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EA D 3 A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus 1. ObjetivOs • Entender o que é a hipótese da Fonte Q. • Compreender a reconstrução da Fonte Q . • Identificar a relevância do estudo da Fonte dos Ditos para a aproximação do contexto imediato posterior à morte de Jesus, no qual estavam inseridas as primeiras comunida- des cristãs. • Indicar a relevância da Fonte dos Ditos para a reconstru- ção do Jesus Histórico e das primeiras comunidades cris- tãs. • Mostrar a relação entre Fonte dos Ditos e os Sinóticos. 2. COnteúdOs • Gênese da hipótese Fonte Q: datação, lugar de origem, gêneros e formas literárias. © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 100 • Estudos recentes sobre Q. • Conclusões do pesquisador John Kloppenborg sobre a Fonte dos Ditos e as reações de seus debatedores. 3. Orientações para O estudO da unidade Antes de iniciar o estudo desta unidade, é importante que você leia as orientações a seguir: 1) Para que esse aprendizado seja construído de modo sa- tisfatório, tenha em mãos uma bíblia e confira as refe- rências que serão utilizadas. 2) Leia atentamente a unidade e, a seguir, formule uma sín- tese com seus principais pontos. 3) Após ter lido os conteúdos que dizem respeito à Fonte Q, estabeleça a relação entre ditos de sabedoria e mol- duras narrativas, as "creias". Mas atenção à diferencia- ção entre um e outro! 4) Busque perceber a relação entre as tradições teológicas da hipótese de Q e os possíveis grupos que a constituí- ram, considerando-as como "espelhos" dessas comuni- dades. 5) Como exercício exegético, leia trechos dos Evangelhos, especialmente, Mateus e Lucas e identifique ditos de sa- bedoria atribuídos a Jesus e versos que correspondem a narrativas formuladas pela autoria dos evangelhos. 6) Como importante leitura de referência a respeito dos conteúdos apresentados nesta unidade, sugerimos o ar- tigo de periódico: Woodruff, Archibald Mulford. A fonte Q nas margens do mundo literário. In: Estudos da Reli- gião 22 (2002): p. 37-71. 7) Saiba mais a respeito do Evangelho de Tomé no tópico Leitura complementar. Além disso, você pode consultar: MEYER, Marvin. O Evangelho de Tomé. As sentenças de Jesus. Rio de Janeiro: Imago, 1993. 8) Para enriquecer seu conhecimento a respeito da Fonte Q, confira WooDRuFF, Archibald Mulford. A Fonte Q 101© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus nas margens do mundo literário. p. 51. Alguns estudio- sos defendem que Q, assim como outras fontes antigas do judaísmo, misturam gêneros. Confira ALLISoN, Dale C. Jr. The Jesus Tradition in Q. Pennsylvania: Trinity Press International, 2000. p. 42. 4. intrOduçãO à unidade Na unidade anterior, procuramos formular as principais hipó- teses de formação dos Sinóticos, mostrando sua interdependência em relação ao Evangelho de Marcos. Tivemos a oportunidade de ver como os Sinóticos são relevantes para a compreensão das ori- gens cristãs. Nesta unidade, vamos estudar a Hipótese da fonte Q, mais conhecida como "Fonte dos Ditos" ou "Fonte Q". Também, nesta unidade, usaremos as designações Fonte dos Ditos e Hipóte- se de Q por nos parecerem mais adequadas ao contexto brasileiro. É importante entender que a Fonte dos Ditos é, ainda, uma hipótese, mas as publicações que versam sobre ela têm, cada vez mais, alcançando notoriedade em função dos argumentos sólidos que os estudiosos dessa fonte têm apresentado. Assim, tomar conhecimento desta discussão pode fornecer relevante conheci- mento que subsidiará a aproximação dos Evangelhos Sinóticos e, consequentemente, das origens da cristandade. 