura complexa: passa pela esfera do social para, então, ser identificada como elemento intrapsíquico a posteriori. Seu comportamento ultrapassa o biológico e chega ao social, sendo este último o que irá determinar sua ação em sociedade. Para Pozo (2002, p. 29), aquisição cultural, sociedade e aprendizagem são elementos integrados, assim: “a funçãofundamental da aprendizagem humana é interiorizar ou incorporar a cultura, para assim fazer parte dela. Assim, fazemo-nos pessoas à medida que personalizamos a cultura”. Em Vygotsky vemos que “o comportamento humano era comportamento inerentemente organizado social e culturalmente” (DANIELS, 2002, p. 34). O processo de ensino e aprendizagem é essencial para a aquisição dos elementos culturais e responsável, em grande parte, pelo desenvolvimento do comportamento humano. Pozo (2002) destaca que cada sociedade gera suas formas culturais, sua própria cultura da aprendizagem, o que gera um diálogo entre estes dois elementos, uma vez que a aprendizagem de determinada cultura, ocorre a partir da forma cultural que tal aprendizagem foi estruturada. Assim, as atividades de aprendizagem devem ser entendidas a partir do contexto cultural em que foram formadas. Percebemos, desse modo, a escola como uma instituição fulcral, em que os indivíduos ensaiam sua atuação social e se apropriam dos elementos construídos pela humanidade. Nela percebemos o exercício da aprendizagem sendo desenvolvido, não neutro, mas intrinsecamente ligado ao processo histórico-cultural. Assim, quer a escola, quer a aprendizagem, representa um elemento socialmente constituído pela cultura. Vygotsky afirma que no processo de desenvolvimento, o homem modifica os modos e procedimentos de sua conduta, transforma suas inclinações e funções naturais, elabora e cria novas formas de comportamento culturais. O que nos leva a reconhecer a aprendizagem como um processo passível de transformações. Ao entrarmos no campo da aprendizagem, somos instigados a falar sobre o que Vygotsky entendia como funções psicológicas superiores. Para ele, funções são frutos culturais, formadas e reformadas na medida em que o movimento social acontece, estimuladas pelo processo de ensino transmitido pela escola. 20227 O pensamento, a memória, a formação de conceitos e a linguagem, como exemplo de funções superiores, podem ser desenvolvidos através da mediação estabelecida no processo de ensino e aprendizagem. Tais funções são próprias do homem construídas em base material, histórica e cultural. Nesta abordagem, a escola tem grande relevância para a ampliação das possibilidades das funções psicológicas superiores humanas por trabalhar de forma sistematizada com o ensino de conteúdos que são parte do conhecimento científico socialmente produzido. Na escola a relação com professores e colegas, vai permitir ao sujeito um maior desenvolvimento, mediado por instrumentos e signos que o ajudam a dinamizar sua aprendizagem. Um conceito básico na obra de Vygotsky é o de “zona de desenvolvimento proximal” definida como: “a distância entre o nível de desenvolvimento real que se costuma determinar através da solução independente de problemas, e o nível de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de problemas [...] em colaboração com companheiros mais capazes” (VYGOSTSKY, 1998, p. 112). Ressalta, ainda, que de acordo com Vygotsky, as formas superiores de comunicação psicológicas do ser humano são possíveis, apenas, porque no pensamento o homem reflete a realidade de maneira generalizada. Portanto, o contato com o outro, possibilita que novas aprendizagens ocorram. Na sala de aula o auxílio daquele que “sabe mais” é essencial à aprendizagem. O indivíduo, porém, não chega à escola vazio, traz junto a si as experiências do convívio familiar e social. O desenvolvimento das funções psicológicas superiores depende da ação sobre a zona de desenvolvimento proximal. Estas funções são, então, “constituídas em situações específicas, na vida social, valendo-se de processos de internalização, mediante uso de instrumentos de mediação” (CAVALCANTI, 2005, p. 4). O social encontra destaque no processo de desenvolvimento do indivíduo de maneira que “[...] segundo a nossa concepção, o verdadeiro curso do desenvolvimento do pensamento não vai do individual para o socializado, mas do social para o individual” (VYGOTSKY, 2008, p. 24). Ao internalizar o homem realiza uma ação transformadora, adequando aquele novo conhecimento aos já adquiridos, não é então uma ação neutra, mas inter- relacionada ao contexto de situações já vivenciadas. 