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EA D A Evangelização dos Índios e dos Negros 2 1. OBJETIVOS • Analisar os métodos evangelizatórios. • Compreender as controvérsias existentes em torno da evangelização dos índios. • Interpretar as diferenças entre os caminhos da evangeli- zação na América espanhola e no Brasil. • Compreender o problema da evangelização dos negros. 2. CONTEÚDOS • Métodos evangelizatórios. • Debate sobre a evangelização dos índios. • Ciclos evangelizatórios. • Padre Antônio Vieira e a crítica ao sistema colonial por- tuguês. • A questão negra: o grande paradoxo da evangelização. © História da Igreja na América Latina e no Brasil46 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Como você irá observar no decorrer desta leitura, a pro- posta dos jesuítas é inteiramente diferente da proposta de Las Casas. Lembre e compare as datas para ver o que estava acontecendo na América espanhola nesse mes- mo período. 2) Sugestões de filmes: GUADALUPE. Direção: Bruce Baker. Distribuição: Verbo Filmes. Los Angeles: Franciscan Com- munications Center, [s.d.]. Videocassete (35 min), VHS; A VIRGEM de Guadalupe. Direção: Murilo Sebastião Ramos Krieger. Campinas: Associação do Senhor Jesus, [s.d.]. Videocassete (60 min), VHS. 3) Sobre a história da Virgem de Guadalupe no México, existe um considerável material publicado que você pode conferir na bibliografia indicada. Há, também, pelo menos, dois vídeos que oferecem uma boa visão do contexto histórico e da simbologia dessa história e que fornecem elementos para várias leituras da Virgem de Guadalupe e do seu significado para a evangelização dos índios. 4) Para ampliar seus conhecimentiostos sobre evange- lização, catequese e escravidão dos negros, sugerimos que você consulte as obras: AZZI, R. A teologia católica na formação da sociedade colonial brasileira. Petrópo- lis: Vozes, 2005 (em que o autor fala sobre a teologia da escravidão); IDEM. A Igreja católica na formação da sociedade brasileira. Aparecida: Santuário, 2008, p. 27- 29 – em que o autor fala sobre a escravidão legitimada. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Na unidade anterior, conhecemos um pouco das questões introdutórias que julgamos importantes para o início de nosso es- tudo sobre a história da Igreja na América espanhola e no Brasil. 47© A Evangelização dos Índios e dos Negros Nesta segunda unidade, vamos estudar como os homens do século 16 pensaram a evangelização dos índios na América espa- nhola e na América portuguesa, bem como os métodos evangeli- zatórios correntes naquela época e as opiniões, discussões, con- trovérsias e críticas que foram geradas em torno do assunto. É importante ficar atento às diferenças de mentalidade dos missionários espanhóis e portugueses e aos diferentes rumos que a evangelização tomou na América e no Brasil. Bom estudo! 5. MÉTODOS EVANGELIZATÓRIOS A discussão em torno dos distintos procedimentos ou mo- dos de evangelizar os índios é uma questão ampla e complexa. Os métodos evangelizatórios são maneiras, formas ou teorias para pensar e transmitir o evangelho e a fé cristã aos indígenas ou, ain- da, caminhos por meio dos quais o evangelho foi levado a esses nativos. Por isso, devemos pensar que esses caminhos não foram os mesmos utilizados por todos os missionários nem iguais para todas as populações. As ordens religiosas, o clero secular e os lei- gos tiveram diversas formas de evangelizar, pois a evangelização não dependia somente do agente evangelizador ou da Igreja como instituição ou como ordem religiosa (haja vista que cada ordem ti- nha suas próprias metodologias), mas também do grau de cultura e de desenvolvimento dos indígenas, ou seja, se estes viviam nos campos ou nas cidades. Essas situações concretas tinham uma grande influência no modo de evangelizar. Disto resultam múltiplos modos de instruir os indígenas na fé cristã. Há de se considerar, ainda, que a manei- ra de evangelizar dependia, também, do modo da conquista. Se a conquista havia sido pacífica, a recepção e a reação por parte dos indígenas eram, também, pacíficas. Se havia sido violenta, era de se esperar uma reação violenta, o que levava os missionários © História da Igreja na América Latina e no Brasil48 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO a tomarem atitudes mais enérgicas e, muitas vezes, brutais. De maneira sucinta, porém, buscando uma visão mais ampla, vamos relacionar alguns métodos usados pelos missionários na evangeli- zação da América espanhola. Tábula rasa Tábula rasa, do latim, significa uma tábua apagada, uma superfície apagada, ou seja, uma folha em branco. O método da tábula rasa consistia na ideia de que as culturas que os europeus encontraram na América ou no mundo extraeuropeu não podiam contribuir em nada com a evangelização. Portanto, a evangeliza- ção devia partir da estaca zero, isto é, tudo devia ser implantado nas mentes e nos corações dos povos, pois estes não tinham nada que pudesse servir ou ser aproveitado para a evangelização. Veja o que nos diz Dussel: No indígena não havia nenhum valor recuperável e, por isso, era necessário começar de novo: com nova língua, nova cultura, novos costumes e nova religião. O índio era considerado uma criança que devia aprender tudo (1982, p. 10-11). Além do mais, eram culturas e povos contaminados pela ig- norância, pela imoralidade, pela feitiçaria, pelo canibalismo etc. Evangelizar, segundo essa teoria, significava, simplesmente, "plan- tar" ou "transplantar" o evangelho da Europa para a América. É um método pedagogicamente passivo. O evangelizando é o receptor; ele aprende repetindo. Não há uma relação de troca entre evange- lizador e evangelizado. Esse método previa o uso da violência e da força caso os índios não estivessem "aprendendo o evangelho e a doutrina". Um dos defensores desse método foi Juan Ginés de Se- púlveda, no Tratado Democrates Alter, que aparecerá adiante em nosso estudo. Sepúlveda dizia que "não há nenhum outro cami- nho seguro para pregar o evangelho senão a conquista pela força das armas" (SEPÚLVEDA apud DUSSEL, 1983, p. 343). 49© A Evangelização dos Índios e dos Negros De único modo Contrariamente ao método da tábula rasa, o método de úni- co modo (sobre o único modo) parte do princípio de que existe um único modo de evangelizar os índios, que é por meio da não vio- lência. É o método de Las Casas. Ele foi o primeiro a elaborar uma teoria para englobar os índios como sujeitos ativos da evangeliza- ção, pois eles não são simples objetos da caridade, da doutrina ou da catequese. De único modo é um método pacífico de evangelizar que leva em conta o índio como pessoa humana. Método reducional O método reducional, na perspectiva dos historiadores, foi o que mais se impôs na evangelização dos índios. A redução era uma grande concentração de índios em povoados ou aldeias. Foi um modelo de evangelização usado pelas ordens religiosas para converter os indígenas, bem como foi, também, um modelo po- lítico e social. Isto significa que as reduções não foram somente promovidas pela Igreja, mas também pelo Estado. Se a Igreja tinha interesses, digamos "religiosos", o Estado, por sua vez, tinha inte- resses políticos e econômicos. Destruição da idolatria Esse método, na verdade, não era novo para os missioná- rios, pois está presente na Igreja desde o início do cristianismo. À medida que o cristianismo avançava, deuses, templos e oratórios pagãos eram destruídos; no lugar deles, era fincada uma cruz e construída uma capela ou uma igreja. Aqui, na América, não foi diferente. Os missionários destruíam os templos indígenas e, em seus lugares, construíam templos cristãos. Destruíam os deuses e povoavam os lugares com santos cristãos. Destruíam os lugares de culto e construíam igrejas, capelas eoratórios cristãos. Por exem- plo, no Peru, em Cuzco – a capital incaica –, os dominicanos trans- formaram em catedral o Templo do Sol. Os primeiros franciscanos chegaram no México em 1524 e condenaram, violentamente, as antigas crenças e os antigos deuses dos astecas. © História da Igreja na América Latina e no Brasil50 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Pregação itinerante Um dos métodos missionários utilizados desde o