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A arte de fazer açucar no Brasil

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o NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL
A arte de fazer açúcar no Brasil
O complexo e difícil processo da produção de açúcar inÍluenciou sob
muitos aspectos a organização social e hierárquica da colônia, além das
soluções específicas para os desafios enfrentados na produção de açúcar.
A produção de açúcar era uma arte, resultando de uma série de proces-
sos integrados: cultivo, moagem, cozimento, depuração e embalagem.
Cada um deles apresentava suas exigências específicas em matéria de
emprego da mão de obra e era essencial para o bom êxito do engenho.
Dizia-se que esses moinhos de açúcar eram chamados "engenhos" por
antonom ásia, pois eram um "amplo teatro da engenhosidade humana",
"máquinas maravilhosas que requerem arte e muita despesa".23 Com
algumas variações regionais, os engenhos do Brasil seguiam um método
semelhante de funcionamento, com muito poucas alterações importantes
atê o fim do século XVIII.
Num espírito festivalesco, a safra tinha início quando os moinhos
começavama funcionar no fim de julho ou início de agosto, após a bên-
ção do próprio engenho e dos trabalhadores e a invoc ação da proteção
dos santos.2a Durante a safra, a cana era cortada à luz do dia, mas os
engenhos começavam a funcionar às 4 horas da tarde e continuavam
até aproximadamente L0 horas da manhã seguinte, funcionando assim
entre dezoito e vinte horas por dia. O trabalho era feito em turnos. Para
os escravos, o ritmo de trabalho logo se tornava exaustivo. Seu "serviço
ê algo incrível", diria José Israel da Costa. Cuthbert Pudsey observou
no século XVII eue, "se eventualmente um negro frca alerjado, pois são
tratados como animais, é posto para alimentar o moinho ou raspar
raízes de mandioca na roda; eles usam os escravos com muito rigor,
fazendo-os trabalhar sem fim, e quanto mais os maltratam mais úteis
os acham, pois são levados a crer por experiência própria que os bons
tratos corrompem seu comportamento".2s Na Bahia, a safra durava até
as fortes chuvas de inverno em maio. Os engenhos funcionavam num
período de 270 a 300 dias por ano, embora com as inrerrupções em
feriados religiosos, para consertos e em momentos de escassez de cana
O BRASIL COLONIAL - VOL.2
ou madeira esses números pudessem ser reduzidos em cerca de um terço.
A Igreja exigia que os engenhos parassem de funcionar nos domingos
e dias santos, mas muitos senhores de engenho tentavam esquivar-se a
essas obrigações religiosas, que respondiam por cerca de três quartos
dos dias perdidos. Em 1,592,João Remirão declarou diante da Inquisi-
ção na Bahia "qoe no dito seu engenho sempre em todos os domingos e
sanctos moendo seu engenho despois do sol posto... que usão e costuma
geralmente nesta capitania a todos os senhores e feitores de engenho sem
excepção".26 Os senhores de engenho argumentavam que os moinhos
não podiam ser parados para não prejudicar o trabalho dos dias ante-
riores e posteriores aos de observância religiosa. Esses argumentos em
causa própria eram condenados pelos jesuítas e a Igreja em geral, mas a
repetição das queixas indica que muitos senhores de engenho ignoravam
as diretrizes da Igreia.z7
A longa duração da safra conferia ao Brasil considerável vantagem
sobre os concorrentes caribenhos, cuja temporada de colheita durava
em média apenas 120-180 dias. Também tornava a produção açucareira
no Brasil particularmente adequada à escravidão, iâ que entre o ciclo de
moagem e o período de plantio praticamente não havia "tempo morto"
e os escravos podiam ser utilizados quase continuamente em alguma
etapa da produção de açúcar.
A regulagem e gestão da operação no campo e na fábrica exigiaha'
bilidade e experiência. Um bom mestre de açúca r capaz de controlar e
prever a maneira como as diferentes atividades se coadunariam, domi-
nando pela inteligência e a destr eza as diferentes partes do processo, era
essencial para o sucesso. Esse trabalho geralmente era bem remunerado,
mas mesmo no século XVI encontramos referências a engenhos em que a
função jâ era exercida por escravos, na medida em que os proprietários
tentavam diminuir os custos.
Nas plantações, oS escravos plantavam a cana manualmente. Os
arados raramente eram empregados no cultivo do açúcar no Brasil,
provavelmente porque o solo de massapé da Bahia e de Pernambuco
dificultava seu uso. Um a vez plantada a cana) grupos de escravos se
o NoRDESTE AçUCAREIRO E O BRASIL COLONIAL
incumbiam do desagradável trabalho de limpá-la de ervas daninhas pelo
menos três vezes. Durante a safra, grupos de 20-4A escravos cortavam
a cana. Muitas vezes trabalhavam em pares, uffi homem paÍa cortar as
canas e uma mulher paÍajuntá-las em feixes. A cana cortada era então
levada para o engenho em carros de boi ou pequenos barcos.
O engenho era movido a moinhos d'água ou tração animal. Os que
se valiam da força da âgua faziamesta opção porque, apesar de o custo
de construção de uma roda, tanques e um aqueduto ou levada ser maior,
gerava-se maior capacidade produtiva. Ambrósio Fernandes Brandão,
auror dos Dialogos das grandezas do Brasil (161,8), estimava em 10 mil
cruzados (a:$000) o custo de construção de um engenho' sem contar a
construção dos prédios nem as despesas operacionais do primeiro ano.