20228 A internalização é um processo de reconstrução interna, intrassubjetiva, de uma operação externa com objetos que o homem entra em interação. Trata-se de uma operação fundamental para o processo de desenvolvimento de funções psicológicas superiores e consiste nas seguintes transformações: de uma atividade externa para uma atividade interna e de um processo interpessoal para um processo intrapessoal. (CAVALCANTI, 2005, p. 4). Para que haja internalização, é necessária a mediação, entendida como um processo, não como um ato ou alguma coisa que se interpõe. Ela não é um elemento encontrado entre dois termos que formam uma relação, ela é a própria relação. É importante, porém, entendermos que a presença física do outro não garante a existência de uma relação mediatizada. Não é a corporeidade que estabelece isto, a mediação ocorre através dos signos, da semiótica, da palavra, ou seja, dos instrumentos da mediação (MOLON, 2010). É a maneira como se usam estes instrumentos que fará a diferença quanto ao desenvolvimento da criança, seja ele desencadeado nas relações familiares, escolares ou em outras. Os processos psicológicos superiores, são estruturados não em elementos biológicos ou na aprendizagem isolada, mas na experiência sociocultural vivenciada historicamente. Logo a aprendizagem ocorre com e pelo outro, sendo a interação social um elemento essencial para o desenvolvimento das funções mentais superiores. De acordo com Cavalcanti (2005), as funções como memória, percepção e pensamento, precisam da mediação dos signos para se desenvolver. Assim, as relações que o homem estabelece com o meio social influenciam na sua formação se configura flexível às mudanças que ocorrem histórica e socialmente. A aprendizagem, desse modo, tem como principal expoente o ambiente cultural em que é formulada. Não podemos dissociar o processo de ensino das trajetórias históricas pelas quais a sociedade e os sujeitos passam: Tomando como referência o ambiente cultural onde o homem e a mulher nascem e se desenvolvem, a abordagem vygotskyana entende que o processo de construção do conhecimento ocorre através da interação do sujeito historicamente situado com o ambiente sociocultural onde vive. A educação deve, nessa perspectiva, tomar como referência toda a experiência de vida própria do sujeito. (MARQUES; MARQUES, 2006, p. 3). De acordo com Vygotsky, as potencialidades de uma criança podem ser estimuladas a partir de um meio que minimize sua deficiência e maximize suas habilidades, configuração presente, tanto para crianças deficientes, quanto para as consideradas normais. 20229 Considerações finais Os estudos defectológicos se colocam como atuais e necessários para o entendimento do desenvolvimento de crianças com deficiência. A partir deles percebemos o meio social como agente facilitador da aprendizagem. As relações desencadeadas através da interação sociocultural e o papel do outro, são fundamentais para que a criança descubra-se como indivíduo de potencialidades. É a aprendizagem assim, um processo, contínuo e multifacetado. Necessita da mediação de um outro, que ajuda a descortinar as novas descobertas que o mundo tem a mostrar. A partir do olhar do outro e de seu estímulo a criança vai construindo seu próprio olhar sobre o mundo e assimilando os novos conhecimentos que a ela são apresentados. REFERÊNCIAS CARVALHO, M. F. Conhecimento e vida na escola: convivendo com as diferenças. Campinas: Autores Associados, 2006. CAVALCANTI, L. S. Cotidiano, mediação pedagógica e formação de conceitos: uma contribuição de Vygotsky ao ensino da geografia.Cadernos Cedes, Campinas, v. 25, n. 66, p. 185-207, maio/ago. 2005. DANIELS, H. (Org.) Uma introdução a Vygotsky. São Paulo: Loyola, 2002. MARQUES, L. 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