início da conquista foi a pregação do evangelho e da doutrina cristã de po- voado em povoado. Os missionários seguiam a geografia do terri- tório penetrando no interior do continente, pregando nos povoa- dos e nas vilas e ministrando os sacramentos aos indígenas. Este também não era um método novo. A evangelização na Europa, especialmente na Idade Média, deu-se graças aos missionários iti- nerantes. Destacaram-se alguns franciscanos que: Vestidos de burel, andavam descalços, dormiam debaixo de um ta- blado, comiam raízes e se identificavam com os índios. Perguntados por que gostavam tanto dos franciscanos, os índios responderam: "Porque são pobres e andam descalços como nós, porque comem o mesmo que nós, porque se estabelecem entre nós e vivem entre nós pacificamente" (BIDEGÁIN, 1993, p. 128-129). Accomodatio Accomodatio não é acomodação, mas adaptação. Esse mé- todo parte do pressuposto de que o evangelho e o missionário devem adaptar-se à cultura local percebendo nela o que é com- patível com o cristianismo, mas sem que haja nenhuma agressão à religião local, ou seja, há o respeito à religião de chegada com a não imposição da superioridade do evangelho. A teoria do acco- modatio ou adaptação foi o método do grande missionário jesuíta Francisco Xavier (1506-1552), na Índia e no Japão, e de Mateus Ricci (1552-1610), na China. Foi o método que teve maior expres- sividade na Ásia. Pouco ou quase nada se fala, por parte de es- tudiosos do assunto, sobre seu uso aqui na América. Entretanto, não podemos negar que esse método foi a prática de centenas de missionários anônimos que, longe de fazer estardalhaço ou de preocupar-se com resultados quantitativos, simplesmente evan- gelizaram e viveram a vida inteira nas comunidades, nas vilas e nos povoados, nas regiões mais recônditas do continente latino- -americano, testemunhando o evangelho com a própria vida. 51© A Evangelização dos Índios e dos Negros 6. DEBATE EM TORNO DA EVANGELIZAÇÃO DOS ÍN- DIOS Na América espanhola: Bartolomé de Las Casas e Juan Ginés de Sepúlveda Decorridos quase 60 anos da conquista da América, na Es- panha, acumularam-se muitas opiniões – desfavoráveis em sua maior parte – sobre os índios. Os defensores alinhavam-se à opi- nião do papa Paulo III (1534-1549). Em 1537, o papa expediu dois documentos: 1) o Breve Pastorale Officium; 2) a bula Sublimis Deus, a favor da liberdade e da capacida- de dos índios de serem evangelizados. Os índios deveriam ser convertidos com pregações e bons exemplos. Os adversários alinhavam-se ao lado oposto. Se os ín- dios resistissem, deveriam ser evangelizados à força, haja vista que, para a maioria dos espanhóis, os indígenas estavam mais pró- ximos dos animais do que dos homens. Você deve estar se perguntando: afinal, quem eram os habi- tantes do novo continente? Quem era o homem da América? Uma vez chamados de "índios", eram seres dotados de razão? Eram ca- pazes de serem evangelizados? Como deveria ser a evangelização? Quem teria direito e poder sobre os índios? Eram os índios bárba- ros? Seria legítimo fazer guerra contra eles? Em torno dessas questões e de muitas outras, travaram-se grandes polêmicas. Nestas, destacaram-se duas grandes persona- lidades: 1) Bartolomé de Las Casas (1480-1566) Figura 1; 2) Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573) Figura 2. Eram duas versões acerca dos nativos da América. Nas pala- vras de Josaphat (2000, p. 137), são "modelos antagônicos de ler a história e o evangelho". Las Casas insistia na semelhança entre © História da Igreja na América Latina e no Brasil52 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO índios e cristãos. Sepúlveda, nas diferenças. Las Casas defendia a tese da não violência e que os índios deveriam ser evangeliza- dos sem qualquer ação guerreira, porque, em virtude do direito natural, eram livres como os espanhóis. Sepúlveda, por sua vez, defendia a guerra contra os índios em razão da condição destes, pois eram irracionais, bárbaros e infiéis. Seu pensamento está fun- damentado em Aristóteles, na oposição entre cidadão grego e bár- baro, conforme vimos na unidade primeira. Fonte: Josaphat (2000, p. 6). Figura 1 Bartolomé de Las Casas (1478/80-1566). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Bartolomé de Las Casas nasceu em 1480, de uma família da pequena burguesia, em Sevilha, na Espanha. Em 1498, bacharelou-se em Artes. Em 1501, recebeu as ordens menores e tornou-se clérigo. Em 1502, vai à Hispaniola (Santo Domin- gos) doutrinar índios e recebe uma encomenda com repartimento de índios. No 4º domingo do Advento de 1511, Las Casas ouviu o sermão profético do domi- nicano Antônio de Montesinos, intitulado "Sou uma voz que clama no deserto", por meio do qual se acusava os encomendeiros de maltratarem os índios. Foi o momento decisivo para a transformação de sua vida. Em 1516, elabora um primeiro plano de colonização pacífica para as Índias, que consistia em colonizar com famílias de camponeses hispânicos casados e pobres que tivessem terras e gado e em manter os povoados indígenas totalmente livres. Ao todo, foram em torno de seis planos. Todos fracassaram. Em 1522, entra a Ordem Dominicana 53© A Evangelização dos Índios e dos Negros na Espanha, e, até 1532, Las Casas ficou recluso num convento estudando teo- logia, filosofia, política e direito. Escreveu várias obras em defesa dos índios. Em 1543, foi nomeado bispo de Chiapas, no México. Em 1547, entra em conflito com o poder latifundiário instalado e abandona a diocese. Faleceu em 1566. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Com suas teorias sobre a evangelização dos índios, elabora- das a partir de longos estudos, especialmente por sua vivência e sua experiência no Novo Mundo, Las Casas enfrentou Juan Ginés de Sepúlveda em Valladolid. O debate foi promovido pelo Conse- lho das Índias e pelo rei, pois queriam escutar as duas opiniões que circulavam acerca da condição dos nativos na América. A fi- nalidade do debate era examinar os prós e os contras relativos à racionalidade dos índios. O debate aconteceu no calor do andamento do Concílio de Trento. Pode-se suspeitar que a Espanha fez um grande esforço para que as discussões não chegassem ao Concílio e permaneces- sem, apenas, como um problema interno sem ecos para Roma. Em 1550, na América, já se discutia a possibilidade da realização de Concílios no México e no Peru. Assunto esse que será discutido na unidade seguinte. Os debates realizaram-se em duas sessões, em agosto e se- tembro de 1550 e em maio de 1551. A banca esteve formada por 14 juízes, entre os quais teólogos, juristas e letrados. Dentre os te- ólogos, três eram dominicanos e um era franciscano. Na primeira sessão, Sepúlveda falou três horas e Las Casas, cinco dias (BRUIT, 1995, p. 121). Sepúlveda, fundamentando seu pensamento nas teses de Aristóteles sobre o senhor e o escravo, defendia a superioridade espanhola e a inferioridade indígena, como também as justas cau- sas da guerra contra os índios. Para ele, os índios deveriam ser dominados pelos cristãos porque eram bárbaros por natureza e porque careciam de suficiente razão humana para se autogover- narem. © História da Igreja na América Latina e no Brasil54 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Figura 2 Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573). Segundo Gutiérrez (1995, p. 350), Sepúlveda não estava in- teressado em difamar os índios simplesmente por difamar ou por cultivar o gosto pela difamação. Seu propósito principalera políti- co, ou seja, "salvaguardar os direitos da Coroa espanhola e os pri- vilégios dos encomendeiros". Sepúlveda, na condição de ideólogo da conquista e de pensador à serviço da Coroa, sentia-se na obri- gação de teorizar em prol da Espanha e de defender os interesses políticos e empresariais no Novo Mundo. Foi um defensor dos in- teresses da Espanha e posicionou-se a favor da política espanhola na América. Nesse sentido, a evangelização dos índios era, apenas, um dos elementos que compunham a empresa conquistadora e exploradora espanhola e que deveriam se encaixar nessa empresa. Las Casas considera que os índios devem ser evangelizados sem violência e sem ambição de poder nem de riqueza, mas com 55© A