Um chamado engenho real podia produzir 10 mil arrobas por ano e
até mais, embora fossem poucos os que chegassem a tal. Os engenhos
movidos atração animal, às vezes chamados trapiches ou engenhocas, ge-
ralmente eram postos em funcionamento por grupos de bois. Chegavam
a uma média de 3-4 mil arrobas por ano, mas sua construção era mais
barata.z8 Estimou-se em 1,639 que em Pernambuco um trapiche podia
processar o carregamento de cerca de 30 carroças de cana e produzir
meia tonelada (25-37 arrobas) por dia, ao passo que um engenho real
era capaz de moer o conteúdo de 45 carroças e produzir no máximo L
tonelada por dia (50-75 arrobas).2e
O sumo extraído da cana era então passado por uma série de cal-
deiras, nas quais, por um processo de limpeza e evaponção, o líquido
ficava isento de impu Íezas. As caldeiras de ferro e cobre, consideradas
num manual de instruções paÍa um feitor-mor em 1,663 "a coisa mais
importante do engenho", eram uma grande fonte de despesas' constan-
temente precisando de reparos.3o O processo de limpeza dependia do
calor de enormes fornalhas que ficavam por baixo das caldeiras. Essas
"grandes bocas abertas" tragavamuma quantidade descomunal de ma-
deira. Nos engenhos baianos, o custo da madeira representava em geral
cerca de20% das despesas de funcionamento. Até a introdução dacana
caiena, mais fibrosa, no fim do século XVIII, os engenhos brasileiros que
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O BRASIL COLONIAL - VOL. 2
processavam a cana crioula raramente faziam uso do bagaço (a sobra da
cana espremida) como combustível, dependendo pal:- isto dos recursos
florestais aparentemente ilimitados da colônia. O resultado disso foi a
destruição de vastas extensões da floresta atlântica.3r
O trabalho nas caldeiras exigia considerável conhecimento e habi-
lidade. Sob a direção do banqueiro, os trabalhadores de cada uma das
caldeiras tratavam de limpar o líquido com grandes conchas, até que o
fluido purificado e engrossado pudesse ser vertido em grandes formas de
argila que eram então levadas para uma construção separ ada,a casa de
purgar, sendo dispostas em longas fileiras. O açúcar que se cristal izava
nas formas era periodicamente coberto com argrla umedecida. A âgua
da argila era então filtrada pelas formas de açúcar cristalizado, limpando
ainda mais as impurezas e gerando uma forma na qual predominava o
açúcat branco. O escoamento das formas era reprocessado para gerar
um açúcar mais grosseiro e o melado drenado das formas era destilado
pala fazer cachaça. o padre Antonil, atento ao mesmo tempo à teolo-
gia e aos lucros, assinalou que "a lama suja deix ava o açúcar branco,
exatamente como a lama dos pecados misturada às lágrimas de affe-
pendimento podialavar nossas almas".32 A concentração do Brasil na
produção desse açú,car branco, "argiloso", deu vantagemà colônia em
relação aos concorrentes caribenhos, que tendiam a produzrr açúcar
mascavo mais escuro e menos apreciado.
O Brasil especializou-se na produção de açúcar branco, mais valorrza-
do que o mascavo, mas que também tendia a elimi naÍ a necessidade de
mais refinação. Assim foi que sua metrópole, Portugal, ao contrário da
Holanda e da Ingl ateffa,não desenvolveu uma indústria de refinamento
até o século XVIII. Os engenhos brasileiros também produziam açúcares
mais grosseiros, e do melado f:eiam álcool, ou, segundo as diferentes
nomenclaturas regionais, cachaça ou geribita. Nos períodos de maior
dificuldade, os senhores de engenho brasileiros argumentavam que só
conseguiam pagar as despesas na produção de açúcar, dependendo da
venda da cacha ça para obter lucro. Algumas regiões, como o Rio de
Janeiro, acabaram se especializando na produção de geribita, usada no
3s6
o NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL
comércio escravagista africano, mas no século XVIII a produção de
açúcar branco predominava na colônia.
Finalmente, sob a dneção do caixeiro, o dízimo era subtraído, e
quando necessário se procedia a uma divisão entre o engenho e os la-
vradores de cana. O açúcar separado era então empacotado em grandes
caixas de madeira que chegavam a pesar no século XVII cerca de 200-
300 kg (1,4-20 arrobas). Cada caixa era então registrada, com a iden-
tificação do peso, da qualidade e da propriedade, para ser em seguida
transportadaem carroça de tração animal ou barco atê o porto principal.
Um engenho brasileiro precisava de uma força de trabalho numerosa,
em parte dotada de considerável experiência e habilidade. Em média,
os engenhos da Bahia e de Pernambuco tinham 60-70 escravos em sua
força de trabalho, mas também contavam com a mão de obra dos es-
cravos dos fazendeiros fornecedores de cana, de modo que o número
de trabalhadores por engenho podia de fato chegaÍ a ceÍca de 100 -120.
Cada engenho também precisava de provimentos adequados de matéria-
prima, cana-de- açtrcat, muitas cabeças de gado paÍa as carroças e as
rodas, grande quantidade de combustível, geralmente madeira, assim
como alimentos para a força de trabalho e toda uma série de materiais
e equipamentos.
Três elementos principais determinavam a natureza da economia
açucareira brasileira e seu sucesso, conferindo-lhe um caráter e uma
configuração específicos. Esses elementos, a estrutura de propriedade, o
abastecimento de mão de obra e o acesso ao crédito, estão relacionados
à faha de capital nas primeiras etapas da indústrra) o que contribuiu
païa padrões de organrzação e prâtica que viriam a persistir no Brasil
durante séculos.
O primeiro desses elementos encontra-se na estrutura de produção e
propriedade. Os engenhos de açúcar brasileiros eram de propriedade do
Estado, de diferentes instituições ou de indivíduos em carâter privado.
Nos primórdios da indústria, alguns engenhos chegaram a ser construí-
dos com financiamento rcalrpara estimular a colonrzaçãoe o crescimento
econômico. Em 1,587, ainda podia ser encontrado um engenho real na
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O BRASIL COLONIAL - VOL.2
Bahia, em Pirajá, perto da cidade, mas ele seria arrendado a um indivíduo
em carâter privado.33 Mais tarde no século XVI, contudo, a Coroa já se
eximia de qualquer participação direta, preferindo estimular a indústria
mediante a concessão de terras e isenções fiscais a investidores privados.
