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EA D O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida 6 1. OBJETIVOS • Analisar o perfil da Igreja do Brasil depois de 1960. • Compreender a relação existente entre Igreja e governo militar. • Refletir sobre as características do período da Igreja po- pular. • Interpretar o pensamento teológico e eclesiológico. • Compreender os polos de tensão entre a Igreja do Brasil e a Santa Sé. • Interpretar alguns desafios da Igreja no mundo contem- porâneo. 2. CONTEÚDOS • Painel geral da Igreja na América Latina. • A Igreja e o Concílio Vaticano II (1962-1965). © História da Igreja na América Latina e no Brasil184 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO • A Igreja e o Regime Militar. • As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). • A Teologia da Libertação. • As tensões entre a Santa Sé e a Igreja do Brasil. • Os religiosos na Igreja do Brasil. • Tensões e desafios da Igreja em um mundo de profundas transformações. 3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE Antes de iniciar o estudo desta unidade é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para uma maior compreensão da década de 1960, su- gerimos que você leia a obra: BRESSER-PEREIRA, L. C. As revoluções utópicas dos anos 60: a revolução estudantil e a revolução política na Igreja. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2006. 2) Um texto bom e sintético sobre a Igreja e a ditadura você poderá encontrar em: LUSTOSA, O. F. A Igreja católica no Brasil-República: cem anos de compromisso (1889- 1989). São Paulo: Paulinas, 1991. 3) É importante e útil que você reveja os conceitos de "di- reita" e "esquerda" e de "conservador" e "progressista", pois eles aparecem com frequência na historiografia latino-americana e são aplicados, também, aos bispos latino- americanos e, especialmente, aos brasileiros. 4) Estes são alguns exemplos de governos militares no cone sul e na região andina: Chile (1973-1990); Argentina (1966-1983); Uruguai (1973-1985); Brasil (1964-1985); Paraguai (1954-1989) e Peru (1965-1980). 5) O Concílio Vaticano II foi anunciado no dia 25 de janeiro de 1959 pelo papa João XXIII e foi convocado no dia 25 de dezembro de 1961 pelo mesmo papa. Ele iniciou-se no dia 11 de outubro de 1962 e terminou no dia 8 de dezembro de 1965 sob o pontificado do papa Paulo VI. Foi realizado em quatro sessões: 185© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida a) primeira sessão: de 11 de outubro a 8 de dezembro de 1962; b) segunda sessão: de 29 de setembro a 4 de dezembro de 1963 (em 3 de junho morre João XXIII; em 29 de junho assume Paulo VI); c) terceira sessão: de 14 de setembro a 21 de novem- bro de 1964; d) quarta sessão: de 14 de setembro a 8 de dezembro de 1965 (foram produzidos 16 documentos). 6) Sobre a participação do episcopado brasileiro no Concí- lio Vaticano II, sugerimos que você consulte esta excep- cional obra: BEOZZO, J. O. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II: 1959-1965. São Paulo: Paulinas, 2005. 7) Para uma visão mais ampla da Situação de nossa Igreja nesta hora histórica de desafios. Você deverá consultar o texto: DOCUMENTO DE APARECIDA, números 98–100. 4. INTRODUÇÃO À UNIDADE Nesta última unidade de História da Igreja na América Latina e no Brasil, será abrangido o período que vai do Concílio Vaticano II à Conferência de Aparecida, ou seja, de 1960 até nossos dias. É um período de 50 anos, e, em termos cronológicos, não é tão longo. Entretanto, sem dúvida, é o mais importante e o mais rico da história de nossa Igreja. É o período em que a Igreja se encarna na realidade, se faz povo e assume sua missão evangelizadora. A Igreja deixa de copiar e de transplantar modelos e projetos euro- peus; agora, cria e implanta seus projetos de pastoral. É uma Igreja madura e consciente de sua missão no mundo. É uma Igreja de vanguarda, não mais de retaguarda. Quando falamos que este é o mais importante e o mais rico período de nossa história, não estamos fazendo referência a ne- nhuma vitória ou a nenhum triunfalismo da Igreja perante o Estado nem a qualquer outra situação. Estamos falando do novo modelo de Igreja, que brota do Concílio e das Conferências episcopais, da © História da Igreja na América Latina e no Brasil186 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO capacidade de conviver com as tensões internas – tendo em vista a unidade e a colegialidade – e externas – tendo em vista o enfren- tamento constante de novos desafios. Precisamos levar em conta que, nesse período, houve fases de abonança e fases de seca. O conteúdo desse período é vastíssimo, e, por conta do limi- te de nosso programa, não será possível abordá-lo amplamente. No entanto, você terá uma visão geral e, em hora oportuna, em seus estudos posteriores, poderá aprofundá-lo em outros temas. Ao estudar esta unidade, você deve ter como pano de fundo alguns conceitos, tais como: revolução estudantil, feminista e polí- tica; globalização; cultura global; comunicação global; cultura digi- tal; mundo plural; inculturação; pluralismo religioso; entre outros. Lembre-se de que, para aproveitar melhor este estudo, é ne- cessário que você acompanhe a bibliografia, leia os textos e faça os exercícios indicados no Caderno de atividades e interatividades. Vamos lá? 5. PAINEL GERAL DA IGREJA NA AMÉRICA LATINA Os campos sociopolítico e econômico Entre 1960 e 1980, a América Latina foi marcada pela crise da democracia e pela implantação dos Estados autoritários. Essa crise foi consequência do colapso do populismo, que não conse- guiu controlar os movimentos populares cada vez mais influencia- dos pelas políticas de esquerda. Desde o final da década de 1950, especialmente após a Revo- lução Cubana, em 1959, os países latino-americanos vão conviver com frequentes intervenções militares. A implantação do regime comunista em Cuba representava um possível avanço do comunis- mo e da antiga União Soviética no continente sul-americano. Era preciso detê-la a qualquer custo. O maior interessado na detenção 187© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida do comunismo era os Estados Unidos, e, para isto, elaboraram e organizaram a chamada "Doutrina de Segurança Nacional". Segundo Moraes (1993, p. 334-335), a Doutrina de Seguran- ça Nacional: Foi elaborada pelos EUA com a função de consolidar suas posições no continente e, principalmente, evitar os avanços da URSS. Ela foi a base da formação das elites militares latino-americanas após a Segunda Guerra Mundial. Os princípios básicos da doutrina são o desenvolvimento e a segurança [...]. Essas ideias desenvolvimen- tistas e da segurança nacional influenciaram dezenas de golpes e governos militares durante as décadas de 50, 60 e 70, formando um verdadeiro "cinturão" militar e autoritário influenciado e sus- tentado pelos EUA. Entre 1960 e 1980, a América Latina foi governada por ditadu- ras militares. De um modo geral, as características principais foram: a) ênfase no desenvolvimento e na estatização da econo- mia; b) extinção dos partidos; c) repressão aos movimentos sociais; d) perseguição e tortura; e) censura à imprensa; f) mortes e exílios. Como você pode notar, esse período foi, também, marca- do por guerrilhas e por revoluções, realizadas como expressão de resistência e de combate ao regime militar. A década de 1980 foi marcada pelo processo de redemocratização. O modelo militar e autoritário entra em declínio e, aos poucos, cede lugar aos regimes democráticos emergentes. As causas do declínio são inúmeras. Dentre as quais, destacamos: a) a própria incapacidade do modelo ditatorial em gerir os problemas por ele criados; b) a perda do controle da máquina burocrática abrindo uma enorme avenida para a corrupção; c) a perda da credibilidade junto ao povo e à comunidade internacional; © História da Igreja na América Latina e no Brasil188 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO d) o ressurgimentodos movimentos sindicais e da organi- zação das classes trabalhadoras, bem como o reapareci- mento do debate político e o movimento pelas "diretas já" (no Brasil); e) a denúncia dos crimes, das torturas e das prisões come- tidas pelo regime e feitas por organismos e instituições, como, por exemplo, a OAB e a CNBB, em nível nacional, e a Anistia Internacional, entre outros organismos liga- dos aos direitos humanos, em nível internacional. O campo eclesial No campo eclesial, a década de 1960 foi marcada pelo pon- tificado dos papas João XXIII e Paulo VI, assim como a América Latina e o Brasil foram marcados pela crescente atuação da CELAM e da CNBB. É a década do Concílio Vaticano II, da abertura da Igreja para mundo, da renovação eclesial e do modelo de Igreja povo de Deus, que, na América Latina, se encarnou na Igreja dos pobres ou Igreja popular. A renovação eclesial foi impulsionada pelo Concílio Vatica- no II, pelas Conferências de Medellín (1968), de Puebla (1979), de Santo Domingo (1992) e de Aparecida (2007), pela Teologia da Li- bertação e pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), como tam- bém por outros movimentos ligados aos jovens e à família. A Igreja latino-americana e brasileira também foi marcada pelo pontificado do papa João Paulo II, por meio de suas visitas a todos os países da América do Sul e por seus constantes atritos, ocorridos em torno do pensamento teológico, do modelo de Igreja e da formação seminarística. No período que se inicia um pouco antes da Conferência de Medellín, a Igreja viveu, também, tensões intraeclesiais, orquestra- das, muitas vezes, por membros da CELAM, da CNBB ou de outros organismos eclesiais latino-americanos e europeus. Muitas vezes, a unidade da Igreja ficou comprometida e foi vivida na contradição. 189© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida Dussel caracteriza muito bem as tensões da Igreja desse pe- ríodo: Por um lado, uma Igreja que tem seus mártires em bispos como Enrique Angelli na Argentina e Oscar Arnulfo Romero em El Salva- dor, porque não podemos relacionar as dezenas de sacerdotes e religiosos e os milhares de membros do povo cristão martirizado ao longo destes anos. Uma Igreja que tem sua teologia como reflexo de sua própria práxis; que tem sua memória na História da Igre- ja que vai relatando os seus passos. Por outro lado, há toda uma corrente contra a opção pelos pobres e a Teologia da Libertação, que desconfia das comunidades eclesiais de base e tenta desmem- brar (trocar programas, professores, lugares etc.) os institutos do CELAM cuja "força propulsora desta campanha é o padre Roger Vekemans"; "por parte do episcopado latino-americano esta cam- panha tem o apoio dos bispos colombianos A. López Trujillo e Dario Castrillón" [...]. A partir desta alta instância foram modificados os institutos do CELAM, foram lançadas campanhas em nível latino- -americano contra os teólogos da libertação, contra a revolução ni- caraguense, contra as Comunidades Eclesiais de Base (1989, p. 73). As tensões internas vividas pela Igreja fizeram surgir duas tendências entre o episcopado: os conservadores e os progres- sistas. Nas décadas de 1970 e 1980, essas denominações tinham grande peso no CELAM e na CNBB e causavam grande impacto político na representação da Igreja perante o Estado e a sociedade. Hoje, elas têm pouco ou nenhum efeito. Oferecida uma visão geral da Igreja na América Latina depois de 1960, passemos, agora, a concentrar nosso foco de estudo na Igreja do Brasil. 6. A IGREJA E O CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965) Vamos estudar, de maneira resumida, qual foi e como foi a participação da Igreja do Brasil no Concílio, bem como qual foi o resultado que o Concílio produziu em termos pastorais, ou seja, como foi a recepção do Concílio pela Igreja do Brasil. Não vamos abordar a história preparatória do Concílio nem os documentos que nele foram produzidos. Certamente, você já os conhece por meio de outras disciplinas, especialmente pela História Contem- © História da Igreja na América Latina e no Brasil190 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO porânea. Nosso foco será o impacto que o Concílio produziu na Igreja do Brasil. A participação no Concílio O Concílio Vaticano II foi um acontecimento de singular im- portância para a Igreja do Brasil. A participação dos bispos come- ça já na fase preparatória, em 1959, com a resposta ao material de consulta e o envio delas, os vota. Dos 167 bispos brasileiros, 132 deles responderam à consulta. Uma questão importante é o aumento no número de bispos ao longo do Concílio. Sobre esse crescimento e sobre a participação do episcopado brasileiro no Concílio, Oscar Beozzo (2003, p. 78) informa: Na primeira sessão do Concílio, participaram 173 bispos dos 204 (84,8%); na segunda, 183 de 220 (84,2%); na terceira, 167 de 221 (75,5%); na quarta, 192 de 227 (84,6%). A estes 227, deveriam ser agregados outros dois, nomeados nos últimos dias do Concílio: Luís Gonzaga Fernandes (6/11/1965), para auxiliar de Vitória (ES), e Ivo Lorscheiter (12/11/1965), para auxiliar de Porto Alegre (RS). Se incluirmos estes dois, com sua participação nos atos finais do Concílio, o número sobe para 194 participantes, sobre 229, e a por- centagem passa para 84,7%. Para fazer um aggiornamento (uma apresentação dos princí- pios católicos ao mundo moderno e atual), dar suporte e oferecer subsídio teológico ou sociocultural ao episcopado, eram promovi- dos reuniões, conferências, círculos de estudo e encontros na Do- mus Mariae, sede da Ação Católica Feminina Italiana, e no Colégio Pio Brasileiro, local de hospedagem dos bispos durante o Concílio. Além das conferências e das reuniões, foram produzidos vários ór- gãos comunicativos entre os bispos, tais como cartas, revistas e circulares, tendo como objetivo informar sobre o andamento das discussões do Concílio. Todo esse material se constitui em fontes valiosas sobre a participação do episcopado brasileiro no Concílio (BEOZZO, 2003, p. 79-136). Os bispos brasileiros também participaram, ativamente, como membros de Comissões e como interventores nas assem- bleias conciliares. 191© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida O resultado do Concílio: os novos rumos pastorais Para a Igreja do Brasil, o Concílio teve um valor imenso. Em abril de 1962, ao clima e às vésperas do Concílio, foi aprovado o Plano de Emergência (PE). Era o primeiro plano piloto de pastoral. Em dezembro de 1965, durante a última sessão, foi aprovado o Pla- no de Pastoral de Conjunto (PPC). Talvez seja este um dos maiores frutos para a Igreja do Brasil. De volta ao Brasil, os bispos traziam na bagagem um plano de pastoral discutido e elaborado no calor do Concílio, inspirado nos documentos conciliares. O PPC deu novo impulso à colegialidade episcopal e enfatizou a evangelização como uma missão da Igreja (MATOS, 2003, p. 191). Ainda durante o Con- cílio, na Quaresma de 1964, foi realizada a primeira Campanha da Fraternidade, com o objetivo de iniciar "um grande processo de re- novação da Igreja" (CNBB apud BEOZZO, 1994, p. 85). Você deve estar se perguntando: quais caminhos seguiu o Concílio na Igreja do Brasil? Como foi sua recepção, especialmente pelas classes populares? Quais foram os caminhos e os descami- nhos construídos pela recepção do Concílio? A recepção e a aplicação do Concílio não foram uniformes nem tão pacíficas. Passada a euforia inicial e as novidades, ocor- reram as resistências, as rupturas e as diferentes maneiras de se entender a Igreja e a teologia pós-conciliar. A esse respeito, Beozzo faz a seguinte avaliação: A década de 70 foi marcada por um olhar mais crítico, deixando, é certo, o Concílio como um pano de fundo presente, mas com a atenção centrada na realidade e nos seus desafios, sobretudo nos que partiam dos mais pobres. No plano teóricoa ênfase deslocou- -se para a Bíblia e para o esforço de tecer as ligações entre Bíblia e realidade, entre palavra de Deus presente na vida do povo de hoje e palavra de Deus presente na vida do povo de Israel. Nos anos 80, sobretudo no campo mais conservador, a ênfase deslocou-se para a tentativa de esmaecer a novidade do Concílio, de ressaltar a continuidade existente entre a realidade eclesial pré e pós-conciliar e de rejeitar qualquer desenvolvimento posterior, vendo o Concílio como ponto de chegada a ser consolidado mas não ultrapassado (1994, p. 85-86). © História da Igreja na América Latina e no Brasil192 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO De um modo geral, a recepção do Concílio trouxe novos de- safios, novas situações eclesiais, novos campos de divergências e até contradições. É importante lembrar-se da onda iconoclasta, da reforma litúrgica, do choque entre conservadores e progres- sistas, dos atritos entre os adeptos da teologia pré-conciliar e da pós-conciliar, da nomeação de bispos mais jovens, da reforma e da crise nos seminários, da "saída" de centenas de padres da Igreja. Contudo, o período que se seguiu ao Concílio foi como um "divisor de águas entre bispos, teólogos e correntes pastorais" (BEOZZO, 1994, p. 83-111). Desse modo, a Igreja do Brasil teve um enorme ganho, ama- dureceu e tornou-se cada vez mais sensível ao clamor do povo, o que alimentou cada vez mais o surgimento da Igreja popular. Nas palavras de Beozzo (2005, p. 355), o Concílio deu "nova dinâmica episcopal e propiciou na prática uma refundação da CNBB". 7. A IGREJA E O REGIME MILITAR Como você pode notar, foi em pleno tempo de Concílio que eclodiu, a 31 de março de 1964, o golpe de Estado desferido pe- las Forças Armadas contra o governo de João Goulart, iniciando o Regime Militar, que perdurou até 1985. Inúmeras foram as causas para o desfecho do golpe. O perigo comunista era apenas uma delas. Você deve estar se perguntando: como a Igreja reagiu ao gol- pe e como ela conviveu com o Regime Militar? O golpe cria uma situação complexa e contraditória para a Igreja. De um lado, ela apoia o golpe e o regime militar; de outro, discorda das medidas repressivas e violentas contra os cidadãos e contra a Igreja. De um modo geral, podemos distinguir três fases distintas: 1) a fase de apoio; 2) a fase de oposição e de denúncia; 3) a fase de diálogo com o governo. 193© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida A fase de apoio situa-se nos primeiros quatro anos entre 1964 e 1968, o que não significa que ela não tenha feito críticas ao regime. A Igreja tinha no comunismo um inimigo forte e uma ameaça à ordem social. Esse inimigo, para a Igreja, estava, tam- bém, dentro dela, representado pelos movimentos de esquerda. É, portanto, onde temos a razão do problema que se instalou nas relações entre a Igreja e alguns setores da Ação Católica, como a JUC e a JOC. Como a questão comunista foi uma das causas do golpe, no sentido de restabelecer a ordem e de livrar a nação do perigo comunista, a Igreja passa a apoiar o golpe e os militares, porque, para ela, também interessava o restabelecimento da or- dem social, a qual, de certa forma, garantia uma ordem religiosa. Nessa fase, a Igreja é bastante cautelosa e se concentra mais em seus problemas internos. É um momento, também, de indefinição e de expectativa em relação ao desenrolar dos acontecimentos. A posição da Igreja, nessa fase, é muito bem expressada por Barros: Dada a grande mobilização da opinião pública ao longo de 1963 e 1964 sobre a iminência de um golpe comunista, e o trabalho há- bil e sutil que os movimentos financiados por capital estrangeiro (para fomentar essa mobilização) haviam efetuado junto a mem- bros do episcopado, houve inicialmente, da parte da Igreja, um voto de confiança no novo governo, apesar de as prisões arbitrárias de líderes cristãos e de leigos ligados a instituições eclesiais terem levantado algumas inquietações e mesmo levado