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Criatividade judicial do direito

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24/09/2020 Criatividade judicial do direito
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Início - Brasil - Protagonismo Judicial. Novo ativismo e teoria geral da função jurisdicional
Criatividade judicial do direito
Autor: José Wellington Bezerra da Costa Neto
Páginas: 31-179
[Pg. 31]
1. Escorço histórico
O debate sobre o caráter declaratório ou criativo do Direito da atividade
jurisdicional é um dos pontos fundamentais da teoria da jurisdição .
O primeiro aspecto do qual se conduzirá o fio de raciocínio do trabalho diz
respeito a uma passagem em breve revista da evolução histórica da posição do
juiz em relação às fontes do Direito, tomando como termo inicial a formação do
Estado Moderno seguida do Estado Liberal.
Não que não haja estudos a serem feitos quanto ao período anterior, o que há, já
que se trata de um fecundo tema em todas nuances izatórias já
experimentadas na vivência humana. É que para os fins do presente estudo, é
suficiente que remontemos apenas ao Estado Moderno.
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A ideia de separação dos poderes atende à busca de fórmulas jurídicas para
satisfação de dois desideratos: igualdade e segurança . Foi esta dúplice
reivindicação o móvel da Revolução Francesa: o "governo de leis e não de
homens" exprime o ideal que se propunha para a institucionalização de um
regime político que privilegiasse a igualdade e a segurança . O desenvolvimento
deste ideal conduz naturalmente à edição de uma Constituição, lei das leis, obra
de um poder especial, constituinte, que
[Pg. 32]
emanaria da nação e estabeleceria a organização do Poder. Tal diploma
fundamental deveria conter, além da declaração de direitos, a separação de
poderes. Estes dois aspectos seriam intrínsecos e indispensáveis a um texto que
viesse atender aos dois objetivos já mencionados.
O termo "Constituição" define então uma forma peculiar de juridificação do
poder e da dominação política, que tem nas Revoluções Americana (1776) e
Francesa (1789) seu marco fundamental (o chamado constitucionalismo
moderno), cuja história está relacionada com a limitação norma-tiva do poder
político e à garantia dos direitos individuais indisponíveis. O constitucionalismo
moderno se consolida a partir dos séculos XVII e XVIII fincado em três modelos:
inglês, americano e francês, os dois últimos definidores desta expressão .
Com efeito, a Constituição americana de 1787 foi a primeira escrita a consagrar
uma República Federativa Presidencialista, pondo também em prática a
separação de poderes idealizada por Montesquieu, afirmando a supremacia da lei
(rule of ). Em 1791 a evolução se completaria com a incorporação ao texto
constitucional do "Bill of Rights", que foi essencial na evolução da proteção aos
direitos fundamentais na ização ocidental, em especial a partir do papel
assumido pela Suprema Corte em sua inter-pretação .
O constitucionalismo na Europa tem seu desenvolvimento iniciado com a
Revolução Francesa de 1789, ainda que não se possa desprezar a influência norte-
americana anterior (e também a influência dos ideários franceses naquelas
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paragens). Emblema da noção do constitucionalismo praticado é fora de dúvida o
art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: "A sociedade
em que não esteja assegurada a
[Pg. 33]
garantia dos direitos nem estabelecida a separação dos poderes não tem
Constituição" .
Assim, as Constituições, no contexto do chamado constitucionalismo moderno,
nascem ligadas à garantia dos direitos fundamentais e à instituição da separação
de poderes. A par disto, a ideia de Constituição também tem como pano de fundo
a noção de refazimento do pacto social, de modo a regulamentar restrições aos
direitos fundamentais necessárias a viabilizar o convívio social, já que os pais das
declarações de direitos do século XVIII sempre postularam o caráter relativo
destes caros direitos que, embora admitidos como imprescritíveis e inalienáveis,
nunca foram tidos como absolutos .
A lei, à qual incumbe o governo, não é produto da vontade arbitrária do
legislador, mas sim da vontade geral, entendida como vontade justa para todos .
É intuitivo deduzir que a formação do Estado Moderno absolutista tenha como
nota característica o fortalecimento do Estado como órgão emanador por
excelência das normas destinadas a regular o convívio social.
[Pg. 34]
Não apenas o fortalecimento, mas propriamente a assunção de monopólio,
salientando-se que mesmo as normas não emanadas do Estado deveriam, pelo
menos, passar pelo seu crivo admissional.
Também não seria grande salto lógico derivar desta conjuntura sócio -política, a
formação, nos quadrantes da teoria jurídica, do positivismo jurídico.
Simplificando: se o Estado é o único órgão legitimado a ordenar a vida social,
então as normas por ele emanadas ou chanceladas são as únicas válidas. Aliás,
são as únicas consideradas direito, ou seja, não há outro direito que não o
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positivo (elimina-se o dualismo direito natural/ direito positivo. Pode-se até falar
de normas, postulados ou princípios dedutíveis da natureza, porém nunca como
direito em sentido próprio) .
Aliás, segundo Bobbio, é da análise das modificações na posição e função social
do juiz que constatamos a passagem do direito não-estatal ao estatal. Até então,
"o juiz podia obter a norma a aplicar tanto de regras preexistentes na sociedade
(direito positivo) quanto de princípios equitativos e de razão (direito natural)" .
Com a formação do Estado Moderno, torna-se o juiz um órgão do Estado, titular
de um dos Poderes Estatais e subordinado ao Legislativo, estando vinculado à
invocação de normas por este emanadas para a solução das controvérsias, sem
liberdade criativa e com liberdade interpretativa extremamente restrita.
É interessante notar que a passagem ao Estado Liberal, embora marcada pela
explosão revolucionária, e pelo intento declarado de desconstruir tudo que
pudesse remeter ao modelo absolutista, no que concerne ao dogma da
onipotência do legislador estatal foi bem pouco inovadora.
É curioso observar que um dos gérmens desta transição é a retomada do
jusnaturalismo, rudimentarmente compreendido como a noção de que os
homens gozam direitos inatos, inerentes à condição humana e cuja existência
independe de reconhecimento por alguma ordem jurídica positiva ou chancela do
monarca. O jusnaturalismo se associa ao iluminismo e constitui o grande
substrato jurídico-filosófico que conduz à limitação
[Pg. 35]
do poder que caracteriza a Revolução Francesa, a formação do Estado Liberal e o
movimento de codificação .
Com efeito, a filosofia do direito natural e a teoria do contrato social fornecem o
arrimo teórico da concepção individualista da sociedade liberal, marcada pela
desconfiança em relação ao Estado e pela crença na auto-regulamentação do
mercado. Ao Estado compete um domínio residual, de caráter subsidiário,
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notadamente nas áreas atinentes à soberania e ordem pública. Todas as demais
áreas são franqueadas à iniciativa privada. São as bases do chamado "Estado
mínimo" .
O sistema jurídico político liberal em resumo é tradicionalmente associado
àquele que para garantir apropriedade privada e o livre jogo do mercado
"cultivou a noção de espaço público como domínio de sociabilidade oposto ao
domínio privado". Privilegia a liberdade formal, incumbindo ao poder apenas
regular as formas de convivência, convertendose a economia numa questão
eminentemente privada. O direito se torna predominantemente o direito ,
consagrando princípios fundamentais como a autonomia da vontade; livre
disposição contratual e pacta sunt servanda, cumprindo o direito positivo a
função de limitar juridicamente a intervenção estatal no domínio privado .
Na doutrina liberal, o Estado é o fantasma que atemoriza o indivíduo, o inimigo
da liberdade. O Estado jurídico é a formulação teórica capaz de salvar em parte a
liberdade ilimitada de que desfrutava o indivíduo na sociedade pré-estatal.
Forma-se o Estado gendarme, guarda-noturno: simples armadura de defesa e
proteção da liberdade. A sociedade, na concepção liberal, se reduz à poeira
atômica de indivíduos. "A pugna
[Pg. 36]
decide-se no movimento de 1789, quando o direito natural da burguesia
revolucionária investe no poder o terceiro estado" .
Paradoxalmente, entretanto, é este mesmo movimento codificatório que vai
representar a superação histórica do direito natural. "Considerado metafísico e
anticientífico, o direito natural é empurrado para a margem da história pela
onipotência positivista do século XIX" .
Se no contexto do Estado Absolutista o monopólio da legislação era consequência
do fortalecimento do poder do soberano, no Estado Liberal, representava a
garantia do cidadão contra possíveis arbitrariedades dos demais Poderes .
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Os principais teóricos do positivismo jurídico são autores tipicamente liberais,
como é o caso de Montesquieu, e sua famigerada assertiva de que o juiz nada
mais deve ser senão a "boca da lei", e Beccaria, segundo quem a atividade judicial
deve representar um silogismo perfeito, onde a lei é a premissa maior, a ação
conforme ou não a lei a premissa menor, e a liberdade ou a pena a conclusão
inarredável .
