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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE CAMPINAS CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS APLICADAS FACULDADE DE FILOSOFIA IVAN LUIS ROMÃO EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO: Uma educação com clave espinosana CAMPINAS 2019 Ivan Luis Romão EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO: Uma educação com clave espinosana Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. José Trasferetti CAMPINAS 2019 Ivan Luis Romão EPISTEMOLOGIA E EDUCAÇÃO: Uma educação com clave espinosana Monografia apresentada ao curso de Licenciatura em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciado em Filosofia. Área de concentração: Filosofia da Educação. Campinas, ____ de _________ de _____. Professor Examinador ________________________________________ Prof. Dr. José Trasferetti CAMPINAS 2019 “Homem nenhum pode mostrar melhor o poder de seu engenho e arte, do que educando os homens para que vivam, ao final, sob o império da própria razão.” (Ética, Parte IV, Apêndice [Capítulo 9]) AGRADECIMENTOS Agradeço à minha família pelo apoio emocional e por possibilitar meus estudos, especialmente ao meu pai Aparecido, o homem mais forte e incrível que eu já conheci. Ademais, agradeço aos professores do curso de Licenciatura em Filosofia da universidade Pontifícia Universidade Católica de Campinas por transmitirem e possibilitarem minha construção e acepção de conhecimento filosófico. Agradeço também a Alexandre por fazer minha pesquisa de monografia possível e por me ajudar com todo o estresse e ansiedade que envolveu a construção do mesmo. Obrigado a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a realização do presente trabalho. RESUMO Este escrito busca a apresentação do pensamento espinosano frente à questão epistemológica, afetiva e, por fim, uma aplicação do sistema filosófico espinosano ao âmbito educacional. Objetivando a análise e construção de uma proposta que habita a tangente oposta ao ensino mecanizado por ordenamentos político-curriculares, o presente trabalho suscita a necessidade de tratamento da esfera humana mais censurada e refreada desde os primórdios do pensamento ocidental: a afetividade. Dar-se-á a partir de uma análise hermenêutica e textual da obra espinosana, bem como de seus comentadores e também dos correlatos à área da educação. Quanto aos resultados, trata-se de um trabalho experimental frente às possibilidades de uma educação com clave espinosana. Não obstante ao teor experimental, ao longo do desenvolvimento do presente trabalho são descritos e aplicados os pensamentos do filósofo à um âmbito do atual contexto histórico-filosófico que se encontra em dinâmica mudança e atividade, a educação. Assim sendo, este trabalho apresenta uma investigação sobre o desenvolvimento epistemológico e a afetividade humana dentro do âmbito educacional, trazendo à tona um modelo pedagógico pautado na razão afetiva, onde o educador assessora e orienta o aluno enquanto o mesmo transita entre os gêneros de conhecimento e constrói seus saberes a partir de uma autoeducação. Palavras-chave: Espinosa, educação, gêneros de conhecimento, afetividade, epistemologia, conhecimento, autoeducação. ABSTRACT This writing seeks the presentation of spinosan thought in the face of the epistemological, affective and, finally, an application of the spinosan philosophical system to the educational field. Aiming at the analysis and construction of a proposal that inhabits the opposite tangent to the teaching mechanized by political-curricular ordinances, the present work raises the need for treatment of the human sphere more censored and restrained since the beginning of western thought: affectivity. It will be based on a hermeneutical and textual analysis of the work of the spinosan, as well as of its commentators and also of those related to the area of education. As for the results, it is an experimental work facing the possibilities of an education with a spinal key. Notwithstanding the experimental content, throughout the development of this work, the philosopher's thoughts are described and applied to an area of the current historical-philosophical context that is undergoing dynamic change and activity, education. Thus, this work presents an investigation on the epistemological development and human affectivity within the educational environment, bringing to light a pedagogical model based on affective reason, where the educator advises and guides the student while he transitions between the genders of knowledge and builds his knowledge from a self-education. Keywords: Spinosa, education, genders of knowledge, affective, epistemological, knowledge, self-education. SUMÁRIO Introdução .................................................................................................................. 9 1. O conhecimento e suas possibilidades ............................................................ 11 1.1 O Conhecimento ............................................................................................. 11 1.2 Primeiro Gênero de Conhecimento: Conhecimento Imaginativo ...................... 13 1.3 Segundo Gênero de Conhecimento: Conhecimento Racional ......................... 17 1.4 Terceiro Gênero de Conhecimento: Ciência Intuitiva ....................................... 21 2. A Afetividade ....................................................................................................... 