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PARA COMPREENDER O MODERNISMO: UM MOVIMENTO ARTÍSTICO INCAPTURÁVEL Por Juliana Szabluk Sob orientação de Francisco Rudiger, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) “... A idéia de uma ruptura radical com história e o começo de uma nova era; a concepção racionalista da história como trunfo absoluto da razão no tempo e espaço e, com ela, das idéias de justiça social e paz; e, por último, a fé em um progresso indefinido fundado no desenvolvimento cumulativo e linear da indústria, da tecnologia e dos conhecimentos científicos.”1 "... É o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte, da qual a outra metade é o eterno e o imutável (...). Ao suprimi-lo, caem obrigatoriamente no vazio de uma beleza abstrata e impossível de definir, como a da única mulher antes do primeiro pecado."2 Retiradas de seu contexto, as duas passagens acima parecem definir dois objetos diferentes, senão opostos. Ora o filósofo espanhol Eduardo Subirats aponta um amor pelo progresso científico, ora o poeta francês Charles Baudelaire, em uma de suas mais citadas passagens, frisa a importância de uma essência humana, que transcenderia a história. Tal disparidade não decorre apenas do fato de um autor ser o crítico, enquanto o outro é o artista em si, mas da própria natureza dialética do objeto em questão: o Modernismo. A alma modernista O Modernismo não foi um movimento artístico, mas sim uma união de diversas manifestações que eclodiram a partir de um determinado contexto histórico marcado por uma profunda mudança social. A arte existente já não mais retratava a realidade do homem e a vontade humana de quebrar este passado obsoleto e de pintar, escrever e construir a nova vida que se impunha urgia. Suíça, Estados Unidos, França, Inglaterra, Brasil, Espanha, Rússia, dentre inúmeros outros países de todo o mundo, mesmo que em momentos distintos, viram uma explosão de consciência crítica e um conflito entre gerações destruírem os antigos valores – e muitas vezes reconstruírem novos posicionamentos. 1 SUBIRATS, Eduardo. Da vanguarda ao pós-moderno, São Paulo, Nobel, 1991. P. 12. 2 BAUDELAIRE, Charles. Obras Estéticas: filosofia da imaginação criadora. Petrópolis: Vozes, 1993, p 218. Ora, se tais explosões de consciência ocorreram em tempos e locais distantes, tentar comprimir a totalidade desta época em apenas um signo, conceito ou ideologia produziria um resultado no mínimo parcial. Em outras palavras, como apontam Bradbury e McFarlane, a exposição sistemática e científica do espírito modernista “nunca poderia satisfatoriamente ser um levantamento completo, uma exposição razoavelmente acabada. Supor que algum estudo seja capaz de apresentar para um exame sereno – como algum monumento inteiramente desenterrado, bem pavimentado e todo ajardinado, com letreiros, rótulos e resumos muito precisos – o tipo de sítio arqueológico que representa o modernismo é não entender a própria natureza do fenômeno”.3 Deveras, como expressão de um momento histórico, a arte pode ser contextualizada; como manifesto poético dos indivíduos, é possível dissecá-la; mas, como a expressão dos sentimentos humanos, a explanação científica da arte acaba por reduzir a máxima união das esferas que compõem o homem e seu meio a pedaços separados e especializados. À parte dos movimentos artísticos antecessores e predecessores, o Modernismo apresenta ainda mais complexidade por sua desigualdade nas propostas simultâneas e sua abrangência espaço-temporal. Esta disparidade de ideologias era encontrada dentro dos próprios grupos, como no Futurismo, no Expressionismo e no Surrealismo, formados por fases e utopias tão diferentes entre si. A efemeridade dos ideais destes vanguardistas é um dos pontos que mais dificulta qualquer perpetuação teórica do Modernismo, não sendo difícil encontrarmos autores que, para estruturar um exame mais preciso, reduzem o conjunto dos movimentos a uma simples obra ou a um manifesto, como no já mencionado Futurismo e seus mais de 30 textos. Não obstante, interessados em uma mais ampla e fiel pesquisa acerca do tema, encontram dificuldade pelo pequeno número de publicações sobre correntes menores, como no caso do vorticismo. Finalmente, a análise separada da vanguarda pode ser a principal causa do fracasso em alcançarmos uma compreensão justa e fiel às ações do movimento: ao desmembrá-la, perde-se as influências que alguns grupos tiveram em outros, fundamentais para que se compreenda não apenas o porquê da criação de um novo grupo, mas como toda a unidade histórica modernista, que seria imprescindível para qualquer análise profunda. 