Evangelização dos Índios e dos Negros amor e com testemunho de vida. Eles são racionais e livres por natureza; por isso, não podem ser excluídos do processo evangeli- zatório. Esta é a ideia central de Do único modo de atrair os povos à verdadeira religião. Las Casas fundamenta essa tese na tradição da Igreja: Evangelho, São Paulo, João Crisóstomo, Santo Agostinho, Santo Atanásio, São Jerônimo, Santo Anselmo e São Tomás. A respeito da racionalidade e da liberdade dos índios, Las Ca- sas fundamenta sua argumentação na questão da lei natural e do direito natural, de São Tomás. O homem é racional por natureza, é capaz de conhecer, tem livre-arbítrio. A defesa dos índios consis- te, justamente, em mostrar que eles são criaturas humanas tanto quanto os espanhóis. Portanto, para atrair os índios à verdadeira religião, era ne- cessário respeitar a liberdade, a humanidade e a vontade deles. Era necessário usar métodos não violentos, mas persuasivos. A aceitação da fé cristã devia ser voluntária e consciente, pois todos os racionais têm condições de receber a fé cristã. Na réplica final contra Sepúlveda, Las Casas encerrou o debate propondo a evan- gelização pacífica dos índios. Os índios são nossos irmãos, pelos quais Cristo deu a sua vida. Por que os perseguimos sem que tenham merecido tal coisa, com de- sumana crueldade? O passado, e o que deixou de ser feito, não tem remédio; seja atri- buído à nossa fraqueza sempre que for feita a restituição dos bens impiamente arrebatados. Além disso, esteja ausente de nós toda crueldade e aparato bélico mais próprio dos maometanos do que dos cristãos. Sejam enviados aos índios pregoeiros íntegros, cujos costumes sejam espelho de Jesus Cristo e cujas almas sejam reflexo das de Pedro e Paulo. Se for assim feito, estou convencido de que abraçarão a doutrina evangélica, pois não são néscios nem bárbaros, mas de inata since- ridade, simples, modestos e mansos (SUESS, 1992, p. 543). Para atrair os índios para o cristianismo, os evangelizadores devem ser pessoas bem preparadas para poder despertar neles o © História da Igreja na América Latina e no Brasil56 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO interesse pela fé cristã. Se os índios não aderem ao cristianismo é porque a evangelização não está sendo adequada ao modo de ser deles. Se eles não estão sendo doutrinados e educados na fé cristã, então o problema não está neles, mas em quem educa e doutrina, pois este não usa métodos adequados para persuadi-los e convencê-los a aceitar o evangelho. Dessa maneira, a polêmica travada entre Las Casas e Sepúl- veda revela as mais profundas contradições da história produzidas na aurora da modernidade por uma sociedade que se dizia civili- zada e cristã. Ambos beberam do pensamento de seu tempo para defender a criação de uma nova sociedade: a sociedade america- na. No nascedouro dessa sociedade, Las Casas detecta contradi- ções e incompatibilidades no modo como esta estava sendo ge- rada: "distorcida, sem justiça, sem direito e sem legítimo poder" (BRUIT, 1995, p. 109). Na verdade, eram "dois paradigmas opostos de Igreja, de teologia e de civilização" (JOSAPHAT, 2000, p. 152). Guadalupe: por uma evangelização inculturada Entre nossas análises a respeito da evangelização da América, colocamos, também, a questão Guadalupe como um contraponto às controvérsias e aos grandes debates "oficiais" ocorridos em torno da evangelização. Há pelo menos 20 anos antes dos debates entre Las Casas e Sepúlveda, aqui, na América, mais precisamente no Mé- xico, acontecia um fato ímpar para a história da evangelização dos índios: irrompia, silenciosamente, Nossa Senhora de Guadalupe (Fi- gura 3) como um modelo de evangelização do povo pobre. A história de Guadalupe mostra que a evangelização estava dando resultados positivos, que os indígenas estavam sendo convertidos e que esta- vam aderindo à doutrina cristã. Em meio à tragédia da conquista, o evangelho trazia a esperança e resgatava a dignidade da humanida- de indígena. Guadalupe mostra que nem tudo foi tragédia e que a semente do evangelho estava germinando entre os mexicanos. 57© A Evangelização dos Índios e dos Negros Figura 3 Nossa Senhora de Guadalupe, padroeira do México e das Américas. A história de Nossa Senhora de Guadalupe passa-se no Mé- xico, no ano de 1531, dez anos após a conquista da capital mexica- na, e está condensada na narrativa conhecida como Nican mopo- hua ("aqui se conta" em português), escrita por Antônio Valeriano em nahuatl, a língua comum dos mexicanos. Antônio Valeriano foi aluno e professor no colégio franciscano de Tlatilolco; mais tarde, fez carreira política e ocupou-se com o resgate da cultura asteca no tempo da conquista. A narrativa apresenta os vários encontros que a Virgem de Guadalupe teve com o índio Juan Diego, manifestando um manda- do e um pedido: que fosse até o bispo e que pedisse para que ele construísse um templo na periferia da cidade. O bispo resiste e o índio desanima. A Virgem, porém, manifesta sua predileção pelo © História da Igreja na América Latina e no Brasil58 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO índio e continua insistindo que ele retorne ao bispo com sua men- sagem. Finalmente, após o manifesto de um sinal, o bispo aceita e crê na mensagem. Não vamos relatar, detalhadamente, a história de Nossa Senhora de Guadalupe, mas você pode encontrá-la, como já dito, no texto de SUSIN, L. C. Aqui se conta: a narrativa de Nossa Senhora de Guadalupe. REB. v. 52, fasc. 206, p. 259-281, jun. 1992., e nos filmes indicados nas "Orientações para o estudo da unidade". É importante conhecê-la, pois ela teve grande parceria e foi de notá- vel relevância no processo evangelizador do povo mexicano. A história de Guadalupe quer mostrar que a evangelização é um movimento interativo, um movimento pedagógico, ou seja, é aprendizado, vivência e ensino. Em outras palavras, todos têm condições para receber o evangelho, para vivê-lo e ensiná-lo. A evangelização é reciprocidade, não é monopólio de um grupo. Nessa óptica, Guadalupe é um movimento que vem do povo e que nivela por baixo enquanto as discussões e os debates acon- tecem nas mais altas esferas do poder e da cultura. Nas discussões sobre a evangelização, Guadalupe aparece na contramão, porque não discute opiniões ou teorias, mas parte do pressuposto de que o evangelho é uma vivência possível para todos, sem distinção de cultura ou de classe social. A Virgem, quando aparece para o índio Juan Diego, não discute teorias e pareceres, mas pede que coisas sejam feitas e que atitudes sejam tomadas, que vá ao bispo e que um templo seja construído. Desse modo, Guadalupe é uma nova chave, um novo para- digma para ler a história da conquista, da evangelização, do cristia- nismo e da Igreja na América Latina. No Brasil: Nóbrega e Anchieta –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Manuel da Nóbrega nasceu em Portugal, em 1517. Começou a estudar direito canônico em Salamanca, em 1534, onde ensinavam Francisco de Vitória e Do- mingos de Soto (Francisco de Vitória, teólogo e jurista, coordenou o debate entre 59© A Evangelização dos Índios e dos Negros Las Casas e Sepúlveda e concluiu que os índios não podem ser escravizados). Nóbregagraduou-se em Direito Canônico em 1541. Já sacerdote, em 1544, aos 27 anos, entrou para a recém-fundada Companhia de Jesus. Em 1549, aos 32 anos, com a armada de Tomé de Souza, vem para o Brasil. Morreu em 1570, no Rio de Janeiro. José de Anchieta nasceu em Tenerife, nas Ilhas Canárias, em 1533. Ingressou na Companhia de Jesus em 1551. Chegou ao Brasil com a armada do segundo governador geral, Duarte da Costa, em 1553, com 20 anos de idade. Faleceu em Miritiba, em 1597. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Em 1549, D. João III (1521-1557), rei de Portugal, nomeou Tomé de Souza para governador geral do Brasil. Além dos objetivos militares e econômicos, o rei ordenou a ele a conversão dos índios: Porque a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para [que] a gente dela se convertesse à nos- sa Santa Fé Católica, vos encomendo muito que para isso se pode ter, e de minha parte lhe direis que lhes agradecerei muito terem especial cuidado de os provocar a serem cristãos [...] (EISENBERG, 2000, p. 63). Na armada do governador-geral, vieram, também, os primei- ros jesuítas, chefiados pelo Padre Manuel da Nóbrega (Figura 4). A convite de D. João III, os jesuítas vieram com finalidade expli- citamente missionária; por isso eram considerados missionários reais. Assim, com a vinda deles, inicia-se a evangelização e a cate- quese oficial dos índios, integrada ao sistema econômico e colonial português. Portanto, deve-se entender a ação jesuítica como uma empresa missionária. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Você deve estar se perguntando: que caminhos tomaram a evangelização? Como os missionários jesuítas entenderam sua missão? Como pensaram a evangelização e a catequese dos gentios brasileiros? Até que ponto chegava a consciência possível acerca da evangelização para os primeiros jesuítas? –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– São questões importantes que precisamos colocar quando se trata da evangelização no Brasil colonial, pois elas ajudam a compreender como os missionários pensaram o gentio e como ele deveria ser evangelizado. Elas refletem o ideário jesuíta a respeito do índio. © História da Igreja na América Latina e no Brasil60 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Figura 4 Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570). Quando os jesuítas desembarcaram na Bahia, ficaram mara- vilhados com o mundo que tinham diante de seus olhos e foram tomados por um grande otimismo missionário e apostólico pois, à primeira vista, viram que os índios poderiam ser facilmente con- vertidos à fé cristã. Desde o início, para atrair o gentio, os jesuítas procuraram se adaptar à sua realidade (accomodatio), promovendo uma evan- gelização e uma catequese de visita aos povoados indígenas e construindo capelas nas próprias aldeias. Fundaram, também, o colégio para meninos, que acolhia filhos de colonos portugueses e filhos de gentios. No colégio, promoveram uma educação tam- bém adaptada à realidade, como, por exemplo, agregando o uso de ritmos, instrumentos e cantos indígenas às celebrações e usan- do o corte de cabelo dos meninos filhos de colonos portugueses à 61© A Evangelização dos Índios e dos Negros moda indígena. A proposta inicial era manter os índios longe dos colonos para dificultar o uso deles como mão-de-obra escravizada. Assim, o projeto dos jesuítas era promover uma catequese adapta- da, persuasiva e tolerante aos costumes indígenas. À medida que os jesuítas foram conhecendo melhor a rea- lidade dos colonos portugueses e a realidade indígena, também foram surgindo inúmeros obstáculos para dificultar a missão. Para que você possa se aprofundar no tema, sugerimos que leia a obra: BEOZZO, J. O. O diálogo da conversão do gentio: a evange- lização entre a persuasão e a força. In: SUESS, P. et al. Conversão dos cativos: povos indígenas e missão jesuítica. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2009, p. 58-65. Vejamos alguns obstáculos: 1) Os colonos portugueses: os jesuítas consideravam que os colonos eram maus exemplos nos campos da Justiça e da Moral por duas razões: praticavam a violência contra os nativos; tinham muitas mulheres índias e muitos filhos com elas sem estarem casados com nenhuma delas. 2) O mundo indígena: o gentio resiste à pregação dos mis- sionários por causa de seu mundo religioso, liderado pe- los pajés e feiticeiros. 3) A escassez de missionários: eram poucos os missioná- rios para darem conta de um território tão vasto. Ade- mais, havia poucos que eram conhecedores da língua indígena; e as doenças e mortes súbitas de muitos dos primeiros colaboradores também dificultavam a missão. 4) O clero secular e o bispo: quando os jesuítas chegaram, encontraram o clero em uma situação não diferente daquela dos colonos. Longe das autoridades religiosas, levavam uma vida de plena liberdade permitindo-se os excessos e os abusos, principalmente, no campo da Mo- ral. Com o pretexto de terem escravas, também tinham mulheres indígenas casa adentro e filhos com elas. Nó- brega tentou corrigir os que estavam envolvidos em tal © História da Igreja na América Latina e no Brasil62 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO pecado, mas não obteve sucesso. Ele vê, então, como única saída, a vinda de um bispo para fazer uma refor- ma no clero e para implantar um projeto de catequese e evangelização com uma visão, mais ou menos, unitária. Nesse sentido, fez todos os esforços para que fosse cria- do um bispado na Bahia. A vinda do primeiro bispo, D. Pedro Fernandes Sardinha, po- rém, será o grande dissabor e a grande desilusão de Nóbrega. Ele não apoia o trabalho missionário dos jesuítas e critica a catequese adaptada e tolerante aos costumes indígenas. Para o bispo, eram os indígenas que deveriam se adaptar aos costumes dos cristãos (dos portugueses), não estes aos costumes daqueles. A função dos missionários era converter os indígenas à fé cristã e desterrar seus costumes bárbaros, isto é, não aprová-los e trazê-los para o conví- vio dos cristãos. Diante dos obstáculos, sobreveio o desânimo, que ia se in- filtrando cada vez mais entre os missionários ao verem o pouco resultado da missão diante da resistência do gentio, das guerras movidas pelos portugueses, do retorno dos batizados aos antigos costumes e do abandono dos missionários perante a presença de pajés e feiticeiros. Acrescente-se, ainda, a própria situação dos missionários entre a defesa do índio, a pressão dos colonos e o projeto da Coroa, que previa tanto a integração dos missionários como a dos índios ao sistema colonizador. Havia pressão por todos os lados. Diante de tudo isto, os jesuítas sentem-se impotentes. É necessário decidir quais rumos serão tomados. Evangelizar e cate- quizar defendendo o índio? Se o índio resiste, então ele é homem, é humano? Vale a pena continuar investindo se há pouco resulta- do? Tem algum futuro a missão? Não seria melhor acomodar-se ao sistema colonizador? Perante a desilusão com o bispo, o mau exemplo de vida dos colonos e do clero e a decepção com os resultados da missão e com a resistência dos índios, os jesuítas fazem uma revisão de seu projeto inicial e concluem que não adianta continuar insistin- 63© A Evangelização dos Índios e dos Negros do na adaptação, na tolerância e na persuasão. Por causa da pró- pria natureza carregada de falhas dos índios, o melhor método é a sujeição e a dominação pela força. Essa decisão beneficia os dois reinos: o reino português e o reino de Deus. "Sujeitando-se o gen- tio, Nosso Senhor ganhará muitas almas e Vossa Alteza terá muita renda nesta terra" (LEITE apud BEOZZO, 2009, p. 73). A proposta de reforma da missão e dos rumos da evangeliza- ção está condensada no Diálogo sobre a conversão do gentio e no Plano Civilizador, ambos escritos por Nóbrega entre 1556 e 1558. O Diálogo sobre a conversão do gentio foi escrito entre1556 e 1557, em um momento particularmente difícil para Nó- brega, que estava cansado, doente e entre os sintomas de crise e desencanto, por parte de seus colaboradores, da própria missão. Nóbrega, então, retira-se para a aldeia indígena do Rio Vermelho buscando descansar e refletir sobre os destinos da missão. O Di- álogo é uma espécie de balanço dos primeiros sete ou oito anos de trabalho pastoral. Nele, Nóbrega reúne as opiniões que seus coirmãos, ao longo desses anos, colheram de seu trabalho missio- nário e da convivência com o gentio. Na fala de dois interlocutores (Gonçalo Alvarez, o intérprete, e Mateus Nogueira, o ferreiro), Nó- brega expõe as opiniões a respeito do gentio. Eis algumas: "falar a esta gente é o mesmo que falar em deserto a pedra"; "gente sem juízo"; "são tão bestiais, que não lhes entra no coração a cousa de Deus"; "estão tão encarniçados a matar e comer, que nenhuma outra bem-aventurança sabem desejar"; "são cães em se come- rem e matarem, e são porcos nos vícios e na maneira de se trata- rem" (NÓBREGA apud EISENBERG, 2000, p. 222-237). A opção e a conclusão de Nóbrega caminham no sentido de que era necessário impor a conversão à força, promovendo guer- ras que, pelo medo, faziam os índios se converterem à fé cristã. Havia, portanto, necessidade de intervenção do governo. Mas, para isso, Nóbrega