5. Gênese da hipótese Fonte Q – a Fonte dos di- tOs de jesus De acordo com o estudioso alemão Johann Jacob Griesbach (século 18), os materiais de Mateus, Marcos e Lucas estruturam-se de maneira semelhante em conteúdo, enfoque e sequência geo- gráfica (THEISSEN, 2002). Por isso, Griesbach denominou os três evangelhos "Evangelhos Sinóticos", porém negou a hipótese de uma fonte de declarações de Jesus extracanônica. © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 102 Griesbach aceitava a hipótese mais antiga segundo a qual o livro de Mateus tem prioridade. Assim, Marcos e Lucas seriam de- pendentes de Mateus e o teriam sintetizado. Essa hipótese foi re- centemente defendida por Willian R. Farmer, mas não encontrou muito apoio entre os estudiosos da Bíblia (KÖester, 2005, p. 49). o primeiro a propor a existência de certa coleção de decla- rações de Jesus que teria sido incorporada aos Evangelhos foi Frie- drich Schleiermacher (1768-1834). Sua proposta ficou conhecida como "hipótese do fragmento" e afirmava que a forma mais an- tiga dos Evangelhos era constituída por diversos fragmentos que colecionavam tradições sobre Jesus. Tal proposta assemelhava-se a hipótese das Duas Fontes, explicitada na unidade 1, já que pro- punha a existência de uma coleção específica de Ditos de Jesus e outra de histórias e milagres (KÖester, 2005, p. 49). Segundo a hipótese das Duas Fontes, proposta de modo completo em 1838 por Christian Gottlob Wilke e Christian Her- mann Weisse (1998, p. 1-96), Mateus e Lucas utilizaram material marcano para escrever seus evangelhos. Assim, considerou-se Marcos o evangelho mais antigo e que foi usado tanto por Mateus como por Lucas. Quanto aos paralelismos entre Mateus e Lucas, independentes da fonte Marcos, foram explicados com base na hi- pótese da existência de certa fonte autônoma, constituída quase que exclusivamente por ditos de Jesus; daí o surgimento da Fonte dos Ditos de Jesus (WEISSE apud SCHWEITZER, 1998). Por volta do século 19, essa fonte passou a ser conhecida como "Q" – abreviatura de Quelle, que em alemão significa "fon- te", por isso Fonte Q. A tradução de epíteto para o português, por- tanto, seria "Fonte fonte". Em razão dessa designação, no Brasil e na América Latina, os nomes mais conhecidos são: "Fonte Q"; "Fonte dos Ditos" ou "Fonte das sentenças de Jesus". datação A Fonte dos Ditos possui aproximadamente 250 versos co- muns em Mateus e Lucas que são declarações (logias) de Jesus. É 103© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus datada entre os anos 40 e 55 EC. Contudo, essa datação não en- contra consenso entre os pesquisadores. Parte desse material, mas não todo, é constituído por ensinos que demonstram alto grau de paralelismo verbal. Essa característica é importante, pois possibi- lita a hipótese de ser uma fonte alternativa escrita em aramaico/ hebraico que se diferencia dos outros ensinamentos de Jesus con- tidos nos Sinóticos, principalmente quanto à forma. A discussão em torno da redação de Q, identificação de estilos, do redator ou dos evangelistas, é contemplada pelo grupo de pesquisas The In- ternational Q Project. a divisão da Fonte dos ditos Para John S. Kloppenborg (1987, p. 88-101) e Leif Vaage, a Fonte dos Ditos divide-se em três estratos com comunidades de tradições religiosas e teologias diferenciadas, que assim foram classificadas: • Q1: estrato sapiencial. • Q2: estrato de tradição profético-apocalíptica. • Q3: estrato formado pela narrativa da tentação, própria de Lucas 4. De acordo com esses pesquisadores que compõem a Escola de Claremont, o estrato Q1 constituiu-se a base de creias. E o que são "creias"? A creia era utilizada como aforismo no sentido de máxima de sabedoria, isto é, era uma frase simples que trazia um princípio para algum ensino. A creia geralmente era atribuída a uma autori- dade e era acompanhada por elementos característicos. As creias eram pequenas anedotas, centradas em uma personagem, em que a ênfase recaía sobre as palavras faladas pela personagem em uma determinada situação, ou, eventualmente, de uma ação da personagem. Elas serviam muito bem ao estudo da filosofia cínica e outras manifestações mais populares de filosofia, mas também © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdEdE EduCação 104 para generais e políticos. uma forma rudimentar da creia pode ser encontrada na Fonte Q (Woodruff, 2003). Também é possível encontrar a definição de "creia" no texto de BERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. p. 76-88. (Bíblica 23). Vejamos: 1) Era introduzida por "ele disse". 