3 BRADBURY, Malcom e McFARLANE, James. Modernismo – guia geral 1890-1930, São Paulo, 1989. P. 7. “Um Movimento nas Artes – qualquer Movimento – agita toda uma Nação com uma rapidez assombrosa; suas idéias passam pela imprensa diária, semanal e mensal com a rapidez da água que passa pelas frestas, até que finalmente alcançam as Revistas Trimestrais e chegam a perturbar os Acadêmicos adormecidos em seus cestos de papéis.”4 Em suma, seria muito possível elaborar um conceito ou nomear uma obra como inaugural de um dos movimentos da arte moderna, mas a totalidade da concepção de Modernismo não comportaria tal redução. Poderíamos, portanto, datar o momento o momento no qual a primeira arma foi levantada pelos seguidores das vanguardas - inclusive por seus poetas criadores, como Baudelaire nas trincheiras -, quando o primeiro manifesto foi escrito; mas seria equivocado restringir a uma data ou a um fato o instante no qual o sentimento de aprisionamento tomou conta do espírito dos homens como um todo em todos os locais onde a alma modernista irrompeu. Na dialética da arte moderna, indivíduo e homem entraram em conflito consigo mesmos e com o meio da ciência e tecnologia que surgiu. Como examinar cientificamente o exato instante em que a pressão das cidades e da razão sufocou a alma dos artistas e intelectuais a ponto de retirar os indivíduos de suas ilhas sociais e se agarrarem uns aos outros para subirem à tona e respirar, unidos, o mesmo ar? Jules Romains, pseudônimo do escritor, professor e crítico Louis Farigoule, utilizou o termo “unânime” em seu artigo-manifesto5 sobre a alma coletiva moderna, Os sentimentos unânimes e a poesia. À primeira vista, tal termo pode parecer um abuso se o pensarmos sob um positivismo lógico, como que se o poeta estivesse propondo que literalmente milhões de indivíduos compartilhassem impressões e expressões idênticas quanto ao período histórico em questão, a Modernidade. Contudo, nosso objeto de estudo não é aquele das ciências humanas, a Modernidade, mas sim o da arte, o chamado Modernismo. São expressões artísticas, sentimentos de homens que se auto-definem como aqueles que “amam o real em profundidade”; que, a partir desta tão referida alma modernista, “sentem que os indivíduos não são caminhos independentes, e 4 FORD, Madox Ford. Return to yesterday (1923). Epíteto utilizado por BRADBURY, Malcom e McFARLANE, James. Modernismo – guia geral 1890-1930, São Paulo, 1989. P. 154. 5 Artigo-manifesto. Expressão utilizada por Gilberto Mendonça Teles para definir o texto Os sentimentos unânimes e a poesia, de Jules Romains, publicado originalmente em Le Penseur, nº 04, 05 de abril de 1905, p. 121-124. que, semelhantes a ilhas, eles se isolam na superfície para continuar unidos sob as águas...”6. Esta instância, que tantos críticos equivocadamente interpretaram como misticismo ou como o produto de filosofias ocultas, era para muitos vanguardistas, se não para todos, sua “musa” inspiradora, já que era a causa da angústia que explodia em forma de arte, a motivadora de suas utopias e a base final para o mundo que eles sonhavam em construir. Romains, no artigo-manifesto que aqui dispomos, expõe com clareza o que Baudelairedefiniu como a outra metade da arte, “o eterno e o imutável [...] uma beleza abstrata e impossível de definir”: Manifesto Unanimista:7 “Na época contemporânea a vida do homem civilizado tomou caracteres novos. Mudanças essenciais deram uma outra significação à nossa existência. É sem dúvida banal apontar um movimento de transformação que não tem feito senão manifestar, em todos os períodos da história, a força ativa e produtiva da espécie. Mas importa notar, em cada período, o sentido deste movimento. A tendência atual de os povos se acumularem nas cidades; o desenvolvimento ininterrupto das relações sociais; as ligações mais fortes e mais estreitas estabelecidas entre os homens pelos deveres, ocupações, prazeres comuns; uma preponderância sempre maior do público sobre o privado, do coletivo sobre o individual: eis os fatos que alguns deploram, mas