alguns bispos a empreenderem gestões junto às novas autoridades. Esta foi, grosso modo, a posição assumida pelo episcopado em maio de 1964 em um encontro, realizado no Rio de Janeiro (2003, p. 171). A fase de oposição e de denúncia situa-se de 1968 ao final do governo de Ernesto Geisel (1974-1979). Em dezembro de 1968, o governo do general Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que foi a expressão da linha dura do Regime Militar, pois conferia poderes absolutos ao presidente, e que vigorou até 1978. O período que vai de 1968 a 1975 é chamado anos de chumbo por ser considerado o tempo mais difícil da ditadura. O AI-5 desen- cadeou a mais ferrenha perseguição política, seguida de prisões, censuras, torturas, mortes, desaparecimentos e exílios. © História da Igreja na América Latina e no Brasil194 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO À medida que o regime manifestava sua fisionomia opres- sora e não protetora, a Igreja começa a esboçar uma reação de oposição. Segundo Barros (2003,p. 171), três questões fundamentais começaram a inquietar alguns bispos: • 1) violação dos direitos humanos; • 2) injustiça social; • 3) Doutrina da Segurança Nacional, formulada pela Escola Superior de Guerra. Essas questões incomodaram muitos bispos, padres, reli- giosos e leigos, e o preço pago foi alto demais para muitos deles. Assim, "a Igreja tornou-se, na prática, a única voz daqueles que não tinham voz dentro do regime autoritário" (BARROS, 2003, p. 174). Nessa fase, a Igreja era vista pelos militares como um perigo à nação. No intuito de se opor ao regime, de denunciar as persegui- ções e de lutar pelos direitos humanos, direta ou indiretamente, a Igreja criou e participou da criação de vários órgãos que tinham por objetivo a defesa da pessoa humana, tais como a Comissão Justiça e Paz, a Comissão Pastoral da Terra e o CIMI. A fase de diálogo com o governo, no final da gestão de Er- nesto Geisel (1974-1979) e no começo da gestão de João Batista de Oliveira Figueiredo (1979-1985), coincide com a abertura polí- tica e com o início do processo de redemocratização do país. Uma abertura "lenta e gradual", como ficou conhecida. Nessa fase, em- bora as tensões continuassem, os conflitos entre Igreja e Regime se amenizavam, havendo, da parte do governo, uma disposição para o diálogo e a colaboração. Conforme as palavras de D. Luciano Mendes de Almeida: [...] houve uma abertura tão grande que o governo aceitou dialogar com a presidência da CNBB. Pediu explicitamente à presidência – estava D. Ivo, D. Clemente, eu e Mons. Afonso – que desse cola- boração ao governo no campo econômico para que daí houvesse 195© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida como consequência uma melhoria social rápida. O presidente Fi- gueiredo disse: "eu estou começando, quero colaboração. Os se- nhores façam que seus institutos (nós nos referíamos na época ao IBRADES) sejam capazes, a curto prazo, de apresentar soluções viá- veis para o Brasil sair da situação em que se encontra" (1994, p. 17). Contudo, o diálogo nem sempre aconteceu, e, quando acon- teceu, foi em um clima de tensão que não podia ser diferente, pois era um tempo de tensões em todos os setores da vida pública do país. A Igreja, porém, não deixou de fazer sua parte e elaborou vá- rios documentos com o objetivo de politizar o povo e de despertá- -lo para uma consciência crítica. Desse modo, a Igreja comandada pela CNBB, iluminada pelo Concílio Vaticano II e pela Conferência de Medellín, durante o Re- gime Militar e especialmente entre 1964 e 1975, viveu verdadeiros momentos de provação. Não bastasse lutar contra uma situação de injustiça e de violência para com a dignidade humana, ainda teve de, muitas vezes, lutar contra suas contradições internas e encontrar equilíbrio entre as tendências conservadoras e progres- sistas, o que equivale dizerque nem todos os bispos concordavam em se opor ao regime e em acatar as decisões da maioria. Havia aqueles que eram a favor do regime e que denunciavam seus pró- prios pares – quem sabe, sem nenhum "pingo" de consciência do desserviço que estavam prestando à Igreja e ao povo. Mesmo as- sim, durante o período militar, "a Igreja no Brasil viveu um de seus momentos mais fortes de comunhão, de serviço à sociedade, e de exercício de sua missão, especialmente de sua missão profética" (BARROS, 2003, p. 212). 8. COMUNIDADES ECLESIAIS DE BASE (CEBS) Falar sobre as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) não é uma tarefa fácil, pois o assunto é amplo e está inserido em um vasto movimento de renovação da Igreja pós-conciliar no conti- nente latino-americano, sobre o qual muito se escreveu entre 1970 e 1990. Em geral, as CEBs são um fenômeno da Igreja latino- © História da Igreja na América Latina e no Brasil196 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO -americana. Todavia, foi na Igreja do Brasil que elas tiveram maior expressão não só por conta de seu lugar de origem, mas também por terem maior acolhida da parte do povo. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Não é de intenção nossa, aqui, nesse espaço, discutir e procurar compreender, amplamente, a questão da origem das CEBs. Isto, sem dúvida, você já deve ter feito, e muito bem, ao estudar a Pastoral da Igreja no Brasil. Nosso objetivo é falar de seu significado em um amplo movimento de renovação da Igreja. No entanto, trazemos algumas ideias a respeito de sua gênese. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Em se tratando de sua gênese, é difícil estabelecer um marco inicial, como aconteceu com outros movimentos na Igreja. As CEBs não foram criadas, oficialmente, por decreto, elas simplesmente foram surgindo, germinado, crescendo e florescendo. Elas estão na linha de desaparecimento e de confluência de vários outros movimentos anteriores. Na Igreja, todo e qualquer movimento eclesial tem uma razão para existir, pois está a serviço da evan- gelização. Quando perde essa razão, deixa de existir e dá lugar a outro movimento. Nesse sentido, as CEBs são tributárias de muitas influências e de muitas iniciativas pastorais populares ainda an- tes do Concílio Vaticano II, que depois foram regadas pelo próprio Concílio, por Medellín e por Puebla. Nesse sentido, uma passagem do texto de D. Luís Fernandes sobre a "Gênese das CEBs no Brasil" ilustra esse raciocínio: Sem preocupação de maior rigor, já se tornou costume lembrar, entre os pioneiros, os catequistas populares de Barra do Piraí. Ou também se fala, com frequência, nos trabalhos do MEB, nas Esco- las Radiofônicas, no Movimento de Natal, na renovação paroquial do "Mundo Melhor". Que haverá de verdade em tudo isso? Não se pode duvidar de que foi justamente naquele ambiente e dentro daquele caldo de cultura que germinou a CEB brasileira. Parece que sem a Ação Católica e sem esses tantos outros fermentos animado- res de nossa ação pastoral, seria impensável o surgimento de uma iniciativa tão ousada, qual foi nossa Comunidade Eclesial de Base. Nesse sentido e nessa medida, temos de reconhecer, com justi- ça, os muitos precursores da nova explosão eclesial. Por volta de sessenta, se percebe que nosso campo pastoral estava como que preparado e fertilizado para o despontar do novo rebento, a CEB [...]. As Comunidades Eclesiais de Base certamente não apareceram 197© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida de improviso ou fruto do acaso cego. Havia um chão devidamente trabalhado e regado pelo esforço de algumas gerações (1994, p. 138-139). Portanto, seja como for, o processo de gênese das CEBs deve ser procurado na influência da realidade eclesial pré-conciliar e pós-conciliar, na realidade eclesial brasileira e na conjuntura so- ciopolítica e econômica brasileira. Você deve estar se perguntando: qual foi o significado das CEBs para a Igreja? O que elas representaram? O significado das CEBs foi imenso. Elas representam uma nova maneira de organizar a pastoral da Igreja em comunidades menores, nas quais as pessoas podem estabelecer laços comuni- tários entre si e organizar-se em torno de um mesmo objetivo. Elas forçaram a Igreja a renovar-se "por dentro" e "por baixo", ou seja, partindo das camadas populares. O povo já não é mais a massa, mas é a comunidade, é a Igreja, é o povo de Deus. Portanto, não pode ser mais usado para sustentar interesses particulares como ocorrido nas décadas anteriores, mas deve ser considerado agente da transformação social, bem como da própria Igreja. De um modo geral, podemos dizer que as CEBs representam: 1) Uma Igreja com rosto popular: as CEBs são a expressão de um novo jeito de ser Igreja, uma "expressão de amor preferencial da Igreja pelo povo simples; nelas se expres- sa, valoriza e purifica sua religiosidade e se lhe oferece a possibilidade concreta de participação na tarefa eclesial e no compromisso de transformar o mundo" (PUEBLA, 643). Cria-se um espírito de comunhão e de valoriza- ção do leigo, especialmente do leigo humilde e pobre, na maioria das vezes, economicamente desfavorecido e politicamente desconsiderado. Esse modelo de Igreja contrasta com o modelo anterior elitista e verticalista. 