2) Poderia iniciar como resposta a certa questão, por exem- plo: "e respondendo disse". 3) Poderia vir como resposta à exclamação originada de al- gum fato ou circunstância. 4) Poderia ser constituída de único período gramatical ou vários. 5) Envolvia ações ou ditos, às vezes, ambos. 6) Continha duas séries de pronunciamentos, um em res- posta ao outro. Para melhor exemplificar o que estudamos anteriormente, vamos retomar a leitura do trecho Mateus 8, que estudamos an- teriormente. 18 Vendo Jesus que estava cercado de grandes multidões, ordenou que partissem para a outra margem do lago. 19 Então, chegou-se a ele um escriba e disse: "Mestre, eu te seguirei para onde quer vás". 20 ao que Jesus respondeu: "As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabe- ça". 21 outro dos discípulos lhe disse: "Senhor, permite-me primeiro ir enterrar meu pai". 22 Mas Jesus lhe respondeu: "Segue-me e deixa que os mortos en- terrem seus mortos". Podemos observar que o verso 18 corresponde à introdução, uma espécie de moldura narrativa para a história que será apre- sentada. Esse verso fornece o ambiente e as circunstâncias em que 105© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Jesus teria proclamado os ditos que seguirão. Para que isso ocorra, ele foi confrontado por um "escriba" (v. 19), a quem respondeu com um dito de sabedoria (v. 20). Em seguida, outro discípulo dis- se algo (v. 21) que também mereceu resposta na forma de dito (v. 22). Reparem que os ditos, aparentemente, não possuem ligação direta com as perguntas que foram feitas a Jesus. Alguns especia- listas da Bíblia sugerem que tais ditos teriam sido pronunciados em ocasiões diferentes e inseridos artificialmente na narrativa construída por Mateus e Lucas, que não se encontra em Marcos e, portanto, seria originária da Fonte dos Ditos. outra conclusão possível é que esse estrato teria paralelo formal e histórico com a escola filosófica cínica (cf. SILVA ,1996). Isso porque o estrato de Mateus 8,18-22/Lucas 9,57-62 tem para- lelo com o estilo despojado dos filósofos cínicos que perambula- vam pela Decápole. os paralelos apontados estão: 1) na forma de se vestir; 2) na forma de viver conforme a natureza; 3) no desprezo pela família e pela pátria; 4) no respeito à figura do mestre e seus ensinos como pro- grama de vida. Burton Mack apud Mack; Vernon Robbins (1989, p. 31-67) apontam "creias" no estrato Q2, tais como a Cura do servo do Centurião (Mt 8,5-13; Lucas 7,1-10) e as histórias acerca de João Batista. Para esses pesquisadores, as "creias" centravam-se na fi- gura de certo herói e tanto Jesus como João Batista poderiam ser compreendidos como heróis em torno dos quais essas histórias ocorreram. Assim, os ditos teriam sido colecionados em histórias cuja sequência de temas teológicos era interessante à comunidade. Nessa perspectiva, nos evangelhos, Jesus foi apresentado como sábio, uma forma semelhante à apresentação feita no Evangelho de Tomé (EvT). © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 106 Confira alguns "logias" do EvT: 14 Jesus disse-lhes: "Se jejuardes, gerareis pecado para vós; se orar- des, sereis condenados; se derdes esmolas, fareis mal a vossos espíritos. Quando entrardes em qualquer país e caminhardes por qualquer lugar, se fordes recebidos, comei o que vos for oferecido e curai os enfermos entre eles. Pois o que entrar em vossa boca não vos maculará, mas o que sair de vossa boca – é isso que vos maculará." 