que ninguém contesta. É impossível que uma tal maneira de viver não tenha determina do uma maneira correspondente de sentir. Desde que o homem deixa de ser isolado, ele experimenta as impressões nascidas de suas ligações com outrem. A paixão amorosa é um exemplo, o mais antigo e o mais comum, mas não o único. Já não se é o habitante de um lugarejo, de um pequeno burgo, de uma cidade; o membro de uma família, de um grupo. O cidadão de uma nação, sem suportar o contragolpe disso no espírito e no coração. Esta ação imaterial de todos os homens sobre cada um permanece mais freqüentemente confusa e inconsciente 6 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1976. P. 67, 68. 7 ROMAINS, Jules. Manifesto Unanimista (grifos no original). Texto retirado de TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1976. P. 67. naquele que é o sujeito dessa ação. Mas ela aspira a tornar-se clara e distinta, à medida que se processa a evolução contemporânea que eu assinalava há pouco. Não se trata, bem entendido, desta vaga piedade social nem do humanitarismo convencional que os Senhores Prudhomme e Homais desacreditaram um pouco. Eu gostaria que não houvesse nisso matéria de confusão para ninguém. Emoções mais profundas agitam, sem a nossa consciência, os mais humildes dentre nós. Com nuanças diferentes, percebemos a influência contínua, progressiva, tirânica que exerce a sociedade sobre nós; adivinhamos a parte do nosso ser que ela conquistou, as deformações que ela impôs a nosso ‘eu’; palpitamos por ser absorvidos pelo meio humano que nos cerca; e saboreamos a voluptuosidade estranha que nos causa esta espécie de aniquilamento. Livres, apesar de nós, corpo e alma, na cidade, passamos do arrebatamento à revolta. O abandono de si mesmo, que faz o encanto do amor, faz também o encanto da vida social. Esses sentimentos que traduzem na linguagem do coração as novas relações e a íntima união dos homens são por natureza unânimes. Mais verdadeiramente unânimes ainda, aqueles que os grupos manifestam espontaneamente, e, por assim dizer, fora dos indivíduos. Uma sala de teatro cheia de espectadores, uma rua abarrotada de gente não são somente um conjunto material de partes que o espaço aproxima, e que permanecem aliás independentes. Os seres que constituem as aglomerações mais ou menos duráveis não se avizinham fortuitamente. Cada um deles, sem dúvida, tem razões especiais de se encontrar lá. Mas o teatro, a rua, neles mesmos, são, cada um, um todo real, vivo, dotado de uma existência global e de sentimentos unânimes. Alguns filósofos, alguns sociólogos, já suspeitaram desses fenômenos; esboçou-se uma psicologia das multidões. Nenhum resultado satisfatório foi obtido. A observação manteve-se sumária, superficial, e não conduziu senão a algumas comparações emaranhadas. Os procedimentos da análise científica fracassam aqui. Os sentimentos iguais, demasiado indeterminados, demasiado inconscientes, demasiadamente longe da precisão da língua intelectual, se negam ainda à reflexão fria que pesa e que registra. Mas não é esse precisamente o papel da Poesia, o de dar uma expressão, uma forma às emoções que os homens se contentam em experimentar sem as formular? *** Da alma vanguardista à vida na totalidade A definição deste espírito, alma, aura ou das tantas outras terminologias que são colocadas para conceituar a arte modernista ou tentar definir o que seria esta vida em sua totalidade, que tais artistas tanto buscavam, é, ressalto, sempre difusa. De acordo com Emiliano Aquino, esta noção, “antes de ser da ordem conceitual (embora também o seja), compõe a própria experiência social moderna” 8. A professora Johanna Drucker coloca como o Modernismo, para Baudelaire, é exatamente a passagem da apresentação da vida para a sua representação. O conceito de imagem, que fica implícito no termo representação, será tratado mais adiante, mas já, a partir desta assunção, podemos perceber que o homem moderno está em constante conflito entre “o particular e o geral, entre o passado e o presente, entre o efêmero e o eterno”9. De fato, como Drucker argumenta, a percepção artística e a crítica das separações entre estas esferas surge na poesia modernista de Baudelaire. A autora aponta como a figura do artista neste momento é imprescindível, já que ele, no duplo papel de agente e observador do ambiente social