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Poder constituinte originário

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A noção de uma constituição escrita – assim leciona Javier Pérez Royo – está unida à noção de um
poder constituinte, visto que tanto de um ponto de vista lógico, quanto de uma perspectiva histórica, o
poder constituinte é uma necessidade para a constituição escrita.178 Com efeito, a história constitucional
moderna, pelo menos desde o surgimento das primeiras constituições escritas, segue comprometida –
embora uma série de mudanças verificadas ao longo do tempo – com a distinção traçada em primeira
linha pelo Abade Emmanuel Sieyès (um dos intelectuais mais destacados na Revolução Francesa179 e
que chegou a ser chamado de “descobridor científico” da noção de poder constituinte),180 entre as
noções de um poder constituinte (o poder de elaborar uma nova constituição) e os assim chamados
poderes constituídos, no sentido de instituídos, regulados e limitados, em maior ou menor medida, pelo
primeiro.181 Assim sendo, diversamente do poder constituinte, o poder de reforma (e/ou revisão)
constitucional, compreendido como poder de alterar o texto da constituição e que será examinado mais
adiante, é, por definição, um poder constituído, integrando a noção daquilo que muitos designam de um
poder constituinte derivado. O habitualmente assim chamado poder constituinte derivado, além do poder
de reforma da constituição, abrange o assim chamado poder constituinte decorrente (ou complementar,
segundo alguns), que consiste no poder constituinte dos Estados-membros de uma Federação, igualmente
instituído e regulado (em maior ou menor medida) pelo poder constituinte originário.182 As distinções
entre o poder constituinte (originário) e os poderes constituídos (ou poder constituinte derivado, como
ainda preferem alguns) serão esclarecidas ao longo do presente capítulo, a começar pela análise do
poder constituinte, compreendido como o poder de determinada sociedade (comunidade política)
elaborar sua constituição.
Como ponto de partida, convém averbar, na esteira de Paulo Bonavides, que não se deve confundir o
poder constituinte propriamente dito com a sua teorização, já que, como fenômeno social e político (ou
seja, no sentido material, em sintonia com a noção de constituição em sentido material, portanto, no
sentido de uma constituição histórica), o poder constituinte sempre existiu em todas as sociedades
politicamente organizadas, mas a sua formulação teórica e vinculação com a noção moderna de uma
constituição escrita ou constituição jurídica é obra do pensamento iluminista do final do século XVIII,
especialmente do já lembrado Abade Sieyès.183
A constituição, ao contrário do que ocorre com as normas infraconstitucionais, não extrai o seu
fundamento de validade de uma ordem jurídica (formal) superior, mas se estabelece e alcança autoridade
jurídica superior (em relação às demais esferas normativas internas do Estado) em função da “vontade”
das forças determinantes e representativas da sociedade na qual surge a constituição.184 É neste sentido
que o poder constituinte acaba assumindo a feição de uma categoria pré-constitucional, capaz de, por
força de seu poder e de sua autoridade, elaborar e fazer valer uma nova constituição.185 Por isso,
com razão Ernst-Wolfgang Böckenförde, ao afirmar que a pergunta sobre o conteúdo e significado da
noção de poder constituinte abarca o questionamento sobre a origem e o fundamento de validade da
própria constituição.186
O processo constituinte (de fundação de uma nova ordem constitucional) é, portanto, sempre – e de
certa forma – um novo começo, visto que não se encontra na dependência, pelo menos não no sentido
jurídico-formal, no plano de uma hierarquia normativa, das regras constitucionais anteriores, ou mesmo
de outra fonte normativa superior e externa, razão pela qual à expressão poder constituinte se costuma
agregar o qualificativo originário.187 Com isso não se está a dizer que o poder constituinte não possa
recepcionar (aproveitar no todo ou em parte) normas constitucionais anteriores ou mesmo outras normas
jurídicas, mas, sim, que não está obrigado a isso, e que, mesmo que assim o faça, em todo caso se trata de
uma nova ordem constitucional, visto que tais normas, mediante sua recepção, ganham um novo
fundamento de validade e de legitimidade. Valendo-nos das palavras de Manoel Gonçalves Ferreira
Filho, o fato de a constituição (como resultado da atuação do poder constituinte) ser o ponto de partida
de uma nova ordem jurídica “significa não apenas que o direito positivo se cria com base e segundo a
constituição, como também – e o que é mais importante, e nem sempre é bem percebido – que, a partir de
uma nova constituição, o direito positivo anterior, que não conflita com essa constituição, passa a valer
por um fundamento novo, que é a nova constituição”.188
5.2.2 A natureza do poder constituinte
Nesse contexto, quando se indaga sobre a natureza do poder constituinte (originário), prevalece a tese
de que não se trata propriamente de um poder jurídico, mas sim, especialmente considerando a relação
entre soberania e poder constituinte, de um poder político, portanto, pré-jurídico e mesmo
extrajurídico.189 O poder constituinte pode ser definido como uma potência, no sentido de uma força em
virtude da qual determinada sociedade política se dá uma nova constituição e, com isso, (re)cria e/ou
modifica a estrutura jurídica e política de um Estado.190 Como já lecionava Carl Schmitt, o poder
constituinte é a vontade política cujo poder ou autoridade é capaz de tomar a decisão concreta sobre o
tipo e a forma da própria existência política, ou seja, de determinar, na sua integralidade, a existência da
unidade política.191 Assim – na sua condição de potência, pertencente ao mundo do ser e não do dever-
ser –, o poder constituinte atua de modo desatrelado de processos jurídicos anteriores, assumindo,
portanto, a função de criador da própria ordem jurídica estatal, mas situando-se fora desta mesma ordem
jurídica.192 Afinado com tal linha de entendimento, Nelson Saldanha define o poder constituinte como
“um poder-para-ação”, uma “potência constituinte”, no sentido de um “poder-para-constituição”.193
Nessa perspectiva, como bem averba Ernst-Wolfgang Böckenförde, do ponto de vista da teoria e da
dogmática constitucional, o poder constituinte não pode ser reduzido – como pretendem alguns – à noção
de uma norma hipotética fundamental (como no caso da teorização de Hans Kelsen) ou mesmo
reconduzido a um fundamento de direito natural, já que o poder constituinte há de ser compreendido (pelo
menos também!) como uma grandeza política real, que fundamenta a força normativa (jurídica) da
constituição, razão pela qual o poder constituinte não pode existir no interior ou mesmo com base numa
constituição, como se fosse um órgão criado pela constituição, mas pré-existe, cria e limita a própria
constituição e os poderes constituídos.194
Em sentido (em parte) diverso, José Joaquim Gomes Canotilho sustenta que, embora o poder
constituinte não possa ser efetivamente concebido como um poder juridicamente regulado, ele não deixa
de ser política e juridicamente relevante, especialmente pelo fato de que “o poder constituinte convoca
irrecusavelmente a ‘força bruta’ que constitui uma ordem jurídica para o terreno problemático da
legitimação e legitimidade” (grifos do autor).195 A dimensão jurídica do poder constituinte, portanto,
guarda relação com o fato de que é o poder constituinte – como expressão do princípio democrático (se e
quando for o caso!) – que assegura a legitimidade da constituição, consistindo numa espécie de
autorização jurídica para a elaboração de uma constituição, pelo menos de acordo com a tese esgrimida
por Udo Steiner.196
A noção de que o poder constituinte é simultaneamente um poder político e jurídico acaba, contudo,
assumindo um viés reducionista, especialmente por condicionar (ou, pelo menos, vincular fortemente) a
dimensão jurídica ao princípio democrático, quando, embora seja possível questionara legitimação e a
legitimidade de determinada ordem constitucional em função de sua origem (na perspectiva de quem
elaborou a constituição e de como foi elaborado o texto constitucional), seja mais difícil recusar a tal
ordem a qualidade de constitucional, visto que constitutiva e vinculativa de um novo Estado e de uma
nova (ainda que eivada de um déficit de legitimidade democrática) ordem jurídico-positiva. É (também)
por esta razão que aqui se enfatiza – neste ponto filiando-nos à posição ao que tudo indica prevalente –
que “o poder constituinte, como manifestação da soberania, é um poder histórico, um poder de fato, que,
embora tenha uma relevância (repercussão jurídica,) não pode ser definido como sendo um poder
jurídico”.197
5.2.3 Distinção entre poder constituinte formal e poder constituinte material
À vista das considerações precedentes e no sentido de assegurar uma melhor compreensão da noção de
poder constituinte, dada a sua complexidade, acompanha-se a distinção que costuma ser traçada entre um
poder constituinte material e um poder constituinte formal, distinção que guarda relação com a
diferenciação entre as noções de constituição em sentido material e em sentido formal, já abordada.