2) Uma comunidade de fé: as CEBs são um lugar de pro- funda vivência da espiritualidade que brota da Bíblia. À luz do Evangelho, o povo reflete sobre a realidade e busca formas originais de exprimir sua fé na palavra de © História da Igreja na América Latina e no Brasil198 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Deus, bem como de pô-la em prática (PUEBLA, 99). Por meio do método "ver, julgar e agir", olha a realidade em que vive, julga com os olhos da fé e, à luz da Bíblia, pro- cura caminhos e saídas. As CEBs popularizaram a Bíblia, fazendo dela um "manual" de orientação da vida do po- bre. Apesar de muitos participantes serem politicamente ativos, envolvidos com questões sociais ou partidárias, as CEBs são comunidades de fé em que as pessoas se reúnem para fazer a leitura da Bíblia, para refletir, tirar lições para a vida, colocar seus problemas e dificuldades e para participar da missa ou de qualquer outra celebra- ção. Assim, são encontros para celebrar a vida. As CEBs representaram uma "revolução" eclesial para a Igre- ja do Brasil e da América Latina. Para muitos, elas alimentavam uma grande esperança para a Igreja e para a sociedade, como se fossem uma proposta de vivência cristã comprometida com a rea- lidade. Para outros, era apenas uma onda da época, mas que me- recia os cuidados de um olhar atento porque poderia trazer con- sequências imprevisíveis. Ainda para outros, era um câncer, uma célula doente e, portanto, perigosa, porque transpirava "odores revolucionários". Por isso, as CEBs foram combatidas por setores do governo, da sociedade civil e, também, por setores mais con- servadores da própria Igreja. Para encerrar, é interessante colocar a seguinte pergunta, pois, a partir dela, você poderá formular muitas outras: qual é o sentido e o significado das CEBs na atual conjuntura da Igreja no Brasil? 9. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO Na esteira do espírito renovador que tomou conta da Igreja latino-americana e brasileira depois do Concílio Vaticano II, inclui- -se, também, a renovação do pensamento teológico, que resultou na Teologia da Libertação. 199© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida Por se tratar de uma questão complexa, não vamos abordar a vertente protestante da Teologia da Libertação nem a vertente europeia, muito menos fazer uma varredura em busca da origem histórica do uso do termo libertação na Igreja. De maneira sucin- ta, vamos abordar como e em que condições ela nasceu na Igreja católica latino-americana e brasileira. A Teologia da Libertação nasceu de um anseiopela crítica e pela revisão da teologia tradicional, da necessidade de se formular uma teologia prática e da reflexão nascida da própria prática, para que esta se tornasse transformadora ou libertadora, como gosta- vam de dizer os teólogos da libertação. Foi com base nessa compreensão que inúmeras vozes se le- vantaram em vários pontos da América Latina: Vejamos alguns desses pensadores e teólogos: a) Gustavo Gutiérrez; b) Hugo Assmann; c) Jon Sobrino; d) Enrique Dussel; e) Pedro Casaldáliga; f) Leonardo Boff; g) Clodovis Boff; h) João Batista Libâneo; i) José Comblin; j) Helder Câmara e outros. A data de nascimento da Teologia da Libertação é no final da década de 1960 e no início de 1970. O contexto eclesial é o calor do Concílio Vaticano II e a Conferência de Medellín. O contexto político é a fase das ditaduras, da Guerra Fria, do capitalismo neo- liberal, da ideologia socialista-marxista e da teoria da dependência econômica. O contexto social é a extrema pobreza, a exclusão e as novas formas de dominação produzidas pelo subdesenvolvimento econômico alastrado por toda a América Latina como consequên- cia da detenção da maior parte das riquezas nas mãos de poucos. © História da Igreja na América Latina e no Brasil200 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Como você pode notar, é nesse amplo e complicado contex- to que a Teologia da Libertação nasce e desenvolve seu referencial teórico e interpretativo. A opção pelos pobres e excluídos era com- preendida como defesa da vida do povo empobrecido, explorado e condenado a morrer pela falta de chances para participar da eco- nomia e do mercado. O sistema econômico injusto produzia uma larga faixa de pobres, marginalizados e excluídos. Os teólogos da libertação entendiam que esses problemas eram um desafio para a fé e para a vivência do Evangelho e que era necessário compreender as contradições da realidade, indignar-se e agir. Em 1978, quando a Igreja se preparava para a Conferência que se realizaria no ano seguinte em Puebla, já em um clima tu- multuado, Leonardo Boff escreveu um texto sobre a Teologia da Li- bertação. Um dos tópicos se intitula: "O que se precisa compreen- der para entender a teologia da libertação". Vejamos um trecho. Na raiz da teologia da libertação se encontra a aguda percep- ção da miséria a que estão submetidas as grandes maiorias de nos- so Continente; há uma divisão profunda entre ricos e pobres que é tanto mais dolorosa quanto sabemos que uns e outros professam a mesma fé. A primeira reação daquele que se orienta pela fé cris- tã é de indignação ética face à pobreza generalizada. Não agrada a Deus! Em nome da caridade, da fé verdadeira, do reconhecimento do próprio Cristo na pessoa do pobre devemos fazer alguma coisa! [...]. A percepção e a indignação movem à ação. A Igreja entendeu que não basta reduzir sua presença na sociedade mediante a prá- tica religiosa (litúrgica, devocional); importa articular com ela tam- bém práticas éticas, sociais, de promoção do homem todo e de todo o homem. Estas práticas são exigidas pela própria fé cristã que, so- mente sendo informada pelo amor (prática), se torna fé verdadeira e salvífica; caso contrário é uma fé vazia que não leva ao Reino de Deus. Concluindo: na base da teologia da libertação há um sentir, um re-agir e um agir. Se não compreendemos esses passos, dificil- mente entenderemos a teologia da libertação (BOFF, 1978, p. 698- 699). 201© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida A opção pelos pobres, a reflexão crítica da realidade e o uso de categorias marxistas, o diálogo com as ciências sociais, entre outras causas, lançou a Teologia da Libertação em águas turvas. Criou-se um clima de tensão e de situações tumultuadas entre de- fensores e opositores. Desde o início, bispos e teólogos das alas mais conservadores da Igreja não só fizeram forte oposição por meio de críticas e anátemas, como também criaram verdadeiros "quartéis" de combate e agências de informação para vigiar os te- ólogos. Gustavo Gutiérrez foi, desde o início, o alvo. Logo, um a um, também foram sendo alvejados. As tensões e os atritos em torno da Teologia da Libertação não permaneceram aqui na América Latina; atravessaram o Atlân- tico e foram parar no Vaticano. Foi lá que o confronto mudou de tom, abrindo uma grande crise entre a Santa Sé e a Igreja na Améri- ca Latina e no Brasil. A Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé investigou, advertiu, censurou, puniu, impôs silêncio e condenou vários teólogos. Em 1984, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé publicou a "Instrução sobre alguns aspectos da Teologia da Libertação" com a finalidade de chamar a atenção "para os perigos de desvios, prejudiciais à fé e à vida cristã" (SAGRADA CONGREGA- ÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, 1984, p. 6). A respeito da crise que se abriu entre a Santa Sé e os teólo- gos da libertação, o texto de Scott Mainwaring é ilustrativo: Desde a eleição de João Paulo II, a teologia da libertação vem sendo alvo de ataques do CELAM e de Roma. Em 1977, a Comissão Teo- lógica Internacional do Vaticano divulgou uma declaração contrá- ria às versões reducionistas da teologia da libertação. Além disso, Roma pressionou alguns bispos progressistas para não comparece- rem ao II Congresso Ecumênico Internacional de Teologia, realizado em São Paulo, em fevereiro de 1980. O verdadeiro ataque contra a teologia da libertação no Brasil começou em 1982, com a publica- ção de diversos trabalhos criticando acerbamente Leonardo Boff. Desde a metade da década de 70 o Vaticano tem investigado os tra- balhos de Boff, o mais conhecido teólogo brasileiro, sob o pretexto de que se desviam muito da ortodoxia católica [...]. Em setembro de 1984, o teólogo foi chamado a Roma [...]. O Vaticano condenou Boff formalmente em maio de 1985, impondo-lhe um silêncio por tempo não determinado [...]. A investigação e a condenação aju- © História da Igreja na América Latina e no Brasil202 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO daram a estimular ataques contra ele e contra os progressistas no Brasil. Clodovis Boff, o irmão mais jovem de Leonardo e também um teólogo de destaque, igualmente foi punido. Em 24 de fevereiro de 1984, o Vaticano proibiu-o de lecionar em Roma (1989, p. 275). Para encerrar, é interessante colocar as seguintes perguntas, pois, a partir delas, você poderá formular muitas outras: o que é que eclipsou a Teologia da Libertação? Diante de uma nova reali- dade, não é necessário fazer uma nova leitura e uma nova análise? 10. TENSÕES ENTRE A SANTA SÉ E A IGREJA DO BRASIL As relações entre a Igreja do Brasil e a Santa Sé no final da dé- cada de 1970 e no início de 1980 constituíram um jogo complexo de forças convergentes e divergentes que caminhava do "estímulo e do apoio à contenção e à intervenção" (BEOZZO, 1993, p. 213). Esse período foi marcado por fortes tensões e impasses no sentido de conter a articulação da CNBB, em nível nacional e internacional, com a CELAM e com as conferências episcopais de outros países. Para Beozzo (1993, p. 227), o ano 1980 é "o divisor de águas que inaugura toda uma década de relacionamento marcado por uma agenda conflituosa". –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Percebe-se, aqui, que a Igreja faz caminho inverso ao do Estado Militar. O regi- me está em declínio e os militares estão articulando a redemocratização. Havia passado o tempo da "linha dura". Na Igreja, por sua vez, é no início de 1980 que se estabelece uma "linha dura", pois ela volta ao conservadorismo e põe em crise a Igreja popular. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– Vejamos alguns polos de tensões que marcaram as relações entre Roma e a CNBB e que criaram perplexidades, embaraços e amarguras na Igreja. Teologia da Libertação Na seção anterior, já abordamos alguns focos de tensões causados pela Teologia da Libertação. Uma situação singular foi 203© O Concílio Vaticano II e a ReformulaçãoEclesial: de Medellín a Aparecida o caso Boff e as pressões contra o projeto da coleção "Teologia da Libertação" (BEOZZO, 1993, p. 237-265). Liturgia Em 1977, a CNBB aprovou o Diretório para Missa com Grupos Populares. O Diretório respondia a uma real necessidade da Igreja do Brasil, em que 70% das celebrações dominicais eram realizadas por leigos. A Congregação do Culto Divino não gostou e reivindicou para si o direito de aprovação, alegando que "uma liturgia de tipo popular era perigosa para a fé" (ALBERTI apud BEOZZO, 1994, p. 220). Exigiu que o Diretório fosse retirado e não mais usado. Na mesma linha de uma liturgia popular, a CNBB teve proble- mas com a Santa Sé em relação à questão indígena e à "Missa dos Quilombos". A Congregação para os Sacramentos e o Culto Divino também proibiram a celebração dessa missa. Formação presbiterial Na esteira das tensões, a formação dos seminaristas talvez tenha sido o campo mais delicado nas relações da Igreja do Brasil com a Santa Sé. Este foi um caso típico, no qual prevaleceu a arbi- trariedade romana. Contudo, em que ela não prevaleceu? Logo após o Concílio, com o novo projeto de Igreja, um gran- de número de padres abandonou o sacerdócio, pondo em profun- da crise a formação presbiterial. Pulverizou-se o modelo antigo de padre e o modelo novo ainda não estava definido, como também não se sabia qual seria a formação mais adequada. A consequên- cia dessa situação foi o fechamento de vários seminários, menores e maiores tradicionais, desde o Rio Grande do Sul até o Nordeste. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A formação sacerdotal foi uma preocupação da CNBB logo depois do Concí- lio. Nesse sentido, foram publicados orientações, diretrizes e documentos (For- mação dos presbíteros da Igreja do Brasil: diretrizes básicas. Documentos da © História da Igreja na América Latina e no Brasil204 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO CNBB, n. 30, 1984. Orientações para os estudos filosóficos e teológicos: ementá- rio. Estudos da CNBB, n. 51, 1987. Formação dos presbíteros da Igreja do Brasil: diretrizes básicas. Documentos da CNBB, n. 55, 1994). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– A ideia pós-conciliar de uma Igreja inserida no mundo afe- tou, também, a formação sacerdotal, fazendo surgir várias tendên- cias nesse campo. Passou-se a pensar em uma formação sacerdo- tal mais inserida no mundo e voltada para a pastoral da Igreja. Beozzo destaca algumas linhas dessa tendência. Entre elas: a) Não separação entre a formação sacerdotal e a dos demais agentes de pastoral. b) eliminação da clássica divisão entre filo- sofia e teologia, pela criação de um currículo integrado de seis anos com a inserção de matérias de ciências sociais. c) Surgi- mento de cursos voltados para realidades mais especificas, bus- cando formar de maneira diferenciada os futuros presbíteros e agentes de pastoral. d) Corpo de professores formado por homens e mulheres, leigos e padres, religiosos e religiosas. e) Surgimento de institutos centrais de estudo para diocesanos, religiosos e leigos de uma região. f) Separação entre local de estudo e casas de formação. g) Inserção dos formandos em pequenas comunidades, próximas ao povo, nas periferias das cidades. h) Surgimento de institutos de teologia inseridos na estrutura universitária, como na PUC de Porto Alegre, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Goiânia (1993, 267-268). A partir de 1980, essa tendência muda e Roma aperta o cerco. Esse tipo de formação sacerdotal, adotado por boa parte da Igreja brasileira, não agradava à Congregação para a Educação Católica nem a um grupo de bispos do interior da própria CNBB. Dessa maneira, a Santa Sé, com a ajuda desses bispos, por meio de visitas canônicas esporádicas, passa um "pente fino" em vários seminários e institutos de teologia. A questão culminou com o fe- chamento do Instituto Teológico do Recife (ITER) e do Seminário Regional do Nordeste (SERENE II), também no Recife, em agosto de 1989. A razão dada pela Congregação para a Educação Católica foi a de que esses estabelecimentos não ofereciam condições ade- quadas para a formação sacerdotal. Houve esforços por parte de vários bispos do nordeste para reverter a decisão, mas a Santa Sé não voltou atrás. 205© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida Escolha e nomeação de bispos A crise entre a Igreja do Brasil e a Santa Sé evidenciou-se, também, na escolha e na nomeação de bispos, assunto esse que ficou cada vez mais espinhoso. Alguns fatores afetaram essa ques- tão: a) O abandono do sacerdócio: a hemorragia que atingiu o clero depois do Concílio deixou um vácuo muito grande entre as gerações. Havia uma geração de padres novos, entre 25 e 35 anos, e outra, acima dos 60 anos. Faltava, justamente, uma geração intermediária, dos 35 aos 50 anos, que, de práxis, era de onde se recrutavam candida- tos ao episcopado. O grosso dessa geração havia deixado o sacerdócio. Esse fato diminuiu o ritmo das nomeações e também forçou o recrutamento de candidatos da últi- ma geração, mais conservadores. Em termos pastorais, a Igreja teve reflexos negativos porque freou parte de seus projetos, que tinham em vista um engajamento com o povo (BEOZZO, 1993, p. 281). b) A mudança de estratégia e de política: a partir de 1980, Roma também muda de estratégia e enquadra a nome- ação de bispos em um determinado perfil. Descarta, de vez, candidatos ligados à chamada "Igreja popular" e prefere candidatos com um perfil mais teológico e con- servador justamente para bater de frente com as corren- tes teológicas existentes (sobretudo com as da linha da libertação), como também para abrir um canal de comu- nicação direta com Roma. A preferência era por teólogos e por biblistas (BEOZZO, 1993, p. 286), pastoralmente, pouco comprometidos. c) As transferências internas: por meio de transferências internas, de divisões de arquidioceses e de dioceses e da nomeação de auxiliares muitas vezes não indicados para o posto por parte dos bispos daqui do Brasil, mani- festou-se, também, a política de congelamento da Igreja do Brasil por parte da Santa Sé. Roma nomeou "figuras de proa do episcopado" para dioceses pequenas ou in- significantes. © História da Igreja na América Latina e no Brasil206 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Além destes, muitos outros polos de atrito e de tensões sur- giram entre a Santa Sé e a Igreja do Brasil (BEOZZO, 1993, p. 290). O que temos observado é que estava em curso um processo de centralização, de retorno da disciplina e de controle da Igreja. João Batista Libânio, ao fazer um balanço da Igreja Católica na década de 1980, escrevia: "Depois de viver o espírito primaveril do Concí- lio Vaticano II, a Igreja Católica mergulhou, nos anos 80, num rigo- roso inverno que reforçou a disciplina interna e a centralização". (LIBÂNIO apud BEOZZO, 1993, p. 290). Infelizmente, Roma, ao querer salvaguardar a Igreja da con- taminação dos mais variados movimentos, acabou, também, por obstruir sua vitalidade. Esse assunto, além de ser complexo, passa um aspecto nega- tivo e uma visão um tanto pessimista da Igreja. 11. RELIGIOSOS NA IGREJA DO BRASIL Estudar a Igreja do Brasil sem fazer referência aos religiosos e às religiosas seria deixar uma lacuna a ser preenchida. Há, por- tanto, a necessidade de dizer, pelo menos, "duas palavrinhas" a respeito de sua missão na Igreja. Não pretendemos falar da importância da vida religiosa na organização da Igreja (como fora feito na terceira unidade) nem elencar o número de congregações religiosas masculinas e femi- ninas existentes no Brasil (haja vista que são centenas delas), mas acenar para seu papel e sua importância na vida pastoral da Igreja. Em se tratando de pastoral, não temos dúvida de que a Igreja do Brasil é o que é hoje graças ao trabalho e à dedicação dos religio- sos e das religiosas. Até a décadade 1960, aproximadamente, de uma maneira geral, o trabalho dos religiosos e das religiosas na Igreja, com ex- ceção de poucas congregações, limitava-se, basicamente, a três campos: social, caritativo e educacional. Essa situação mudou, ra- dicalmente, depois do Concílio Vaticano II. 207© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida A maioria das congregações religiosas aderiu ao ritmo de abertura impulsionado pelo Concílio, redimensionando seu caris- ma à serviço da Igreja. No pós-concílio, animada pela Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), a grande maioria, especialmente feminina, abraçou o projeto de Igreja popular partindo de uma pastoral de engajamento nas periferias das cidades e nas regiões interioranas distantes e mais carentes. Inclusive, redimensionaram seu trabalho nos campos social, caritativo e educacional, dando a eles um sabor mais pastoral. Ao lado dos leigos, os religiosos e as religiosas estão presen- tes nas CEBs desde seu nascedouro, como animadores e articula- dores de uma pastoral popular encarnada na realidade do pobre. Não podemos nos esquecer da presença dos religiosos e das religiosas nos movimentos populares de todos os tipos: nos sindi- catos, nas lutas pela terra (o caso da irmã Dorothy Sting), no mun- do do trabalho e nos submundos das grandes cidades, exercendo uma pastoral que leva em conta, também, a dimensão política e cidadã das pessoas. A opção preferencial pelos pobres de centenas de religiosos e de religiosas tem gerado uma fileira de profetas e mártires para a Igreja, porque denunciam as injustiças praticadas contra os mais fracos. Essas "figuras de proa" são testemunho de que a Igreja não pode se esquecer de sua dimensão profética do anúncio e da de- núncia. 