que se formava, seria exatamente o homem capaz de percebê-lo a partir de um “modelo [que] funcionava por meio da perda da distinção entre o olho do artista e a cena. 8 AQUINO, Emiliano. Reificação e linguagem em André Breton e Guy Debord. Doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Programa de Estudos Pós-graduados em Filosofia, São Paulo, 2005. P. 18 (“... compõe a própria experiência social moderna”: ênfase minha. Dentre os inúmeros autores consultados nesta pesquisa, a importância de se viver o escrito, de se experimentar a obra é uma constante na alma modernista. Para estes autores, segundo as passagens pesquisadas, a relevância da experiência torna-se tamanha, que seria impossível definir tal sentimento apenas teoricamente.) 9 DRUCKER, Johanna. Theorizing Modernism – visual art and the critical tradition (grifos da autora). Nova York, Columbia University Press, 1994. P. 11-12. O artista seria aquele que ‘se jogaria inteiramente na multidão’ e se ‘banharia’ na experiência do espetáculo que passava”10. Esta consciência da necessidade da emancipação do artista e do homem nasce efetivamente em Baudelaire. A poesia sobre o “pensamento do artista”, o “espírito”, sobre o “todo de uma completa vitalidade”, em suas próprias expressões, se situa agora entre estes dois mundos, com sua alma dual, deslocada e conflitante entre o Spleen e o Idéal, nos termos de Baudelaire, ou entre o reificado e o real profundo, na terminologia de Debord. Desta polaridade entre a homogeneização dos indivíduos retratados pela figura do flâneur e a imaginação poética que tentava reavivar uma natureza humana e uma vida anterior e O homem voltado para a arte, portanto, é aquele que possui a consciência do conflito proposto constantemente pela Modernidade: o efêmero e o eterno, o social e o humano. Para Robert Storr, este conflito é, em si, aquilo que coloca a vanguarda na dialética da construção- destruição. Em constante reconstrução, a alma modernista se formava não apenas do aniquilamento dos velhos paradigmas, mas como também do novo sujeito que nascia deste fenômeno de união entre homem como ser para si mesmo e indivíduo como ser para a sociedade. “O erro conceitual inerente a todas as respostas surge ao tratar ‘modernismo’ como um substantivo comum referente a uma coisa específica, estilo, época, ou qualidade, quando, na realidade, ele é o conceito omnibus para toda uma amplitude de tendências estéticas, cada qual uma tentativa de definir de uma vez por todas o que fariaa arte ser ‘modernista’. Na prática, portanto, o modernismo abrange aspirações compartilhadas e uma série de hipóteses díspares. Aparentemente unidas em um objetivo comum, a real diversidade dos projetos propostos por modernistas assumidos destrói qualquer sentido teórico de coesão entre eles. Geralmente fundamentalistas em suas abordagens, freqüentemente exclusivas em suas associações estéticas e às vezes agressivas na propagação de seus ideais e métodos, as várias facções da vanguarda, consideradas em um determinado momento, como regra, disputavam as exigências umas das outras. Sob uma perspectiva histórica ou conceitual, o modernismo é mais bem compreendido como a união destas disputas e propostas conflitantes.”11 10 Idem. 11 STORR, Robert. Modern art despite Modernism (grifos no original). Nova York, The Museum of Modern Art, 2000. P. 25-26. O autor optou por utilizar os termos Modernidade e Modernismo com letra minúscula, mantidos por mim, neste caso específico, na tradução. Acreditamos ser uma posição cômoda abraçar a verdade de que o Modernismo não é uma experiência teorizável ou explanável no âmbito acadêmico. Apesar de nossa consciência quanto a este obstáculo, é precisamente aí que mora nosso maior desafio: o de expressar a vivacidade e a paixão modernistas nos argumentos e na linguagem utilizados nesta pesquisa. Tentaremos, portanto, agir de forma dialética na alternância entre fato e dado, manifesto e contexto, palavra e imagem para que possamos transcender as explicações lineares já existentes desta crítica da vida cotidiana a qual se convencionou denominar Modernismo. Para tanto, consideramos todas as fugas dos padrões científicos aqui encontradas justificáveis e necessárias, já que expor a crítica ao sistema passivamente dentro de sua lógica seria abafar a totalidade de nossa idéia e da utopia da