15 Jesus disse: "Quando virdes aquele que não foi nascido de uma mulher, prostrai-vos com a face no chão e adorai-o: é ele o vosso Pai." 16 Jesus disse: "Talvez os homens pensem que vim lançar a paz so- bre o mundo. Não sabem que é a discórdia que vim espalhar sobre a Terra: fogo, espada e disputa. Com efeito, havendo cinco numa casa, três estarão contra dois e dois contra três: o pai contra o filho e o filho contra o pai. E eles permanecerão solitários" (cf. Mt 10,34- 36; Lc 12,51-53). os "logias" da Fonte dos Ditos e os do EvT correspondem a ensinos cujo conteúdo nos remete às tradições sobre Jesus; porém, esses estratos possuem poucas narrativas. Estudiosos supõem que Q era literatura direcionada ao público jovem e basicamente, cons- tituída a partir de duas formas de ditos: gnomes e creias. os Gnomes eram uma coleção de sentenças usada na educação básica e avançada, com objetivo de fundamentar valores éticos e morais. As créias eram semelhantes a ditos de caráter persuasivo (KLo- PPENBoRG, 1987, p. 290). Para o estudioso Kloppenborg (1987, p. 290 e 309) existe certa relação entre o gênero sapiencial e a forma "creia", também típica da retórica grega, que consta em Q1. Contudo, a classificação da Fonte dos Ditos em estratos (Q1, Q2 e Q3) tem sido questionada em pesquisas realizadas pela ar- queologia literária e pela retomada de estudos da apocalíptica em tradições antigas sobre Jesus. Kloppenborg, Crossan, Vaage, entre outros, defendem a es- tratificação da Fonte dos Ditos com evidente relevância de Q1, tendo como argumento o gênero literário dos ditos predominante 107© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus que seria a "creia". Assim, a Fonte dos Ditos teria grande influência da cultura e filosofia grega. Nessa pesquisa, entretanto, não é dada importância à iden- tidade religiosa de seus leitores e às suas tradições marcadamente de origem judaica. Em outras palavras, trata-se de uma possibilida- de de abordagem tanto da Fonte Q, como do EvT e dos Sinóticos que os toma como literatura marcada pela influência da cultura helênica e, nesse sentido, desconsidera a matriz judaica dessas produções. Gêneros e formas literárias o debate em torno da hipótese de Q, especificamente rela- cionado à redação, tem avançado nos últimos anos. Atualmente, os estudiosos não se concentram tão somente na busca de um gênero literário determinado ou da forma que seja predominante em todo documento. Desse modo, reconhecem que é possível en- contrar, na mesma obra, gêneros e formas literárias de tradições distintas. Se em certo evangelho é possível identificar sinais da for- ma "creia", isso não significa que seja assim por única influência da retórica grega, antes, indica traços dessa tradição. Na forma "creia", a figura de algum mestre, líder ou milagrei- ro se destaca. É com base nesse personagem que se dão os acon- tecimentos, como se fossem atos de uma peça: cena, provocação e resposta. os ensinos são extraídos dessas cenas e caracterizados como princípios para o cotidiano dos grupos que lêem esses programas. Inicialmente, narrativas de milagres, curas e exorcismos, eventos comumente destacados na "bios" ou na "creia" grega não teriam tanta importância quanto a sabedoria contida nos ditos, conside- rados "regra para a comunidade". Assim como os Sinóticos não são estáticos, a Fonte dos Ditos foi constituída por certa dinâmica literária que permitiu o encon- © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 108 tro de vários gêneros e formas literárias no seu texto. Entre os di- ferentes gêneros estava a "creia". Essa dinâmica é que possibilitou a pluriformidade do texto da audiência da Fonte dos Ditos. Em face do debate promovido pela Crítica da Forma e da História da Religião, o texto da Fonte dos Ditos estaria diretamente relacionado ao Sitz im Leben de um grupo, uma situação vivencial composta por diversidade: A correta compreensão da crítica da forma repousa sobre o enten- dimento deque a literatura que surgiu da vida de determinada co- munidade, até mesmo a comunidade cristã primitiva, emerge de condições e necessidades existenciais bem definidas, a partir das quais se desenvolvem um estilo bem definido e formas e categorias bem específicas. Assim, toda categoria literária tem sua 'situação vivencial' (BuLTMANN, 