tinha de criar razões políticas para convencer a Coroa portuguesa a fazer sua parte nesse empreendimento. © História da Igreja na América Latina e no Brasil64 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Em 1558 escreve ao Provincial português dando as razões. Esse tex- to ficou conhecido como Plano Civilizador ou Plano de colonização. Nele Nóbrega justifica a sua proposta de reforma em termos de lucros econômicos para a Coroa portuguesa, propondo a criação de Aldeias ou Aldeamento como a melhor alternativa disponível para a evangelização dos índios. Na aldeia, o gentio viveria como criatu- ra racional e não como selvagem disperso pela mata. Isso facilitaria tanto a atividade missionária como a atividade político-econômica. O missionário, exposto a todo tipo de perigo, evitaria se deslocar pelas aldeias dispersas pela mata, cujo resultado era muito pouco. Reunidos na aldeia, os índios representavam também mão-de-obra fácil, sem a necessidade de serem preados e escravizados. Desse modo, na aldeia, era fácil o domínio dos índios. Eis um trecho do Plano Civilizador. (este trecho é um parágrafo normal do texto se- parado da citação. A citação começa com "Este gentio é de...) Este gentio é de qualidade que não se quer por bem, senão por temor e sujeição, como se tem experimentado; e por isso se S. A. os quer ver todos convertidos mande-os sujeitar e deve fazer estender os cristãos póla terra adentro e repartir-lhes o serviço dos Índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhorear, como se faz em outras partes de terras novas, e não sei como se sofre a geração portuguesa, que ante todas as nações é a mais temida e obedecida, estar por toda esta costa sofrendo e quase sujeitando-se ao mais vil e triste gentio do mundo [...]. Sujeitando-se o gentio, cessarão mui- tas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos, porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa, e terão serviço e vassalagem dos Índios e a terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S. A. terá muita renda nesta terra, porque haverá muitas criações e muitos engenhos já que não haja muito ouro e prata. Depois desta Baía senhoreada, será fácil cousa sujeitar as Capitanias porque somente os estrondos que lá fez a guerra passada os fez muito medrosos e aos cristãos deu gran- de ânimo, tendo-o antes mui caído e fraco, sofrendo cousas ao gen- tio que é vergonha dizê-lo. Desta maneira cessará a boca infernal de comer a tantos cristãos quantos se perdem em barcos e navios por toda a costa; os quais todos são comidos dos Índios e são mais os que morrem que os que vêm a cada ano, e haveria estalagens de cristãos por toda a costa, assim para os caminhantes da terra como para os do mar (NÓBREGA apud EISENBERG, 2000, p. 239-240). Dessa maneira, Nóbrega entende que a evangelização devia andar atrelada ao sistema colonial. O índio já não é mais o centro da evangelização, pois nesse centro, agora, estão os interesses da Coroa. Evangelização e catequese subordinam-se à lógica colonial, e o gentio deve ser inserido nessa lógica. 65© A Evangelização dos Índios e dos Negros A seguir, reunimos alguns textos de Nóbrega e de Anchieta sobre o uso da força como a melhor saída para evangelizar o gen- tio e trazê-lo à fé cristã. [...] assim que por experiência vemos que por amor é mui dificul- tosa a sua conversão, mas como é gente servil, por medo fazem tudo, e posto que nos grandes por não concorrer sua livre vontade, presumimos que não terão fé no coração, os filhos creados nisto, ficarão firmes christãos, porque é gente que por costume e criação, com sujeição, farão d'ella o que quizerem, o que não será possível com razões nem argumentos (LEITE apud BEOZZO, 2009, p. 74). [...] ver o gentio sojeito e metido no jugo da obediência dos cris- tãos, para se neles poder ymprimir tudo quanto quiséssemos, por- que ha ele de qualidade que domado se escreverá em seus enten- dimentos e vontades muito bem a fé de Cristo [...] e se o deixão em sua liberdade e vontade, como hé gente brutal, não se faz nada com eles, como por experiência vimos todo este tempo que com ele tratamos com muyto trabalho, sem dele tirarmos mais fructo que poucas almas ynnocentes que aos ceos mandamos (LEITE apud BEOZZO, 2009, p. 75-76). Em São Paulo, foi promovida uma guerra para agrupar os ín- dios em torno da aldeia de Piratinga. Anchieta viu que essa guerra deu bom resultado e que a melhor saída é evangelizar com "espa- da e vara de ferro". Esta guerra foi a causa de muito bem para os nossos antigos discí- pulos os quais são agora forçados pela necessidade a deixar todas as suas habitações em que haviam esparzido e recolherem-se to- dos a Piratininga, que eles mesmos cercaram agora de novo com os portugueses, e está segura de todo o embate, e desta maneira podem ser ensinados nas cousas da fé, como agora se faz, havendo contínua doutrina, de dia às mulheres, e de noite aos homens, que concorrem quase todos, havendo um alcaide que os obriga a entrar na igreja [...]. Parece-nos agora que estão as portas abertas nes- ta Capitania para a conversão dos Gentios, se Deus Nosso Senhor quiser dar maneira com que sejam postos debaixo do jugo, porque para este gênero de gente não há melhor pregação do que a es- pada e a vara de ferro, na qual mais do que em nenhuma outra é necessário que se cumpra o compelle eos intrare (ANCHIETA apud BEOZZO, 2009, p. 76). A isto acrescenta-se também que, tendo-se dirigido todas as ora- ções e gemidos dos nossos irmãos desde que estão cá, a pedirem contínua e fervorosamente a Deus se dignasse mostrar claramente o caminho, pelo qual estes gentios se haviam de levar à fé, ago- © História da Igreja na América Latina e no Brasil66 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO ra acabou Ele por mostrar grandíssima abundância de ouro, prata, ferro e outros metais, antes bastante desconhecida, como todos di- zem, e esta abundância julgamos que será óptimo e facílimo meio, como já nos ensinou a experiência. Pois, vindo para aqui muitos cristãos sujeitarão os gentios ao jugo de Cristo, e assim estes serão obrigados a fazer, por força, aquilo a que não é possível levá-los por amor (ANCHIETA, apud BEOZZO, 2009, p. 76-77). Estas são algumas das expressões contraditórias resultantes da acomodação do projeto evangelizador ao sistema colonial. Os colonos, que, no início, eram obstáculos, agora, na nova proposta, são necessários para garantir o êxito da evangelização. 7. CICLOS EVANGELIZATÓRIOS Os ciclos evangelizatórios são os caminhos ou movimentos por meio dos quais o cristianismo penetrou na América espanholae lusitana. Cada ciclo tem uma dinâmica própria, pois está atrelado a um movimento geográfico, cronológico e econômico-expansio- nista da Espanha ou de Portugal. Por isso, correspondem ao mo- vimento de expansão e de irradiação econômica. À medida que Portugal ou Espanha ampliavam seus domínios território adentro, ia junto, também, a evangelização, com todo seu aparato institu- cional. Os ciclos foram o veículo que levou não só o progresso eco- nômico, mas também o evangelho para as regiões distantes. Para nós, brasileiros, é fácil associá-los aos ciclos econômicos, como você verá a seguir. De modo geral, a historiografia eclesiástica latino-americana e brasileira tem classificado esses movimentos evangelizatórios em 14 ciclos: • oito ciclos hispânicos; • cinco ciclos portugueses; • um ciclo de origem holandesa, inglesa ou francesa. 67© A Evangelização dos Índios e dos Negros a) Ciclos hispânicos 1) Caribe; 2) México; 3) América do Norte; 4) América Central; 5) Peru; 6) Nova Granada (Colômbia); 7) Chile; 8) Rio da Prata. b) Ciclos portugueses 1) litorâneo; 2) sertanejo; 3) amazônico; 4) paulista; 5) mineiro; c) Ciclos ciclo de origem holandesa, inglesa ou francesa. A análise das características de cada ciclo em particular de- mandaria tempo e espaço, o que não nos é possível neste mo- mento. O aluno poderá aprofundar em seus estudos posteriores a partir da bibliografia indicada. 