25 2.1 Teoria dos afetos ............................................................................................ 26 2.2 O tratamento dos afetos ................................................................................... 30 3. Espinosa e a educação ....................................................................................... 35 3.1 O Educador ...................................................................................................... 36 3.1.1 Cristo e os Apóstolos: Um modelo professoral exemplar ...................... 41 3.2 Uma educação com clave espinosana ............................................................. 42 4. Considerações finais .......................................................................................... 46 5. Referências bibliográficas .................................................................................. 48 9 Introdução: A presente monografia tem por intuito, partindo de uma análise espinosana, apresentar uma investigação com relação ao movimento de aferição de conhecimento e do processo educacional. Dispondo de um itinerário metodológico que abarcará diversos aspectos do sistema filosófico de Espinosa, reflexionará sobre os papeis dos corpos-mentes num ambiente de construção epistemológica e demonstrará como essa construção se efetiva na educação. É verdade que Espinosa nunca se pôs como educador. Suas experiências como tal sempre obtiveram resultados insatisfatórios para ele mesmo. Durante a vida teve diversas oportunidades para ensinar de forma presencial e professoral, mas não o fez. Recusou a Cátedra de Filosofia em Heidelberg, ofertada indiretamente por Carlos Luís (1617-1680)1, dizendo que nunca fora seu desejo ensinar em público por diversos motivos, entre eles “a impossibilidadede cessar as críticas e o pensamento particular para com as religiões estabelecidas, a relutância em incitar controvérsias inevitáveis e a falta de vontade de abandonar a pesquisa filosófica para se dedicar ao ensino”2. Não obstante à displicência perante o ato de ensinar, Espinosa, enquanto sistemático, dispôs diversos apontamentos e conhecimentos que podem aperfeiçoar e nortear a educação de jovens e adultos. Este trabalho, a partir de uma análise hermenêutica das obras deixadas por ele, buscará explorar as concepções espinosanas e aplica-las ao âmbito educacional e epistemológico. Dar-se-á em três momentos distintos. O primeiro tratará do pensamento em si, ao passo que apresenta a visão espinosana a respeito da construção e possibilidades de conhecimento, formando uma base sólida para os desdobramentos posteriores e trazendo à tona a visão do filósofo sobre o que de fato é conhecer e de como a questão epistemológica se estrutura num sistema interdependente e necessário; o segundo, por sua vez, abordará uma concepção fundamental no sistema filosófico de Espinosa, concepção esta que postula a necessidade de tratamento dos encontros existenciais: os afetos; e por fim, o terceiro e último momento, discorrerá acerca da educação propriamente dita, analisando os deveres e desejos daqueles que compõe o aparato educacional e explicitando como se desvela uma educação com clave espinosana. 1 Filho do príncipe eleitor Frederico V. 2 RABERNOT, 2016, p. 67. 10 Espinosa “olhou para a educação como um processo natural em harmonia com o caráter em desenvolvimento do universo”3. O sistema filosófico espinosano, mesmo que indiretamente, se aplica a todas as áreas e vivências humanas, inclusive na educação. Suas concepções possuem a capacidade de aprimorar o processo educacional e de aferição epistemológica como um todo, fazendo como que o corpo- mente compreenda de forma imaginativa, racional e intuitiva a realidade que o cerca e, por conseguinte, tornando-o lúcido perante os afetos e o capacitando à beatitude e a uma afetividade saudável e consciente. 3 RABERNOT, 2016, p. 85. 11 Capítulo 1: O conhecimento e suas possibilidades Antes de adentrar na especificidade educacional, é necessário fazer apontamentos, principalmente no que tange as possibilidades de construção, estado e aferição epistemológicas. O processo educacional e de construção do conhecimento não deve somente informar o educando sobre o conteúdo em si, mas também fazê-lo perceber a construção unificada na qual se encontra a mente e todas as outras coisas. Para efetivar e compreender essa percepção da essência que coliga os elementos no cosmo, Espinosa sistematiza todas as possibilidades de conhecimento em uma teoria epistemológica disposta em três gêneros, os quais seguem um ordenamento qualitativo e podem coexistir em um mesmo corpo-mente: o imaginativo, o racional e o intuitivo. É de extrema importância compreender os aspectos epistemológicos que permeiam a educação, uma vez que, se compreendido de maneira correta, podem orientar e nortear o processo educacional de forma bastante positiva. 1.1 O conhecimento O conhecimento se dá a partir dos afetos4, afetos estes que geram afecções nos modos5 envolvidos no afeto, ocasionando uma transição de um estado de perfeição para outro, seja maior ou menor. Esses afetos são semelhantes a encontros e os mesmo resultam numa afecção (mudança) nos modos, o que implica numa maior ou menor abertura à potência de pensar e agir. O resultado do encontro entre os modos traz, a ambas as partes, um conhecimento a partir do gênero epistemológico no qual os corpos-mentes estão insertados. Todos esses gêneros são tidos como verdadeiros e se ordenam num sistema hierárquico e ao mesmo tempo dependente, onde são classificados segundo o entendimento e a percepção acerca do encontro, podendo alagar a potência de agir e pensar do corpo-mente até que alcance a liberdade e, por conseguinte, a beatitude. É importante salientar que, para Espinosa, a ideia recorrente sobre uma dualidade separada entre corpo e mente não passa de disparate. Diferente de Platão, que colocava a mente como algo que pilotava o corpo e de todo 4 Espinosa ressignifica o termo, posicionando o afeto como “as afecções do corpo pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções” (ESPINOSA, 2009a, p. 163, Grifo próprio). 