Nesse sentido, colaciona-se a lição de Jorge Miranda, para quem “o poder constituinte material
corresponde a um poder de autoconformação do Estado segundo determinada ideia de direito, ao passo
que o poder constituinte formal corresponde a um poder de edição de normas com forma e força jurídica
próprias das normas constitucionais, notadamente a sua supremacia normativa no âmbito interno das
fronteiras estatais”.198
Ainda segundo Jorge Miranda, trata-se de dois momentos complementares e que guardam íntima
relação, embora o poder constituinte material sempre preceda o formal, o que se deve a dois fatores: (a)
a ideia de direito (ou o surgimento de determinado regime) precede as regras jurídicas; (b) a existência
de dois tempos no processo constituinte, o primeiro, que corresponde ao triunfo de determinada ideia de
direito ou de um regime, o segundo marcado pela formalização da noção de direito vitorioso, mediante
sua inserção na constituição formal (constituição jurídica), o que, por sua vez, confere estabilidade,
permanência e supremacia hierárquica aos princípios, valores e decisões políticas fundamentais contidos
na Constituição.199 É precisamente a noção de um poder constituinte formal, na condição de momento
específico do processo constituinte, que sempre arranca da manifestação de ruptura e de criação de uma
nova ordem estatal próprias do poder constituinte material, a grande novidade e também um dos
elementos centrais da verdadeira “viragem de Copérnico” representada pelo constitucionalismo
moderno, ao final do século XVIII, e concretizada mediante as primeiras grandes experiências
constitucionais no sentido atual do termo, quais sejam a norte-americana e a francesa.
5.2.4 Características do poder constituinte
Embora as considerações precedentes não tenham evidentemente exaurido o tema, já é possível
identificar, com base nelas – mas especialmente a partir da vinculação entre poder constituinte e
soberania –, as principais características do poder constituinte, amplamente difundidas (ainda que nem
sempre da mesma forma e com o mesmo rótulo) no âmbito da literatura dedicada à teoria constitucional,
quais sejam:
a) O poder constituinte é um poder inicial e anterior, características, aliás, que guardam estreita
relação com o adjetivo originário. Nesta perspectiva, o poder constituinte – como já sinalado – é
concebido como marco criador, inicial, da nova ordem jurídica estatal, implicando um rompimento com a
ordem anterior e a inauguração de uma nova ordem jurídica. Muito embora em geral não se verifique
mais o fenômeno de uma ruptura revolucionária, radical, com a ordem estatal e jurídica anterior,
consoante ocorreu na França revolucionária de Sieyès, em grande parte dos casos novas constituições,
elaboradas por novas assembleias constituintes ou mesmo outorgadas por diferentes grupos de poder,
substituem constituições precedentes, sem, contudo, descaracterizar a noção de que a nova constituição,
ainda que mantenha em grande parte as estruturas de poder e do direito anteriores, sempre são o marco
inicial de uma nova ordem estatal, revelando um traço “fundacional”, ainda que no âmbito de um
processo histórico que congrega, como bem apontam Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento,
elementos do presente, do passado e, em certo sentido, mesmo do futuro.200
b) O poder constituinte é um poder autônomo e exclusivo, visto que não se concebe a coexistência de
dois poderes constituintes no âmbito de uma mesma comunidade estatal, assim como não se concebe a
coexistência de duas soberanias. Cada ordem estatal (embora possível a outorga parcial de prerrogativas
inerentes à soberania, sem renúncia à própria, como ocorre, por exemplo, no plano da União
Europeia)201 poderá ter apenas uma constituição, fruto da atuação do poder constituinte originário.
c) O poder constituinte é um poder superior, e – em certo sentido! – juridicamente ilimitado e
incondicionado. Com efeito, já de acordo com a doutrina do próprio Abade Sieyès, sustentada perante o
Comitê Constitucional da Assembleia Geral, em plena Revolução, no dia 20.07.1789, o poder
constituinte tudo pode e não se encontra de antemão submetido a nenhuma constituição, de modo que,
para exercer sua função, ele deve estar livre de toda forma e de todo e qualquer controle, salvo os que
ele próprio venha a adotar.202 Nessa perspectiva, a exemplo da soberania, que assume a qualidade de
poder supremo (superior) no âmbito interno da comunidade política estatal, também – e por via de
consequência – o poder constituinte é superior aos demais poderes e em relação à ordem jurídica interna.
Aliás, é dessa característica do poder constituinte que também (embora não exclusivamente) decorre a
supremacia da constituição, no esquema da hierarquia das fontes normativas, tema que será objeto de
desenvolvimento próprio neste Curso. Da mesma forma, o poder constituinte é – também aqui em
determinado sentido – um poder incondicionado, visto que sua organização (o poder constituinte se auto-
organiza!) e sua atuação não podem ser submetidas a termos ou condições previamente estabelecidos. De
qualquer modo, importa averbar que esta última característica poderia (como de fato se verifica no caso
de alguns autores) ser inserida na figura mais ampla do caráter ilimitado do poder constituinte. Assim,
sintetizando o tópico, o poder constituinte, como fato político, ou seja, como força material e social, não
está vinculado a normas jurídicas anteriores, pelo menos não no sentido de uma subordinação resultante
de uma superioridade hierárquica na acepção jurídico-formal, o que, todavia, não quer dizer que se trate
de um poder absoluto, ilimitado e incondicionado em sua integralidade, de modo que não se pode afirmar
que se cuida de um poder completamente livre do direito.203 Como o problema de eventuais limites ao
poder constituinte será abordado em segmento próprio, ainda no âmbito deste capítulo do Curso,
deixaremos, por ora, de aprofundar o exame da questão.
d) O poder constituinte é um poder permanente e inalienável. A qualidade da permanência prende-se
ao fato de que o poder constituinte não desaparece com a entrada em vigor da constituição. Portanto, ao
contrário da assembleia constituinte (ou de quem exerça, em concreto, a função constituinte), cuja atuação
se exaure com a promulgação da constituição, o poder constituinte segue presente, em estado latente, pois
sua titularidade não se confunde com a condição de quem, em caráter eventual e provisório, exerça a
tarefa de elaborar uma nova constituição. Por outro lado, o caráter permanente do poder constituinte
guarda relação com outra característica habitualmente referida, que pode ser reconduzida à primeira
teorização relevante e influente sobre otema, designadamente a obra do Abade Emmanuel Sieyés, qual
seja a de que o poder constituinte é inalienável.204 É precisamente nesta perspectiva que o poder
constituinte pode vir a se manifestar a qualquer momento, visto que ao povo (como titular do poder
constituinte) cabe sempre decidir sobre a manutenção, alteração e mesmo substituição de determinada
ordem constitucional vigente,205 razão pela qual já se utilizou a imagem, em relação ao fato de que o
poder constituinte não desaparece, de um “vulcão adormecido”, no sentido de que há períodos não
constituintes, portanto, sem “atividade vulcânica”.206
Apresentadas as principais características do poder constituinte, há que enfrentar o problema de sua
titularidade, respondendo à indagação sobre quem é o sujeito de tal poder.
5.3 Quem é o titular do poder constituinte? O problema da legitimidade do poder
constituinte e da constituição
A definição da titularidade do poder constituinte, ou seja, a quem pertence (quem é o sujeito) tal poder,
revela-se como tema de grande controvérsia, cuja complexidade aumenta quando vinculada à questão de
sua legitimidade.207 Importa sublinhar, desde logo, que a discussão em torno da titularidade do poder
constituinte guarda relação com a discussão a respeito da soberania estatal e de seu respectivo titular,208
de tal sorte que o que está em causa é identificar quem detém o poder de criar (e impor) para uma
comunidade política uma nova constituição, inaugurando uma nova ordem jurídica e estatal. Por tal razão,
não há como dissociar (ainda que as noções não sejam equivalentes) a titularidade do poder constituinte
da noção de soberania e do problema da legitimidade de uma dada ordem constitucional.
Mesmo uma superficial observação do curso da história política das nações revela que a noção de
soberania inicialmente não era vinculada à noção de um poder constituinte, visto que esta – como já
referido – é produto da fase final da Idade Moderna, ou seja, do final do século XVIII. Com efeito,
embora a noção de soberania desde a Idade Média (pelo menos desde o século XIII) tenha relação com a
ideia de poder, de dominação, o conteúdo da noção de soberania sofreu significativas transformações ao
longo do tempo, acompanhando as próprias modificações das estruturas e sistemas de poder político,
registrando-se, além disso, divergências importantes no plano da justificação e da atribuição de conteúdo
à noção de soberania na esfera das teorias políticas.209 Por muito tempo a noção de soberania foi
vinculada a Deus, visto que durante expressivo lapso temporal predominou a teoria da origem divina do
poder político (e da soberania), especialmente dos monarcas, sendo que apenas posteriormente foi
atribuída à nação, com o triunfo da Revolução Francesa, e, finalmente ao povo, conforme, apenas para
ilustrar, se depreende da conhecida fórmula “We the people” (nós o povo), inscrita no preâmbulo do texto
constitucional norte-americano, de 1787.210 Já por tal razão, é possível afirmar que a determinação do
titular do poder constituinte, como poder concreto e factual, se dá com base nas circunstâncias históricas
e sempre será por elas condicionado.211 Assim sendo, é possível concordar com Georges Burdeau,
quando este sustentava que não há como falar em (um) poder constituinte abstrato, visto que tal poder
encontra-se sempre referido a um indivíduo (como no caso da concentração da soberania na pessoa do
monarca, à época do absolutismo monárquico), um grupo ou um povo.212
A relação da titularidade com a legitimidade do poder constituinte, por sua vez, diz respeito ao fato de
que, diferentemente das normas infraconstitucionais, que se submetem ao controle de validade diante do
texto constitucional vigente, a atuação do poder constituinte (e, portanto, o próprio conteúdo de sua obra,
a constituição) não se legitima por critérios jurídicos preexistentes, pelo menos no sentido da existência
de uma normativa formal anterior e diretamente vinculativa.213 Cuida-se, portanto, de uma legitimação
que não se confunde (como de resto já ocorre, embora não exatamente nos mesmos termos, com a
legitimidade da ordem jurídica infraconstitucional) com a noção de legalidade e de validade de uma
ordem jurídica em virtude de sua conformidade (formal e material) com uma normativa anterior e
superior, mas, sim, o que está em causa é, em linhas gerais, uma legitimidade que está atrelada a
basicamente dois fenômenos, quais sejam a forma de elaboração das constituições, em outras palavras,
aquilo que se tem designado de legitimidade quanto ao procedimento, e, por outro lado, a legitimidade no
que toca ao conteúdo da decisão constituinte, isto é, da observância de determinados valores que
justifiquem a autoridade no âmbito da coletividade política.