12. TENSÕES E DESAFIOS DA IGREJA EM UM MUNDO DE PROFUNDAS TRANSFORMAÇÕES Caminhando para a finalização de nosso estudo, vamos rela- cionar alguns desafios da Igreja do Brasil em uma sociedade global e complexa, tentando abrir um leque de realidades com as quais ela se confronta e convive. Esses desafios são tanto de natureza externa quanto interna à Igreja. © História da Igreja na América Latina e no Brasil208 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Os desafios externos a) Centralização romana: o projeto centralizador continua sendo levado adiante pela Santa Sé. Trata-se de um pro- jeto que tem por base a autoridade hierárquica, a obe- diência ao magistério e a dependência à Santa Sé. A ten- são reside, justamente, no perigo de as ideias e atitudes teológicas e eclesiológicas diferentes criarem um clima tenso nas relações com Roma. b) Pluralismo cultural e religioso: a sociedade pós-moder- na é marcada pela pluralidade de culturas e de religiões. Diante desse mundo plural e global, muitos católicos se encontram desorientados e sem rumo. Cabe à Igre- ja reorientá-los à luz do Evangelho e de sua doutrina. O pluralismo religioso abre um campo de concorrência entre as religiões no interior das quais se travam inúteis combates, fazendo da religião, muitas vezes, um produ- to puramente mercadológico. c) Individualismo: a sociedade pós-moderna é centrada no individualismo "que dissolve a concepção integral do ser humano, sua relação com o mundo e com Deus [...]. O individualismo enfraquece os vínculos comunitários" (DA, 44). É inerente à Igreja o princípio da relação e da fraternidade; sem isto não existe comunidade, pois só existe Igreja quando existe comunhão fraterna. d) O mundo técnico-científico: o avanço da técnica e da ciência afeta a vida do povo e da Igreja. Ciência e tec- nologia são campos tênues para gerar tensões. Por um lado, oferecem "imensa quantidade de bens e valores culturais que têm contribuído para prolongar a expecta- tiva de vida e sua qualidade" (DA, 123), mas, por outro lado, são capazes "de manipular geneticamente a pró- pria vida" (DA, 34), transformando a pessoa humana em, simplesmente, um objeto da ciência e da técnica. O de- safio consiste em manter um diálogo equilibrado com a comunidade tecnológica e científica sem comprometer os princípios evangélicos e os valores éticos e morais dos cristãos. e) O mundo midiático: o avanço da tecnologia criou uma rede de comunicação de alcance mundial. Os meios de 209© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida comunicação estão presentes em todos os setores da vida social e familiar das pessoas. Como usar a mídia em favor da evangelização? Eis o desafio. Que os meios de comunicação devem ser usados para veicular a men- sagem da Igreja para o mundo, todos estão de acordo; entretanto, devem ser usados com seriedade e com res- ponsabilidade, para não cair em banalizações da tradição da Igreja, da liturgia e da mensagem do Evangelho. Usar dos meios de comunicação disponíveis intencionando fazer marketing da Igreja, da fé católica ou do evangelho pode ser uma atitude pouco consistente. Os desafios internos a) Escassez de padres: conforme o modelo eclesial atual, o padre continua sendo um elemento fundamental na estrutura hierárquica. Contudo, devido à crise nas vo- cações e, também, ao aumento da população, o con- tingente existente de padres torna-se insuficiente para atender às necessidades da Igreja. A questão do minis- tério ordenado para casados está longe de ser realidade. Em relação aos ministérios leigos, o impasse continua. b) Diversidade e pluralidade no colegiado episcopal: des- de sua fundação, a CNBB caracterizou-se pela diversida- de de ideias e de tendências do episcopado. Às vezes, essa diversidade é tão acentuada que se torna preju- dicial à própria ação pastoral, como também reproduz uma imagem negativa da Igreja. c) Diversidade e pluralidade de movimentos: a diversida- de e a pluralidade de movimentos (populares e de elite), de instituições, de associações e de congregações, desde os mais tradicionais, como Apostolado da Oração, Con- gregação Mariana, passando pela Renovação Carismáti- ca, Focolares, Neocatecumenato, Opus Dei, Legionários, Arautos do Evangelho e mais de uma centenas de ou- tros, ao mesmo tempo em que enriquecem a Igreja, são um grande desafio no sentido de dialogar e de afinar as linhas pastorais. Nem todos aceitam e aderem às diretri- zes pastorais da CNBB. Muitos expressam um modelo de Igreja bem particular e reduzido ao grupo, dando ênfase © História da Igreja na América Latina e no Brasil210 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO maior ao aspecto espiritual da pessoa ou à conservação da tradição. d) A flutuação ou migração religiosa: já estamos acostuma- dos com as estatísticas a cada ano apontando para um catolicismo em queda e perdendo terreno para outros movimentos religiosos, especialmente, para os evangéli- cos. Portanto, boa parte da queda dos números deve-se à flutuação religiosa, ou seja, aqueles que, por alguma razão, saem da Igreja católica e aderem a outros grupos religiosos para encontrar respostas às suas inquietações. Como resposta a esse problema, a Conferência de Apa- recida (n. 225-226) insiste que a Igreja deve reforçar a experiência religiosa, a vivência comunitária, a formação bíblico-doutrinal e o compromisso missionário de toda a comunidade. e) Pastoral urbana: a pastoral urbana continua sendo um dos grandes desafios da Igreja. A Conferência de Apa- recida (n. 509-519) insiste que se desenvolva um estilo pastoral adequado à realidade urbana e capaz de aten- der ao mundo complexo da cidade. f) Diálogo ecumênico e inter-religioso: a Conferência de Aparecida (n. 227-239) pede que se intensifique o diá- logo entre os cristãos e os outros grupos religiosos. Ela vê o diálogo ecumênico e inter-religioso como um ins- trumento de construção de uma nova humanidade mais justa e mais fraterna. g) A religiosidade popular: a religiosidade popular consti- tui um dos aspectos complexos da vida dopovo. A Con- ferência de Aparecida reconhece que o povo é religioso e insiste em uma religiosidade de vertente bíblica, ma- riana, sacramental e litúrgica. No entanto, não podemos desconsiderar que o povo vive, ainda, uma religião de "muito santo e pouca missa", o que, muitas vezes, sig- nifica a preferência por devoções e promessas à liturgia. h) Por uma Igreja fraterna e participativa: construir uma Igreja fraterna e participativa talvez seja o maior desafio a ser enfrentado diante da diversidade e da pluralidade de tendências internas e externas. 211© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida Além desses desafios elencados, não podemos desconside- rar dezenas de outros igualmente importantes na vida da Igreja e na relação com o mundo. Dentre eles, estão a ecologia, o mun- do da política, a família, a juventude, a justiça social, as drogas, a universidade, os migrantes, os afrodescendentes, os indígenas, o gênero, a mulher, o celibato eclesiástico, a teologia feminista, a secularização, o laicismo etc. 13. TEXTO COMPLEMENTAR As conferências a seguir serão de grande importância para completar o estudo desta unidade. As conferências do episcopado latino americano: Rio de Janeiro – Aparecida –––––––––––––––––––––––––––––––––– CONFERÊNCIA DO RIO DE JANEIRO – 1955 No ano de mil e novecentos e cinqüenta e cinco acontece a primeira Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano – CELAM – realizada no Rio de Janeiro – Brasil. O determinante neste encontro é a criação do organismo, em nível de América Latina, para pensar a ação eclesial do continente latino. O Papa Pio XII, por meio de seu legado, Cardeal Adeodato Giovanni Piazza, enviou uma mensa- gem, para ser lida na abertura da Conferência e que foi tomada como horizonte de orientação dos trabalhos dos bispos. O período da realização desta Confe- rência deu-se de vinte e cinco de julho a quatro de agosto de mil e novecentos e cinqüenta e cinco. Participaram das sessões de trabalho no Colégio Sacré Coeur os cardeais latino americanos, exceto os dois da Argentina, devido a impedimentos causados pelo regime peronista. Congregaram-se trinta e sete arcebispos e cinqüenta e oito bispos, que representavam sessenta e seis arquidioceses, duzentas e dezoito dioceses, trinta e três prelazias, quarenta e três vicariatos e quinze prefeituras apostólicas. No total, a Assembléia seria composta de representantes diretos de vinte e três países, sessenta províncias, trezentos e cinqüenta circunscrições eclesiásticas e cento e cinqüenta milhões de católicos. Nesta Conferência a Igreja latino-americana, olhava para si mesma, na procura de caminhos no dever evangélico de anunciar a pessoa de Jesus Cristo. Na Con- ferência do Rio de Janeiro, o desafio era o catolicismo desafiado pela laicidade moderna e pelo protestantismo. Havia a preocupação de busca dos católicos dis- tantes da Igreja. Também no Rio de Janeiro, havia a consciência da necessidade de um trabalho em âmbito vocacional: A Conferência estima que a necessidade mais premente da América Latina é o trabalho ardoroso, incansável e organizado em favor das vocações sacerdotais religiosas, e faz, portanto fervoroso chamado a todos, sacer- dotes, religiosos e fiéis, para que colaborem generosamente numa ativa e perseverante campanha vocacional. © História da Igreja na América Latina e no Brasil212 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO Os Bispos clamam para um trabalho árduo em âmbito vocacional através da oração e do apostolado de todos. O ardente desejo da Conferência é que a obra de vocações sacerdotais seja considerada, em todas as dioceses, como obra fundamental, insubstituível, que deve preocupar a todos, e que merece uma atenção carinhosa e efetiva ajuda de todos. Também nesta foram ressaltadas: o zelo apostólico dos missionários, a formação dos leigos e a intensificação da evangelização junto aos indígenas. Os bispos louvam o zelo apostólico dos missionários, seguindo o nobre testemunho de seus antecessores. Dedicam especial atenção aos territó- rios de missão. Diante da escassez de missionários, deve-se favorecer a formação de evangelizadores para as