Aliás, em Beccaria ainda encontramos, a este propósito, outras afirmações
bastante representativas desta corrente de pensamento, tais como: "os juízes dos
crimes não podem ter o direito de interpretar as leis penais, pela mesma razão
que não são legisladores" . Segundo seu pensamento, o único intérprete legítimo
da lei é o soberano, ou seja, o depositário das vontades atuais de todos, e ao juiz
estaria reservado tão-somente avaliar a prática ou não de determinada conduta.
Quanto a expedientes interpretativos como, por exemplo, o chamado espírito da
lei, eis suas palavras: "Nada mais perigoso do que o axioma comum, de que é
preciso consultar o espírito da lei. Adotar tal axioma é romper todos os diques e
abandonar as leis à torrente das opiniões" , concluindo que o espírito das leis
seria resultado da boa ou má lógica de um juiz.
O princípio da legalidade é o elemento básico do Estado Liberal, assegurando a
liberdade formal, que tem um caráter negativo e defensivo. De outra banda,
associam-se liberalismo e democracia, intimamente ligados, um apresentado
como pressuposto do outro, e o denominador comum entre ambos é a noção de
Estado de Direito , caracterizado este pela no-
[Pg. 38]
ção de que "a justificação e organização do poder do Estado se fazem pelo
fundamento da legalidade, e não pelo da legitimidade" .
O pensamento iluminista define-se como de matriz positivista, portanto, segundo
o qual o Direito é aquele posto pelo Estado, assentado sobre dogmas como o
absolutismo e completude do ordenamento jurídico, onipotência do legislador e
submissão da atividade judicial, tendo como consequência o culto ao texto .
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É esta a perspectiva sob a qual se deve analisar o poder judicante no
constitucionalismo moderno: o juiz, embora independente de todos os demais
poderes, não ostenta poder criativo do Direito. A mecânica da função judicial que
decorre destas premissas é o silogismo. Chave deste modelo é um tipo de
interpretação como simples ato de conhecimento, e não como ato de vontade,
como apresentado pelo neoconstitucionalismo.
Há uma razão política para tal posicionamento: os juízes no momento em que se
instala o constitucionalismo, não tinham boa imagem. Os tribunais na época da
Revolução Francesa eram aristocratizados e confiscavam liberdades. Esta
concepção do papel do juiz se espraia sobre a configuração processual então
forjada. Primeiramente, o poder judicante presume lide, não se manifesta sobre
questões abstratas; além disso, o processo é dialético, feito em contraditório; por
fim, a decisão judicial é circunscrita às partes litigantes, ou seja, inter partes. É a
noção plasmada de devido processo legal.
Segundo Mauro Cappelletti, a atrofia do Judiciário pós-revolução francesa tem
raízes históricas e ideológicas. As primeiras advêm da desconfiança popular, já
que sendo a "nobreza de toga" não convinham com
[Pg. 39]
as ideias revolucionárias. Ideologicamente, porque o legislativo era exercido por
representantes diretos do povo soberano, de modo que ao Judiciário apenas se
poderia cometer a aplicação inanimada da lei .
Note-se, contudo, que no próprio seio das doutrinas positivistas encontramos o
gérmen de concepções mais flexíveis no que respeita a esta posição de aferrada e
inerte submissão do juiz à lei, e que lhe nega poder criativo, e à atividade judicial
o caráter de fonte do direito.
Bobbio ressalta isto ao apontar a discrepância acerca da interpretação do art. 4°
do Código Napoleão, um dos marcos onde desaguou o movimento revolucionário
francês. O dispositivo em questão veiculava a famigerada proibição do juízo de
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non liquet, obrigando o juiz a pronunciar-se em qualquer situação que lhe fosse
apresentada, não podendo omitir-se sob pretexto de lacuna, obscuridade ou
insuficiência da Lei.
Anota Bobbio, então, que a intenção dos redatores do projeto (o que deduz
especialmente a partir das palavras de Portalis) era permitir a livre criação do
direito pelo juiz nestas hipóteses, recorrendo-se para tanto ao juízo de equidade.
Ao contrário disto, os primeiros intérpretes do Código compreenderam a regra de
modo completamente avesso, no sentido de que incumbiria ao juiz sempre
deduzir da própria lei a norma para o caso concreto .
Sob uma outra perspectiva os pressupostos do positivismo igualmente conduzem
irremediavelmente à criatividade judicial, e o fazem por meio de um paradoxo. A
proibição do non liquet constrange o juiz a decidir, e a fazê-lo com base no
fechamento operacional do sistema jurídico, baseado nos dogmas da completude
e unidade do ordenamento, numa hipersimplificação. A proibição de denegação
da justiça abre o sistema jurídico às mais variadas e complexas demandas do
ambiente, e "isso revela que o Judiciário é um inevitável intérprete, criador e
construtor do direito" .
[Pg. 40]
Mesmo a ortodoxia do positivismo jurídico da teoria pura do Direito kelseniana
revela importantíssimas concessões à liberdade judicial na aplicação do Direito,
chegando a textualmente admitir que a atividade judicial é criativa do Direito.
Em sua concepção do ordenamento escalonado (que se reconduz à norma
fundamental), Kelsen observa que a sentença judicial enquadra-se no último
escalão, juntamente com atos de pura execução da sanção legal, norma inferior,
individual e concreta, que deriva de normas superiores, às quais está vinculada.
Porém assevera que esta determinação das normas de escalão superior nunca é
completa, ou seja, não pode vincular emtodas as direções, de modo que sempre
resta uma margem ora maior ora menor de livre apreciação por parte do órgão
aplicador .
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Segue Kelsen lecionando que a indeterminação pode respeitar tanto ao fato,
pressuposto de incidência normativa, como à consequência condicionada, e que a
tal indeterminação pode até mesmo ser intencional. A interpretação da lei
conduzirá a diversas soluções possíveis, e a norma individual efetivamente
produzida representará a adoção de uma destas soluções em potencial, chegando
mesmo a afirmar que "não há qualquer critério com base no qual uma das
possibilidades inscritas na moldura do Direito a aplicar possa ser preferida à
outra" .
[Pg. 41]
O autor refere inclusive um dos critérios possíveis de escolha dentre as soluções
admissíveis, a saber, o da apreciação dos interesses em jogo, como uma
formulação que não pode ser extraída da norma interpretanda, e que resulta
justamente do fato de inexistir uma prévia decisão por parte do órgão formulador
da norma plurívoca de qual dos interesses deve no caso prevalecer, o que se deixa
a cargo do órgão aplicador, chegando-se então a uma relevantíssima conclusão
acerca do caráter político da função jurisdicional, contrariando todas as possíveis
tentativas de se extrair do positivismo jurídico um caráter mecânico da função
jurisdicional. Segundo suas palavras a questão de saber qual é, entre as
possibilidades que se apresentam, a "correta", não seria uma questão de
conhecimento dirigido ao Direito positivo, não seria um problema de teoria do
Direito, mas um problema de política do Direito .
E adiante, a respeito do papel criativo do Direito cometido à atividade judicial,
em paralelo com a atividade legislativa, arremata:
"De certo que existe uma diferença entre estes dois casos, mas é uma diferença
somente quantitativa, não qualitativa, e consiste apenas em que a vinculação do
legislador sob o aspecto material é uma vinculação muito mais reduzida do que a
vinculação do juiz, em que aquele é, relativamente, muito mais livre na criação do
Direito do que este. Mas também este último é um criador de Direito e também
ele é, nesta função, relativamente livre" .
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Não é arriscado dizer que se encontre aí até mesmo uma ideia embrionária de
discricionariedade judicial no ato de interpretação e aplicação do Direito, o que é
admirável considerando as características do pensamento em exame.
Na conclusão acerca deste ponto, Kelsen distingue a interpretação autêntica, que
é a feita pelo órgão aplicador do Direito, e que se caracteriza por
[Pg. 42]
não ser marcada apenas por uma operação cognoscitiva, isto é, que apura as
significações possíveis para a norma interpretanda, visto que acompanhada,
também, de um ato de vontade, qual seja, a escolha feita pelo órgão aplicador,
dentre aquelas reveladas possíveis pela interpretação cognoscitiva .
Em verdade o pano de fundo acerca da criatividade judicial do Direito evoca um
tradicionalíssimo e antigo debate acerca da função criativa da jurisdição entre as
teorias denominadas dualista e unitária. Segundo a primeira concepção,
ocorrido o fato concreto previsto na norma com suposto fático, incide o direito
material de forma plena e completa, independente da atuação do Estado-juiz por
meio do processo, exercendo a jurisdição, ou seja, obrigações e direitos
preexistem ao exercício da função judicial. Isto implica dizer que o juiz se
restringe à aplicação do direito material, "sem poder ava-liar a justiça da lei,
interpretá-la ou participar da criação do próprio direito" .