1963, p. 4). Dessas afirmações, segue que os estratos da Fonte dos Ditos: Q1, Q2 e Q3 refletiriam a situação de comunidades cristãs do perí- odo. o estrato sapiencial, composto de declarações e ensinamen- tos de Jesus, seria o mais antigo em função da proximidade dos acontecimentos relacionados à vida e morte de Jesus. o estilo mais direto, sem longas narrativas, ilustra essa pro- ximidade. o estrato Q2, composto de declarações e narrativas em tom apocalíptico (com a presença de temas como a vinda do Filho do Homem, o julgamento e o reino de Deus) teria relação com a expectativa frustrada dos primeiros cristãos, em relação ao retor- no imediato de Jesus. Por fim, o estrato Q3, teria como conteúdo principal a narrativa da Paixão, uma tradição já distante de Jesus, formulada e promulgada pelos discípulos do Nazareno como res- posta à ansiedade que se instalara entre os primeiros cristãos. Por essa razão, ao se proceder a leitura da Fonte dos Ditos não se pode falar apenas em sabedoria. Em Q também é possível o encontro de elementos proféticos. No debate acerca dos gêneros e das formas literárias, vale ressaltar a relação dialógica e circular entre textos e comunidades, autores-redatores e audiência. Dessa relação é que emergem os 109© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus estilos literários que hoje designamos (classificações modernas) e que nos auxiliam a reconstruir a identidade social e religiosa dos cristãos por trás da Fonte dos Ditos. A presença dessas formas literárias é fundamental para a natureza da literatura sinótica, do mesmo modo como ocorre na Fonte dos Ditos. A Crítica das Formas demonstrou que os evangelhos foram constituídos de perícopes com formas diferentes, dentre as quais se destacam o relato de milagre, a "creia", o aforismo e outras mui- tas delas identificadas na tradição judaica. Além de verificarmos a presença dessas formas, talvez, mais rudimentares na Fonte dos Ditos, igualmente, elas fazem parte dos Sinóticos, o que corrobora ao argumento da interdependência entre os Evangelhos. Contudo, em razão de que as memórias, os ensinamentos e as tradições de Jesus teriam sido documentadas de formas tão diferentes? Como dissemos anteriormente, as classificações que usamos hoje em dia constituem designações modernas, desenvolvidas por teólogos, exegetas e estudiosos de nosso tempo. Para formulá- -las, eles usaram o referencial teórico e metodológico de nosso tempo, de modo que outras ciências (como a literatura, semiótica, história, sociologia etc.) contribuíram para as análises dos textos bíblicos. Elas servem como instrumentos de análise, de mediação, entre nós e o texto antigo: entre o nosso horizonte de conheci- mentos e o mundo antigo. Provavelmente, as razões que moveram os autores e redato- res do período bíblico a escreverem dessa ou de outra forma de- terminada, nunca nos serão absolutamente claras. Podemos intuir, juntamente com os críticos da forma, que essas formas têm a ver com situações de lamento, de esperança, de alegria ou de profun- da crise na experiência religiosa daqueles primeiros cristãos. © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 110 Hipóteses quanto à função da Fonte dos ditos Acredita-se que a Fonte dos Ditos tenha algumas funções que atendiam às necessidades dos primeiros cristãos. Existem pelo menos duas hipóteses quanto à função de Q: 1) Função catequética, por se assemelhar a um programa de ensino formado por ditos colecionados. 