8. PADRE ANTÔNIO VIEIRA E A CRÍTICA AO SISTEMA COLONIAL PORTUGUÊS Padre Antônio Vieira (1606-1697), português de nascimento e de alma brasileira, foi o primeiro a criticar com veemência o sis- tema colonial português há quase 100 anos depois da vinda dos primeiros jesuítas ao Brasil e do início da evangelização em nosso país. Missionário jesuíta e exímio pregador, notável orador e escri- tor, Vieira foi, também, político e diplomata português, atuando em defesa dos interesses comerciais de Portugal na Europa e no Brasil. Destaca-se, especialmente, pela monumental obra Os ser- mões, publicada em 12 volumes. © História da Igreja na América Latina e no Brasil68 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Figura 5 Padre Antônio Vieira (1606-1697). Antônio Vieira nasceu em Lisboa, em 1606. Veio ao Brasil com seis anos de idade, e seus pais fixaram-se na Bahia. Em 1623, entrou para a Companhia de Jesus e, em 1635, foi ordenado sacerdote. Logo se destacou como pregador. Em 1641, foi para Portugal e, por meio de seus sermões, caiu nas graças de D. João IV. Entre 1646 e 1653, exerceu funções diplomáticas na Europa. Voltou ao Brasil em 1653 e foi para o Maranhão. Lá, envolveu-se em conflitos com os colonos e foi expulso em 1661, regressando a Lisboa. Em 1665, foi preso pelo Tribunal do Santo Ofício. Três anos depois, foi anistiado. Em 1669, foi a Roma e voltou para Portugal em 1675. Em 1681, veio à Bahia e ocupou-se com o trabalho de aprimorar e editar seus ser- mões. Faleceu na Bahia, em 1697, aos 91 anos de idade. Por ser um pensador complexo e pela sua obra vastíssima, de conteúdo literário, teológico, filosófico e político, não vamos ana- lisar o pensamento de Vieira, mas colocá-lo como um contraponto para se fazer uma comparação entre as críticas levantadas contra 69© A Evangelização dos Índios e dos Negros as injustiças praticadas pelo sistema colonial na América espanho- la e na América portuguesa. Contudo, apesar da acomodação ao sistema, os jesuítas também o criticaram, mas o fizeram bem mais tarde, em circunstâncias diferentes daquelas do início da missão. A crítica de Vieira contra as injustiças praticadas pelos colo- nos e pelas autoridades coloniais se encontra espalhada em nume- rosas passagens de seus sermões. Desde o início de sua carreira como pregador, Vieira levantou sua voz contra os roubos, a força e a violência, inerentes ao sistema. Vamos referenciar dois de seus sermões, que expressam a fúria do verbo do jesuíta contra o mal- trato dos índios e dos missionários inacianos – particularmente, contra ele mesmo. O primeiro é o Sermão da Primeira Dominga da Quaresma. O segundo é o Sermão da Epifania. O Sermão da Primeira Dominga da Quaresma foi pregado em São Luís, no Maranhão, na quaresma de 1653. Nesse mesmo ano, Vieira havia retornado de Portugal e ido até às missões no Maranhão para catequizar e doutrinar os índios. Aí, exerce papel ativo nos conflitos entre jesuítas e colonos. Fundamentado no capítulo 58 de Isaías, ele levanta sua voz contra os pecados e os cativeiros injustos praticados pelos fazendeiros do Maranhão. Eis alguns trechos: Brada, ó pregador, e não cesses; levanta a tua voz como trombeta, desengana o meu povo, anuncia-lhe seus pecados, e dize-lhe o es- tado em que estão [...]. Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, o qual é o jejum que quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da injustiça, e que deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão, estes são os que Deus me manda que vos anuncie. Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em estado de condenação, e todos vós ides direitos ao inferno. Já lá estão mui- tos, e vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida [...]. Ah! Fazendas do Maranhão, que se esses mantos e essas capas se torceram, haviam de lançar sangue! (VIEIRA, 1998, p. 100-118). Esse sermão custou para Vieira e seus coirmãos perseguições e incômodos por parte dos fazendeiros. No entanto, ele continua firme na defesa da liberdade dos índios e contra os cativeiros injus- © História da Igreja na América Latina e no Brasil70 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO tos. Em 1661, os jesuítas são expulsos das missões do Maranhão, e Vieira vai para Lisboa denunciar a atitude dos colonos e a persegui- ção sofrida pelos jesuítas no Maranhão. No ano de 1662, na capela real, em presença da rainha e da coorte, inconformado, ele prega o Sermão da Epifania, exaltando o panlusitanismo e a missão de Portugal no mundo, mas apontando para as falhas e incoerências do sistema colonizador português e para a incompatibilidade das ações dos cristãos com o Evangelho. Eis alguns trechos: Quem havia de crer que em uma colônia chamada de portugueses se visse a Igreja sem obediência, as censuras sem temor, o sacerdó- cio sem respeito, e as pessoas e lugares sagrados sem imunidade? Quem havia de crer que houvessem de arrancar violentamente de seus claustros aos religiosos, e levá-los presos entre beleguins e es- padas nuas pelas ruas públicas, e tê-los aferrolhados, e com guar- das, até os desterrarem? Quem havia de crer que com a mesma violência e afronta lançassem de suas cristandades aos pregadores do Evangelho, com escândalo nunca imaginado dos cristãos, sem pejo dos novamente convertidos, e à vista dos gentios atônitos e pasmados? [...]. Isto é o que lá se viu então: e que será hoje o que se vê, e o que se não vê. Não falo dos autores e executores destes sacrilégios, tantas vezes e por tantos títulos excomungados, porque lá lhes ficam papas que os absolvam. Mas que será dos pobres e mi- seráveis índios, que são a presa e os despojos de toda esta guerra? [...]. Os pastores, parte presos e desterrados, parte metidos pelas brenhas; os rebanhos despedaçados; as ovelhas, ou roubadas, ou perdidas; os lobos famintos, fartos agora de sangue, sem resistên- cia; a liberdade por mil modos trocada em servidão e cativeiro; e só a cobiça, a tirania, e sensualidade, e o inferno contentes. E que a tudo isso se atrevessem e atrevam homens com nomes de portu- gueses, e em tempo de rei português? [...]. Naquele tempo anda- vam os portugueses sempre com as armas às costas contra os inimi- gos da fé, hoje tomam as armas contra os pregadores da fé; então conquistavam e escalavam cidades para Deus, hoje conquistam e escalam as casas de Deus [...]; então eram defensores e pregadores do nomecristão, hoje são perseguidores e destruidores, e opróbrio e infâmia do mesmo nome [...]. Então saíam pela barra de Lisboa as nossas naus carregadas de pregadores, que voluntariamente se desterravam da pátria para pregar nas conquistas a lei de Cristo, hoje entram pela mesma barra, trazendo desterrados violentamen- te os mesmos pregadores, só porque defendem nas conquistas a lei de Cristo [...]. Acabe de entender Portugal que não pode haver Cristandade nem cristandades nas conquistas, sem os ministros do Evangelho terem abertos e livres estes dois caminhos, que hoje lhes mostrou Cristo [...]. Querem que aos ministros do Evangelho 71© A Evangelização dos Índios e dos Negros pertença só a cura das almas, e que a servidão e cativeiro dos cor- pos seja dos ministros do Estado (VIEIRA, 1998, p. 171-216). Desse modo, Vieira percebe que há incompatibilidade entre o plano da missão e o plano da Coroa especialmente quanto às autoridades encarregadas da administração da colônia. Os cristãos portugueses estão distorcendo o evangelho, perseguindo os pre- gadores e desacreditando a própria missão de Portugal no mundo. Mesmo assim, diante desses entraves, Vieira crê que a evangeliza- ção deve andar atrelada ao Estado e que os missionários devem ser protegidos por ele. A dependência contínua não consegue de- satar-se das amarras do Poder. 