Para a segunda corrente desta sempre revisitada questão o comando contido na
lei material é incompleto, porque a abstração por natureza impede a plena
abrangência de toda a riqueza que adorna a realidade da vida, sendo
indispensável a atuação da jurisdição de modo a complementar a regra
abstrata . A concepção puramente declaratória da sentença seria um excesso de
lógica, prestigiando um silogismo que raramente ocorre na realidade. A sentença
constitui um processo de crítica sã, que consubstancia um pensamento
normativo, e não representa a lei do caso concreto, senão a justiça do caso
concreto .
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Evidencia-se que a afirmação da natureza criativa da função jurisdicional
necessariamente parte de uma matriz unitária do ordenamento.
O tema da criatividade judicial do Direito foi bastante explorado na doutrina
jusrealista, inclusive com fecundo cotejo com a teoria da separação dos poderes,
um dos pontos sensíveis quando se analisa esta vertente do fenômeno jurídico.
De fato, o fundamento político da negativa de criação do Direito pelo juiz é a
clássica separação de poderes nos moldes pregados por Montesquieu . É
interessante notar que a concepção de separação de poderes proposta por
Montesquieu seja considerada ultrapassada para diversos fins, porém para negar
ao juiz a viabilidade de exercer função criativa, seja ainda defendida.
O pensamento iluminista conduz ao normativismo. O direito é sistema de regras
que representa a vontade geral, e não cabe ao magistrado interferir nesta. Ele é,
unicamente, a boca da lei, restrito à pura subsunção lógica. O realismo vem como
reação ao normativismo. O direito vivido se afasta do codificado, escrito. A
aplicação do Direito exige intermediação, e esta é tisnada pela personalidade do
aplicador, suas experiências pessoais. A justiça se torna algo muito pessoal,
refletindo desde o temperamento, até o ambiente, e a educação, as características
pessoais do magistrado. Para se conhecer o Direito é necessário não apenas ir aos
Tribunais, mas sobretudo ao inconsciente dos magistrados .
[Pg. 44]
Adiante serão suscitadas ideias acerca da política jurídica de Alf Ross, expoente
desta seara da cultura jurídica, neste ponto, analisam-se questões diversas.
Distingue Riccardo Guastini quatro variantes da doutrina jusrealista acerca do
potencial criativo do Direito proporcionado pela atividade jurisdicional pela via
criativa (tese que o referido autor afirma ser tipicamente jusrealista) : i) o juiz
criaria direito quando manipulasse o texto normativo, afastando-se de seu
significado natural, ideia criticada porque todo texto normativo é potencialmente
equívoco, e seria impossível distinguir a interpretação "verdadeira" da "falsa" por
simples falta de parâmetro "de verdade"; ii) o juiz criaria direito ao colmatar as
lacunas do ordenamento. Segundo Guastini, esta tese omite a circunstância de
que as lacunas não precedem ao processo interpretativo, mas dele dependem. A
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interpretação pode prevenir uma lacuna (casos em que haja uma alternativa
interpretativa de acordo com a qual a lacuna inexista); de outro lado, a lacuna
pode ser produzida por alguma forma de interpretação. Outro problema com esta
variante é que implicitamente rechaça que o juiz crie direito na ausência de
lacuna; iii) a terceira variante tem fundo kelseniano, conforme já anteriormente
expostas as ideias do autor alemão. Neste passo, o juiz criaria sempre a norma
individual baseada na norma geral. A crítica aventada por Guastini, neste passo,
centra-se na observação de que concebendo ela o raciocínio jurídico como mera
dedução (norma geral, acrescida do fato concreto e conclusão subsuntiva), não
seria apropriado atribuir qualquer significado criativo a uma simples derivação
da norma geral. Sensatamente, apenas se poderia dizer que houveefetiva criação
do direito se a sentença se afastasse da norma geral, porém se isto ocorresse a
sentença seria, antes de criativa, arbitrária; iv) a quarta variante, mais "vigorosa"
na concepção de Guastini, afirma que o juiz cria direito ao decidir acerca
[Pg. 45]
do significado do texto normativo, de modo que inexistiriam direitos
preexistentes à decisão judicial, e mais, não haveria outra fonte de direito que não
a jurisprudência (como adiante se verá, Mauro Barberis denomina esta corrente
como "jusrealismo radical").
A crítica não menos vigorosa a esta corrente suscita que embora veraz que todos
os textos normativos sejam potencialmente equívocos e sujeitos a pluralidade de
significados interpretativos, afirma-se a falsidade da suposição de que todos os
textos normativos estejam sujeitos somente à interpretação judicial. Nem todos
os textos estão sujeitos à aplicação judicial, bastaria pensar, como cita Guastini a
título exemplificativo, nas disposições constitucionais que instituem e
regulamentam o próprio Poder Judiciário. O máximo que se poderia seria dizer
que o direito é criado por todos os órgãos de aplicação, o que inclui as instâncias
políticas e administrativas, o que ainda incidiria no defeito de excluir a
participação dos juristas. Além disto, a tese implica um círculo vicioso: se todo
direito é criado pelo juiz, o conhecimento do direito pressupõe a identificação
prévia do juiz enquanto tal, mas o "juízo" é também um conceito jurídico, de
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modo que sua conceituação envolve igualmente o conhecimento do direito (isto é,
para conhecer o direito você precisa saber quem é o juiz; mas para saber quem é o
juiz, precisa conhecer o direito).
A tese defendida por Guastini como adequada à equação do problema parte da
distinção entre norma como simples enunciado normativo (disposição), o que
seria uma designação formal; e norma como o significado deste dispositivo.
Destarte, a criação do Direito pode assumir duas formas alternativas: o
significado de legislar, editar enunciados ou disposições, o que é reservado ao
Poder Legislativo; porém também pode representar a atribuição de significados
aos enunciados postos pelo legislador, caso em que seria criado pela via
interpretativa, inclusive judicial. A conclusão geral a que chega é de que "il diritto
nasce della combinazione di legislazione (ancora in senso ‘materiale’) e
interpretazione" .
Apresenta ainda como parte de suas conclusões algumas proposições: i) o
legislador produz disposições, e estas admitem um quadro de significados
alternativos possíveis (retomando-se, mais uma vez, Kelsen); ii) a interpre-
[Pg. 46]
tação cognoscitiva significaria identificar este quadro de significados alter-nativos
possíveis, o que obviamente não constitui criação de significados (e ainda o fundo
kelseneano bem demarcado); iii) a interpretação decisória, feita por órgão de
aplicação da lei (segundo Kelsen "autêntica") constitui a escolha de um
significado dentre outros possíveis, para usa-lo como justificação para uma
decisão, e apenas num sentido muito débil se poderia dizê-la criativa de Direito
(adiante, ver-se-á assertiva praticamente idêntica de Mauro Barberis); iv) às
vezes o órgão de aplicação atribui um significado que não se contém naquele
quadro de significados possíveis a uma disposição, e o utiliza para justificar uma
decisão. Neste caso ocorre o que se poderia chamar de "criação" de uma norma
não-expressa, atividade análoga à legislação em sentido material; v) às vezes o
órgão de aplicação apresenta uma lacuna (ou a constrói) e para supri-la apresenta
uma norma inexpressa que sequer se tenta apresentar como significado de
disposição alguma. Aqui se trata realmente de criação de direito, num sentido
forte da palavra; e por fim, vi) o órgão de aplicação, em alguns casos, cuida de
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aplicar disposição que não constitui regra, mas princípio, e aí a atividade
interpretativa se desdobra em duas frentes: a concretização do princípio em si, e
a sua ponderação com outros princípios aplicáveis, criando-se tanto a norma
inexpressa incidente, como relações hierárquicas entre princípios (acerca do
caráter criativo da interpretação ínsita à aplicação de princípios, volta-se
adiante).
Argumenta-se, por fim, que no exercício do controle de constitucionalidade é
inegável o caráter criativo (mesmo que em sentido negativo) do Direito, visto que
a abrogação implica a alteração do quadro de disposições ou respectivos
significados que constitui o que se define como Direito, até mesmo pela via
interpretativa (quando se afirma uma determinada interpretação possível como a
única constitucionalmente aceitável, assim como se elimina uma dada alternativa
interpretativa como inaceitável).
Um dos pontos mais delicados na avaliação das concepções jusrealistas é sua
análise à luz de pressupostos ínsitos ao princípio da separação dos poderes.
Estudo percuciente acerca destes problemas é empreendido por Mauro
Barberis .
[Pg. 47]
Ponto de partida da análise é a constatação de uma contradição fundamental na
doutrina jurídica dos últimos dois séculos, consistente no fato de que a maioria
dos juristas comunga de alguma versão da doutrina da separação dos poderes, e
em particular, da tese de que dos juízes espera-se apenas a aplicação do Direito
criado pelo legislador; de outro lado, estes mesmos juristas, ou grande parte
deles, também admitem alguma versão jusrealista da interpretação, de que
mesmo o juiz mais fiel à lei não possa deixar de, em algum sentido, criar
Direito .
O fio condutor da análise de Barberis é então distinguir versões da doutrina da
separação dos poderes, em seguida versões do realismo jurídico, e então coteja-
los, propondo soluções conciliatórias ou admitindo como irremediável a
contradição.