2) Função de manual, para missionários itinerantes (KLo- PPENBoRG, 1987, p. 16). A primeira hipótese, aceita por estudiosos como Leif Vaage, mostra que a comunidade em torno do documento Q considerava essa tradição espécie de regra para seu modo de vida, pois abor- daria temas políticos, econômicos e sociais (KLoPPENBoRG, 1987, p. 37). Assim, uma conclusão possível sobre a Fonte dos Ditos é que com base nas "creias" que compunham essa tradição, juntamente com aforismos, relatos de milagres, de curas e outras narrativas (essas mais tardias), a fonte reunia ditos de sabedoria que serviam ao ordenamento dos primeiros cristãos e ao norteamento do com- portamento deles em grupo. os ditos teriam funcionado como parâmetros que em conjunto formulavam um código ético-moral. Esse código estabelecia uma nova postura que se diferenciava do costume judaico e da interpretação da Lei que faziam suas lideran- ças, entre elas, os sacerdotes, fariseus, saduceus e escribas. De certo modo, os ditos atribuídos a Jesus e reunidos nessa fonte contestavam a autoridade e a legitimidade das normas es- tabelecidas pela tradição judaica. Todavia, não se descolavam de uma lógica de pensamento e de exegese que era peculiar à religião dos judeus. os ditos propiciavam as audiências, oportunidade de reflexão e de crítica social. Consequentemente, a mudança de comportamento – talvez pudéssemos dizer: a conversão ao cristianismo –, ou a opção pelo modelo de religiosidade judaica estabelecido, ocorreria mediante escolha. 111© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Lembrando que a escolha não era, naquele período da his- tória, algo individual e dado em função da vontade do sujeito, mas algo decidido predominantemente pela figura masculina de cada unidade familiar ou do clã. Atitudes individuais que colocassem em destaque a figura do sujeito não eram comuns naquela época. A noção de indivíduo como ator e sujeito da história é uma con- cepção moderna (estabelecida a partir do século 16) e, portanto, recente. Apesar de a Fonte dos Ditos ser considerada hipótese, per- manece sempre na pauta de discussão dos estudiosos da literatura bíblica, ora com maior, ora com menor aceitação. A seguir, duas leituras complementares para auxiliar na aprendizagem sobre o assunto tratado nessa unidade Gestos e Palavras que Educam ––––––––––––––––––––––––– No estudo do gênero biografia, pudemos conhecer características típicas dele: uma personagem central, sua história com enredo (seqüência de fatos), outras personagens, espaço e tempo definidos. A forma créia, assim como a biografia, se relaciona com o gênero maior narrativa. Contudo, ela é considerada ficção e tem como elemento marcante a ênfase educativa. Essa forma também pode ser encontrada em coleções de sabedoria que eram típicas dos mestres gregos e tinham a função de ilustrar os princípios e os valores que deveriam ser vividos no cotidiano e refletidos no comportamento diário dos jovens discípulos, público principal dos filósofos. As créias podem ser encontradas dentro de narrativas e se destacam pela fun- ção pedagógica que exercem. Geralmente, a créia apresenta: (1) breve introdução; (2) anúncio de alguém que vai falar ou responder; (3) um dito de sabedoria central. A partir desse dito, que muitos de nós conhecemos como "provérbio", o mestre ilustra certo ensino. É importante notar que esse ensinamento pertence a um programa educativo, portanto, tem o objetivo de contribuir para a formação de sua audiência. Neste sentido, os ditos pretendem orientar o público no desenvol- vimento da ética, da moral e da postura que devem ter frente a sociedade. As créias do Novo Testamento, que provavelmente foram elaboradas sob a in- fluência dos gregos, são coleções de ditos de sabedoria que têm o objetivo de persuadir seus ouvintes e leitores a seguirem o modelo de conduta de Jesus. Neste sentido, a créia era usada como máxima, isto é, um princípio básico para a compreensão de alguma coisa Você já deve ter ouvido algo parecido com isso: "Quem fala demais dá bom dia a cavalo", "Em boca fechadanão entra mosca" ou "Em certas horas falar é prata © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 112 e calar é ouro" etc. Todas essas frases são máximas de comportamento que ilustram o mesmo ensinamento: antes de dizer qualquer coisa, é melhor refletir. Assim também funciona a créia; vejamos um exemplo em Lc 9.57-62. Neste texto temos: (1) uma breve introdução (v.57); (2) resposta de Jesus, caracterizada pela fórmula "Jesus