Alguns engenhos de açúcar pertenciam a instituições, sendo as mais
importantes as ordens religiosas, especialmente os iesuítas, os carmelitas
e os beneditinos. Os jesuítas, presentes no Brasil a partir de 1,549,foram
inicialmente apoiados por subsídios reais e heranças privadas.3a Apesar
de inicialmente relutantes em se engajar na agricultura de plantação,
especialmente com emprego de mão de obra escrava, tendo em vista a
possível contradição com seus votos de pobreza e catidade cristã, os
jesuítas vieram a constatar no início do século XVII que a agricultura
e a críação de gado podiam representar uma base econômica para suas
atividades missionárias e educativas. Na Bahia, começaram a desenvol-
ver pequenos engenhos na primeira década do século XVII, mas um
grande avanço ocorreu quando o Colégio Jesuíta da Bahia e o de Santo
Antão, em Lisboa, receberam como legado o Engenho Sergipe na Bahia
e o Engenho Santana em Ilhéus, ambos anteriormente pertencentes a
Mem de Sá, ex-governador do Brasil. Embora a propriedade desses bens
fosse objeto de longo litígio, opondo os dois colégios jesuítas, um ao
outro e também a outros reclamantes, esses engenhos, especialmente
o Engenho Sergipe, "Rainha do Recôncavo", representavam impor-
tanres arivos. Mais tarde, no século XVII, tanto o colégio dos jesuítas
de Olinda quanto o do Rio de Janeiro também entraram na posse de
propriedades açucareiras. 3s
Outras ordens religiosas também se envolveram na economia açu-
careira. Na Bahi a, f rancrscanos, carmelitas e beneditinos cultivaram
a cana-de-açúcar em diferentes momentos, chegando os beneditinos e
carmelitas a ter seus próprios engenhos.3ó Os beneditinos, estabelecidos
no Brasil apenas em 1581, tornaram-se proprietários de plantações de
cana no Recôncavo Baiano. Chegaram a construir um engenho, São
Bento das Lages, em algum momento anterior a 1650. Pelo meado do
século XVII, mais de 60% da renda dos beneditinos baianos derivava
o NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASIt COLONTAL
do açúcar. Em Pernambuco, os beneditinos de Olinda eram proprietá-
rios do Engenho Musurepe, que funcionou a partir da segunda década
do século XVII, enquanto os beneditinos do Rio de Janeiro dependiam
do Engenho Guaguaçu. Os engenhos eclesiásticos eram a exceção. A
vasta maioria dos engenhos de açúcar era de propriedade privada. As
sociedades não eram de todo desconhecidas, e alguns dos primeiros en-
genhos foram empreendimentos conjuntos nos quais alguns investidores
reuniram seus recursos, mas a propriedade individual eÍa a forma mais
comum. Com o tempo, a propriedade de mais de um engenho também
se tornou comum, situação gerada em certa medida pelos gargalos
tecnológicos provocados pela capacidade limitada dos engenhos e os
problemas de transporte da cana a longas distâncias. Assim, a tendên-
aa paÍa aumenta r a capacidade criando uma nova unidade tornou-se
comum, resultando na propriedade de mais de um engenho por parte de
indivíduos e famílias. Embora os engenhos de açúcar representassem o
alicerce econômico de certo número de famílias aristocráticas de plan-
tadores, que constituíram durante séculos a elite social, o mais comum
eram histórias de alta rotatividade e volatilidade da propriedade. Uma
das características distintivas da economia açucareira foi essa inseguran-
ça e rotatividade, indício das dificuldades da atividade plantadora. Os
indivíduos e famílias que encontrassem êxito tinham nas mãos as rédeas
do poder e do prestígio locais. Antes de 1650, os conselhos municipais
de Olinda, Salvador e Rio de Janeiro, além de prestigiosas irmandades
leigas, como a da Misericórdia, eram dominados pelos senhores de
engenho. Passaram a considerar-se uma aristocracia digna de respeito
e deferência, não obstante o fato de em sua maioria não terem origem
nobre, sendo muitos, na verdade, descendentes de cristãos-novos.37 Na
Bahia, por exemplo, representavam mais de 20% dos proprietários de
engenhos registrados entre 1,587 e 1592.
Os homens (e às vezes mulheres) que não tinham capital nem crédito
para construir um engenho voltavam-se para as plantações de cana-de-
açúcar. Desde o início, a indústria açucareira brasileira caracterizaÍa-se
pela existência desses lavradores de cana, que forneciam a matéria-prima
359
O BRASIL COLONIAL - VOL.2
aos engenhos. Até as instruções originais de governo ou regimento
recebidas pelo primeiro governador real, Thomé de Sousa, €ffi 1549,
reconheciam sua existência, procurando estabelecer regras para o seu
relacionamento com os senhores de engenho.3s
Tudo indica que a experiência portuguesa nas ilhas do Atlântico,
especialmente Madeira, fora particularmenteimportante no estabeleci-
mento da utilidade dos lavradores de cana. No Brasil, eles se tornaram
um aspecto regular e essencial da economia açucareira, e sua existência
teve profundas implicações na estrutura da economia e no funcionamen-
to da escravatura. Até 1650, os lavradores de cana cultivavam a maior
parte da cana-de-açúcar produzida no Brasil.3e Isto provavelmente indica
uma difusão do investimento e das características de risco da primitiva
indústria açucareira brasileira.
A explic ação da existência e da importância dos lavradores de cana
no Brasil é intrigante. Com ceÍteza a tradição dos pequenos produtores
estabelecidos na Madeira representou um precedente, assim como a anti-
ga prâtica portuguesa dos contratos rurais, ou arroteias, mas o principal
no Brasil pode ter sido a relativa escassez de capital para a construção
de engenhos nas etapas iniciais da colon rzação e o desejo da Coroa de
estimular a colon tzação, oferecendo oportunidades a possíveis colonos.