O problema da titularidade do poder constituinte situa-se precisamente neste contexto, de modo que é
preciso, ainda que de modo sumário, apresentar as duas principais concepções que marcaram a evolução
constitucional quanto a tal aspecto, designadamente, a teoria da soberania nacional e a teoria da
soberania popular,214 iniciando-se pela já referida doutrina do Abade Sieyès, para quem o titular
absoluto do poder constituinte era a nação, razão pela qual também a soberania somente podia ser
compreendida como uma soberania nacional.215 Para o autor francês, a nação não significava os
interesses de um conjunto de homens que a compunha em determinado momento histórico, mas sim a
expressão dos interesses permanentes de uma comunidade, de tal sorte que poderia haver, inclusive,
contradições entre as duas ordens de interesses.216 O poder constituinte, que está concentrado na nação,
opera, todavia, mediante delegação a um corpo de representantes extraordinários (como os designava o
próprio Sieyès), representação esta que se reúne exclusivamente (e apenas por certo tempo) para o
propósito de elaboração e aprovação da constituição, distinguindo-se tal corpo de representantes da
legislatura ordinária.217
De outra parte, para a doutrina constitucional norte-americana, cuja generalização se verificou na
maioria dos países que aderiram à democracia constitucional,218 o titular do poder constituinte é o
povo, concepção vinculada à noção de soberania popular, que passa a operar como fundamento de
legitimidade do próprio exercício do poder constituinte e que pode ser reconduzida especialmente –
ressalvadas importantes diferenças – à doutrina de John Locke, na Inglaterra, e de Jean-Jacques
Rousseau, na França.219
A identificação do povo, contudo, depende da concepção jurídica e política predominante em
determinado momento histórico, bastando referir, ao longo do tempo, experiências como as que eram
comuns durante a primeira fase do constitucionalismo liberal, onde a possibilidade de votar e de ser
votado era, dentre outras limitações (como, por exemplo, a exclusão, por muito tempo, das mulheres),
vinculada a determinados requisitos de natureza econômica, tal como ocorreu com o assim chamado voto
censitário, praticado inclusive no Brasil, sob a égide da Carta Imperial de 1824. A gradativa extensão
dos direitos políticos, contexto no qual se destacam a tardia inclusão das mulheres, bem como a inserção,
em vários casos, de mecanismos de democracia direta por ocasião do exercício do poder constituinte (a
exemplo da possibilidade de apresentação de emendas populares durante o processo de deliberação, bem
como a submissão do projeto de constituição aprovado na assembleia constituinte ao crivo do povo,
mediante referendo) mostra que a noção de povo igualmente se encontra em permanente processo de
reconstrução.220
5.4 Formas de manifestação (expressão ou exercício) do poder constituinte
5.4.1 Aspectos introdutórios
As formas de manifestação do poder constituinte são diversas, não podendo ser reduzidas a um único
modelo ou fórmula. Como bem descreve Gomes Canotilho, é possível resumir com três palavras (revelar,
dizer e criar) os traços característicos das três principaisexperiências constituintes que estão na base do
constitucionalismo contemporâneo: a inglesa, a americana e a francesa. Ainda segundo Gomes Canotilho,
em passagem que aqui reproduzimos com alguma liberdade, os ingleses compreendem o poder
constituinte como um processo histórico de revelação da sua constituição; os americanos dizem num texto
escrito, produzido por um poder constituinte, em que consiste o direito fundamental da nação, ao passo
que os franceses criam uma nova ordem jurídica e política por meio da destruição do antigo regime e sua
substituição por uma nova ordem, expressa por meio de um texto escrito, a constituição.221
O primeiro “modelo”, representado pela experiência constitucional inglesa (mas que não se limitava,
especialmente no que diz com um constitucionalismo no sentido material, ao exemplo inglês), é típico de
um “constitucionalismo histórico” avesso à noção de um poder constituinte, portanto, de uma instância de
poder capaz de, por si só, inaugurar um novo Estado e de instituir uma nova ordem jurídica e
política.222 Com efeito, a trajetória constitucional inglesa demonstrou que a reconstrução da ordem
constitucional é permanente, razão pela qual a noção de constituição em sentido formal e a noção de um
poder constituinte em sentido formal acabaram não encontrando repercussão no ambiente constitucional
inglês. Não é por acaso, portanto, que a “Constituição Inglesa”, no sentido do conjunto de documentos
legislativos constitucionais (como, dentre outros, a Declaração de Direitos, de 1689), costumes e
precedentes jurisprudenciais de natureza constitucional, é reconduzida – como já visto na parte sobre a
classificação das constituições – à categoria de uma constituição histórica.
Diversamente da Inglaterra (e de outras – atualmente poucas – experiências similares),223 tanto a
experiência norte-americana quanto a francesa – amplamente secundadas na evolução constitucional
posterior, pelo menos no mundo ocidental – têm em comum o fato de atribuírem centralidade à noção de
poder constituinte. Todavia, as diferenças são significativas e não podem simplesmente ser
desconsideradas. Para os americanos, trata-se, no caso do poder constituinte, de um momento
fundacional, de criação da nova ordem constitucional, ordem esta que assume a função de assegurar os
direitos e garantias dos americanos e de limitar o poder, de modo que o poder constituinte, diversamente
do que ocorreu no caso da França, assume a condição de instrumento para o estabelecimento da nova
ordem.224 Já no caso da França, notadamente em face do contexto no qual a própria construção teórica
do poder constituinte e da soberania nacional foi formulada, a vinculação (na doutrina de Sieyès) das
noções de poder constituinte e de nação fez com que a ideia motriz fosse em parte distinta. A este
respeito, como bem formula Gomes Canotilho, “os franceses ‘criam’ uma nova ordem jurídico-política
por meio da ‘destruição do antigo’ e da ‘construção do novo’, traçando a arquitectura da nova ‘cidade
política’ num texto escrito – a constituição”.225 Mas as diferenças não terminam aí! Outro diferencial
importante, que tem origem na teorização de Sieyès, foi o recurso à ideia de soberania nacional, em
substituição à noção de soberania popular, já que a nação, como entidade abstrata, distinta do povo,
tornou necessária a inserção da figura da representação, de tal sorte que o poder constituinte não é mais
exercido diretamente pelo povo, mas, sim, pelas assembleias eleitas pelo povo.226
Ainda no que diz com as formas de expressão (manifestação) do poder constituinte, é preciso atentar
para o fato de que, no que diz com o poder constituinte, é possível distinguir entre formas democráticas e
não democráticas de exercício (expressão) do poder constituinte. No primeiro caso, a fórmula
habitualmente utilizada (portanto, referimo-nos às hipóteses mais comuns e que correspondem à ampla
maioria) consiste na eleição, portanto, mediante um processo democrático, de uma assembleia
constituinte, na condição de órgão encarregado da elaboração do novo texto constitucional.
5.4.2 As formas democráticas de exercício do poder constituinte
No âmbito das assim chamadas formas democráticas de exercício do poder constituinte é comum que
se estabeleça uma distinção entre dois modelos básicos, que, por sua vez, podem ser desdobrados em
outros dois. Assim, é possível identificar uma assembleia constituinte soberana, que poderá ser exclusiva
ou não, e uma assembleia constituinte não soberana, que igualmente poderá ser ou não exclusiva. No
primeiro caso, da assembleia soberana, cuida-se de um órgão eleito com a finalidade de elaborar e
aprovar a constituição, excluída qualquer participação adicional do povo, seja por meio de plebiscito,
seja por meio de referendo. Já a assembleia não soberana é eleita apenas com a finalidade de elaborar e
discutir o projeto de constituição, mas a entrada em vigor do texto constitucional se dá apenas após a sua
aprovação pelo povo, mediante referendo.227 Neste caso ou em casos similares (como ocorreu quando
da elaboração da Constituição norte-americana, em 1787),228 a palavra final é devolvida ao povo para
sua direta manifestação como titular propriamente dito do poder constituinte. As duas modalidades
(assembleia soberana e não soberana), por sua vez, podem ser formadas com a finalidade e competência
exclusiva de elaboração da constituição (aqui se fala em assembleia constituinte exclusiva) ou acumular
atribuições, notadamente a de seguir (mesmo enquanto atuando como assembleia constituinte) operando
como Poder Legislativo, a assim chamada assembleia constituinte não exclusiva.
Na história constitucional brasileira, a tradição se mostra mais afinada com a instauração de
assembleias não exclusivas, excetuando-se a assembleia constituinte de 1933.229 No que tange à assim
chamada assembleia constituinte soberana, ou seja, aquela que prescinde de ratificação popular do texto
elaborado pela assembleia, é possível arrolar as Constituintes de 1890-1891, de 1933-1934, de 1946, de
1967 e, por fim, a de 1987-1988. Registre-se que, no caso da Constituição de 1937, havia a previsão de
uma consulta popular que, todavia, nunca foi realizada. No que diz com a Constituição Federal de 1988,
esta chegou a ser criticada precisamente pelo fato de não ter sido elaborada por uma assembleia
constituinte exclusiva, o que, todavia, não é suficiente – por si só – para lhe retirar sua legitimidade
democrática, visto que esta não está atrelada a determinado tipo de procedimento – democrático – de
elaboração da constituição.