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Barberis identifica três variantes de jusrealismo, duas delas citadas por Guastini.
A quarta alternativa alhures enumerada, da lavra de Guastini, é denominada por
Mauro Barberis como jusrealismo radical (todo o Direito é produto da atuação
judicial, o legislador se limita a pronunciar palavras, cujo significado será
posteriormente estabelecido apenas pelo juiz, de modo que antes da
interpretação todas as disposições legislativas não são dotadas de significado
algum) .
A corrente de jusrealismo adotada por Guastini é denominada por Barberis como
moderada, definida como a admissão da participação judicial na criação do
Direito, no sentido de que ao juiz incumbe escolher entre os diversos significados
atribuíveis aos enunciados do legislador. Ou seja, não é que os textos normativos
não expressem significado sem a interpretação judicial, mas sim que expressam
mais de um, e a inter-pretação consiste precisamente na escolha de um. Vez mais,
portanto, recupera-se a ideia kelseniana de que a interpretação ocorre dentro de
[Pg. 48]
um quadro de normas conjecturado pela interpretação científica, e depois
escolhido pelo juiz para o fim de aplicá-la ao caso concreto .
Destaca-se que não existe real oposição ente separação dos poderes e jusrealismo
quando se pensa na primeira como balancelamento de poderes (uma das versões
encontráveis na obra de Montesquieu e destacada por Barberis). Esta versão
prevê a possibilidade de que os órgãos estatais desempenhem parcelas de
atividade na qual não são especializados, como forma de controle e limitação
recíprocos, evitando a tirania (seria o que, na doutrina nacional, mais
comumente se denomina exercício de atividades atípicas). Para esta alternativa,
portanto, a participação judicial criativa do Direito é não apenas compatível,como necessária, e ostenta ricos exemplos em culturas jurídicas como o "common
", com fenômenos como o "judicial review of legislation" americano, e o
próprio controle de constitucionalidade (de marcada tradição nos Estados Unidos
da América).
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A incompatibilidade surge de fato quando se pensa na denominada por Barberis
separação de poderes em sentido estrito, que tem no conhecido jargão do juiz
como a "boca da lei", sua mais sintética expressão. Neste contexto apresenta-se o
juiz como ser inanimado ao qual se veda a criação do Direito. Segundo Barberis,
Montesquieu defendeu esta versão radicalizada (separação dos poderes em
sentido estrito) combinada com uma primeira versão da doutrina, unicamente
com relação ao Poder Judiciário, pois que com relação às funções chamadas
políticas, a saber, Legislativa e Executiva, optou pelo balanceamento .
[Pg. 49]
Considerando que a separação dos poderes entendida apenas como
balanceamento não entra em contradição com a doutrina jusrealista de criação
judicial do Direito (por motivos já expostos), o autor aponta que qualquer padrão
de confronto somente poderia tomar por base a separação de poderes em sentido
estrito, com alguma forma de jusrealismo.
A primeira solução aventada dissolve a contradição sustentando que separação de
poderes em sentido estrito e jusrealismo pertencem a universos diferentes, de
modo que não é que sejam incompatíveis, mas sim incomparáveis. A separação
de poderes em sentido estrito é uma doutrina, e portanto prescreveria como os
juízes deveriam agir (sentido norma-tivo), a teoria jusrealista é cognoscitiva (ao
menos as versões "radical" e "moderada", o giusliberismo, como já mencionado,
teria caráter norma-tivo), ou seja, descreve como os juízes efetivamente agem.
O defeito desta solução é partir de um pressuposto não verificável, o de que
universos normativo e cognoscitivo não se relacionem. Na verdade relacionam-se
na medida da relação "dever/poder", isto é, algo somente pode ser sustentado
como devido se for passível de ser implementado. Ora, se a tese jusrealista
sustenta ser impossível que o juiz não crie Direito, então a separação de poderes
em sentido estrito como doutrina de como as coisas deveriam se passar na
atividade jurisdicional, defende o impossível, e deve ser descartada .
A segunda solução proposta aproxima-se de um dos postulados defendidos por
Riccardo Guastini, e que também já foi alhures mencionado (proposição "iii"
retro destacada). Parte-se da noção de que as duas correntes, separação de
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poderes em sentido estrito e jusrealismo moderado, conferem aos termos "criar"
e "produzir" norma jurídica sentidos diver-sos. A doutrina da separação dos
poderes fala em "criar" ou "produzir" Direito num sentido forte, o legislador cria
normas jurídicas válidas erga omnes. Já o jusrealismo moderado fala em
criatividade num sentido fra-
[Pg. 50]
co, "significa solo interpretare o anche integrare la legislazione, ma sempre e solo
al fine di decidere il caso sottoposto al giudice" . Isto não quer dizer que o juiz
produza norma individual e concreta tão-somente, pois que a norma produzida
na motivação do julgado, como produto da inter-pretação ou integração, é geral,
mas norma geral que exaure sua função na sentença, ou seja, na justificação
dedutiva da norma individual formulada no dispositivo, sem nenhuma eficácia
erga omnes .
O que a doutrina da separação de poderes em sentido estrito veda ao juiz é o
legislar, isto é, criar normas gerais eficazes erga omnes, mas interpretar ou
integrar o Direito para o fim de compor determinada lide ou punir crimes, com
exclusiva eficácia inter partes, constitui normal exercício da função jurisdicional,
sem nenhuma contradição, neste aspecto, entre as correntes estudadas .
A terceira solução proposta por Barberis (que a rigor solução não é) em verdade
cuida de admitir a contradição entre a doutrina da separação de poderes em
sentido estrito e o giusliberismo, inclusive reconhecendo que se trata de uma
divergência de atitude valorativa relativamente a um fato (criatividade judicial do
Direito), e haverá sempre, aí, um foco de tensão, e até mesmo conflitos abertos,
pois fundados que são em valores diversos. Tais valores são a legalidade, do lado
da doutrina da separação de poderes em senso estreito, e justiça, ao lado da
produção judicial do
[Pg. 51]
Direito. A legalidade e a justiça nem sempre serão conciliáveis pela via da
interpretação, caso em que apenas se poderá escolher se se aplica a norma
injusta, em respeito à legalidade e ao Direito, ou se a viola, respeitando, porém, a
moral e a justiça. Este não é, contudo, um problema de interpretação, mas ético.
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Conclui Mauro Barberis que por mais que se acomodem soluções entre as
diversas versões das teorias estudadas, a contradição entre legalidade e justiça é
em última instância irredutível, existindo única perspectiva de convívio nos
quadrantes do débil vínculo do balanceamento de poderes .
É oportuno neste passo observar que o princípio da separação dos poderes,
segundo abalizada doutrina, vem sofrendo ao longo do tempo duas leituras
equivocadas . A primeira delas parte do pressuposto de que na França pós-
revolucionária se praticava uma equitativa divisão de poderes, quando bem se
sabe que o Legislativo exercia, então, o protagonismo político e a função de
governo, seguido em importância pelo Executivo e por um Judiciário discreto,
mera "boca da lei" . É o que bem denominou Tércio Sampaio Ferraz Jr como
neutralização política do Judiciário, elemento característico do Estado burguês,
baseado na divisão anti-hierarquizante dos poderes; separação entre direito e
política; centralização da legislação como fonte do direito; definição do ato
jurisdicional como mera
[Pg. 52]
subsunção, sem influência do jogo de interesses concretos que presidiu a
formação legislativa e sem atenção a algum conteúdo ético de relevo .
A passagem ao Estado social revela a alteração da conformação do equilíbrio de
poder entre as funções estatais, pois agora o protagonismo passa ao Executivo ,
principal responsável pela implementação de políticas públicas realizadoras dos
novos direitos sociais.
A impiedosa exploração do trabalho humano e a violenta espoliação da classe
proletária que caracterizaram a primeira fase da Revolução Industrial foram a
prova da necessidade imediata de uma correção do conceito de liberdade de
acordo com as cores do liberalismo clássico, o que vai sendo paulatinamente
enxertado no corpo das Constituições democráticas. A liberdade em que se
arrima o liberalismo, por ser apenas formal, culmina numa real liberdade de
oprimir os fracos. "A socialização branda, cujo sopro vitaliza e regenera as
Constituições modernas, sem, contudo, calcar aos pés a personalidade
humana" .
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A repercussão da Primeira Guerra Mundial e da Grande Depressão redundou na
formação do Estado intervencionista, que assume a prestação direta dos serviços
considerados essenciais, bem como da atividade econômica, repercutindo nas
doutrinas político-econômicas com o advento da "extrafiscalidade", isto é, a
superação das finalidades meramente arrecadatórias, passando os gastos
públicos a representarem forma de transferência e de inversão .