De certa maneira, os lavradores de cana representam uma prova da
escassez de capital na etapa de form ação da colônia. A preocupação da
Coroa com sua existência e a exigência de que aqueles que recebessem
concessões de terras paÍa construir os primeiros engenhos gârantissem
a proreção e os benefícios dos lavradores de cana deles dependentes
representavam um reconhecimento de sua importância para o proieto
de colontzaçãoe o estabelecimento da indústria açucareira.Jâ em L548,
registrava-se na correspondência entre o gerente do Engenho São Jorge
em São Vicente e o proprietário ausente a presença de lavradores de cana,
mas ele também enumerava argumentos explicando por que a moagem
de sua cana era onerosa e talvez desnecessária.ao Esta tensão persistiu na
economia açucareira brasileira durante o século XIX, mas até 1650 os
lavradores de cana eram a caÍacterística mais expressiva dessa economia.
o NoRDESTE AçUCARETRO E O BRAStL COLONTAL
Embora a designação lavrador fosse empregada em relação a qualquer
tipo de fazendeiro no Brasil, os lavradores de cana eram na verdade uma
ehte agrâria, em posição social logo abaixo dos senhores de engenho e
não raro compartilhando muitas de suas origens sociais, características
e aspirações; mas isso também decorna danatvreza de sua dependência,
muitas vezes em conflito com os proprietários de engenhos. A natúreza
dessa relação e seu status dependiam da posse da terra e do acesso a
ela. Os lavradores de cana que tinham terras em regime de sesmaria ou
aquisição eram na verdade pequenos proprietários e se encontravam
em posição privilegiada para barganhar com os donos de engenhos.
Os que dispunham dessa chamada "cana livre" geralmente dividiam o
açúcar produzido com sua cana, metade para o engenho e metade para
o lavrador, e podiam negociar outras vantagens, como arrendamento
de gado, ajuda no transporte da cana ou preferência na programação de
horários do engenho. A maioria dos lavradores de cana não dispunha
dessa vantagem. Eles produziam "cana cativa" e detinham um partido
de cana para o qual arrendavam terras, devendo então levar a produção
ao engenho, pagando 1/3 ou Ll4 de sua metade do açúcar produzido
a título de aluguel da terra. Esses acertos e desvantagens contribuíram
paÍa a instabilidade dos lavradores de cana como classe. Num período
de 18 safras (1622-50) no Engenho Sergipe, na Bahia,1,28 indivíduos
são registrados como lavradores, mas apenas 41% (53) aparecem em
mais de uma safra, e somente 19o/o (24) em mais de cinco.al
A relação entre senhores de engenho e lavradores de cana era complexa
por causa da dependência recíproca e também do conflito inerente a esse
relacionamento. Um engenho podia dispor de atê trinta lavradores para
fornecimento de cana numa só colheita, mas a média de lavradores de
cana por engenho no Nordeste brasileiro era provavelmente de três ou
quatro. Em Pernambuco, eml639, havia 2i}lavradores fornecendo cana
a cerca de 166 engenhos. Esta situação proporcionava a muitas pessoas
uma entrada relativamente fácil na economia açucareira, muitas vezes
na expectativade mobilidade social. Os custos iniciais de operação para
um lavrador de cana representavam aproximadamente um terço dos
-
O BRASIL COLONIAL - VOL. 2
custos de um proprietário de engenho. Do ponto de vista dos senhores
de engenho, a existência dos lavradores de cana era uma maneira de
partilhar os riscos e encargos financeiros da produção de açúcar. Na
Bahia, cerca de ll3 dos escravos empregados na produção de açúcar era
de propriedade dos lavradores de cana, e não dos engenhos. os senhores
queriam e precisavam de lavradores, mas temiam que ao adquirir suas
próprias terras ficassem em condições de negociar melhores acertos para
a moagem de sua cana ou acabassem construindo seus próprios engenhos,
gerando concorrência pela cana e a madeira. Uma estratégia consistia
então em vender terras aos lavradores, mas com restrições que forçassem
o comprador a fornecer sua cana ao engenho do vendedor em caráter
perpétuo ou a pagar outras penalidades se a canafosse vendida a outros
compradores. Os lavradores reagiram com suas próprias estratégias, não
raro vendendo "cana cativa" a outros engenhos, especialmente nos anos
de baixa produção, quando a demanda era grande e muitos não tinham
como cumprir com suas obrigações.
Esta situação acabou gerando uma crise na Bahia na décad a de 1660,
quando Bernardino vieira Ravasco, irmão do famoso jesuíta padre
Antônio Vieira, senhor de engenho e secretário de Estado do Brasil,
liderou um movimento no conselho municipal de Salvador para limitar
a construção de novos engenhos. A proposta encontrou séria oposição
de muitos senhores de engenho, argumentando que se os lavradores não
pudessem ter a expectativa de se tornar senhores de engenho, não mais
se disporiam a servir como lavradores de cana. A coroa acabou pro-
mulgando na Bahia, em 1681 e"!,6T4,leis que limitavam a consrrução de
engenhos a 1.500 braças (cerca de 3 quilômetros) de outros já existenres.
o efeito disso foi estimular aabertura de novas áreas açucareiras mais
distantes do litoral. Leis semelhantes foram promulgadas em outras
capitanias. Embora aos senhores de engenho não agradasse a possível
concorrência de novos engenhos e a relativa vantagem dos lavradores de
cana quando muitos senhores disputavam seu produto, eles também se
davam conta de que, sem uma expectativa de mobilidade social, poucos
haveriam de aceitar os encargos do plantio de cana. os lavradores de
362
o NoRDESTE AçUCARETRO E O BRASTL COLONTAL
canaeram um elemento permanente da economia açucareira brasileira e
também, em seus primórdios, uma medida de sua condição econômica.