Por outro lado, embora as modalidades referidas, desde que a noção de uma assembleia constituinte
seja compreendida em sentido elástico, possam ser aceitas como corretas, é preciso observar que nem
todas as experiências constitucionais reconhecidas como democráticas podem ser reconduzidas a alguns
modelos fixos. As possibilidades quanto ao modo de exercício (incluindo o modo de convocar, estruturar
e regulamentar a atuação de uma assembleia constituinte) são múltiplas. Apenas para citar um importante
exemplo, veja-se o caso da Lei Fundamental da Alemanha, de 1949, cujo texto resultou de um processo
estruturado em várias etapas, sob a supervisão e posterior aprovação pelas forças de ocupação aliadas.
Num primeiro momento, foi convocada uma conferência dos presidentes dos Estados alemães, que, por
sua vez, organizou um comitê responsável pela elaboração de um projeto de constituição. Na sequência,
tal projeto foi objeto de apreciação, deliberação e aprovação pelo Conselho Parlamentar
(Parlamentarischer Rat), integrado por 65 representantes eleitos pelas assembleias estaduais da
Alemanha Ocidental. Finalmente, após a aprovação pelas forças de ocupação, o documento aprovado
pelo Conselho Parlamentar passou pela aprovação (era exigida a aprovação por 2/3 dos Estados) dos
Estados, o que ocorreu mediante votação no âmbito das assembleias estaduais, procedimento quesubstitui o referendo popular inicialmente exigido pelas forças de ocupação.230 Note-se, portanto, que
não houve eleição direta pelo povo dos integrantes, nem da comissão que elaborou o anteprojeto, nem do
Conselho Parlamentar, e, além da necessidade de submissão do texto à aprovação prévia por parte dos
representantes das forças de ocupação aliadas (EUA, Inglaterra e França) da região que veio a se tornar a
antiga República Federal da Alemanha (Alemanha Ocidental), o texto, na sua versão final, também não
foi submetido à consulta popular direta. Ainda assim, nem o diferenciado modo de exercício do poder
constituinte, mas tampouco o fato de a Lei Fundamental ter sido elaborada em caráter provisório
(enquanto não ocorresse a reunificação alemã), mas também a circunstância de que mesmo quando esta
sobreveio, em 1989, não tenha sido realizada consulta popular a respeito da manutenção da Lei
Fundamental elaborada em 1949, conduziram, a despeito de algumas críticas, a uma negação da
legitimidade democrática da Lei Fundamental, além do fato de esta ser considerada a Constituição da
Alemanha, hoje unificada.
Outro exemplo digno de nota nos vem dos EUA, pois é de se recordar que os representantes dos
Estados que integravam a Confederação estabelecida no decurso da luta pela independência também não
haviam sido eleitos para a Convenção da Filadélfia (que passou a ser conhecida como Convenção
Constitucional) com mandato para a elaboração da Constituição, mas, sim, para revisar os Artigos da
Confederação; tendo, inclusive, sido formulada a acusação de uma usurpação do mandato original, ainda
que posteriormente o documento aprovado em 1787 na Filadélfia tivesse sido submetido à aprovação no
âmbito do Congresso de representantes (igualmente não eleito com a finalidade específica e exclusiva de
aprovar o texto inicial), antes de ser então submetido à ratificação pelos Estados231.
Com tais exemplos, que poderiam ser multiplicados mas que são por si só emblemáticos, o intento é
demonstrar que as modalidades acima apresentadas não correspondem a um esquema fechado e revelam
que não podem, ademais, ser tomadas como indicativos exclusivos de aferição de maior ou menor
legitimidade de uma determinada constituição.
5.4.3 A revolução como forma da manifestação do poder constituinte
Há casos, contudo, em que o caráter democrático do processo constituinte é de ser refutado, muito
embora exista uma constituição normativa e esta igualmente não tenha surgido de um processo de geração
espontânea. Assim, há que reconhecer que não se pode pura e simplesmente desconsiderar a existência de
formas não democráticas (portanto, ilegítimas) de expressão do poder constituinte, como é o caso da
outorga de uma nova constituição por parte de um ditador, determinado grupo que assume o poder
político etc., como ocorre no caso das constituições outorgadas. Considerando-se apenas o povo como
titular do poder constituinte, a própria referência a um modo não democrático de manifestação
(exercício) do poder constituinte se revela como contraditória, mas a experiência histórica segue
demonstrando a existência de casos de constituições que não foram o resultado direto de um processo
democrático e cuja elaboração não se deu nos moldes das variações acima referidas. A própria
Constituição Imperial de 1824, a Constituição do Estado Novo e a forma pela qual foi imposta a Emenda
1 à Constituição de 1967, apenas para ficarmos na evolução constitucional brasileira, são mostras disso.
O fato de se poder, em certo sentido, dizer que se trata de outra coisa e não de verdadeiras constituições
não altera a circunstância de que tais Constituições estiveram em vigor e como tais vincularam os
poderes constituídos.
Nesse contexto, oportuna a referência ao assim chamado poder constituinte revolucionário, em outras
palavras, à revolução como forma de manifestação (expressão) do poder constituinte. Trata-se aqui da
“mais radical das formas de expressão do poder constituinte originário”,232 visto que a revolução
consiste, muitas vezes, no “único remédio contra o arbítrio e a ilegalidade, quando falharem todos os
processos constitucionais e legais criados para impedi-los”, ou mesmo quando se trate de movimentos
destinados a (re)instaurar a própria ideia de direito e justiça numa sociedade,233 como dão conta, entre
outros, os emblemáticos casos da Revolução Francesa e da Revolução Bolchevista na Rússia, embora
haja evidentes diferenças entre elas, inclusive no que diz com a matriz constitucional implantada.
Antes, contudo, de seguirmos com a apresentação dos contornos do poder constituinte revolucionário é
preciso explicitar o próprio conceito de revolução. Nesse sentido, é possível, de modo simplificado,
falar de um conceito sociológico e de um conceito jurídico de revolução. Na primeira acepção, ou seja,
num sentido sociológico, “revolução é um processo de mudanças rápidas e profundas da estrutura de uma
sociedade e de seu sistema de poder, geralmente acompanhada de muita violência”, ao passo que, no seu
sentido jurídico, a revolução consiste na ruptura de um ordenamento jurídico e a instauração de um novo,
mediante processo não regulado pelo ordenamento anterior.234 A revolução no sentido sociológico, ou
revolução propriamente dita, não pode, portanto, ser confundida com um mero golpe de Estado, pois este
não implica transformação profunda nas estruturas da sociedade, mas se caracteriza pela alteração na
estrutura de dominação política por meios inconstitucionais, como, no caso da evolução brasileira,
ocorreu com a ditadura do Estado Novo e o golpe militar de 1964, que tiveram, inclusive, especialmente
no caso do segundo, caráter reacionário. Por outro lado, um golpe de Estado implica uma revolução no
sentido jurídico, em virtude da ruptura da ordem jurídica, que justamente se caracteriza por uma ruptura
que opera tanto no plano material (substituição de uma ordem constitucional por outra diferente quanto ao
conteúdo) quanto na esfera formal, definida pelo fato de a substituição ter ocorrido em desacordo com os
procedimentos constitucionais precedentes.235 Assim, é correto afirmar que uma revolução em sentido
sociológico implica uma revolução em sentido jurídico (a mudança nas estruturas sociais e políticas
exige uma substituição da ordem jurídica), mas uma revolução em sentido apenas jurídico (que pode
advir, por exemplo, até mesmo de um golpe de Estado) não será uma revolução em sentido sociológico.
Explorando o elo entre a revolução e o poder constituinte, Antonio Negri sustenta que o poder
constituinte opera como uma força que interrompe e desfaz todo o equilíbrio preexistente e toda a
continuidade possível, de tal sorte a poder ser definido como um procedimento de caráter absoluto e
ilimitado, razão pela qual a constituição, em sentido político, é a própria revolução.236
O vínculo entre a revolução e o poder constituinte consiste precisamente no fato de que, quando se
manifesta a revolução, o poder constituinte – cuja atuação permanece sustada (como se estivesse num
estágio de hibernação) enquanto os poderes constituídos funcionam regularmente – volta a operar até a
entrada em vigor de uma nova constituição que venha a substituir a ordem jurídico-constitucional
anterior.237 Por tal razão, o assim chamado ciclo revolucionário se caracteriza por duas etapas,
nomeadamente, uma fase na qual se dá a ruptura com a ordem anterior, de maneira abrupta ou gradual, e
um segundo momento, por ocasião do qual é instaurada, mediante a promulgação de uma nova
constituição, uma nova ordem jurídica.238
Importa agregar, para melhor explicitação de como se processa, no seu conjunto, o ciclo
revolucionário, no qual atua o assim chamado poder constituinte revolucionário, que ambas as etapas
podem ocorrer de modo bastante diferenciado, não seguindo um padrão uniforme. Com efeito, basta
recorrer à experiência brasileira, para constatar que, em 1937, o golpe do Estado Novo, acompanhado
pela outorgade uma nova Constituição, praticamente substituiu de um momento para outro a ordem
jurídica anterior. O mesmo não ocorreu em 1964, visto que, embora iniciada a ruptura, o poder
constituinte revolucionário, mediante a produção de atos normativos do comando revolucionário (os
conhecidos atos institucionais, entre outros), acabou apenas revogando em parte a então vigente
Constituição de 1946, que seguiu vigorando em grande medida, até sua completa substituição em 1967.