9. A QUESTÃO NEGRA: O GRANDE PARADOXO DA EVANGELIZAÇÃO Desde o início da colonização das Américas espanhola e por- tuguesa, a escravidão dos índios foi assunto de grandes discussões entre aqueles que estavam envolvidos na empresa evangelizadora do Novo Mundo. A preocupação com a legitimidade da escravidão indígena rendeu, tanto dos defensores quanto dos opositores, um grande número de tratados, de leis e de teologias. No redemoinho dos debates, estavam missionários, clérigos, juristas e teólogos. Era necessário dar uma justificação jurídica e teológica à questão indí- gena, para definir seu lugar no sistema colonial e na Igreja colonial. Para o caso dos negros na América Latina e no Brasil, o pro- cesso foi inverso e totalmente diferente. Não havia preocupação com a legitimidade da escravidão dos negros, pois esta era uma necessidade estrutural do sistema colonial baseada no modo de produção escravista. Discutia-se a liberdade do índio, mas não a escravidão do negro – haja vista que o imaginário cristão europeu, desde as primeiras eras do cristianismo, que era fundamentado, por sua vez, em uma leitura distorcida do Antigo Testamento –, ha- via incorporado o negro africano como raça amaldiçoada, corrupta e pecadora. A sociedade colonial, com seu aparato político e reli- © História da Igreja na América Latina e no Brasil72 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO gioso, era uma sociedade escravocrata, e a escravidão negra, um assunto pacífico, oficial e, silenciosamente, aceito. A escravidão (do negro e do índio) surge como um postulado do regime colonial na América Latina e no Brasil. Essa mentalidade está muito bem expressa nas palavras de Paula Montero: Os negros africanos não suscitaram, pois, os mesmos escrúpulos, nem provocaram os mesmos problemas de responsabilidade legal e política que os ameríndios. Era a América que intrigava o pen- samento europeu, e não a África a qual, com seu clima inóspito e pouca riqueza, não passava de um enorme obstáculo no caminho para as Índias. Era o índio, na sua naturalidade e inocência, quem instigava o reordenamento e a ampliação dos limites da humanida- de cristã e não o negro [...]. Era, pois, a liberdade do índio, e não a do negro, que interpelava a lógica colonial e missionária (MONTE- RO, 1996, p. 94). Nas especulações dos eruditos e dos padres da Igreja sobre a maneira como os homens se tinham dispersado, após o dilúvio, os africanos, filhos de Ham, tornaram-se negros porque Noé lan- çara sobre estes uma maldição que os obrigara a migrar para regi- ões inóspitas, concebidas pela imaginação europeia como "terras do pecado" (DIAS apud MONTERO, 1996). A referência a esse fato está em Gn. 9, 18-27. Da contradição de uma ação excludente, não escapou Las Casas nem Nóbrega; muito menos, Antônio Vieira. Las Casas, con- siderado o defensor dos índios, em 1516, para salvaguardar a li- berdade deles, sugeriu ao rei da Espanha "que se tragam escravos negros para substituir aos índios" (BEOZZO, 1987, p. 47). Manuel da Nóbrega, em 1551, escrevia de Olinda ao rei de Portugal, D. João III, que mandasse "alguns escravos de Guiné à casa para fazerem mantimentos, porque a terra é tão fértil que fa- cilmente se manterão e vestirão muitos meninos se tiverem alguns escravos que façam roça de mantimentos e algodoais" (HOORNA- ERT, 1983, p. 258). Antônio Vieira, que defendeu os índios no Maranhão contra os cativeiros injustos dos colonos portugueses, posicionou-se a fa- vor da Coroa portuguesa contra os negros aquilombados em Pal- 73© A Evangelização dos Índios e dos Negros mares, porque eram revoltosos e inimigos de Deus (HOORNAERT, 1983, p. 256-257). Embora nos Sermões aos Pretos Vieira tenha falado da de- sumanidade do sistema escravocrata e da maneira bárbara como os escravos eram tratados, nada, porém, o credencia como um de- fensor dos negros. Comentando alguns de seus sermões sobre os pretos, o professor Antônio Soares Amora assim se expressa: [...] na causa dos negros, não chegou Antônio Vieira a ser um advo- gado de sua libertação, pois que era querer muito de um homem do século 17, mas, na verdade, um consolator afflictorum, um mis- sionário catequista (AMORA apud VIEIRA 2000, p. 55). Um dos artigos do Regimento das Missões de 1680, a carta de liberdade do índio do Maranhão dizia: "Que todos os anos se metam no Estado do Maranhão quinhentos ou seiscentos negros, para suprirem os escravos no sertão; os quais negros se venderão aos moradores por preços muito moderados e a largo tempo" (BE- OZZO, 1987, p. 51). Apoiada no sistema escravista e na ideologia escravocrata, bem como acomodada às circunstâncias da época, mantendo um grande número de escravos, a Igreja não tinha autoridade para re- agir contra o sistema escravocrata. Preferiu, então, endossar um discurso de cunho puramente consolador e compassivo desen- volvendo uma teologia da consolação, da conformidade, do sofri- mento e da submissão, o que, na verdade, equivalia a dizer que os escravos deveriam conformar-se com seu estado de sofrimento, ser obedientes aos seus senhores e esperar pela libertação na vida futura, pois eram cristãos: se vivessem corretamente, conforme os ensinamentos da Igreja, poderiam salvar-se. A CEHILA reconhece a complexidade do assunto e admite a necessidade de reler a história da Igreja na América Latina partin- do, também, da escravidão negra. Tem-se mais privilegiado a ques- tão indígena e menos a questão negra. É necessário reverter esse quadro, haja vista que os afrodescendentes constituem a maioria da população e que possuem enorme riqueza cultural e religiosa. © História da Igreja na América Latina e no Brasil74 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO 10. TEXTOS COMPLEMANTARES A escravidão Africana e evangelização serão de grande im- portância para completar o estudo desta unidade. Escravidão Africana e Evangelização –––––––––––––––––––– Enquanto nas áreas meso-americana e andina, na região amazônica e na grande bacia do Paraná-Uruguai-Paraguai a questão do trabalho e das missões colocou- -se diretamente em relação às populações indígenas locais, em outras, como o Caribe e o Nordeste brasileiro, bem depressa é a escravidão negra que substitui, nas plantações de cana, nos engenhos açucareiros e nas demais atividades, o braço indígena. Naturaliza-se a escravidão africana, como se ser escravo fosse desde sempre um atributo dos africanos, como se a América não fosse indutora maior de um enorme salto no comércio de escravos e não estivesse na raiz de um vasto pro- cesso de expansão da escravização de populações anteriormente livres. Asjustificativas, entretanto, para o incremento do tráfico negreiro não são bus- cadas apenas nas necessidades de um mercado sempre mais ávido de braços ou para o leque cada vez mais amplo de atividades que dependiam das "peças de Guiné". Essa avidez do mercado pode ser medida pelo contínuo incremento das importações brasileiras: quinhentos escravos em média, por ano, durante o século XVI; cinco mil, ou dez vezes mais, no século XVII; dezessete mil no século XVIII; vinte e oito mil entre 1810 e 1850, subindo esta média para até cinqüenta mil escravos nos três últimos anos que antecederam a lei Eusébio de Queiroz, que suspendeu o tráfico em 1850, por imposição dos ingleses. As necessidades do chamado "mercado" ganhavam justificativas nas entrelinhas de um discurso civilizatório, em que a Europa trazia para a África suas luzes e o progresso, mas sobretudo religioso. A escravização dos africanos passou a ser apresentada como um caminho de evangelização, de salvação de suas almas. Aos que objetavam a ilegitimidade de todo o processo, que tomava de assalto pessoas e comunidades livres, que viviam mansa e pacificamente em suas aldeias, para transformá-las em peças nos mercados negreiros da costa atlântica, respondia-se desveladamente que se tratava de pessoas que já eram escravas e que simplesmente estavam sendo resgatadas por agentes negreiros que as revendiam mais adiante. Para legitimar toda a operação, o argumento era bastante claro. Não se negava que ser escravo era um inferno, tanto na África quanto na América, e que para os corpos cativos dos escravos nada mudava na sua transferência de um continente ao outro. A mudança dava-se num outro pa- tamar: o das almas. Enquanto na África esses escravos condenados ao inferno, em seus corpos, nesta vida, estavam irremediavelmente condenados em suas almas ao inferno, na outra vida, ao passarem para a América, abria-se para eles uma janela de esperança. Pelo batismo, suas almas poderiam alcançar o céu na outra vida, embora sua vida presente continuasse a ser um vale de lágrimas. Era uma dissociação entre corpos e almas, entre vida presente e vida futura, que se jogava toda a argumentação dessa verdadeira teologia da escravidão, que foi sendo gestada nesse período, para justificar e legitimar o sistema escravista. Esse profundo envolvimento da pastoral e da teologia, na montagem e na legiti- mação do sistema escravista, corrompeu profundamente a consciência cristã e a prática eclesial. 