Havia muito capital e muita riqueza entre os lavradores de cana,
alguns ligados por laços de sangue ou matrimônio aos senhores de
engenho. Havia também um bom número de mulheres, não raro viú-
vas, participando da economia açucareira. Digno de nota até o fim
do século XVIII, contudo, era o fato de os lavradores de cana serem
quase invariavelmente brancos. Os negros e mulatos livres simples-
mente não dispunham de créditos ou capital para assumir os encargos
desse tipo de agricultura. Sua ausência chama a atenção para o status
social relativamente alto dos lavradores de cana como plantadores
em potencial. Um status que poucos deles de fato alcançavam, mas a
possibilidade sempre representava um atrativo. Esta situação perdurou
atê o século XVIII.
Globalmente, os lavradores de cana e senhores de engenho estavam
unidos por seus interesses e pela dependência ao mercado internacio-
nal. Juntos, constituíam os "nervos do corpo político", nas palavras
de's7enceslao Pereira da Silva em 1738. Antonil advertiu os senhores a
tratarem seus lavradores bem, e em 1,623 um administrador do Engenho
Sergipe informou que precisava tratar os lavradores com cuidado, pois
"nesta terÍatudo é respeito e cortesia".a2 Mas muitos senhores abusavam
de seu poder. Em última análise, os dois lados precisavam um do outro.
Os lavradores de cana eramsob muitos aspectos protoplantadores, pro-
prietários de gado, escravos e às vezes terras. Não raro pertenciam aos
mesmos estratos sociais que os grandes plantadores, compartilhando
com eles muitas atitudes. Cooperavam em conflitos com os comerciantes
e na busca de uma moratória das dívidas, concessão que foi alcançada
na Bahia em'1,663, com uma lei proibindo o arresto de um engenho por
dívidas menores que seu valor total, estendida aos lavradores de cana
baianos em 1720 e a outras capitanias posteriormente.
Essas aparentes "vitórias" dos devedores podem ter contribuído
para as dificuldades que o Brasil viria a enfrentar ao tentar competir
com Barbados e, mais tarde, com a Jamarca. As unidades integradas de
O BRASIL COLONIAL - VOL. 2
produção, com numerosa mão de obra escrava sob controle unit âno,
que passaram a caracteilzaÍ a produção caribenha eram de realização
difíl na realidade do Brasil, em vista da tradição dos lavradores e da
relutância dos credores em fornecer amplos créditos para a mão de
obra escrava expandida e necessária para as plantações unificadas. A
sobrevivência dos lavradores de cana como classe social era um sintoma
da incapacidade do Brasil de transformar sua economia açucareira em
conformidade com os novos modelos do século xvIII.43
A segun da característica da indústria açuc arcira brasileira em seus
primórdios era a dependência relativamente longa de uma força de tra-
balho indígena e a gradual passagem para os africanos. Nos primeiros
setenta anos aproximadamente, a indústria dependeu da mão de obra
indígena. Também isso parece indicar uma falta de capital ou crédito
paÍa financiar a importação de trabalhadores africanos como escravos.
Os escravos africanos e afro-brasileiros viriam a predominar na econo-
mia açucareira, mas esse processo se deu num período prolongado, de
mais de meio século.aa
A transição dos índios para os africanos como trabalhadores foi
um elemento-chave da expansão da economia açucareira brasileira no
fim do século XVI. Com a intensificação das exigências da agricultura
açucareira em meados da década de '!,s60, o trabalho indígen a jâ não
podia ser obtido por escambo. Além disso, as tentativas dos porrugueses
de se apropriar de trabalhadores nativos pelo resgate de prisioneiros de
guerra' para em seguida mantê-los temporariamente como escravos,
enfrentou crescente oposição dos jesuítas, alegando que os indígenas
das aldeias jesuíticas podiam fornecer mão de obra paraos engenhos de
maneira mais efrcaz e com menos abusos. Em 1600, eles afirmavam ter
50 mil indígenas sob seu controle, à disposição tanto da Coroa quanro
dos colonos. Enquanto isso, a Coroa legislava cad,a vez mais contra a
escravização de indígenas, com leis promulgadas em 1570, 159s e 1,609.
Nesse período, contudo, os indígenas, fossem escravizados ou livres,
representavam a principal força de trabalho na economia açucareira,
assim permanecendo até as primeiras décadas do século XVII.
364
o NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL
A demog rafra também foi um fator decisivo na rransição. A popu-
lação indígena foi dizimada por doenças, primeiro a varíola, depois o
sarampo, entre 1559 e 1563. Milhares morreram, aldeias inteiras foram
abandonadas, muitos fugiram para o interior, disseminando a doença.
Os portugueses reagiram mandando novas entradas pata o interiorrpaÍa
trazer mais trabalhadores, e transferindo grupos de uma capitania para ou-
tra, mas essas políticas eram onerosas e a suscetibilidade dos indígenas
às doenç as fazía com que os plantadores de cana relutassem em investir
na aquisição de mais índios ou no seu treinamento em aspectos técnicos
da produção do açúcar.
A transição de uma força de trabalho de indígenas para outra predo-
minantemente de africanos ocorreu lentamente ao longo de um período
de cerca de meio século. Jâ na década de 1540 eram buscados escravos
negros, mas eles ainda eram muito poucos na décad a de 1,560. Muitos
dos primeiros africanos trazidos para o Brasil eram provavelmente ofi-
ciais, vale dizer, trabalhadores qualificados, e alguns indubitavelmente
já tinham trabalhado em engenhos na ilha da Madeira ou em São Tomé.
No Engenho São Jorge, havia em 1548 apenas sete ou oito africanos,
servindo no entanto como capatazes ou encarregados da purificação ou
das caldeiras. Em 1580, a força de trabalho açucareira em Pernambuco
ainda era aproximadamenteZl3 indígena, mas a transição se processava.