Durante o tempo que se situa entre a ruptura constitucional e a reconstitucionalização – período este
que costuma ser designado hiato constitucional239 – verifica-se o estabelecimento do que se designou
de uma “ditadura soberana” (para utilizar a fórmula proposta por Carl Schmitt),240 que produz uma
espécie de direito constitucional (material) provisório, consistente de atos normativos editados pelas
lideranças revolucionárias e destinados a regular provisoriamente a situação. Tais atos normativos
caracterizam-se por seu caráter provisório e por serem atos que, uma vez emanados em função da atuação
do poder constituinte revolucionário, são cogentes e superiores, até mesmo em relação ao direito
constitucional anterior. Também aqui a experiência histórica brasileira é prenhe de exemplos que
ilustram o modus operandi do poder constituinte revolucionário, inclusive no que diz com a produção de
um direito constitucional provisório, como dão conta, entre outros, o Dec. 1, de 15.11.1889, que instituiu
o governo provisório da Primeira República, bem como o Dec. 19.308, de 11.11.1930, que criou o
governo provisório da assim chamada Segunda República, documentos que tiveram o condão de revogar
a ordem constitucional anterior e regular a vida política até a promulgação de uma nova constituição. O
mesmo pode ser dito, ainda no caso brasileiro, em relação ao Ato Institucional 1, de 09.04.1964, que,
entre tantos outros atos do governo militar, acabou por revogar em boa parte a Constituição de 1946.241
Uma vez compreendido, em termos gerais, no que consiste a fase da ruptura e a etapa subsequente, é
preciso enfatizar que a reconstitucionalização, como segunda etapa da atuação do poder constituinte
revolucionário, implica, como já frisado, a instauração de uma nova ordem constitucional, mediante a
entrada em vigor de uma nova constituição. O fato de a ruptura ter sido mais ou menos violenta, de ter
operado mais ou menos transformações nas estruturas econômicas, sociais e políticas, não impede que a
nova ordem jurídico-constitucional seja instaurada de forma democrática. A revolução, muitas vezes já
sustentada pelo povo (ver os casos da Revolução Francesa, Mexicana, Bolchevista, Chinesa, Cubana,
dentre tantas outras), pode passar (e é bastante frequente que assim seja) por um processo de legitimação
democrática que, no concernente à instauração de uma nova ordem constitucional, passa pela via
democrática de elaboração e aprovação da nova constituição escrita.
A assim chamada “reconstitucionalização” pode, portanto, ocorrer de forma não democrática, mediante
a outorga de uma constituição (no Brasil, é o caso da Constituição de 1937), ou pode recorrer às diversas
modalidades democráticas de elaboração de uma constituição, seja por meio de consulta popular direta,
seja pela eleição de uma assembleia constituinte.242 Evidentemente, há que examinar, em outro plano, se
a constituição resultante do processo é legítima ou não, o que guarda relação com o modo democrático de
exercício do poder constituinte.
Por outro lado, seja qual for a forma de expressão do poder constituinte, democrática ou não, é certo
que a atuação de uma assembleia constituinte, ou mesmo a outorga de uma constituição, não surgem do
nada, mas são a consequência de um conjunto de fatores (e decisões políticas) anteriores. É nesta
perspectiva que se fala também em um “impulso constituinte”, numa “situação constituinte” ou mesmo, de
modo mais preciso, de “decisões pré-constituintes”,243 que se situam numa fase que pode ser também
designada de pré-constituinte, mas que de algum modo já integra o processo constituinte no seu conjunto.
Cuida-se de situações em geral complexas e bastante diversificadas, a depender da realidade concreta de
onde se manifestam, e que acabam envolvendo tanto decisões políticas no sentido da elaboração de uma
nova constituição, como a edição de leis constitucionais de caráter provisório, que, além de regularem
em caráter precário a organização e exercício do poder, buscam estabelecer os contornos do regramento
jurídico do processo constituinte.244 Nesse sentido, percebe-se que uma nova constituição pode ter (e
muitas vezes teve e ainda tem) um processo revolucionário na sua origem, processo que pode terminar de
modo democrático, mediante convocação e eleição de uma assembleia constituinte. Se isso é possível,
também a circunstância de que a assembleia constituinte tenha sido convocada pelo próprio Poder
Legislativo (na condição de poder constituído), conforme, aliás, ocorreu precisamente com a atual
Constituição Federal, visto que a assembleia constituinte, que elaborou a nossa atual Carta Constitucional
foi convocada por meio da EC 26, de 27 de novembro de 1985, não implica, por si só, a ilegitimidade da
nova ordem constitucional.
5.5 Limites e condicionamentos do poder constituinte?
A teoria originalmente elaborada por Emmanuel Sieyès foi marcada pela influência da doutrina do
direito natural, que dominava ao final do século XVIII, de modo que, para o autor francês, o poder
constituinte apenas seria condicionado pelo direito natural.245 Como instância anterior e superior ao
direito positivo, o poder constituinte não se encontraria, portanto, subordinado a qualquer espécie de
limite ou condição imposto por norma jurídica anterior ou superior, de modo a se falar mesmo de uma
onipotência do poder constituinte.246 Tal compreensão, ainda que eventualmente reproduzida em alguma
literatura, não corresponde mais ao entendimento prevalente na quadra atual da evolução e, de resto,
sempre encontrou resistência. “Muito embora se possa afirmar que o poder constituinte seja ilimitado,
livre e autônomo na sua condição de força social e política, especialmente em relação a uma ordem
jurídico-constitucional formal anterior (no sentido de vinculado no âmbito de um esquema normativo
hierarquizado), isso não significa que se trate de um poder totalmente ilimitado e, portanto,
completamente livre do direito, já que seu exercício encontra-se condicionado tanto pela realidade fática
quanto por determinados valores civilizatórios, pelos direitos humanos e pela justiça”.247 Com efeito,
como bem averba Gomes Canotilho, “este sujeito constituinte, este povo ou nação, é estruturado e
obedece a padrões e modelos de conduta espirituais, culturais, éticos e sociais radicados na consciência
jurídica geral da comunidade e, nesta medida, considerados como ‘vontade do povo’, ao que se soma a
observância de determinados princípios de justiça, bem como a necessária sintonia com os princípios
gerais e estruturantes do direito internacional”,248 muito embora haja polêmica em torno não apenas da
vinculação em si do poder constituinte ao direito internacional, mas também da forma pela qual se
processa tal vinculação,249 tema, aliás, de crescente relevância, considerando a tendência de afirmação
de uma ordem constitucional global e transnacional. De outra parte, quando se fala em limites jurídicos
do poder constituinte, há que reconduzir tais limites à noção mais ampliada de limites historicamente
construídos, que incluem limitações de ordem religiosa, moral, econômica, dentre outros que poderiam
ser referidos.250
Nessa perspectiva, assumindo-se como correta a premissa de que o poder constituinte não é, por
inteiro, um poder ilimitado (inclusive, e de certo modo, no sentido jurídico), é possível falar de
condicionamentos de caráter pré-constituinte e pós-constituinte.251 Tais condicionamentos, como já
referido, poderãoser de natureza não jurídica ou jurídica, envolvendo aspectos heterônomos (externos) e
limites internos, que assumem a feição de uma autorregulação e, ao mesmo tempo, de uma autolimitação
da função constituinte.252 No que diz com os limites anteriores à elaboração do texto constitucional,
situam-se aspectos envolvendo o ato convocatório da assembleia constituinte, o processo de escolha dos
membros constituintes e o próprio procedimento de deliberação, de tal sorte que se trata de normas que
disciplinam o procedimento e a participação na elaboração do texto constitucional, mas que são resultado
já da própria atuação do poder constituinte no plano de sua autorregulação.253 Como elementos
condicionantes pós-constituintes, é possível elencar a eventual ratificação popular da constituição,
embora isso não se verifique em todos os casos.254 Ademais, na esfera dos fatores externos, assume
especial relevância a já referida vinculação do poder constituinte aos valores sociais e políticos que
levaram à sua convocação, destacando-se, neste contexto, a ética, a dignidade da pessoa humana, a
liberdade e a ideia geral de igualdade, bem como a noção de direitos humanos fundamentais que, como
demonstra a evolução constitucional, marca presença em praticamente todos os documentos
constitucionais modernos, pelo menos no que diz com sua previsão textual, ainda que bastante
diversificada no respeitante à sua formulação.
Mesmo que se admita a ideia de uma vinculação do poder constituinte a determinados princípios
supranacionais de justiça, é questionável que aqui se trate de uma inconstitucionalidade originária, caso
determinada constituição venha a contrariar tais princípios e chancelar situações de grave injustiça de
descaso com os direitos humanos.255 O problema, no nosso sentir, situa-se mais no plano da
legitimidade da constituição e mesmo, do ponto de vista jurídico-formal, de eventual violação do direito
internacional, que poderia levar até mesmo ao afastamento da aplicação da norma constitucional ofensiva
a tais princípios superiores, discussão que aqui, contudo, não pretendemos, ao menos por ora,
desenvolver.