respondeu" (v.58); (3) resposta de Jesus, dada na forma de um dito de sabedoria (v.58b). Esse esquema se repete nos vv. 59-60 e 61-62. Logo, temos três créias nessa seqüência narrativa. A partir do dito, a comunidade atualizava certo ensino de acordo com seu contexto e o aplicava na sua vida. Por isso, podemos classificar o uso desse gênero em dois momentos. No primeiro momento, no caso dos gregos, era um exercício retórico praticado pelos discípulos de algum mestre com o objetivo de persuadir a audiência. No segundo, no caso de Jesus e seus discípulos, a créia era dada para que as comunidades aprendessem o modelo ideal de vida, de acordo com a vontade de Deus. Em Mc 12,17, Jesus arremata brilhantemente a polêmica que alguns queriam levantar contra ele, usando um simples dito irônico que desconcerta os espertos fariseus. Extraído de: RODRIGUES, M. P. (Org.); RODRIGUES, E. (et.al.) Palavra de Deus, palavra da gente. As formas literárias da Bíblia. São Paulo: Paulus, 2004. p.145-146. –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– O Evangelho de Tomé ––––––––––––––––––––––––––––––––– O Evangelho de Tomé (EvT) é a segunda obra do Códice II de Nag Hammadi (NHC II 2). Descoberto em 1945, localizado em 1948 e apresentado para re- produção fotográfica em 1957. Foi dado a conhecer em traduções francesas e alemãs em 1958 e editado em 1959. Somente na década de 60 atingiu os meios de comunicação social que propiciaram estudos desse documento. A partir de então multiplicaram-se as traduções. O documento O EvT escrito em língua copta é muito distinto do Evangelio de Tomé o filósofo israelita (EvTom), que é um Evangelho da Infância cuja leitura se manteve em círculos eclesiásticos durante muitos séculos e só nos chegou na forma completa durante anos por meio de tradução eslava. O EvT permitiu a identificação dos ditos desconhecidos de Jesus, descobertos fragmentariamente em grego entre os papiros de Oxirrinco (Poxyr) em 1897 e 1903. Existem oito ditos fragmentados nesses papiros e graças a descoberta do EvT sabemos que correspondem a uma versão grega da mesma obra. As dife- renças entre os textos podem se dever à tradução livre ou omissões acidentais (além de alterações deliberadas). Data e lugar de composição O manuscrito escrito em copta é do século 4o. A composição dos fragmentos gregos fica em torno de 150. Há hipóteses quanto à composição do documento variando entre século 1º e 3º. A opinião mais corrente entre os primeiros estu- diosos é que o documento foi redigido em meados do século 3o, a partir de 140. 113© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus Nos últimos anos desenvolve-se com força a tese de que o EvT é um texto inde- pendente dos Sinóticos e que foi compilado da metade ao fim do século 1o. Testemunhos Antigos Há testemunhos externos desde o século 3o a respeito do EvT. Dentre os antigos autores eclesiásticos que o mencionam, encontram-se: Hipólito (Elen V 7,20; 8,32), Orígenes (HomLc I 2), Eusébio de Cesaréa (E. III 25,6), Cirilo de Jeru- salém (Cathechesis IV 36; VI 31) e Jerônimo e Ambrósio, que dependem de Orígenes. Judas Tomé, o Gêmeo É Tomé "o chamado gêmeo" (Jo 11,16; 20,24). Judas Tomé, segundo o texto siríaco de Cureton em João 14,22 e mencionado de Taciano, São Efrén, Corres- pondência de Abgar, Doctrina Apostolorum é Tomé gêmeo para HchTom. Tudo isso está no âmbito das tradições orientais centradas na Síria. Temos aqui uma identificação de Judas, o irmão de Jesus e Tomé, que trará alguma confusão pos- terior (em que Tiago e Judas Dídimo, ambos irmãos de Jesus, foram entendidos como gêmeos). Está claro que Tomé exerceu uma fascinação pela especulação gnóstica. A glori- ficação de Tomé aparece também nos HchTm, o único dos cinco textos apócrifos utilizados pelos manuscritos que nos chegou por inteiro. A obra, composta em siríaco na primeira metade do século 3o, narra o embarque de Tomé para Índia e sua missão na corte do rei Gundafor, dado que nos remete à Pérsia. Também Eusébio de Cesárea, no começo