Era mais oneroso obter trabalhadores africanos, mas, considerando-se o
crescente custo da aquisição de indígenas, sua suscetibilidade às doenças,
sua disposição de fugir e a percepção dos portugueses de que os africanos
eram trabalhadores mais fortes e capacitados, os africanos pass aram a
ser cada vez mais procurados. Em 1,572, no Engenho Sergipe, na Bahia,
um trabalhador africano valia 25$000, enquanto um indígena com
capacitação semelhante valia em média apenas 9$000. Os registros do
Engenho Sergipe permitem-nos acompanhar essa transição. Em 1,574,
apenas 7% de sua força de trabalho eram de africanos, mas em 1591 o
percentu al era de mais de 37%, e em 1,638 ela 1â era totalmente africana
ou afro-brasileira.a5 Era mais oneroso obter trabalhadores africanos,
mas a longo prazo eles se revelavam um investimento mais lucrativo.
O BRASIt COLONIAL - VOL.2
A transição de uma força de trabalho de americanos nativos para
outra composta basicamente de africanos e seus descendentes tinha como
paralelo uma segunda transição, de trabalhadores brancos qualificados
em sua maioria livres pala especialistas e artesãos do fabrico de açú-
car que eram escravos ou negros livres.a6 Nos primórdios da indústria
açucareira brasil etra) não raro se viam até vinte brancos trabalhando
com um salário anual ou mediante prestação de serviços. Eram soli-
citados capatazes, supervisores, encarregados de caldeiras, ferreiros,
carpinteiros, construtores de barcos, pedreiros. Os trabalhadores eram
remunerados de diversas maneiras, em função não só da capacitação
mas também da etnia; os brancos sempre eram mais bem remunerados
que os negros ou mulatos, sendo os índios os que recebiam menos pelas
mesmas tarefas. Com o passar do tempo, verificou-se uma generalizada
tendênci a para substituir os artesãos brancos por escravos ou antigos
escravos alforriados, para os quais essas ocupações representavam uma
forma de acesso à mobilidade social. A possibilidade de acesso a essas
posições servia de incentivo aos escravos do engenho. Os plantadores
davam preferên cia, para ocupar essas posições, aos mulatos e negros
nascidos no país (crioulos). Do ponto de vista dos plantadores, o inte-
resse era substituir trabalhadores brancos livres por escravos ou antigos
escravosr eue podiam receber uma remuneração menor que os brancos.aT
Essa mudança para uma mão de obra qualificada afro-brasileira resultou
da intensificação do comércio escravagista no Atlântico e das alterações
demográficas por ela geradas, dando aos plantadores a oportunidade de
reduzir suas despesas operacionais, passando a recorrer a uma crescente
população brasileira de origem mista.
Finalmente, o acesso ao capital e ao crédito e o padrão de lucratividade
constituíram fatores-chave parc o sucesso da economia açucareira. Em
1'61'8, o cristão-novo Ambrosio Fernandes Brandão afirmava que muitos
portugueses que tinham feito fortuna na Índia retornavam a Portugal
para gastâ-la e levar uma boa vida, mas raramente alguém que tivesse
ficado rico no Brasil voltava ao seu país. O motivo era o fato de a riqueza
no Brasil expressar-se em terras, não sendo portanto transferível. Apesar
366
c NoRDESTE AçUCAREtRO E O BRASTL COLONTAL
dos eventuais comentários sobre o estilo de vida opulento dos grandes
plantadores, muitos deles levavam uma vida simples, aplicando suas
fortunas na construção de suas propriedades. Os plantadores estavam
sempre se queixando das dívidas e dos gastos, mas parece evidente que
uma rrqueza considerável foi gerada, pelo menos nos setenta primeiros
anos do crescimento da indústria.
O cálculo dessa ríqueza, contudo,é difícil. Os plantadores simples-
mente calculavam a renda anual em cotejo com as despesas, para saber
como se saíam. O que muitas vezes lhes dava uma falsa impressão de
sua posição econômica. Além disso, o Brasil e sua metrópole, portugal,
sofriam de crônica escassez de moeda em circulação, especialmente no
período anterior a 1580. Foi o que o gerente do Engenho São Jorge deixou
claro em 1548: "Pois aqui não existe circul ação de dinheiro e se deve
forçosamente ceder as coisas a crédito por um ano e esperar dois anos
para ser reembolsado. Dessa forma, todo proprietário de um engenho
aqui paga aos trabalhadores em bens (...).' Esta situação de certa forma
se alterou entre 1580 e 1,620, quando os portugueses do Brasil tiveram
acesso à prata peruana por contrabando, através de Buenos Aires, num
volume que a Coroa estimou em 1605 chegar a 500 mil cruzados em
moeda e barras por ano.a8 Mas essa porta se fecharia depois de 1,621,,
restabelecendo-se as condições anteriores de escassez.ae
Nos primeiros anos da indústria, muitos dos moinhos foram construí-
dos com créditos fornecidos por comerciantes de açúcar. Nesse período,
as terras muitas vezes eram adquiridas por concessão e a mão de obra,
pela captura de indígenas, o que mantinha originalmente baixos os cus-
tos fixos de capital, facilitando a formação do capital. Ainda assim, era
necessário construir prédios e maquinaria, caldeiras e formas de açúcar
precisavam ser compradas ou fabricadas, assim como gado, barcos e
carroças, preparando-se ou se arrendando terras para o plantio da cana.