A explosão de litigiosidade ocasionada pelas contradições provocadas pela ordem
capitalista oligopolista gerou a progressivadesfiguração das características
básicas do Estado Liberal. O Estado expande sua função
[Pg. 53]
de regulação, controle e planejamento, intervencionismo que vem sob o rótulo de
"socializar". No âmbito do ordenamento, o que se vê é o recurso a normas
crescentemente indeterminadas e conceitualmente abstratas, sob a fachada de
um formalismo jurídico. O discurso jurídico do Estado intervencionista agora se
torna ético, programático e pedagógico . O liberalismo de nossos dias vem
temperado com ingredientes da socialização moderna, fazendo-se não apenas
jurídico, mas econômico e social .
O Estado interferente em amplos domínios da sociedade se expõe às pressões
desta, e surge, com o controle jurisdicional desta atividade socialmente
incrementada do Estado, em especial do Executivo, o gérmen da
responsabilização política do Judiciário . O debate migra para fontes
extraparlamentares do direito; direito judicial; ativismo judicial ;
discricionariedade judicial e controle judicial de políticas públicas (este último
tema a seguir aprofundado). E é então que o papel central no sistema jurídico
desloca-se da legislação à jurisdição .
O positivismo jurídico produziu o fetiche da lei e o legalismo acrítico que
historicamente serviram de disfarce e amparo ao autoritarismo, tanto que a
decadência do positivismo está historicamente associada à derrota do fascismo e
do nazismo. Rechaçou-se no pós-Segunda Guerra qualquer
[Pg. 54]
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ideia de ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como estrutura
puramente formal .
A democracia social intensifica a participação do Estado na sociedade, com
provedor do bem-estar, assim como conduz ao fortalecimento da participação do
juiz no processo, impondo-lhe zelar por um processo justo, capaz de permitir: a)
a justa aplicação das normas; b) a adequada verificação de fatos e a participação
das partes e c) a efetividade da tutela dos direitos. Cede o mito da imparcialidade
como neutralidade, visto que na ideologia do Estado Social o juiz é obrigado a
participar do processo, não podendo desconsiderar desigualdades sociais que o
próprio Estado visa eliminar .
O ordenamento característico do Estado Liberal é de natureza
repressiva/protetiva, que visa impedir ações nocivas por meio da cominação de
sanções negativas. O Estado intervencionista é caracterizado pelo ordenamento
promocional, que objetiva estimular comportamentos desejáveis por meio de
sanções positivas ou premiais. No primeiro caso o controle social é passivo, no
segundo, ativo .
Ademais, a atrofia do Judiciário, decorrente desta primeira forma de distorção do
princípio da separação dos poderes, ignora que num ambiente de democracia
participativa, a participação direta da sociedade no governo não pode se
reduzir aos instrumentos alocados no Legislativo (voto popular; leis de iniciativa
popular; plebiscito; etc.) ou no Executivo (voto popular; audiências públicas;
etc.). O processo deve ser encarado como fator de inclusão social, sendo
indiferente o fato de que juízes não sejam, em alguns sistemas políticos, eleitos, o
que não os dispensa de contribuir para a boa gestão da coisa pública e para
veicular as legítimas
[Pg. 55]
pretensões sociais aos centros de poder. Interessa aqui menos a forma de
investidura, que a forma de exercício do múnus público conferido .
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O segundo erro na consideração do postulado da separação dos poderes é
acreditar em sua literalidade, ou seja, na possibilidade de uma estanque e perfeita
divisão de tarefas. A substituição da dimensão estática do Estado, representada
pelo binômio Poder-Soberania, pela dimensão dinâmica de Estado-função,
conduz irremediavelmente ao reconhecimento da comunicação e
complementaridade entre as tradicionais atividades de legislar, administrar e
julgar. A relação entre os poderes, então, reconhece-se como sendo de
integração-complementaridade, resolvendo-se numa lógica de preponderância
de atividades, a nomogênese, a administração pública e a composição de conflitos
respectivamente .
O constitucionalismo que emerge especialmente após a Segunda Guerra Mundial,
marcado pelas dolorosas experiências ditatoriais, não se baseia numa rígida
divisão de poderes, mas sim num sharing of powers, isto é, um sistema de
controles recíprocos, "que chamamos de constitucionalismo moderno" .
Assim, conclui-se facilmente que admitir a criatividade judicial do Direito nada
tem de herético com relação ao princípio da separação dos poderes. É uma
decorrência inevitável da evolução história da atividade estatal, como
demonstrado (do protagonismo legislativo ao judicial), além de comportar-se
perfeitamente numa divisão de tarefas estatais como passível de implementação
prática (isto é, sem recortes estanques e incomunicáveis de atividades
absolutamente privativas).
Uma palavra adicional merece ser dita a este propósito, mesmo que sem descer a
maiores minúcias ou digressões acerca das concepções acerca das fontes do
Direito. Pensemos nestas, simplificando, como centros emanadores de normas
jurídicas, sem mais polemizar.
[Pg. 56]
Negar à atividade judiciária o caráter de fonte criativa do Direito seria negar-lhe o
próprio caráter jurisdicional (ou seja, de juris dictio, dizer o Direito). Não há
como pensar na definição judicial de uma controvérsia, ou mesmo na
regulamentação de um interesse privado (para abrangermos a jurisdição
voluntária), como outra coisa senão a norma de Direito individual e concreta.
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Não há como dizer que aquela norma preexistia. O que existia era uma matriz, a
moldura ou parâmetro, isto se não quisermos discutir os pressupostos do
positivismo, atribuindo ao juiz a possibilidade de criar matrizes (mantendo a
metáfora), o que se pretende fazer adiante.
Como adverte Couture, a sentença quando passa em julgado tem algo a mais que
a lei: seu caráter coativo e a natureza imutável .
Não se está a descobrir o ovo de Colombo porque o raciocínio aqui feito é, de
certa forma, simplório, e já foi de há muito deduzido em doutrina. Cappelletti em
obra bastante conhecida ("Juízes legisladores?") postulava que do ponto de vista
substancial, tanto a atividade legislativa como a jurisdicional são criadoras do
Direito. Porém divergem no que respeita ao procedimento estruturado para
tanto, pois que a atividade jurisdicional é informada por princípios estranhos à
legislativa, como o são a imparcialidade do órgão judicante, o contraditório
assegurado aos interessados e a inércia judicial .
[Pg. 57]
Fala-se que o Estado possui uma função jurídica exercida em dois momentos
distintos, primeiro ao legislar, editando regras abstratas; em segundo, ao atuar
praticamente a regra antes editada .
Deste modo, parece que o verdadeiro debate se coloca em aferir o grau de
criatividade judicial que é admissível e desejável de acordo com certa concepção
filosófica acerca do Direito. Chega-se a dizer, como o faz o autoproclamado
neopragmático Richard Posner, que os juízes legislam "intersticialmente" .
A verdadeira trincheira do positivismo jurídico é estreitar ao máximo a moldura
dentro da qual o juiz desenhará a solução concreta, inclusive postulando que no
caso em que moldura inexistir, seja o desenho traçado dentro da mesma moldura
já existente para um mesmo tipo de desenho.
Em suma, mesmo que se acreditasse que a atividade judicial representasse um
silogismo perfeito, teríamos que as premissas, maior (lei geral) e menor (conduta
humana) seriam dados preexistentes e alheios ao Estado-juiz, porém a conclusão,
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mesmo que decorrente de um simples e frio cálculo, seria necessariamente obra
emanada da pena do juiz, e para negar a esta conclusão o caráter jurídico, seria
preciso desnaturar a própria função jurisdicional .
Argumentou-se linhas atrás uma hipótese em que nem se cogita atividade
interpretativa. Fato é que mesmo o positivismo mais ortodoxo, como já
demonstrado, admite que a passagem do paradigma geral à solução individual
dá-se inevitavelmente pela via da interpretação, quando então se torna ainda
mais imperioso reconhecer o caráter criativo da função judicial .
[Pg. 58]
Mas não há razão para amesquinhar a criatividade judicial do Direito ao mínimo
admitido até mesmo pela mais ortodoxa corrente positivista .
Alhures foram referidas variantes do realismo jurídico as quais procuram
identificar os reais limites do potencial criativo do Direito inerente à função
jurisdicional. E um ponto que remanesce sem resposta é justamente a razão pela
qual as variantes sejam expostas como estanques e mutuamente excludentes.
A complexidade da sociedade contemporânea exige da atividade jurisdicional
grau de refinamento que não se compadece com os restritos limites do
positivismo jurídico conservador, e nem com a alternatividade proposta pelas
análises anteriormente citadas acerca do realismo jurídico.
Casos diversos exigirão do juiz um simples silogismo, hipóteses em que a
sentença será derivação interpretativa da regra geral, sem maiores predicados
criativos, e em que a criação limitar-se-á mesmo à norma individual (situação em
que Guastini, como já citado, até mesmo nega a criatividade proposta) , eis o
cenário mais desejável para o positivismo kelseniano. Em outras situações,
contudo, o enunciado normativo será passível de significados diversos (diversas
normas, para quem sustenta que a norma é, na realidade, o significado extraído
da disposição), e o nível criativo elevar-se-á para aquilo que se chamou de
jusrealismo moderado, incumbindo aí ao juiz escolher aquele sentido que se
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compadeça melhor com a teoria moral que embasa o conceito de justiça na
sociedade em que imersa a atividade jurisdicional (para maiores detalhes acerca
deste ponto, conferir parágrafo seguinte).