missões. Importa intensificar a evan- gelização junto aos indígenas, por meio de uma organização adequada e que crie uma Instituição de caráter etnológico e indigenista. É louvável o testemunho da consciência missionária dos bispos reunidos no Rio de Janeiro. No final da Conferência, os bispos pediram ao papa Pio XII a criação de um organismo que congregasse os episcopados de cada país e unisse as for- ças da Igreja na América Latina. No dia dois de novembro de mil e novecentos e cinqüenta e cinco, recebe a aprovação pontifícia, quando se erigia oficialmente o CELAM (Conselho Episcopal Latino-americano), que teria sua sede em Bogotá, na Colômbia. Através do apoio e decidida animação do CELAM, entre os anos de 1956 a 1959 foi criada a maioria das Conferências Episcopais de cada país latino-americano. No Concílio Vaticano II (1962-1965), será acolhida e aceita a idéia da constituição de Conferências em âmbito nacional e continental, trabalho desencadeado no Brasil e, posteriormente, na América Latina através da Confe- rência do Rio de Janeiro. CONFERÊNCIA DE MEDELLÍN – 1968 A segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano foi realizada em Medellín, na Colômbia; foi iniciada no dia vinte e seis de agosto e concluída no dia seis de setembro de mil e novecentos e sessenta e oito. Durante os quatro anos de duração do Concílio Vaticano II (1962-1965), os padres conciliares lati- no-americanos mantiveram várias reuniões do CELAM em Roma. Assim, surge a idéia de propor ao Santo Padre a realização da segunda Conferência Geral. No ano de mil e novecentos e sessenta e seis a presidência do CELAM apresentou a Paulo VI a proposta da nova Conferência. O Pontífice acolheu com satisfação e convocou-a, sob o tema: "A Igreja na atu- al transformação da América Latina à luz do Concílio", Medellín apresentou-se como uma releitura do Vaticano II para a Igreja na América Latina. A Conferên- cia foi inaugurada por Paulo VI na catedral de Bogotá, no dia vinte e quatro de agosto, por ocasião do XXXIX Congresso Eucarístico Internacional. Dela partici- param oitenta e seis bispos, quarenta e cinco arcebispos, seis cardeais, setenta sacerdotes e religiosos, seis religiosas, dezenove leigos e nove observadores não católicos, presididos pelo cardeal Antonio Samoré, presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina, e por Dom Avelar Brandão Vilela, arcebispo de Teresina (Brasil) e presidente do CELAM. No total, participaram cento e trinta e sete bispos com direito a voto e cento e doze delegados e observadores. O objetivo da Conferência de Medellín não se situava na continuidade da pri- meira Conferência do Rio de Janeiro; era a aplicação do Concílio Vaticano II à realidade da América Latina, principalmente, os temas sociais. 213© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida A realidade missionária foi compreendida nos diversos temas tratados e na preocupação de evangelizar todos e cada um dos povos, com suas culturas, para que surjam verdadeiras Igrejas locais. Medellín, com estes objetivos e temáticas, representou uma grande colaboração à reflexão teo- lógica introduzindo novos temas, entre os quais: a religiosidade popular, as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, a libertação, a conscientização, a justiça, a paz, meios de comunicação, educação, formação do clero, dos religiosos, juventude, a pastoral de conjunto, de massas e das elites, as culturas. Na procura de uma Igreja junto à sociedade, houve movimentos na procura de encontrar resposta e engajamento eclesial aos problemas sociais. O documento está dividido em três partes: promoção humana, evangelização e crescimento na fé e a Igreja visível e suas estruturas. Os temas abordados são dezesseis: justi- ça, paz, família e demografia, educação e juventude(da primeira parte), pastoral popular, pastoral das elites, catequese, liturgia (da segunda parte), movimentos de leigos, sacerdotes, religiosos, formação do clero, pobreza da Igreja, pastoral de conjunto e meios de comunicação social (terceira parte). Na consciência missionária, Medellín revela uma lacuna pela ausência do tema missão, segundo o Decreto Conciliar Ad Gentes, e a vocação missionária univer- sal da Igreja. Enquanto reconhece a urgência da evangelização integral dos po- vos latino-americanos, em sua diversidade cultural, a Conferência não viu claro que esta dinâmica missionária implica e exige a dimensão específica e universal. A realidade da América Latina de dependência, miséria e subdesenvolvimento será o local concreto para a aplicação do Concílio Vaticano II. O impacto his- tórico de Medellín é indiscutível, pois impulsionou o desenvolvimento de uma extensa rede de comunidades, que funcionam como meio eficaz de comunicação e difusão de idéias. No Brasil, as CEBs Comunidades Eclesiais de Base – se consolidam. Nelas havia uma clara e profética posição sócio política, embora não comungada por todos os setores da Igreja, tanto por parte da hierarquia quanto do laicato. O surgimento de um novo espírito eclesial, fruto do Vaticano II, levou ao surgi- mento e à difusão da Teologia da Libertação, com acento no Jesus histórico e na Bíblia, como fonte de espiritualidade e de conscientização. Medellín também foi o caminho para uma pastoral latino-americana, pois seu documento abrange a maioria dos setores pastorais de então, reconhecendo seu pluralismo e dando orientações significativas frente ao presente e ao futuro. Por fim, o documento de Medellín tornou-se uma aplicação criativa do Concílio Vaticano II para a América Latina. CONFERÊNCIA DE PUEBLA – 1979 A terceira Conferência Geral do Episcopado da América Latina foi realizada em Puebla de Los Angeles – México – de vinte e sete de janeiro a treze de fevereiro de mil e novecentos e setenta e nove. No fim de mil e novecentos e setenta e seis, no transcurso da XVI Assembléia do CELAM, celebrada em San Juan de Puerto Rico, o cardeal Sebastião Baggio, então prefeito da Congregação para os Bispos e presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, anunciou que Paulo VI tinha a intenção de convocar a III Conferência Geral. Os bispos acolheram com entusiasmo a notícia e iniciaram os trabalhos prepa- ratórios ao evento eclesial. Paulo VI apontou como documento de referência a exortação apostólica Evangelli Nuntiandi, de mil e novecentos e setenta e cinco, © História da Igreja na América Latina e no Brasil214 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO na qual o Pontífice analisa o que é evangelizar, qual é o conteúdo da evangeliza- ção, quem são os destinatários da evangelização, quem são seus agentes e que espírito deve presidi-lo. Também nas palavras do então presidente do CELAM e um dos presidentes de Puebla: Base de toda a reflexão foi a exortação apostó- lica Evangelli Nuntiandi, de Paulo VI, de oito de dezembro de mil e novecentos e setenta e cinco. Como Medellín foi uma releitura do Vaticano II para a América Latina e o Caribe, assim Puebla foi uma releitura da Evangelli Nuntiandi. Paulo VI convocou oficialmente a III Conferência no dia doze de dezembro de mil e no- vecentos e setenta e sete, sob o lema: Evangelização no presente e no futuro da América Latina. O Pontífice assinalou que ela seria celebrada de doze a dezoito de outubro de mil e novecentos e setenta e oito, mas o seu falecimento e o breve pontificado de João Paulo I fizeram com que a Conferência fosse adiada. João Paulo II, recém-eleito, pediu que fosse adiada para que ele pudesse estudar e conhecer a nova Conferência do CELAM, até ter lugar de vinte e sete de janeiro a treze de fevereiro de mil e novecentos e setenta e nove. A participação deu-se através de trezentos e cinqüenta e seis delegados, sendo previstos inicialmente duzentos e quarenta e nove, onde duzentos e vinte e um eram bispos. A presidência da Conferência de Puebla esteve a cargo do car- deal Sebastião Baggio, prefeito da Congregação para os Bispos e presidente da Comissão Pontifícia para a América Latina; do cardeal Aloísio Lorscheider, arcebispo de Fortaleza – Brasil – presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – e presidente do CELAM; e de Dom Alfonso López Trujillo, arcebispo de Medellín – Colômbia – e secretário-geral do CELAM. O papa João Paulo II inaugurou a III Conferência pessoalmente, com um discurso lido no Seminário Palafoxiano de Puebla. Essa foi a primeira viagem do Papa polonês à América e despertou interesse de multidões. Seu discurso inaugural ditaria a marcha dos trabalhos da reunião eclesial. O documento conclusivo da Conferência de Puebla tem cinco partes, cujos títulos são: na primeira parte apresenta a visão pastoral da realidade latino-americana, como desafio inicial; a segunda parte é a secção doutrinária, onde está afirma- da a identidade da Igreja, também da Igreja latino-americana, destacando-se o tema da evangelização da cultura; na terceira parte, intitulada A evangelização da Igreja da América Latina: comunhão e participação, acentuando os centros de comunhão e participação; na quarta parte, Igreja missionária a serviço da evangelização na América Latina, onde se encontram as opções preferenciais: pelos pobres, pelos jovens, a ação da Igreja junto aos construtores da sociedade pluralista na América Latina e a ação em prol da pessoa na sociedade nacional e internacional, e, por fim, a quinta parte, Sob o dinamismo do Espírito: opções pastorais constituem o agir. O documento pode ser compreendido a partir do método: ver, julgar e agir. A primeira parte do documento abre com uma visão da realidade latino-ameri- cana, que inicia com um olhar pelos cinco séculos de evangelização da Igreja: Nosso radical substrato católico, com suas formas vitais de religiosidade vigente, foi estabelecido e dinamizado por uma imensa legião missionária de bispos, religiosos e leigos. Em primeiro plano, temos as realizações de nossos santos, como Turíbio de Mogrovejo, Rosa