Ainda no que diz com o problema dos limites do poder constituinte, verifica-se que, a partir do
estabelecimento de uma primeira constituição formal (constituição normativa), determinado Estado – e a
regra no âmbito do constitucionalismo moderno é mesmo esta – costuma ter mais de uma constituição, de
modo que se justifica a indagação em torno da circunstância de que o novo constituinte encontra-se
vinculado a determinada tradição constitucional, como se o que existisse não fosse propriamente a
elaboração de uma nova constituição, mas, sim, de uma espécie de revisão ampla (por vezes nem tão
ampla) da constituição anterior, ainda que formalmente se fale em uma nova ordem constitucional
originária. Até mesmo a previsão, em determinada constituição, de “cláusulas pétreas” (limites materiais
à reforma constitucional) apenas vincula os poderes constituídos, designadamente o poder de reforma,
mas não é de observância obrigatória pelo poder constituinte superveniente, de modo que também nesse
caso se cuida de conteúdos que também se encontram sob uma reserva de poder constituinte.256 A
identidade (e sua continuidade e afirmação) constitucional que se busca salvaguardar mediante a
previsão de tais limites materiais é sempre a daquela determinada constituição e não necessariamente de
todas as constituições de determinado Estado, por mais que haja uma identificação entre os diversos
textos constitucionais. Aliás, o quanto uma nova constituição guarda sintonia (e mesmo reproduz em
boa parte o texto) com a constituição imediatamente anterior ou mesmo com a própria tradição
constitucional pretérita guarda relação com a decisão do constituinte histórico (portanto, também
uma autovinculação) de manter a maior afinidade possível com a constituição material e com os
valores dominantes no corpo social, o que, por sua vez, reflete nos níveis de legitimidade da nova
ordem constitucional. Contudo, falar-se, também aqui, de limites jurídicos apenas faz sentido se não se
tomar tal limitação, como já destacado, no sentido de uma subordinação jurídico-formal.
II – TEORIA DA MUDANÇA CONSTITUCIONAL – A REFORMA E A MUTAÇÃO CONSTITUCIONAL
5.6 Generalidades e distinção entre as diversas formas de mudança constitucional:
processos formais e informais (mutação constitucional)
Constitui noção amplamente difundida e aceita, no âmbito da evolução do constitucionalismo moderno,
que uma das funções da constituição é a de assegurar um nível adequado de estabilidade às instituições
políticas e jurídicas. Não apenas por isso, mas também por tal razão, a rigidez constitucional, traduzida
pela dificuldade maior de alteração do texto constitucional em relação ao processo legislativo ordinário,
serve ao propósito de garantir a permanência e a estabilidade, embora não a imutabilidade da
constituição. Tal estabilidade no mais das vezes abrange também garantias contra a supressão de
determinados conteúdos da constituição, blindados até mesmo contra a ação do poder de reforma
constitucional, conteúdos que passaram a ser conhecidos também como “cláusulas pétreas” ou “garantias
de eternidade” (do alemão Ewigkeitsklauseln), que serão analisadas mais adiante.
O que se percebe, todavia, é que as constituições, ainda que de modo bastante diversificado entre si,
regulam as garantias de sua própria estabilidade e permanência, mas também reservam espaço para a
possibilidade de mudança de seu próprio texto, e, portanto, de seu próprio conteúdo. Justamente para que
a constituição permaneça em vigor, não apenas simbolicamente, como uma mera “folha de papel”
(Ferdinand Lassale),257 e cumpra sua função estabilizadora, é preciso que ela seja sempre também um
projeto em permanente reconstrução, aberto ao tempo e ao câmbio da realidade, de tal sorte que
permanência, estabilidade e mudança não são incompatíveis entre si, mas, pelo contrário, constituem
exigências recíprocas e que se retroalimentam, desde que guardado o necessário equilíbrio.
Mas o fenômeno da mudança não se limite aos instrumentos previamente regulados de alteração textual
da constituição escrita, incluindo outras possibilidades e mecanismos de mudança. Assim, de acordo com
a lição de Jorge Miranda, se a modificação das constituições representa “um fenômeno inelutável da vida
jurídica” e que, “mais do que modificáveis, as constituições são modificadas”, também é verdade que
são variáveis “a frequência, a extensão e os modos como se processam as modificações”.258
Considerando, portanto, que a mudança constitucional é algo que integra a própria natureza do
constitucionalismo e do direito constitucional, é preciso identificar, num primeiro momento, quais as
modalidades (mecanismos) de mudança constitucional que podem ser encontradas na literatura e na
experiência concreta do constitucionalismo. Nessa perspectiva, num ambiente marcado pela absoluta
prevalência de um modelo de constituições rígidas, é possível distinguir entre duas formas de mudança
constitucional: os mecanismos formais de mudança constitucional e os assim chamados mecanismos
informais, também conhecidos como mutações constitucionais, ou mudanças tácitas.
Quanto aos meios (mecanismos ou instrumentos) formais, cuida-se da alteração do texto constitucional
por meio da atuação do poder de reforma constitucional, o que se verifica mediante um processo
previamente (pelo menos quanto aos seus aspectos nucleares) estabelecido pelo poder constituinte, o
qual também determina quais os limites (formais e materiais) impostos ao poder de reforma, o que será
objeto de exame mais detalhado logo a seguir. No âmbito da chamada mudança informal, não há, a rigor,
alteração do texto normativo, mas sim alteração no que diz com a aplicação concreta de seu conteúdo a
situações fáticas que se modificam no tempo, geralmente pela via da interpretação constitucional,
fenômeno designado,como já referido, de “mutação constitucional”, no sentido de uma mudança
constitucional que, embora altere o sentido e alcance da constituição, mantém o texto constitucional
intacto.
Importante, antes de adentrarmos no exame de cada uma das duas modalidades (mudança formal e
informal), é que se compreenda que a mudança formal é assim designada, pelo menos de acordo com o
entendimento amplamente majoritário, não pelo fato de ser promovida por um órgão formalmente
instituído e regulado na constituição, mas, sim, por se tratar de um processo de mudança que implica
alteração do texto constitucional, ou seja, da constituição formal e instrumental.259 Neste contexto, não
se deve olvidar que a mutação constitucional, no sentido da mudança promovida sem alteração textual,
pode ocorrer pela via da interpretação, ou seja, pela atuação de um órgão criado pela constituição
(portanto, neste sentido, poderia também ser designada de uma mudança formal!), mas não é neste sentido
que, consoante já explicitado, se compreendem as mudanças informais (mutações), mas sim pelo fato de
não implicarem alteração do texto da constituição.260 Iniciaremos pelo mecanismo habitual da mudança
formal, que se manifesta por meio do exercício da competência (poder) de reforma constitucional, para,
mais adiante, voltarmos ao problema dos mecanismos informais, no âmbito da noção de mutação
constitucional.
5.7 O poder de reforma da constituição
5.7.1 Questões terminológicas
No que diz com o plano terminológico é preciso formular acordo semântico, já que na literatura podem
ser encontradas diversas expressões, por vezes utilizadas como sinônimas, todavia nem sempre com o
necessário rigor, eventualmente gerando até mesmo alguma incompreensão quanto ao seu correto
significado. Nesse sentido, as expressões poder constituinte derivado (ou mesmo poder constituinte
instituído, secundário ou de segundo grau), poder constituinte reformador ou poder de reforma (ou
revisão) constitucional, aqui apenas elencadas algumas das mais habituais, exigem uma nota explicativa.
Considerando a distinção entre o poder constituinte originário (ou simplesmente poder constituinte) e o
poder de reforma constitucional, que, em verdade, é sempre instituído, regulado e limitado pela
constituição originária (ou seja, pelo poder constituinte), de modo a não “constituir” propriamente a
ordem estatal, cada vez mais autores têm abandonado a expressão poder constituinte derivado,
mediante o argumento de que, se tal expressão do poder constituinte é derivada, não há falar
propriamente em poder constituinte.261 Por tais razões, aqui apresentadas de forma sumária, é que se
opta pela terminologia poder de reforma constitucional, ou simplesmente poder de reforma ou poder
reformador. O mesmo se aplica ao assim chamado poder constituinte decorrente, que, para muitos,
assume a condição de manifestação especial do assim chamado poder constituinte derivado, já que
igualmente instituído e limitado pelo poder constituinte (originário).262 Trata-se, no caso, do poder
constituinte dos Estados integrantes de uma Federação que, todavia, será objeto de análise mais detida no
capítulo destinado à organização do Estado, em que o princípio federativo e, de consequência, a
constituição dos Estados-membros da Federação ocupam um lugar de destaque.
Assim sendo, em apertada síntese, para que daqui em diante possamos padronizar a terminologia,
adotamos o esquema que segue: 1. poder constituinte; 2. poder de reforma (ou poder de reforma
constitucional); 3. poder constituinte dos Estados-membros.