Uma das fontes de capital para a indústria açucareira parecem ter sido
as funções governamentais. Os estudos recentes de João Fragoso sobre
o desenvolvimento da economi a açvcareira no Rio de Janeiro revelam
que a maioria das famílias de plantadores estabelecidas na região antes
367
O BRASIL COLONIAL - VOL.2
de 1620 haviam desempenhado funções administrativas aparentemente
usadas pala abrir portas no acúmulo de Írqveza ou na obtenção de ou-
tras vantagens que então possibilitaram a chegada à posição de senhor
de engenho.s0 Sucessivas gerações eram proprietárias de engenhos de
açúcar e habitualmente ocupavam cargos no conselho municipal do
Rio de Janeiro, dando continuidade à união entre a função pública e a
fortuna. As funções reais, os contratos fiscais e as funções municipais
geravam o capital que viria a ser investido na indústria açuc areira. Pa-
drões semelhantes parecem ter prevalecido na Bahia e em Pernambuco.
Os que desejavam entrar no negócio da produção de açúcar geralmen-
te constatavam que havia escassez de espécie, de modo que o crédito era
essencial para dar início às operações, fosse no caso dos plantadores ou
dos fazendeiros - dependendo estes às vezes daqueles 
paÍa ter acesso
ao crédito. Se tomarmos como referência padrões desenvolvidos poste-
riormente, muitas plantações foram montadas com um desembolso de
cerca de um terço do capital necessário, sendo o resto fornecido a crédito.
Isso permitia que pessoas de recursos relativamente modestos aspirassem
à condição de senhor de engenho, significando que seus lucros eram
consideravelmente mais altos que os que poderiam ser depreendidos da
proporção entre capital e renda anual.
Os créditos eram obtidos em diferentes fontes, sendo os conventos,
irmandades caritativas (misericórdias) e outras instituições religiosas as
principais fontes de dinheiro emprestado em condições cômodas de cerca
de 6,25"/o a tomadores de baixo risco ou grande prestígio. Esses emprés-
timos eram muitas vezes de muito longo prazo. Os tomadores menos
privilegiados contratavamempréstimos a taxas muito mais elevadas junto
a comerciantes que davam um jeito de contornar as limitações impostas
à usura. Muitos senhores montavam engenho contando basicamente
com créditos, o que no entanto levava com frequência a conflitos com
comerciantes por motivo de atraso. A falta de registros notariais nesse
período constitui um sério impedimento no sentido de determinar a
natureza dos acertos creditícios. Sabemos que os registros notariais de
Amsterdã revelam muitas transações envolvendo cristãos-novos ligados
o NoRDESTE AçUCARËtRO E O BRASTL COLONTAL
por seus investimentos ao comércio brasileiro e à economia imperial
portuguesa, mas praticamente não dispomos de provas de investimen-
tos diretos na produção de açúcar.sl Há indicações de que o crédito era
fornecido quase sempre por comerciantes locais e correspondentes na
colônia, e não por fontes europeias.
Durante o rápido crescimento da indústria depois de 1570, alguns
observadores falavam da riqueza e opulência dos plantadores de açúcar,
de seu gosto pela hospitalidade luxuosa, a vida em alto esrilo e os símbo-
los de um estilo de vida nobre. Na muito citada expressão de Antonil, ser
um senhor de engenho no Brasil equivalia a ter um título de nobre za em
Portugal. Mas prestígio não era o mesmo que riqu eza. Apesar do gosto
pelo luxo, os retornos de capital dos plantadores não parecem ter sido
tão extraordinariamente altos quanto em certas estimativas modernas,
superestimando a produção e subestimando os custos.s2 A mão de obra
era um elemento essencial dessas despesas, tanto como custo fixo, na
forma de compras, substituições, aliment ação e cuidados com os escra-
vos, chegando talvez a ceÍca de 25% dos gastos anuais, como também
na forma de salários pagos a especialistas, artesãos e eventualmente
trabalhadores do açúcar, ou o equivalente a 2A30% dos custos anuais.
Como vimos, era esta uma âtea onde os plantadores de açúcar procu-
ravam cortar gastos. No início do século XVII, era possível montar um
engenho ao custo de 8-10 mil cruzados (3:600$). pelo fim do século, o
valor médio de um engenho baiano era de aproximadamente 15 mil, sem
contar os escravos, e talvez de 18-20 mil cruzados contando com eles. O
capital era distribuído enrre vários bens (prédios, equipamenros, gado
etc.), e a terca constituía invariavelmente o mais valioso, costumando
representar metade do valor total do engenho. A força de trabalho es-
cravo geralmente representava algo em torno de 20% do capital. Nesse
período, um lucro de 2:000$ a 3:000$ num engenho valendo 20:000$,
ou um lucro de 10 a 1,5o/o) era considerado muito bom, nem sempre
sendo alcançado.
Ao longo do século XVII, um retorno de capital oscilando entre 5
e 1'0"/o na indústria como um todo provavelmente era comum, embora
O BRASIL COLONIAL - VOL.2
fossem possíveis taxas mais elevadas em períodos de expansão. Os
lavradores de cana enfrentavam condições ainda mais difíceis. Mas o
fluxo de caixa talvez não seja a melhor maneira de avaliar o negócio da
produção de açúcar. Boa parte dos ganhos iniciais da indústria podem
ter assumido a forma de criação de capital, à medida que o valor dos
bens se elevava mais rapidamente que a renda, o que parece dar a en-
tender um alto índice de poupança. Devemos lembrar que muitos dos
primeiros engenhos no século anterior adquiriam terras pelo regime de
sesmarias e trabalhadores indígenas por simples captura, a um custo
monetário relativamente baixo, de tal maneira que o valor do capital
crescia rapidamente. A aragem da terca, a construção de capelas, casas
e prédios, de aquedutos e moinhos aumentavam o valor do capital,
representando a construção de uma riqueza pessoal. Isto por sua vez
gerava bens que facultavam uma expansão do crédito. Nesse ponto, a
importância dos vínculos familiares e pessoais em geral, tão comum no
comércio do início da era moderna, também desempenhou um papel,
explicando a participação ativa de cristãos-novos em todos os aspectos
da indústÍra) de formas que associavam os comerciantes a plantadores,
gerentes e artesãos.