vanguarda. As vanguardas: o fim do Romantismo e o nascimento da dialética simbolista “É que toda manifestação da arte chega fatalmente a se empobrecer, a se esgotar; então, de cópia em cópia, de imitação em imitação, o que foi pleno de seiva e de frescura se desseca e se encarquilha; o que foi novo e o espontâneo se tornam o vulgar e o lugar comum.” Jean Moréas Manifesto Simbolista, 1886 A unidade entre os grupos existe. Como já mencionamos, ela é essencialmente composta pelo sentimento dual entre a angústia e a vontade de mudança para irromper as barreiras sociais do ritmo métro-boulot-dodo12 que se estabelecia sobre os indivíduos. Grupos como o futurismo e o construtivismo recorreram à crença no progresso indefinido da máquina aliada à arte inovadora com o objetivo de emancipar o indivíduo de sua identidade histórica e natureza agressiva, que rebentaram na I Guerra Mundial. Sua técnica racional de ângulos e linhas, a extrema racionalidade e a união entre a indústria e o capitalismo oportunizariam o progresso da coletividade desordenada, pois “... os fatores sociais irracionais, as velhas identidades culturais e históricas, as nacionalidades, a moral, os vested interests* – para 12 Métro-boulot-dodo: expressão informal francesa surgida na década de 20 para designar o ritmo de vida capitalista. Com a tradução literal “metrô, trabalho, sono”, seria equivalente ao “casa, trabalho, casa” na língua portuguesa. Uma boa referência a esta expressão é o filme Cronique d’um été (1961), de Edgar Morin, que inaugura o cinema-verdade explorando a temática da vida nas fábricas e da perda da vida do trabalhador padrão que vende seu tempo para comprar a felicidade sob a forma do valor de troca. empregar um conceito de Veblen a este respeito – haviam ocasionado o caos, a desesperança e a destruição” (Subirats, Eduardo, 1991. Nobel, p. 26). Contudo, o segundo momento da vanguarda se dedicou à destruição destas formas culturais mecanicamente fixadas pela primeira fase. Os movimentos visavam à destruição dos dogmas do sistema industrial, que os aprisionaram, para rumar à outra inovação: a ideológica do homem. A importância da vanguarda, “que culminou com o Dadaísmo” e teve como objetivo “destruir convenções de arte, linguagem e comportamento” (Debord, Guy, The situationists and the new forms of action against politics and art, 1963). Para compreendermos com mais clareza a vanguarda e a dialética social no cinema, foco deste trabalho, é interessante transcendermos a visão resumida de que a dialética entre a efervescência da sociedade moderna e a arte modernista surgiria com o movimento da fotografia, nas origens do cinema. A urgência em expressar artisticamente tal velocidade social nascera, antes, na transição do poema romântico para o simbolista. Oras, a própria linguagem do Simbolismo seria perfeitamente análoga com a linguagem cinematográfica aqui estudada, já que, em si, tanto o poema simbolista quanto este cinema se equivalem não apenas em sua ruptura negativa e sua mobilidade, mas como também são comparáveis na linguagem composta simultaneamente por alegoria e signo, por uma indicação e acusação da realidade social através da abstração poética expressa no recorte de contextos diversos unidos em um mesmo plano ou papel. O poema simbolista seria, a nosso ver, um fator essencial para o nascimento da dialética que inspiraria os futuros artistas da época com sua alma dupla, que incluía, portanto, os primeiros elementos da arte de valor negativo e positivo, como destacaria o crítico alemão Hugo Friedrich ao definir a poesia de Stéphane Mallarmé: “... ausência de uma lírica de sentimento e inspiração; imaginação guiada pelo intelecto; destruição da realidade e da ordem lógica e afetiva normal; manuseio das forças impulsivas da linguagem; substituição da inteligibilidade pela sugestão; consciência de pertencer a uma época tardia da cultura; dupla atitude frente à modernidade; e equiparação da poesia com a crítica poética, em que predominam, além disso, as categorias negativas.” 