[Pg. 59]
Já em algumas situações, diagnosticar-se-á lacuna no ordenamento (e por vezes,
a conclusão de que há uma lacuna será, ela mesma, uma opção interpretativa,
mais desejável à vista de uma interpretação que negue a lacuna, porém favoreça a
injustiça), casos em que aquele nível de criatividade novamente será
incrementado, reclamando-se do juiz, agora, a formulação de uma norma que,
como advertido por Barberis, é geral e abstrata, porém exaurindo sua carga de
imperatividade na solução de um caso concreto submetido à apreciação judicial.
Por vezes, ainda, ver-se-á o juiz na contingência de empreender aquilo que
Guastini denominou de manipulação do texto normativo o qual, aplicado em seu
sentido natural, violaria princípio de justiça (conforme conceito, repita-se, a
seguir explorado).
Quiçá para o realismo jurídico radical encontraremos espaço no seio de uma
sociedade que reclama do Judiciário sensibilidade e coragem sobejas para
reconhecer os direitos postos até mesmo nas dobras e entrelinhas de suas regras
fundamentais (leia-se: Constituições). De fato, são conhecidos os casos em que
determinados direitos somente adquirem expressão, conceituação, conformação
de limites e eficácia, após reconhecimento judicial, situações em que o índice de
criatividade judicial do Direito atinge o grau máximo nesta espécie de
termômetro imaginário de criacionismo jurídico . Neste mesmo nível estarão
atividades, já citadas, de controle de constitucionalidade, ou a decisão que firma
precedente no regime de "common " (nesta segunda hipótese, com alguma
vacilação, conforme discussão adiante proposta).
Ao aplicar a lei ao caso concreto a magistratura acaba por assumir a função de co-
autora desta, em especial em face da crescente incapacidade do Legislativo (e, de
modo atípico, do Executivo) de editar leis claras e sem lacunas, respeitadoras dos
princípios gerais de Direito ou mesmo de postulados constitucionais que são
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comezinhos alicerces do Estado Constitucional de Direito. Daí o inevitável
aumento das possibilidades de escolha, decisão e controle que recaem sobre a
magistratura, conduzindo
[Pg. 60]
ao protagonismo judicial na economia e na política, convertendo o Judiciário em
órgão legislativamente ativo .
Percebe-se claramente que o modus de exercício da função jurisdicional e o papel
social da magistratura são os referenciais básicos para se saber da saúde política
de um povo numa democracia .
Fundamental é anotar, entretanto, que nos bastidores destas possíveis posturas
judiciais invariavelmente estará o conflito clinicamente apontado por Mauro
Barberis, entre legalidade e justiça. É precisamente este o ponto nodal dos
dilemas no reconhecimento de que a atividade jurisdicional é criativa do Direito.
Com efeito, a resposta mais óbvia quando se questiona a justiça de uma decisão
judicial é afirmar que esta não deve ser "justa" de acordo com critérios genéricos
de justiça substancial, senão, conforme a lei, isto é, de acordo com a regra de
direito positivo aplicável. Esta resposta está longe de ser satisfatória, porque
implica um formalismo prejudicial, que reduz o Direito à lei e a justiça à
legalidade, de modo que "legalità sai un requisito indispensabile della decisione
giudiziaria, ma non sia la sola condizione suficiente della giustizia di essa" .
Imaginemos agora um segundo termômetro, destinado a medir o grau de
conflituosidade entre legalidade e justiça, no qual os níveis inferiores indicariam
a menor incongruência entre estas noções, até à redução a zero (lei inteiramente
conforme a noção intuitiva de justiça do corpo social); e em que o nível crescente
chegasse ao máximo de indicar uma lei que repudie a mais comezinha noção de
justiça admitida como aceitável na sociedade.
A legitimidade da criatividade judicial do Direito interage com a coordenação dos
dois termômetros imaginários.
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Quanto menor o nível de confronto entre legalidade e justiça num caso concreto
(reduzindo-se, por exemplo, ao nível da inexistência de incongruência), menos
desejável se torna que o juiz inove na aplicação do
[Pg. 61]
Direito, sendo conveniente sob o prisma da segurança jurídica, que se contente
na redução do Direito à lei.
De outro lado, quanto maior a incompatibilidade entre legalidade positiva e
justiça, mais se espera do juiz (e consequentemente mais se legitima) que sua
criatividade corrija a distorção, autorizando-se a utilização de instrumentos mais
agudos (da escolha de sentidos à manipulação de textos normativos, ou mesmo
ao reconhecimento de direitos implícitos) à medida que a legalidade mais
repugne a justiça, sobrepondo-se o caráter do juiz como agente de aplicação do
Direito, com o intuito de realizar a justiça concreta, que positivista aferrado à
aplicação da lei.
O que se defende, então, é que o princípio da legalidade não pode levar ao
automatismo na aplicação da lei. A vinculação que se reconhece é da decisão
judicial com relação ao sistema jurídico, e não à literalidade da lei propriamente
dita. Cobra-se do juiz uma decisão justa e funcional, uma concretização da ideia
de justiça embutida na norma, isto é, ao juiz cabe identificar determinadomodo
de realizar justiça .
Portanto, a primeira conclusão a que se chega é, na verdade, o ponto de partida
do raciocínio que se seguirá: tem-se como pressuposta a aceitação do caráter
criativo da atividade judicial. O debate, então, se seguirá justamente pela
definição da natureza e sentido que se reclama desta criatividade para que o
Estado-juiz se faça apto a desempenhar as funções que a sociedade pós-social lhe
exige.
[Pg. 62]
2. Sentido do papel interpretativo-criativo da atividade judicial
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O ponto abordado, função criativa do juiz, toca diversos aspectos polêmicos do
fenômeno jurídico, alvo de antigas e modernas teorias, e das meditações de
grandes expoentes e teóricos do Direito. Vai-se desde o debate acerca de
adequada conceituação de fontes do Direito, e da caracterização ou não da
jurisprudência como tal, até as origens da legitimidade democrática da função
jurisdicional.
Em se falando de interpretação, a doutrina basilar da teoria geral do Direito
distingue os métodos interpretativos dos tipos de interpretação, os primeiros
divididos em gramatical, lógico e sistemático; os segundos nas interpretações
especificadora, restritiva e extensiva .
Consentaneamente à Revolução Francesa e aos ideais liberais temos, por
evidente, a ascensão das interpretações gramatical e sistemática, como métodos
por excelência. Emerge a "Escola da Exegese", que reclama do intérprete uma
atitude analítica perante os textos, de perquirição filológica. O dever do jurista
era ater-se ao texto, isoladamente (interpretação gramatical ou literal) ou sob o
prisma orgânico (lógico-sistemático). Obviamente que estes métodos
interpretativos referiam-se ainda que dissimuladamente ao respeito à intenção
original do legislador, e puderam prevalecer enquanto não houve mudanças
sensíveis nas relações sociais .
Em verdade como argutamente anotado por Tércio Sampaio Ferraz Jr, no fundo
a chamada interpretação gramatical tem na análise léxica unicamente uma forma
de demonstrar inconsistências lógicas, e não de resolvê-las. Segundo leciona, as
incompatibilidades lógicas são solucionadas por três procedimentos retóricos: a
atitude formal, que se baseia em recomendações gerais prévias à ocorrência do
conflito (como são princípios hermenêuticos, por exemplo, de que a lei não
contém expressões supérfluas; o regramento especial prevalece sobre o geral;
etc.); a
[Pg. 63]
atitude prática, fundada nas recomendações que emergem da própria situação
conflitiva, como procedimentos de classificação e reclassificação, definições e
redefinições, que por vezes separam os termos em forma de oposição simétrica e
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ora em conjugação; e a atitude diplomática, que reclama do intérprete certa
inventividade, como são as propostas de ficções (por exemplo, presume-se
sempre a boa-fé). Já a interpretação sistemática funda-se no pressuposto
hermenêutico da unidade do sistema .
Sob a influência da Escola Histórica de Savigny surge a noção de interpretação
histórica, que reconhece a necessidade da lei acompanhar as vicissitudes sociais,
informada pela diretriz de descobrir qual teria sido a intenção do legislador e sua
conclusão se no seu tempo houvesse fenômenos que se encontram hoje. A
necessidade de uma compreensão progres-siva da lei surge com os "pandectistas"
alemães, com a noção de "intenção possível do legislador", que é aquela que se
verifica na época em que se situa o intérprete. A teoria da interpretação histórico-
evolutiva baseia-se na ideia de que uma norma, uma vez emanada, desprende-se
da pessoa do legislador e passaria a ter vida própria .
Em verdade as interpretações histórica e sociológica/evolutiva em face de
problemas de vaguidade ou ambiguidade de palavras ou sentenças, buscam o
significado (problema semântico) do texto no conjunto vital – cultural, político e
econômico – momentâneo (sociológica ou evolutiva) ou sua gênese no tempo
(histórica) .