5.7.2 Natureza, características e funções do poder de reforma constitucional
Diversamente do poder constituinte que, precisamente em virtude de sua natureza pré ou mesmo
metajurídica (por ser, como visto acima, um poder de natureza fática e política, expressão da soberania),
costuma ser emblematicamente caracterizado, na esteira de Carl Schmitt, como uma “potência”, o poder
reformador assume a feição de uma competência, já que juridicamente vinculado às normas de
competência, organização e procedimento ditadas pelo primeiro (a potência).263 É justamente a
existência de normas limitativas da reforma constitucional que demonstra o fato de que, mesmo após a
entrada em vigor da constituição, o poder constituinte segue presente e, portanto, “ativo”, já que, do
contrário, poderia vir a depender dos órgãos legislativos instituídos (e limitados) pelo constituinte, o que
implicaria contradição insuperável, pelo menos, levando-se a sério a tradição constitucional ainda
vigente.264 Importa ter sempre presente, de outra parte, a noção de que também no direito constitucional
brasileiro o legislador, ao proceder à reforma da Constituição, não dispõe de liberdade de conformação
irrestrita, encontrando-se sujeito a um sistema de limitações que objetiva não apenas a manutenção da
identidade da Constituição, mas também a preservação da sua posição hierárquica decorrente de sua
supremacia no âmbito da ordem jurídica, de modo especial para evitar a elaboração de uma nova
Constituição pela via da reforma constitucional.265
A natureza e configuração concreta dos limites à reforma constitucional, embora se possa observar
certa uniformidade, pelo menos no que diz com alguns elementos essenciais, comuns às principais
técnicas de limitação do exercício do poder de reforma, há de ser analisada sempre à luz do direito
constitucional positivo de cada Estado, pois é na constituição de cada país que são definidos os limites
ao poder de reforma e qual o seu alcance. Por tal razão, sem prejuízo de referências ao direito
comparado, é no âmbito da reforma constitucional no sistema constitucional brasileiro, logo abaixo, que
serão apresentados e analisados os limites à reforma constitucional.
No que diz com as funções do poder de reforma, é preciso destacar que, embora a reforma
constitucional seja também fonte de direito constitucional, ela constitui uma fonte peculiar (distinta, por
definição, do poder constituinte), que assume uma natureza dúplice, visto que ao mesmo tempo em que as
leis de reforma (no caso brasileiro, as emendas) estão submetidas, quando de sua elaboração, aos
requisitos estabelecidos pelo constituinte, uma vez incorporadas ao texto constitucional, elas passam a
ser parte integrante (com a mesma hierarquia normativa) desta mesma constituição, portanto, tornam-se
constituição.266
Antes, contudo, importa destacar mais um aspecto terminológico e conceitual, que diz respeito à
possível distinção entre as noções de reforma, revisão e emendas constitucionais, bem como, a exemplo
do que se verifica em diversos países, no que diz com o uso das expressões leis de revisão ou leis de
alteração da constituição.
Quanto ao primeiro ponto, ou seja, sobre a distinção entre os conceitos “reforma”, “revisão” e
“emenda constitucional”, há que registrar, desde logo, que tais noções não podem – ou ao menos não
deveriam, de acordo com a sistemática adotada pela Constituição Federal de 1988 – ser confundidas. Em
verdade, embora não se registre unanimidade no que diz com o seu conteúdo e significado, a posição
majoritária na doutrina brasileira é de que a expressão “reforma da Constituição” designa o gênero, ao
passo que os outros dois termos (revisão e emendas) se referem a manifestações particulares da
reforma.267 Assim, a expressão “reforma” refere-se, neste sentido, a toda e qualquer alteração formal –
isto é, de acordo com os parâmetros preestabelecidos – da Constituição, independentemente de sua
abrangência. Uma revisão constitucional (ao menos para os que comungam deste ponto de vista) constitui,
por sua vez, modificação relativamente ampla do texto constitucional, ao passo que uma emenda se
destina, de regra, a ajustes e alterações de natureza mais específica.268 Já para outros, as expressões
“revisão” e “reforma” se distinguem no sentido de que a revisão se refere a alterações gerais ou parciais
da constituição sobre temas previamente estabelecidospelo poder constituinte, ao passo que as
modificações no âmbito da reforma constitucional não foram antecipadamente definidas, de tal sorte que
ambas (revisão e reforma) podem ser consideradas mecanismos formais típicos de alteração da
constituição, assumindo a emenda o papel de instrumento para realização da reforma ou revisão.269
Também quanto a este aspecto, necessário não perder de vista o direito constitucional positivo, ou seja,
as peculiaridades de cada ordem constitucional concretamente considerada, o que será objeto de análise
no próximo segmento.
5.7.3 O poder de reforma na Constituição Federal de 1988
5.7.3.1 A distinção entre revisão e emendas como modalidades de reforma da Constituição
Também na evolução constitucional brasileira constata-se que as expressões “revisão”, “reforma” e
“emenda” foram utilizadas de forma diversificada. Na Constituição de 1824, o procedimento da reforma
constitucional foi regulamentado nos arts. 174 a 178, não tendo sido feita qualquer referência aos termos
“revisão” e “emenda”, o que persistiu em nossa primeira Constituição da República, de 1891, de acordo
com o disposto no seu art. 90. A Constituição de 1934 afastou-se pela primeira vez dessa tradição,
prevendo expressamente tanto a possibilidade de uma revisão, quanto de emendas à Constituição,
estabelecendo requisitos distintos para cada uma das modalidades de reforma da Constituição (art. 178).
As Constituições de 1937, de 1946 e de 1967 (1969), por sua vez, contemplaram – respectivamente nos
seus arts. 174, 217 e 47 – apenas as emendas como mecanismo de modificação do texto constitucional, de
tal sorte que somente na atual Constituição (1988) foi novamente traçada uma distinção expressa entre as
modalidades “revisão” (art. 3.º do ADCT) e “emenda” (arts. 59 e 60). Já por tal razão, e mesmo que se
possa, como se verá a seguir, argumentar que a possibilidade de revisão constitucional, pelo menos tal
como prevista originariamente no ADCT, não mais subsiste no ordenamento constitucional vigente,
correta a posição de acordo com a qual, à luz do direito constitucional positivo brasileiro, o constituinte
de 1988, pelo menos no que diz com a sua proposta originária, distinguiu as “emendas à Constituição” e a
“revisão” como duas modalidades específicas (e, portanto, substancialmente diferenciadas) de reforma
constitucional.270
Aspecto mais controverso, todavia, diz com a identificação das diferenças propriamente ditas entre a
revisão e as emendas. Tal discussão, por sua vez, guarda relação com outra polêmica que, embora em
parte relativamente pacificada no âmbito da doutrina constitucional brasileira, segue em aberto e que
poderá, especialmente na esfera do processo político-legislativo (e mesmo com suporte em setores da
literatura especializada), ter importantes desdobramentos. Aqui se está a tratar justamente da discussão a
respeito da manutenção, no sistema constitucional vigente, da possibilidade de levar a efeito uma revisão
constitucional, seja pelo rito estabelecido originariamente no art. 3.º do ADCT, seja por meio do
procedimento mais qualificado das emendas constitucionais ou mesmo de outro procedimento que venha
a ser estabelecido, inclusive por meio de uma reforma constitucional.
Nesse sentido, importa em primeiro lugar destacar quais as diferenças entre a revisão constitucional
e as emendas à Constituição, tal como originariamente previstas pelo constituinte:
a) enquanto as emendas foram previstas e regulamentadas no corpo da Constituição, constituindo
mecanismo permanente e ordinário de reforma, a revisão foi objeto de previsão apenas no Ato das
Disposições Transitórias (art. 3.º), revelando, salvo melhor juízo, ser modalidade excepcional de
reforma;
b) o procedimento previsto para ambas as modalidades de reforma da Constituição é distinto,
ressaltando-se a existência de um procedimento mais rígido (art. 60) para as emendas, ao passo que a
revisão – ao menos de acordo com a expressa previsão do art. 3.º do ADCT – estaria sujeita a um
procedimento bem menos rigoroso e simplificado;
c) enquanto não há limitação no que tange ao número de emendas (afora a impossibilidade de
reapresentação do projeto no mesmo ano legislativo), a revisão estava destinada – pelo menos esta a tese
aqui adotada – a realizar-se apenas uma vez, transcorridos cinco anos da promulgação da Constituição
(art. 3.º do ADCT), isto é, depois de realizado o plebiscito sobre eventual alteração da forma (monarquia
ou república) ou do sistema de governo (presidencialismo ou parlamentarismo), inicialmente previsto
para setembro de 1993, mas posteriormente antecipado (art. 2.º do ADCT);
d) por derradeiro, é de destacar-se a amplitude da revisão, destinada tão somente à finalidade de
adaptar a Constituição ao resultado do plebiscito, já que uma alteração na forma e/ou no sistema de
governo vigente implicaria uma série de modificações, de modo especial na parte relativa à organização
do Estado e dos poderes, ao passo que as emendas podem ter por objeto qualquer alteração no texto
constitucional, desde que respeitem os limites materiais expressos e implícitos à reforma da
Constituição.271
Embora as distinções elencadas decorram da própria arquitetura constitucional e correspondam ao teor
literal dos respectivos dispositivos (arts. 60 da CF e 3.º do ADCT), o Congresso Nacional, quando das
discussões sobre a revisão constitucional – mais precisamente entre 01.03.1994 e 07.06.1994 –, acabou
optando por promulgar as assim designadas emendas constitucionais de revisão, em número de seis. O
que há de ser destacado é que tais emendas (que receberam inclusive uma designação e numeração
distinta) foram aprovadas pelo Congresso mediante observância dos mesmos limites formais e materiais
previstos para as emendas e não pelo rito simplificado previsto no art. 3.º do ADCT, o que resultou numa
virtual equiparação dos institutos.272 Nesse contexto, merece ser destacada a posição adotada pelo STF,
que – muito embora a ausência de referência expressa no texto constitucional transitório – sublinhou a
necessidade de observância, no âmbito das emendas de revisão, dos limites materiais estabelecidos no
art. 60, § 4.º, da CF.273 Tudo isso contribui para que a prática da aprovação das assim chamadas
emendas constitucionais de revisão fosse abandonada ainda em 1994 e não mais restabelecida, o que
apenas reforça a tese do caráter transitório e excepcional da figura da revisão constitucional, subsistindo
apenas a modalidade de reforma mediante emendas à constituição.