13 13 TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1976. P. 60-66. Grifos meus para ressaltar a proximidade da poesia de Mallarmé com o cinema experimental da primeira vanguarda e o revolucionário das vanguardas posteriores. Esta sétima arte buscava abarcar a A partir de uma estrutura minuciosamente pensada, do arranjo das palavras e dos espaços na página, Mallarmé buscava unir musicalidade, imagem e movimento para uma total compreensão da realidade espaço-temporal modernista. Negação da simplicidade linear romântica, os poemas simbolistas constituem “um organismo complexo em que cada elemento tem uma função autônoma, mantendo ao mesmo tempo relação com o conjunto a que pertence” 14, um equivalente total com a própria estrutura social e com seus indivíduos componentes. Com efeito, a estrutura complexa do poema simbolista obriga o leitor a ir e voltar pelas páginas, a fim de alcançar o máximo da totalidade do organismo artístico. A substituição das pausas e pontos por espaços em branco convida o leitor a questionar as próprias lacunas entre a realidade e seu sentimento abstrato quanto ao seu próprio cotidiano. Ao fugir da linearidade completa e pré-definida da poesia romântica, a estrutura esquizofrênica simbolista desafia o leitor com os “vocábulos impolutos, o período que se sustenta alternando com o período de desmaios ondulados, os pleonasmos significativos, as misteriosas elipses, o anacoluto em suspenso, todo o tropo audacioso e multiforme: enfim, a boa língua”. De estática e linear a vida moderna nada mais possuía, portanto seria necessário anunciar estrategicamente os abismos desta nova realidade que se impunha. O Simbolismo nasce deste espaço em branco formado entre a vida social e o homem e se mostra como “um processo limitante que a forma tenta vencer; a língua em si procura definir e analisar, ao passo que a forma e o espaço por ela criado dissolvem e reintegram.Escrever poesia torna-se um meio de ativar o que está faltando”.15 Como Mallarmé profetiza em sua tão conhecida sentença: “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard” (um lance de dados jamais abolirá o acaso), jogar conforme a lógica do totalidade das artes para os vanguardistas, assim como O Livro, grande plano de vida do poeta Mallarmé. Tais artistas objetivaram a recusa do pensamento sintético presente, que buscava situar cada coisa no lugar que lhe corresponde dentro do esquema do paradigma dominante. Aqui, além da luta positiva, a idéia de “luta-contra” a crise da sociedade e da linguagem poética. Finalmente, a busca pela negatividade e contradição como modelo do movimento. 14 IDEM. P. 62. 15 MORÉAS, Jean. Manifesto Simbolista. Publicação original em Le Figaro, 18 de setembro de 1886. Texto retirado de TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Petrópolis, Vozes, 1976. P. 58-59. sistema não destruiria o que a vida tinha de mais elementar na modernidade. A recusa da verdade absoluta e pré-definida pelos padrões de uma época agora obsoleta era precisamente o fator visionário do movimento simbolista, que abriu espaço para a percepção das convergências do mero acaso e das coincidências efêmeras modernas. Como observa Clive Scott, “aqui, a pontuação retórica do verso é transposta para o silêncio anunciado, as reverberações da exclamação, o expirar do desespero, o silêncio obstruído da pergunta”. Pela primeira vez na página, a substituição da sonoridade pausada e da pontuação normatizada romântica pelos espaços vazios de Mallarmé propôs um aniquilamento efetivo e artístico da ligação entre fato e ato, entre ação e reação. Scott prossegue sobre as pausas, que “são preenchidas por um exercício mental; aqui, os sentidos presentes no verso se reúnem, colidem, juntam-se”.16 Convencionados pela poesia tradicional, os pontos finais tornam-se raros e, quando usados, os são em instantes inesperados – como o homem controlaria o ritmo de sua poesia se não dominava a vida? Em perfeita harmonia artística e dialética, contra a separação das sentenças românticas e das esferas do indivíduo moderno, o Simbolismo subverteu o pensamento sintético para totalizar sua arte conforme o movimento da sociedade moderna e da arte modernista, o pensamento dialético: *** Prefácio a Un Coup de Dés17 Gostaria que não lessem esta Nota ou que, lida, até a esquecessem; ela ensina, ao Leitor hábil, pouca coisa situada além de sua penetração: mas pode perturbar o ingênuo que deve aplicar uma olhada nas primeiras palavras do Poema, para que as seguintes, dispostas como estão, o conduzam às últimas, tudo sem novidade a não ser um espargimento da leitura. Os “brancos”, com efeito, adquirem importância, chocam de início; a versificação os exigiu, como silêncio em torno, ordinariamente, até o ponto que um trecho, lírico ou de poucos pés, ocupe, no centro, a terça parte mais ou menos de uma folha: não transgrido esta medida, apenas a disperso. O papel intervém cada vez que uma imagem, por si 16 BRADBURY, Malcom e McFARLANE, James. Modernismo – guia geral 1890-1930, São Paulo, 1989. Artigo Simbolismo, Decadência e Impressionismo. SCOTT, Clive. P. 168. 