Note-se, contudo, que mesmo a interpretação histórico-evolutiva se situa, ainda,
no âmbito da lei, não se admitindo trabalho criador, à mar-
[Pg. 64]
gem ou a despeito dela. Reconhece-se que a elasticidade, mesmo histórica do
texto, tem limites. O que fazer quando os fatos sociais os traspassam?
Temos, então, métodos adicionais, que apelam ao maior incremento do caráter
criativo da atuação do intérprete, como são os métodos teleológico (que procura,
sempre que possível, atribuir um propósito às normas, e nele encontrar a
solução) e o axiológico (procura o valor imanente à regra interpretanda) .
À vista dos limites reconhecidos mesmo à interpretação histórico-evolutiva, vem
o movimento da livre pesquisa do Direito (libre recherche), segundo o qual se
deve ter franqueza em reconhecer que existem lacunas na obra legislativa, que
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verificadas, devem ser supridas pelos costumes e pela analogia. Esta
revalorização dos costumes como fonte complementar corresponde à autorização
ao juiz a que proceda à investigação dos fatos sociais e neles descubra a regra
jurídica apropriada. Esta regra, contudo, não se descola da lógica interna que
informa a índole do sistema positivo. Não há plena liberdade de indagação.
Assim, pode-se aferir que há lacunas na legislação, porém o Direito, entendido
como ordenamento, não comporta lacunas .
Como anteriormente destacado, além dos métodos interpretativos, distinguem-se
os tipos de interpretação em especificadora, restritiva e extensiva. A primeira
parte do pressuposto de que o sentido da norma cabe na letra de seu enunciado,
isto é, para aferir-se o sentido do texto normativo não há necessidade de
esgotarem-se todas as possibilidades significativas, mas somente ir até o ponto
em que os problemas pareçam razoavelmente decidíveis .
A interpretação restritiva limita o sentido da norma não obstante a amplitude da
sua expressão literal; e a extensiva, por evidente, em oposição simétrica, amplia o
sentido para além do contido na literalidade, isto é, o trabalho do intérprete é
tornar vaga e ambígua, ou mais vagas e
[Pg. 65]
ambíguas, mensagens normativas que em princípio poderiam ser tidas por
precisas .
É interessante perceber que há, na explicitação dos diversos métodos e até
mesmo tipos interpretativos, um movimento de sucessão entre eles que se baseia
predominantemente no reconhecimento da insuficiência do método ou tipo
anterior.
Com efeito, a interpretação sistemática sucede-se à gramatical, por se verificar
que em dadas situações a possível conflituosidade entre diversos preceitos de um
mesmo sistema que deveria ser harmônico, reclama um reparo interpretativo.
Ademais, em alguns casos, nota-se o descompasso entre a norma engessada e a
realidade social em movimento, reclamando-se, agora, um trabalho adaptativo
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evolutivo do intérprete. Em outros casos, haverá necessidade, diante da
complexidade dos fatos sociais, de perquirir-se a mens legis, ou o valor
prestigiado pelo ordenamento, e assim por diante.
O nível de criatividade interpretativo aumenta à medida que a reali-dade social
não se comporta na literalidade do texto normativo e na sua imanente falta de
plasticidade. Alhures já se fez uma simplória comparação entre os "termômetros"
que medem criatividade judicial em cotejo com o nível de conflituosidade entre
legalidade e justiça.
Assim que contemporaneamente salienta-se tanto a natureza criadora do
processo hermenêutico, como seu caráter unitário.Aspectos gramatical;
sistemático; lógico; axiológico e teleológico desde o início se imbricam e se
exigem reciprocamente, são simples momentos do processo global interpretativo,
em si uno e concreto .
Vamos ver em que paragens esta evolução da criatividade interpretativa do
Direito se encontra no presente momento.
Por agora, pincemos o capítulo destinado ao tema "A Justiça e os Direitos", da
conhecida obra de Ronald Dworkin, Taking rights seriously,
[Pg. 66]
na qual o autor analisa a teoria de justiça de John Rawls, procurando identificar
os postulados de teoria moral que lhe estão à base, apresentando algumas
ponderações, por nós emprestadas a seguir, que serão o fundamento teórico do
que se sustentará acerca do tema enunciado em epígrafe .
É bom ter em conta que Dworkin concebe o Direito como um sistema normativo
de base moral , o que será marca fundamental em todos os postulados e
conclusões de sua análise acerca da ideia de equilíbrio reflexivo posta por Rawls,
e que assim se resumem.
Parte-se do pressuposto, admitido por Rawls, de que os indivíduos são dotados
de um senso intuitivo de justiça que aplicam em sua vida quoti-diana, e que seria
tarefa da filosofia moral forjar uma estrutura de princípios que ampare essas
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convicções intuitivas das quais estamos certos.
Na verdade, dupla seria a função deste arcabouço principiológico: explicar as
convicções intuitivas, revelando os pressupostos que lhes sejam subjacentes; e
prover orientações para casos em que não temos convicção intuitiva formada, ou
em que esta intuição seja fraca, ou em que haja convicções contraditórias. Além
disto, esta estrutura de princípios não apenas explicará, como servirá de
fundamento para os juízos formados com base nestas convicções, afirmando-se
então que tais princípios devem ter apelo independente do senso moral de quem
os aplica .
Atingir o equilíbrio reflexivo de que fala Rawls reclama um processo de ajuste
contínuo e dialético, entre os juízos intuitivos e a estrutura de princípios
explicativos.
A técnica do equilíbrio reflexivo entre intuições morais e a teoria moral
correspectiva pressupõe, na verdade, uma teoria da coerência da moralidade,
distinguindo Dworkin, então, dois modelos gerais que definem coerência,
concluindo que a técnica do equilíbrio encontra sentido num destes modelos,
porém não no outro.
[Pg. 67]
O primeiro destes modelos é denominado de natural, segundo o qual as intuições
morais seriam indícios de uma realidade moral objetiva, e a atividade cognitiva
do indivíduo partindo destas intuições rumo à teoria geral moral seria de efetiva
descoberta. Para utilizarmos a metáfora de Dworkin, "como um naturalista
reconstrói a forma de um animal inteiro a partir dos fragmentos dos ossos que
encontrou" .
O segundo modelo, denominado construtivo, parte de pressuposto oposto: a
teoria geral da moralidade não existe enquanto realidade objetiva, preexistente e
independente das intuições que sejam sinal de sua existência; as convicções
intuitivas aqui são traços de uma teoria a ser construída (construção esta que
será baseada nestes indícios intuitivos). Retomando a metáfora: "como se um
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escultor se propusesse a esculpir o animal que melhor se ajusta à pilha de ossos
que por acaso encontrou ... Não pressupõe que o animal que se amolda aos ossos
realmente exista" .
Vertendo o que foi dito para a linguagem mais própria, defende-se nesta segunda
corrente que é responsabilidade das autoridades públicas adequar seus juízos e
decisões a um programa coerente de ação .
Segue Dworkin traçando um paralelo entre os dois modelos, inclusive analisando
a compatibilidade de cada um deles com a teoria de Rawls. O que para nós mais
releva é a defesa do modelo construtivo como aquele mais próprio para o governo
de uma comunidade na qual grassem fortes convicções contraditórias, de modo
que se pode por meio dele formular a teoria geral de justiça própria a uma
comunidade o que, segundo o autor, é tarefa importante na decisão judicial. O
ponto fulcral deste modelo é o que denomina uma doutrina da responsabilidade,
a ser observada pelos indivíduos e notadamente autoridades públicas.
[Pg. 68]
Suas palavras, neste ponto, são de transcrição indispensável, pois revelam os
pressupostos nodais do modelo defendido: "Pressupõe que uma coerência
articulada, assim como decisões de acordo com um programa que possa tornar-se
público e ser seguido enquanto não for modificado, são aspectos fundamentais de
qualquer concepção de justiça" .
A rigor explica-se que os dois modelos estudados, natural e construtivista, não
são incompatíveis. A questão é que o segundo modelo não nega a existência da
realidade moral objetiva (ontologia moral), apenas a considera irrelevante. Para
retomar a metáfora do naturalista, o modelo construtivo não se importa se existe
e como seja o animal verdadeiro e real. Contenta-se em que o animal esculpido
seja compatível com os ossos, de modo que se possa prever quais ossos estão em
qual lugar (mesmo aqueles não localizados ainda), e qual sua respectiva função.
Por isto é defendido como o mais adequado para descrever um programa de
justiça inerente a uma coletividade, descartando a necessidade do universo moral
objetivo, e as modulações falso/verdadeiro próprias a este . Por outras palavras,
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as intuições de justiça/injustiça num modelo natural, uma vez confrontadas com
a ontologia moral, são consideradas falsas ou verdadeiras. Já frente à teoria
construtiva, coerentes ou não coerentes com o programa de ação forjado, nada
impedindo, entretanto, que de acordo com a evolução da comunidade venham
um dia a ser compatíveis com uma renovada teoria de justiça que venha ser
construída, ou mesmo que venham a ser compatíveis com a teoria construída em
outra comunidade, em condições culturais diversas.