O que se percebe, todavia, é que várias das emendas constitucionais promulgadas desde então levaram
a efeito alterações significativas do texto constitucional, algumas resultando até mesmo em supressão,
alteração e acréscimo em dezenas (no caso da EC 45/2004, que veiculou a reforma do Poder Judiciário,
mais de uma centena de dispositivos da Constituição foram afetados) de artigos do texto originário,
alterando substancialmente capítulos e mesmo títulos inteiros da obra do constituinte de 1988. Assim,
considerando que as emendas constitucionais deveriam servir apenas para promover alterações mais ou
menos pontuais do texto constitucional, há quem diga que o Congresso Nacional acabou realizando
verdadeiras revisões constitucionais, valendo-se, para tanto – e de forma ilegítima –, do mecanismo das
emendas.274
Outro tema polêmico é o que diz respeito à possibilidade de criação, mediante emenda constitucional,
de uma nova modalidade de revisão, inclusive para efeitos de supressão de conteúdos considerados
pétreos (portanto, insuscetíveis de abolição) pelo constituinte originário, o que, todavia, será objeto de
consideração logo mais adiante, no contexto dos limites à reforma constitucional. De qualquer modo, faz-
se o registro de que uma revisão ampla e ilimitada da Constituição é no mínimo polêmica, visto que,
aceitando-se tal possibilidade, estar-se-ia, em verdade, autorizando – como sustentava, dentre outros,
GeraldoAtaliba – a substituição da Constituição por uma nova, para o que o legislador efetivamente não
se encontra legitimado.275
5.7.4 Os limites da reforma constitucional
5.7.4.1 Considerações gerais
Também a controvérsia em torno dos limites à reforma da Constituição radica na distinção acima
traçada entre o poder constituinte e o poder de reforma constitucional. Com efeito, sendo o poder
reformador por definição um poder juridicamente limitado, distinguindo-se pelo seu caráter derivado e
condicionado, sujeito, portanto, aos limites estabelecidos pelo próprio constituinte, a identificação de
quais são os limites à reforma constitucional e qual o seu sentido e alcance depende, a despeito de
uma série de elementos comuns e que correspondem, consoante igualmente já se teve oportunidade de
sinalar, em maior ou menor medida, à tradição já enraizada no âmbito do constitucionalismo
contemporâneo, do direito constitucional positivo de cada Estado, visto que a opção poderá ser por um
sistema mais ou menos complexo e diferenciado de limitações. No caso do sistema constitucional
brasileiro, a previsão de limites à reforma constitucional se faz presente desde a Constituição Imperial de
1824, que, ainda que enquadrada na categoria de uma constituição semirrígida, estipulava um quórum
qualificado para a alteração de algumas matérias específicas da Constituição, designadamente a que se
referia aos limites e atribuições dos poderes políticos, assim como à garantia dos direitos individuais
dos cidadãos (art. 178 da Constituição do Império). A primeira Constituição republicana, de 1891, além
de limitações formais, consagrava como elemento material imutável a forma republicano-federativa, ou a
igualdade de representação dos Estados no Senado Federal (art. 90, § 4.º). A Constituição de 1934
dispunha como “cláusulas de eternidade”, além da forma republicana e federativa de Estado, “a
organização ou a competência dos poderes da soberania”, incluindo a coordenação dos poderes na
organização federal, a declaração de direitos e a autorização do Poder Legislativo para declarar estado
de sítio, além do próprio artigo que dispunha sobre a emenda e a revisão constitucional (art. 178, caput).
No que diz com os limites formais, a iniciativa do projeto de emenda era reservada a pelo menos um
quarto dos membros da Câmara ou do Senado Federal, ou de mais da metade dos Estados, manifestando-
se cada uma das unidades federativas pela maioria da respectiva assembleia. A aprovação se dava pela
maioria absoluta dos membros da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, em dois turnos de
discussão. A Constituição de 1946 manteve tanto o quórum qualificado para a alteração da Constituição
como a impossibilidade de projeto de emenda tendente a abolir a federação e a república (art. 217, §
6.º). A Carta de 1967, com redação amplamente reformada pela EC 1/1969, previa tão somente a
república e a federação como limites materiais à reforma constitucional.
A Constituição Federal de 1988, por sua vez, pode ser considerada, pelo menos no contexto da
evolução brasileira, a que instituiu um leque de limites mais amplo e exigente, especialmente no plano
dos assim chamados limites materiais, que serão objeto de exame mais detido logo adiante. Com efeito,
além dos já referidos limites materiais (convencionalmente designados de “cláusulas pétreas”), existem
os limites de ordem formal (de caráter precipuamente procedimental), bem como os limites
circunstanciais e os chamados limites temporais. Considerando que os limites formais possuem um
caráter geral, visto que se aplicam a toda e qualquer alteração de uma constituição rígida, serão eles os
primeiros a serem apresentados em detalhe.
5.7.4.2 Limites formais
Na esfera dos limites formais, que dizem respeito ao procedimento da reforma (iniciativa,
deliberação, aprovação etc.), a nossa Constituição optou por adotar um modelo relativamente severo,
enfatizando assim ainda mais o seu caráter rígido.276 Além de regras mais rigorosas sobre a iniciativa
das emendas (art. 60, I a III), cumpre destacar a necessidade de uma aprovação, em dois turnos, por
maioria de 3/5 em ambas as casas do Congresso (art. 60, § 2.º), impondo-se também a promulgação das
emendas com a indicação de seu respectivo número de ordem (art. 60, § 3.º), sendo vedada, ademais, a
reapresentação, na mesma sessão legislativa, de proposta de emenda nela rejeitada ou tida por
prejudicada (art. 60, § 5.º). Tais regras limitativas da reforma da Constituição se referem em primeira
linha à noção de constituição em sentido formal, que – dentre outros aspectos – pode ser caracterizada
justamente com base na nota de sua rigidez.277 Isso, como é sabido, não exclui a existência das assim
denominadas mutações constitucionais informais, isto é, o desenvolvimento não escrito do direito
constitucional (no sentido material), ao longo do tempo, principalmente por meio da interpretação
(judicial, legislativa e administrativa) e do costume constitucional, que também entre nós é reconhecido
pela doutrina majoritária, desde que se mantenha no âmbito dos limites traçados pelo possível sentido
textual da Constituição, que não pode ser extrapolado,278 temática que, em que pese sua importância,
aqui não será objeto de maior desenvolvimento, visto já ter sido enfrentada.
Até que ponto é possível sustentar, também entre nós, a proibição de emendas à Constituição que não
façam expressa menção ao dispositivo constitucional modificado ou ampliado – postulado da alteração
textual – é passível de discussão, já que o constituinte de 1988 não previu norma semelhante à contida no
art. 79, I, da Lei Fundamental da Alemanha, de acordo com o qual a Lei Fundamental somente poderá ser
modificada mediante uma lei que altere ou amplie expressamente o seu sentido literal, dispositivo com o
qual se objetivou a garantia da supremacia do direito constitucional formal, já que o conteúdo do direito
constitucional deve ser, em primeira linha, extraído do documento no qual foi positivado.279 Assim, as
emendas à Constituição que dela se afastam e que não alteram o texto constitucional deverão ser tidas
como inconstitucionais, ainda que elaboradas de acordo com o procedimento próprio e aprovadas pela
maioria qualificada (no caso da Alemanha, de 2/3) prevista na Constituição, de tal sorte que a alteração
pura e simples do conteúdo da Constituição se encontra vedada.280 Com tal restrição de cunho formal,
os pais da Lei Fundamental de 1949 tiveram a intenção de evitar as graves consequências do sistema
adotado sob a égide da Constituição de Weimar (1919), no qual alterações da Constituição sem a
respectiva modificação de seu texto eram toleradas, ainda que frontalmente colidentes com os
dispositivos constitucionais, desde que aprovadas pela maioria qualificada exigida para as reformas da
Constituição.281 Entre nós, ainda que a Constituição não contenha dispositivo similar, é de se registrar,
no âmbito dos limites formais, a necessidade de que a emenda seja promulgada (pelas Mesas da Câmara
e do Senado Federal) com o respectivo número de ordem (art. 60, § 3.º).
Quanto ao primeiro grupo dos limites formais, no caso, os limites relacionados à iniciativa da
reforma constitucional (os assim chamados limites formas subjetivos),282 que dizem respeito aos
legitimados para impulsionar o processo, as regras estabelecidas no art. 60, I a III, da CF não deixam, em
geral, maior margem a dúvidas. Com efeito, dispõe o citado dispositivo que a Constituição só poderá ser
emendada mediante proposta: I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do
Senado Federal, II – do Presidente da República, e III – de mais da metade das Assembleias Legislativas
das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.
Todavia, muito embora quanto aos três casos elencados não se verifiquem maiores problemas, é
possível controverter em torno do caráter taxativo ou apenas exemplificativo

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