17 mesma, cessa ou se oculta, aceitando a sucessão de outras e, como não se trata, agora ou nunca, de traços sonoros regulares ou de versos – mas antes, de subdivisões prismáticas da Idéia, o instante de aparecer, e que dura o seu concurso, em qualquer que seja a encenação espiritual exata, é em lugares variáveis, perto ou longe do fio condutor latente, em razão da verossimilhança, que se impõe o texto. A vantagem, se posso dizer assim, literária, dessa distância copiada que mentalmente separa grupos de palavras ou palavras entre si, parece por vezes acelerar ou amortecer o movimento, escandindo-o, intimando-o mesmo segundo uma única visão simultânea da Página: tomada por esta unidade, como o é também o Verso ou linha perfeita. A ficção surgirá e se dissipará, rapidamente, de acordo com a mobilidade do escrito, em volta das pausas fragmentárias de uma frase capital desde o título introduzida e continuada. Tudo se passa, de modo geral, em hipótese; evita-se o relato [récit]. Acrescente-se que deste emprego desnudo do pensamento com contrações, prolongamentos, fugas, ou até seu desenho, resulta, para quem quer ler em voz alta, uma partitura. A diferença dos caracteres de imprensa entre o motivo preponderante, um secundário e outros adjacentes, dita sua importância à emissão oral e seu alcance no meio, acima ou no fim da página, indicará que sobe ou baixa a entonação. Somente certas direções muito atrevidas, as usurpações, etc., formando o contraponto desta prosódia, permanecem numa obra, que carece de precedentes, no estado elementar: não que eu leve em conta a oportunidade das tentativas tímidas; mas não me pertence, por mais importante, gracioso e convidativo que se mostre um jornal às belas liberdades, agir contrariamente ao uso, exceto, entretanto, incluído no Poema anexo, mais do que o esboço, um “estado” que não rompe inteiramente com a tradição; levada sua apresentação, em muitos sentidos, tão longe que não ofusque ninguém: o suficiente para abrir os olhos. Hoje ou sem presumir do futuro o que sairá daqui, nada ou quase uma arte, reconheçamos facilmente que a tentativa participa, com imprevisto, com investigações particulares e caras a nosso tempo, como o verso livre e o poema em prosa. Sua reunião se verifica sob uma influência, eu o sei, estranha, a da Música ouvida em concerto; encontrando nela muitos meios que me parecem haver pertencido às Letras, eu os retorno. O gênero, que venha a ser um, como sinfonia, pouco a pouco, ao lado do canto pessoal, deixa intacto o antigo verso, ao qual rendo meu culto e atribuo o império da paixão e dos sonhos; enquanto que este seria o caso de tratar, de preferência (assim como segue), tais assuntos de imaginação pura e complexa ou intelecto: que não fica razão alguma para excluir da Poesia – única fonte.18 18 Mallarmé, Stéphane. Prefácio ao poema (grifos em itálico meus – aspas no original. Utilização de caracteres maiúsculos, vírgulas, hífens e pontos finais mantidos do original). Importante ressaltar a consciência de Mallarmé de que a nova poesia constaria na dispersão de elementos pré-existentes, assim com o cinema da Guy Debord o fez. Sua originalidade nascia na modificação da forma, no rearranjo das palavras que quebravam a tradição romântica, recolocando as idéias fixadas – ou copiadas, de acordo com o poeta francês - em posições perturbadoras na página. O recorte debordiano, desfiava a lógica do sistema ao alternar imagens da vida cotidiana e planos de filmes que mostravam cenas da sociedade moderna como o espetáculo as dispunha e impunha. Assim como as palavras de Mallarmé na página, ambos desafiavam a visão tradicional do espectador/leitor, reforçando a apatia e falta de domínio destes sobre a disposição dos elementos da própria vida. Texto retirado de TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro, Petrópolis, Vozes, 1976. P. 66.
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