do século 4º, atribui a Tomé a pregação do evangelho na Pérsia. Gênero Literário A designação dos ditos de Jesus como logias procede dos fragmentos de Papías (cf. Eusébio, H.E. III 39,1.16). O EvT 38 se refere a esses ditos como "estas palavras", o que poderia ser a tra- dução de logos, uma designação corrente na tradição dos Sinóticos para referir- -se às palavras de Jesus (cf. Mt 7,24; Lc 6,47; Jo 8,52). Os Sinóticos nos oferecem vários paralelos formulados diferentemente em di- versos contextos. Também há diferenças nos ditos de Jesus em 1Clem 13,1-2 e 46,7, que oferece uma composição de ditos formulados segundo um molde mais uniforme. O EvT é uma mostra do gênero literário Coleção de ditos, assim como seria a Fonte dos Ditos. Seu descobrimento foi entendido como confirmação indireta do documento Q, a fonte comum de Mateus e Lucas quando não seguem Marcos, segundo a hipótese das "duas fontes", que é, na pesquisa atual, a hipótese pre- dominante para explicar as relações entre os textos Sinóticos. Apresentação baseada em: PIÑERO, Antonio (Ed.). Textos gnósticos - Biblioteca de Nag Hammadi II. Evangelios, hechos, cartas. Madri: Editorial Trotta, 1999. p. 55-78. (Colección Paradigmas: Biblioteca de las Ciencias de las Religiones). –––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––– 6. questões autOavaLiativas Confira, na sequência, as questões propostas para verificar seu desempenho no estudo desta unidade: © Evangelhos Sinóticos Claretiano - REdE dE EduCação 114 1) Qual a relação entre a hipótese de Q e o contexto histórico, político e cultu- ral dos primeiros cristãos e as primeiras comunidades cristãs? 2) Em que medida a hipótese de Q permite a reconstrução do Jesus Histórico? 3) Qual a relevância de registrar as tradições, as memórias e os ensinamentos de Jesus por meio de ditos de sabedoria? 4) Você concorda com a tese de que Jesus de Nazeré teria semelhanças com os filósofos cínicos que andavam pela Decápole? 7. COnsiderações É fascinante a hipótese da existência de uma Fonte de Ditos, uma coleção de ditos de sabedoria de Jesus proferidos em aramai- co/hebraico, em ocasiões e lugares diferentes e compilados em um documento que se perdeu. Certamente, se fosse confirmada pela descoberta arqueológica da coleção, tantas vezes sugerida por his- toriadores antigos e estudiosos modernos, seria uma descoberta memorável para a história da pesquisa da literatura bíblica. Ela nos permitiria reconstruir com mais tranquilidade o que talvez tenha sido o cotidiano das primeiras comunidades cristãs. Embora não a tenhamos "em mãos", as reconstruções que têm sido feitas, cuidadosamente, nas últimas décadas, nos dão conta de que essa hipótese tem – no dizer de Archibald Woodruff, citado nessa apostila –, cada vez mais, "rosto, personalidade e endereço". Para nós, estudantes e pesquisadores da literatura neotes- tamentária, o estudo da Fonte dos Ditos é necessário, diria indis- pensável. Prova disso são as publicações acerca desse tema, cada vez mais freqüentes. Estudar a Fonte dos Ditos de Jesus nos apro- xima não apenas do Jesus Histórico e das tradições que sobre ele foram reunidas nos Sinóticos, mas também ajuda-nos a compre- ender quais dessas tradições foram consideradas relevantes para as primeiras comunidades, a ponto de terem sido selecionadas e compiladas nos Evangelhos. Entender a Fonte dos Ditos nos auxilia a entender o movimento interno da literatura sinótica. 115© A Hipótese de "Q" - A Fonte dos Ditos de Jesus 8. reFerÊnCias bibLiOGrÁFiCasBERGER, Klaus. As formas literárias do Novo Testamento. São Paulo: Loyola, 1998. (Bíblica 23). BuLTMANN, Rudolf. Histoty of synoptic tradition. oxford: Blackwell, 1963. CRoSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. A vida de um camponês judeu do mediterrâneo. Rio de Janeiro: Imago, 1994. HEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico. um manual. São Paulo: Loyola, 2002. (Bíblica 33). KÄHLER, Martin. 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