de Lima, Martinho de Porres, Pedro Claver, Luís Beltran e outros. Ensinam-nos todos que, superadas as debilidades e a covardia dos homens que os cercavam e às vezes os perseguiam, o Evangelho, em sua plenitude de graça e de amor, foi e pode ser vivido na América Latina como sinal da grandeza e da verdade de Deus. 215© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida A identidade e herança religiosa são constitutivas do caráter no povo latino-ame- ricano. Também os bispos atentam para o fenômeno da desigualdade e da in- justiça na América Latina, que gera uma situação de pobreza desumana em que vivem milhões de latino-americanos, fato visto como escândalo e contradição com o ser cristão.Na segunda parte das conclusões apresenta o conteúdo da evangelização e o que é evangelizar. Propomos agora anunciar as verdades centrais da evangelização: Cristo, nossa esperança, está no meio de nós, como enviado do Pai, animando com seu Espírito a Igreja e oferecendo sua palavra e sua vida de hoje, para levá-lo à sua libertação integral. A Igreja, mistério de comunhão, povo de Deus a serviço dos homens, continua sendo evangelizada através dos tempos e levando a todos a Boa Nova. O homem, por sua dignidade de imagem de Deus, merece nosso compromisso em favor de sua liberdade e realização total em Cristo Jesus. Só em Cristo se revela a verdadeira grandeza e só nele é que se conhece, em plenitude, a realidade mais pro- funda do homem. Os bispos enfatizam que a evangelização dá a conhecer Jesus como Senhor que nos revela o Pai que nos comunica seu Espírito. E, no processo seguinte, a conversão que é a reconciliação e vida nova, leva-nos à comunhão com o Pai que nos torna filhos e irmãos. A terceira parte das conclusões de Puebla refere-se à evangelização da América Latina, por meio da comunhão e participação. Aborda a situação dafamília latino- -americana, das paróquias e pequenas comunidades, do ministério hierárquico, da vida consagrada, dos leigos, da pastoral vocacional. Como valores presentes na alma do povo latino-americano, são a liturgia, a oração particular e piedade popular. Também se destacam o testemunho como primeira opção pastoral, a catequese, que permite formar homens pessoalmente comprometidos com Cris- to; e, no final, a educação e os meios de comunicação social como instrumentos imprescindíveis de promoção humana e auxílio à instauração do Reino de Deus. A saber, que a própria evangelização em nossos dias não pode prescindir, sem os meios de comunicação social. Na quarta parte das conclusões de Puebla, que aborda o tema da Igreja missio- nária a serviço da evangelização, os bispos afirmam que "os pobres e os jovens constituem, portanto, a riqueza e a esperança da Igreja da América Latina, e sua evangelização é, por conseguinte, prioritária". Na opção preferencial pelos pobres apontada por Puebla, na perspectiva de Me- dellín, será retomada a necessidade de conversão de toda a Igreja para uma opção preferencial pelos pobres, no intuito de sua integral libertação. A opção preferencial pelos jovens entende: Uma linha pastoral global: desenvolver, de acordo com a pastoral diferen- cial e orgânica, uma pastoral da juventude que leve em conta a realidade social dos jovens de nosso continente; atenda ao aprofundamento e cres- cimento da fé para a comunhão com Deus e os homens; oriente a opção vocacional dos jovens; ofereça-lhes elementos para se converterem em fatores de transformação e lhes proporcione canais eficazes para a partici- pação ativa na Igreja e na transformação da sociedade. Na quinta parte das conclusões de Puebla enfatiza: Sob o dinamismo do Espírito: Opções Pastorais. Nesta ressaltam-se as opções pastorais numa Igreja sacra- mento de comunhão, também uma Igreja servidora e missionária; a necessidade do planejamento pastoral; o homem novo; e, por fim, os sinais de esperança e © História da Igreja na América Latina e no Brasil216 Claretiano - REDE DE EDUCAÇÃO de alegria. A respeito de uma Igreja missionária, apresentada pelo documento de Puebla, onde é destacado a evangelização. Um grande avanço missionário foi a consciência de que a missão evangelizadora é de todo o povo de Deus. Ao mes- mo tempo, a dimensão e destino universal da evangelização exigem comunida- des eclesiais vivas e evangelizadoras para atender às situações que mais preci- sam de evangelização: situações permanentes, novas e particularmente difíceis. Também o crescimento da consciência missionária e novas frentes de ação evangelizadoras são desencadeadas por Puebla. A mudança do marco conceitual da missão estabelece uma relação teo- lógico-pastoral entre os aspectos de evangelização: formar comunidades eclesiais vivas e dinâmicas, atender às situações missionárias que mais precisam e projetar a missão ad gentes. Assume compromissos universais de comunhão entre Igrejas locais, partilhando valores e experiências, bem como favorecendo o intercâmbio de pessoas e de bens, pois a missão é de todo o povo de Deus. Assim, sob o aspecto doutrinário, os fios condutores do documento são a evan- gelização, como tema central, a comunhão e participação como a meta, a liber- tação, como o caminho pelo qual a evangelização impulsiona tudo e a todos em direção da meta, e os pobres, os sujeitos preferenciais. As suas linhas de força e as grandes orientações são a realidade; o primado da evangelização; a constatação da violação dos direitos humanos no continente, seguida da reflexão antropológica e de uma fundamentação bíblica, que mostram a dignidade humana; a opção pelos pobres e por uma evangelização libertadora; a cultura e as culturas na América Latina e a sua evangelização; a necessidade de espiritualidade própria para a evangelização e evangelizadores da América Latina. Destacam-se a busca e a vontade de fazer da Igreja da América Latina uma Igreja identificada com a evangelização missionária, no sentido de entender a Igreja em estado de missão. CONFERÊNCIA DE SANTO DOMINGO – 1992 A quarta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano foi realizada em Santo Domingo – República Dominicana – em mil e novecentos e noventa e dois. O Papa João Paulo II convocou-a oficialmente no dia doze de dezembro de mil e novecentos e noventa, estabelecendo como tema "Nova Evangelização, Pro- moção humana, Cultura cristã", sob o lema "Jesus Cristo ontem, hoje e sempre" (Hb 13, 8). O CELAM fora o encarregado de preparar a Conferência, tendo divul- gado o documento de consulta em mil e novecentos e noventa e um. Este, após as contribuições das Igrejas locais, transformou-se no Documento de Trabalho, base das discussões dos bispos e convidados. A Conferência de Santo Domingo foi celebrada de doze a vinte e oito de outubro de mil e novecentos e noventa e dois. Marcava-se no contexto da celebração dos quinhentos anos do início da evangelização no continente americano. Ela teria três objetivos: celebrar Jesus Cristo, ou seja, a fé e a mensagem do Senhor crucificado e ressuscitado; prosseguir e aprofundar as orientações de Medellín e Puebla; definir uma nova estratégia de evangelização para os próximos anos, respondendo aos desafios do tempo. Entre bispos, peritos e convidados parti- ciparam cerca de trezentas pessoas. Destas, duzentas e trinta e quatro eram bispos com direito a voto. A América Latina passara por diferentes mudanças desde mil e novecentos e setenta e nove. Havia-se alterado a situação política das repúblicas latino-ame- 217© O Concílio Vaticano II e a Reformulação Eclesial: de Medellín a Aparecida ricanas, passando de ditaduras de distinto matiz a regimes políticos mais ou menos democráticos. Constatara-se a derrocada do socialismo e afirmava-se o neoliberalismo de cunho anglo-saxão. A violência do narcotráfico se estendia, em convivência com algumas guerrilhas. Nos anos de oitenta se acentuava a urbanização, evidenciando a miséria de grandes parcelas da população aglome- rados nas grandes cidades. A quarta Conferência Geral do Episcopado Latino- -americano quis traçar linhas fundamentais de um novo impulso evangelizador, que colocasse Cristo no coração e nos lábios, na ação e na vida de todos os latino-americanos. O documento está dividido em três partes: na primeira, intitulada, Jesus Cristo, Evangelho do Pai entendido em dois aspectos: a profissão de fé e os quinhentos anos da Primeira Evangelização; a segunda, Jesus Cristo evangelizador vivo em sua Igreja, subdividido em três capítulos: a Nova Evangelização, a Promo- ção Humana e a Cultura Cristã; a terceira parte apresenta Jesus Cristo, vida e esperança da América Latina e Caribe, através das linhas pastorais prioritárias. A segunda parte é mais desenvolvida, pois está composta por três capítulos, cada um deles abordando os três temas propostos pelo Santo Padre e debatidos durante os trabalhos da Conferência. A frase bíblica Jesus Cristo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13, 8) serviu de inspiração. A primeira parte das conclusões de Santo Domingo intitula-se Jesus Cristo, Evan- gelho do Pai. Abre com bela e profunda profissão de fé. Em seguida há um breve panorama dos quinhentos anos da primeira evangelização da América Latina. A segunda parte, a mais longa das conclusões, redige-se sob o título Jesus Cris- to, evangelizador vivo em sua Igreja. Apresenta elementos que serviram de base para concretizar a estratégia evangelizadora para os próximos anos. É apresen- tado o termo nova evangelização. Falar de Nova Evangelização é reconhecer que existiu uma antiga ou primeira. Seria impróprio falar de nova evangelização de tribos ou povos que nunca receberam o Evangelho. Na América Latina, pode-se falar assim, porque aqui se realizou uma primeira evange- lização nos últimos quinhentos anos. A Nova Evangelização entende quatro âmbitos: a Igreja convocada à santidade; co- munidades eclesiais vivas e dinâmicas; na unidade
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