É que na verdade o modelo construtivo admite francamente que a teoria geral de
justiça que contém o programa de ação coerente é inerente às condições de
espaço, tempo e local consideradas .
[Pg. 69]
Retendo as noções até agora postas, outras vamos encontrar no pensamento de
Eros Roberto Grau, e que vêm a propósito dos fundamentos que estamos a por
para o que se concluirá a seguir.
Após refutar que da doutrina de Marx se possa extrair a ideia de que o Direito é
reflexo da Economia, o autor em questão identifica, ainda no pensamento de
Marx, a concepção de direito pressuposto, o que faz a partir do trecho em que
Marx descreve o relacionamento travado entre os possuidores ou guardiões de
mercadorias, como elemento necessário às trocas econômicas, visto que
mercadorias não se relacionam sozinhas .
A relação estabelecida pelos proprietários de mercadorias em razão do fluxo do
mercado existe e tem seu conteúdo estabelecido independentemente de sua
regulamentação legal. Cuida-se aí de uma relação jurídica interior à sociedade
, cuja existência pode ser reconhecida pelo Estado, e em sendo, positivada
por este mediante regras legais, vai-se, então, do direito pressuposto ao posto.
Dito de outro modo, o Estado põe o direito que até então era uma relação
jurídica interior à sociedade , como direito pressuposto, e que por via da lei
torna-se direito posto .
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Seguem-se as lições, com a constatação de que o direito pressuposto brota da
sociedade, como um elemento cultural próprio ao modo de produçãovigente.
Afirma-se também que direito pressuposto e direito posto estão um para com o
outro em relação de interação recíproca. O legislador cria o direito posto à base
do direito pressuposto. Porém aquele também modifica as condições que
presidem a formação do direito pressuposto. As transformações do direito
decorrem de alterações que são "gestadas", para usar a expressão de Eros Grau,
no seio da sociedade, ou seja, no direito pressuposto .
[Pg. 70]
Os princípios gerais inerentes a um determinado direito são encontrados no
direito pressuposto que lhe corresponda. Na verdade, segundo o autor estudado,
o direito pressuposto é fundamentalmente princípios, apenas ocasionalmente
vicejando regras em seu conteúdo normativo .
Retoma-se então a lição de León Duguit, que apresenta pensamento paralelo à
noção de direito pressuposto, embora distinto, com a afirmação de que a norma
social nasce do fato social, e divide-se em categorias: normas econômicas, morais
e jurídicas. Todas as normas jurídicas são econômicas ou morais, e o que marca a
passagem destas àquela categoria é a conformação da massa de consciências
individuais de que a sanção material em relação à transgressão de determinada
norma moral ou econômica merece ser socialmente organizada. Deste modo, o
legislador não cria a regra de direito normativa, ele a constata a partir do fato
social, de onde a tal regra retira sua eficácia vinculante, de forma que é possível
que a regra de direito exista anteriormente e apesar do Estado.
Duguit propõe a distinção entre regras de direito normativas e regras de direito
construtivas ou técnicas. As primeiras seriam as normas jurídicas propriamente
ditas, impondo certa abstenção ou uma certa ação; as segundas são estabelecidas
para assegurar, tanto quanto possível, "o respeito e a aplicação das regras de
direito normativas" . Obviamente que a existência de normas técnicas ou
construtivas pressupõe a existência de um Estado, e são a criação da lei positiva,
com a enunciação de procedimentos técnicos destinados a realizar a norma
jurídica.
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Segue Eros Grau, buscando em vasta pesquisa na literatura jurídica,
notadamente a estrangeira, paralelos à ideia de direito pressuposto, o que,
embora frutífero, escaparia às necessidades de nosso estudo. Registre-se apenas,
ao final e ao cabo da análise de seu pensamento neste ponto, a feliz expressão que
do modo mais nítido possível reflete a noção de direito pressuposto: relação
jurídica involucrada nas relações sociais; que assim funciona como uma das
linguagens sociais. A metáfora empregada
[Pg. 71]
pelo autor evoca o direito posto como a língua oficial, e os direitos pressupostos,
os dialetos praticados pela sociedade .
Obviamente que embora parta das relações jurídicas distinguidas nas relações
sociais de cunho econômico, Eros Grau deixa patente em sua exposição que o
direito pressuposto não se limita às relações desta natureza, espraiando-se por
todas as formas concebíveis de relacionamento humano.
Vamos arejar a exposição veiculando um exemplo bem prático e de todos os
militantes da área jurídica conhecido, em que se pôde constatar com clareza a
aplicação das noções até agora expostas.
Apesar do forte apelo religioso de prisma cristão incutido na ideia do santo
matrimônio, e do estigma que inicialmente gravava as relações entre homem e
mulher que se punham à parte deste universo, fato é que a história da
humanidade sempre conviveu com relacionamentos afetivos entre homens e
mulheres que floresciam e se desenvolviam fora dos parâmetros da cristandade,
isto é, "sem a benção divina".
Mesmo com a laicização do Estado, e a consequente afirmação do casamento
, o tipo de relacionamento "informal" retro mencionado seguiu grassando no
meio social, só que agora fora dos parâmetros do que o ordenamento jurídico
definia como a forma legal do relacionamento conjugal, ao qual emprestava
diversos efeitos jurídicos.
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Com ou sem a aquiescência religiosa ou estatal, tais relacionamentos brotaram na
sociedade, como fatos sociais, relação jurídica involucrada nas relações sociais,
para retomar a expressão de Eros Grau. E os termos deste relacionamento
igualmente foram formatados independentemente a qualquer ideia de
regulamentação estatal, a comunhão de vidas baseada na afeição amorosa, com
conotações sexuais, da qual derivava natural-mente a formação de prole,
acúmulo de patrimônio, etc.
Logo controvérsias surgiram envolvendo todos estes parâmetros desta relação
que, até então, não passava de um fato social, controvérsias estas que
desembocaram no Estado-juiz, braço estatal que assumiu com caráter de
monopólio, o exercício da jurisdição, a solução de controvérsias mediante
aplicação do Direito.
[Pg. 72]
Havia uma matriz muito assemelhada, no caso, o casamento , amplamente
regulamentado pelo ordenamento jurídico. Era fácil deduzir um conjunto de
princípios coerentemente estruturados capazes de explicar as noções intuitivas de
justo/injusto da coletividade para este tipo de relação jurídica.
Era intuitivo, por exemplo, que como qualquer relacionamento humano, o
respeito ao núcleo de atributos que constitui a dignidade do ser humano seria
aqui também fundamental; que por se tratar de uma relação baseada na afeição,
cada um poderia esperar legitimamente do outro prestações sentimentais de
carinho e atenção, e até mesmo de satisfação sexual; que o esforço comum para a
formação patrimonial deveria conduzir inevitavelmente à partilha daquilo que
com o esforço conjunto se amealhou, já que o contrário implicaria
enriquecimento sem causa em favor do agraciado com a totalidade dos bens; que
seria justo por parte de um dos consortes esperar do outro, em razão da afeição
que os unira, também o amparo material em caso de dificuldade; que as relações
parentais com a prole formada em razão da união deveriam ser afetadas o
mínimo possível pelos problemas havidos entre os pais.
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Podíamos, assim, estabelecer, ou seja, construir (modelo construtivo), uma teoria
moral que era a matriz da teoria de justiça própria ao relacionamento afetivo
entre homens e mulheres na sociedade brasileira do momento respectivo.
Os postulados desta teoria de justiça explicavam os diversos regramentos
positivados na regulamentação legal do matrimônio. Por exemplo, o direito de
visitas assegurado ao genitor que não permanecesse com a guarda do filho
decorria do postulado de que o relacionamento parental deveria ser preservado
mesmo com o malogro do relacionamento conjugal, e que pais e filhos teriam um
direito moral a manterem o convívio.
Em confronto com as diversas controvérsias surgidas em relacionamentos não
ungidos pelos laços do matrimônio formal, a coletividade e especialmente as
autoridades públicas para alguns casos ostentavam noções intuitivas de justiça;
para outras situações, estas convicções eram fracas, ou mesmo inexistentes.
Segue-se, então, a necessidade de cotejar tais noções intuitivas com aquela teoria
geral de justiça dos relacionamentos afetivos entre homens
[Pg. 73]
e mulheres, própria à sociedade objeto do exame. Num procedimento de idas e
vindas entre as intuições particulares e a teoria geral de justiça, com ajustes
sucessivos, poder-se-ia chegar então ao estado de equilíbrio reflexivo, de modo
que se pudesse regular esta nova situação, para a qual não havia convicções, ou
estas eram fracas, de modo coerente com um programa de ação público e baseado
na doutrina da responsabilidade.
Alguém poderia, por exemplo, imaginar que em razão da falta da formalização do
matrimônio

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