Parc a indústria como um todo, o período entre 1560 e 1,620 pro-
vavelmente assistiu aos maiores ganhos de riqueza) com considerável
arrefecimento posterior, à medida que os preços do açúcar declinavam
e, em consequência, aumentavam os custos. A geração fundadora de
plantadores adquirira boa parte de suas terras por concessão e a mão
de obrapor captura ou ainda por contratação, com os jesuítas, de
trabalhadores não remunerados ou modestamente remunerados. Seus
gastos haviam sido reduzidos por esse processo, e seus ganhos, poten-
ciahzados. Por volta de "1,620, as melhores terras, próximas do litoral,
haviam sido ocupadas, de modo que a expansão só podia dar-se em terras
mais afastadas, onde seriam mais elevados os custos de transporte. As
sesmarias tornaram-se menos comuns e cada vez mais as novas terras
eram adquiridas mediante compra. As medidas da Coroa para eliminar a
escravidão indígena e a oposição jesuíta por ela enfrentada dificultaram
o NoRDESTE AçUCAREIRO E O BRA'SlL COLONIAL
e tornaram mais dispendiosa a aquisição de mão de obra indígena, e
só a introdução do engenho de três rolos permitiu a continuidade do
processo de expansão, emb ora iâ agora a um ritmo reduziCo' Com a
crise de 1,623 e a subsequente queda dos preços do açitcar no mercado
atlântico, seguidas da invasão holandesa de 1630, com toda a pertur-
bação que causou, inclusive os índices mais altos de resistência e fuga
entre oS escravos, a indústria açucareira brasileira entrou numa nova
etapade estabilidade e expansão lenta, na qual as exigências da guerra
e da política pass aÍama desempenhar um papel mais importante que as
vantagens e benefícios do clima e do regime de chuvas' No momento em
que oS novos concorrentes caribenhos em Barbados, Suriname, Jamaica
e Martinica desafiavam a posição predominanre do Brasil, a indústria do
açúcarj á enfren tav aconsideráveis difi culdade s causadas por sua organi-
zação social interna e as tensões que havia gerado. O açúcar continuou
sendo a mercad ona agrícola mais valiosa do Brasil até meados do século
xIX, e o plantio do açúcar, um negócio difícil e às vezes lucrativo ao
longo do século xvIII. Mas o apogeu do fim do século xvl e do início
do século XVII nunca voltaria da mesma maneira, embora a esperança
e a lembrança permanecessem no espírito dos que aspiravam ao título
de senhor de engenho, assim como à riqueza, ao poder e à autoridade
que passaÍa a representar.
O açúcar projetou uma forte sombra sobre a história inicial da
colônia. Grandes cidades foram fundadas como portos e centros ad-
ministrativos pata o comércio açucareiro. As cidades secundárias
desenvolviam-se com lentidão, pois os engenhos muitas vezes usurpavam
suas funções econômicas e religiosas. As colheitas de subsistência, a
criação de gado, a guerra contra povos nativos e sua captura e o des-
maramento da Floresta Atlântica foram em certa medida resultado das
necessidades da economia açuc areita no Nordeste' O mesmo ocorreu
à import ação de cerca de meio milhão de africanos no século XVII' A
sociedade brasileira organizou-se hierarquicamente pela cor da pele'
ocupando os brancos o topo da hierarquia' os mulatos' mestiços e
outros pardos, o meio, e os africanos escravrzados, a base' Mas havia
371
O BRASIL COLONIAL - VOL.2
outras divisões e hierarquias, em matéria de situação jurídica, etnia,
lugar de nascimento, origens religiosas e ocupação. Os engenhos não
criaram essas hierarquias, mas suas estruturas internas, com proprie-
tários de origem europeia, trabalhadores coagidos, primeiro indígenas
e depois africanos, e uma série de artesãos e outras posições ocupadas
por brancos pobres, ex-escravos libertos e povos de origem mista, ten-
diam a reforçar e expor as estruturas constituintes da sociedade. Neste
sentido, os engenhos foram ao mesmo tempo geradores e espelhos da
sociedade brasileira durante a grande época açucareira.
Notas
1. Cuthbert Pudsey,2000. v. 3, pp. 25. A impressão de Pudsey não era singular. Frei
Vicente do Salvador, o primeiro historiador do Brasil, observou que no Brasil
as coisas eram invertidas, pois a colônia toda não formava uma república, antes
parecendo que cada casa era uma república. Ver a discussão em: Fernando A.
Novais, 1997-98,I, P. 13-40.
2. Hermann Kelenb enz,1'968, p- 295; Eddy Stols, 1968' p. 405-41'9'
3. José Antônio Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque (eds.), 1967,
p.71.
4. Christopher Ebert (no prelo).
5. Domingos Abreu e Brito, 1..931, p. 58-59.
6. "Província do Brasil", ANTT, Convento da Graça de Lisboa, tomo vi. Este docu-
mento é analisado em Artur Teodoro de Matos. "O império colonial português
no início do século XVII', Arquipélago, v.I, no 1 (1'995)' p. 1'81'-223'
7. Memorando de Joseph Israel da Costa, Algemein Rijksarchief, Loketkas 6, Staten
Generaal West Indische Compagnie.
8. AHU, Bahia, papéis avulsos, caixa 1, L" ser. não cat.
9. A respeito da questão ainda não esclarecida da invenção do engenho vertical de
três rolos, ver John Damiels e Christian Daniels, 1988, p. 493-535.
10. G. B. Hagelb erg, 1.996, P. 9-25.
11. ANTT, Cartório dos Jesuítas, maço 1.3, doc. 4. Na colheita de t61'1-1'2, no
Engenho Sergipe, a seguinte anotação foi feita no livro de contabilidade: "a um
artesão que ajudou Sebastião Pereira a f.azer uma gangorra durante 
'l'2 dias a
320rs". (ANTT, Cartório dos Jesuítas' maço 14, doc.4).
12. Suely Robles Reis de Queiroz, 1'967.
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