75© A Evangelização dos Índios e dos Negros Não escapou aos teólogos mais argutos a malícia do sistema que residia preci- samente nessa separação entre corpo e alma, entre vida presente e vida futura, de tal modo que a liberdade prometida à alma do escravo pelo batismo não pro- duzia efeitos visíveis em seus corpos, e a promessa do céu para suas almas na vida futura não transformava em nada o inferno da sua vida presente (BEOZZO, 2003, p. 111-113). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Também será de grande importância saber sobre Padre An- tônio Vieira. Padre Antônio Vieira –––––––––––––––––––––––––––––––––– Padre Antônio Vieira, em várias ocasiões para as irmandades negras, pregou sermões consolatórios. Mesmo reconhecendo que a escravidão era um inferno lançava para o futuro, para outra vida, a possibilidade de salvação (alforria defi- nitiva). O escravo negro só poderia ser plenamente alforriado e liberto depois da morte por mercê de Deus e da Senhora do Rosário. O maior e pior cativeiro não é o do corpo, mas o da alma, pois o demônio é o maior tirano. Vejamos alguns trechos do Sermão XXVII, conhecido também de "sermão aos pretos". [...] Não há escravos no Brasil, e mais quando vejo os mais miseráveis, que não seja matéria para mim de uma profunda meditação. Comparo o presente com o futuro, o tempo com a eternidade, o que vejo com o que creio, e não posso entender que Deus que criou estes homens tanto à sua imagem e semelhança, como os demais, os predestinasse para dois infernos, um nesta vida outro na outra. Mas, quando hoje os vejo tão devotos e festivais diante dos altares da Se- nhora do Rosário, todos irmãos entre si, como filhos da mesma Senhora, já me persuado sem dúvida que o cativeiro da primeira transmigração é ordenado por sua misericórdia para a liberdade da segunda. [...] Sabei, pois, todos os que sois chamados escravos, que não é escravo tudo o que sois. Todo o homem é composto de corpo e alma, mas o que é se chama escravo não é todo homem, senão só a metade dele [...]. E qual é esta metade escrava e que tem senhor, ao qual é obrigada a servir? Não há dúvida que é a metade mais vil, o corpo [...]. Quem cuida que o que se chama escravo é o ho- mem erra, e não sabe o que diz: a melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo o domínio alheio, e não pode ser cativa. [...] De maneira, irmãos pretos, que o cativeiro que padeceis, por mais duro e áspero que seja ou vos pareça, não é cativeiro total, ou de tudo o que sois, senão meio cativeiro. Sois cativos naquela metade exterior e mais vil de vós mesmos, que é o corpo, porém, na outra metade interior e nobilíssima, que é a alma, prin- cipalmente no que a ela pertence, não sois cativos, mas livres. [...] Temos visto que, assim como o homem se compõe de duas partes, ou de duas metades, que são corpo e alma, assim o cativeiro se divide em dois cati- veiros: um cativeiro do corpo, em que os corpos involuntariamente são cativos e escravos dos homens, outro, cativeiro da alma, em que as almas por própria vontade, se vendem e se fazem cativas e escravas do demônio. E porque vos prometi que a Virgem, Senhora do Rosário, vos há de libertar, ou forrar como dizeis, do maior cativeiro, para que conheçais bem quando deveis estimar esta alforria, importa que saibais e entendais primeiro qual destes dois cativeiros é o maior. A alma é melhor que o corpo, o demônio é pior senhor que o homem, por © História da Igreja na América Latina e no Brasil76 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO mais tirano que seja; o cativeiro dos homens é temporal, o do demônio eterno: logo, nenhum entendimento pode haver, tão rude e tão cego, que não conheça que o maior e pior cativeiro é o da alma. Mas como a alma, o demônio e este mesmo cativeiro, como já disse, são coisas que se não vêem com os olhos, onde acharei eu um meio proporcionado à vossa capacidade, com que vos faça visível esta demonstração? Fundemo-la no mesmo cativeiro, que é a coisa para vos mais sensível. Pergunto: se Deus nesta mesma hora vos libertara a todos do ca- tiveiro em que estais, e de repente vos vísseis todos livres e forros, não seria uma estranha e admirável mercê que Deus vos faria? "Pois, muito maior é, e de muito maior e mais subido valor, a mercê que a Senhora do Rosário vos fará em livrar vossas almas do cativeiro do demônio e do pecado" (VIEIRA, 1998, p. 36-68). Africanos desembarcados em portos brasileiros Ano Total Média anual Século 1531-1575 10 000 222 16 1576-1600 40 000 1 600 50 000 1601-1625 100 000 4 000 1626-1650 100 000 4 000 1651-1675 185 000 7 400 17 1676-1700 175 000 7 400 560 000 1701-1710 153 700 15 370 1711-1720 139 000 13 900 1721-1730 146 300 14 630 1731-1740 166 100 16 610 1741-1750 185 100 185 100 1751-1760 169 400 16 940 1761-1770 164 600 16 460 1771-1780 161 300 16 130 1781-1790 160 900 16 090 18 1791-1800 233 700 23 370 1 680 700 1801-1810 241 400 24 140 1811-1820 327 700 32 770 1821-1830 431 400 43 140 19 1831-1840 334 300 33 430 1 732 200 1841-1850 378 400 37 840 (apenas 50 anos) Fonte: Estatísticas históricas do Brasil, IBGE, 1987, p. 58 (Extraído de: Jaime Pinsky, A escravidão no Brasil, São Paulo, Contexto, 1989, p.29). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 77© A Evangelização dos Índios e dos Negros 11. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: 1) Quais são os problemas que estão presentes no debate sobre a evangeliza-ção dos índios entre Las Casas e Sepúlveda? 2) É possível fazer uma relação entre a proposta de Sepúlveda e a proposta de Nóbrega e Anchieta? Há alguma semelhança? 3) Quais são os problemas que permeiam a crítica de Antônio Vieira? 4) À luz da história das reduções missionárias e políticas (estatais), é possível detectar a presença de novos modelos de reduções promovidas pelo Estado brasileiro e pelos missionários no Brasil moderno/ atual? 12. CONSIDERAÇÕES Nesta unidade, conhecemos a importância de alguns aspec- tos dos problemas que envolveram a evangelização dos índios na América espanhola e no Brasil, como vimos, também, a maneira de espanhóis e portugueses pensarem o índio e sua evangelização. Agora, você já sabe quais são os pontos semelhantes e di- ferentes entre a evangelização dos índios na América espanhola e na América lusitana, bem como a problemática que envolveu a questão negra. Na Unidade 3, convidamos você a conhecer como a Igreja se organiza nessas duas partes do Novo Mundo. Até lá! 13. E-REFERÊNCIAS Lista de figuras Figura 2 Juan Ginés de SepúlvedaJuan Ginés de Sepúlveda (1490-1573). Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Juan_Ginés_de_Sepúlveda. © História da Igreja na América Latina e no Brasil78 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573)>. Acesso em: 20 jun. 2012. Figura 3 Nossa Senhora de Guadalupe, Padroeira do México. Disponível em: <http:// www.showmexicano.com.br/nsra.html>. Acesso em: 20 jun. 2012. Figura 4 Biografia do Padre Manuel da Nóbrega. Disponível em: <www.sampa.art.br/ biografias/manuelnobrega>. Acesso em: 20 jun. 2012. Figura 5 Padre António Vieira. Disponível em: <www.vidaslusofonas.pt/padre_antonio_ vieira.htm>. Acesso em: 20 jun. 2012. 14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BEOZZO, J. O. As Américas negras e a história da Igreja: questões metodológicas. In: CEHILA. Escravidão negra e história da Igreja na América Latina e no Caribe. Petrópolis: Vozes, 1987. ______. Grandes questões da caminhada do cristianismo na América Latina e no Caribe. In: SANCHEZ, W. L. (Coord.). Cristianismo na América Latina e no Caribe: trajetórias, diagnósticos, prospectivas. São Paulo: Paulinas, 2003. ______. J. O. O diálogo da conversão do gentio: a evangelização entre a persuasão e a força. In: SUESS, P. et al. Conversão dos cativos: povos indígenas e missão jesuítica. São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2009. BIDEGÁIN, A. M. História dos cristãos na América Latina. Petrópolis: Vozes, 1993, t. 1. BRUIT, H. H. Bartolomé de Las Casas e a Simulação dos Vencidos. Campinas: Unicamp/ Iluminuras, 1995. DUSSEL, E. D. 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