5 As afecções da substância, isto é, o que existe noutra coisa pela qual também é concebido. 12 desdobramento que segue tal ideal platônico, como o cristianismo e o dualismo cartesiano, a filosofia espinosana traz à tona o paralelismo psicofísico. O paralelismo é um conceito geométrico que indica que dois objetos, planos ou retas, encontram- se numa mesma direção. Espinosa, que se posiciona como geômetra, utiliza do termo e o aplica à questão psíquica e corporal, fazendo emergir o paralelismo psicofísico. O paralelismo psicofísico é uma concepção espinosana que busca a superação da dicotomia corpo-consciência, a fim de trazer a unificação entre corpo e alma, na tentativa de restaurar a unidade humana. Para o filosofo, não existe separação hierárquica entre corpo e alma. Ambos os aspectos constituintes da unidade humana agem de modo tautócrono, numa relação de expressão e correspondência segundo os seus meios disponíveis: mente e corpo expressam a mesma coisa, porém de formas diferentes, ou seja, o corpo, assim como a mente, é capaz de conhecer. Não existe a recusa para com a experiência e o corpo no pensamento espinosano, a unicidade é a única possibilidade de conceber e pensar a realidade dos corpos-mentes. Espinosa aborda a questão do conhecimento sob um espectro diferente. Para o filósofo não existem ideias6 verdadeiras ou falsas sobre o conhecimento. Não obstante ao caráter displicente quanto ao aspecto de verdade que permeia a concepção de ideia, a mesma é caracterizada conforme um ordenamento gradual, resultando em ideias e conhecimentos adequados ou inadequados. O elemento sistemático espinosano fica ainda mais evidente nesse assunto especificamente. Percebe-se a construção de uma cadeia de pensamentos coligados e necessários, que fomentam e objetivam a questão epistemológica e os desvelamentos na vida dos corpos-mentes, tudo isso com pretensão universal. As ideias ou conhecimento adequados são aqueles que, quando reflexionadas e aferidos por alguém, carregam consigo o conhecimento das causas e afecções advindas dos afetos, enquanto os conhecimentos inadequados são os que desconsideram ou desconhecem as causas e afecções de um afeto, podendo ocasionar num conhecimento defasado, transfigurando-se em duas formas negativas acerca da ideia e do ideata (aquele que concebe a ideia): as paixões. Espinosa entende por paixões a conservação e efetivação das ideias inadequadas num corpo-mente. Provenientes do não entendimento acerca das 6 Espinosa coloca a definição de ideia de um modo diferente, tratando-a como “um conceito da mente, que a mente forma porque é uma coisa pensante”. (ESPINOSA, 2009a, p. 131.) 13 causas, afecções e dos afetos, ocasionam em duas posturas diferentes, sendo a primeira a responsável pelo medo, ignorância e ódio, oriunda da carência de ideias adequadas e pelo desconhecimento das causas e efeitos dos afetos; e a segunda, em consoante com a ausência factual da primeira, emerge a partir dos desejos advindos das ideias infactíveis e fantasiosas, habitando o lado externo do campo lógico da realidade, resultando em afecçõesinadequadas, como a frustração e a inveja. No que tange a questão educacional, o pensamento epistemológico espinosano aparece de forma semelhante ao desenvolvimento fisiológico e moral do educando. O emprego dessa concepção tão íntima acerca das questões que envolvem ideia e conhecimento traz à tona certa preocupação com os aspectos inerentes e subjetivos dos corpos-mentes, postulando a necessidade de reflexão acerca das paixões individuais e dos conhecimentos inadequados, a fim de tratá-los e substitui-los por conhecimentos sadios e adequados ao aluno. As ideias ou conhecimentos inadequados, que desbocam nos desejos, diminuem a possibilidade de abertura à potência de pensar e agir de um corpo- mente e está presente no que Espinosa denomina “primeiro gênero de conhecimento”. 1.2 O primeiro Gênero de Conhecimento: Conhecimento Imaginativo Antes de discorrer sobre o primeiro gênero de conhecimento são necessários certos apontamentos. Os gêneros de conhecimento são também “maneiras de viver, modos de existência”7. Todo gênero de conhecimento é considerado verdadeiro, porém existe uma classificação hierárquica entre eles. Não obstante ao aspecto hierárquico dos gêneros, aquele que avança e amplia sua potência de agir e pensar precisa, necessariamente, dos conhecimentos e aprendizados do gênero anterior, ou seja, é um sistema epistemológico interdepende, onde todas as esferas e possibilidades do pensar são fundamentais para a formulação de um conhecimento condizente com a realidade material, racional e essencial de determinado modo existente. Tal maneira de observar a construção do caráter epistemológico de um corpo- mente de modo processual, é semelhante ao entendimento atual de educação seriada – é evidente a necessariedade para com os conteúdos das séries anteriores 7 DELEUZE, 1968, p. 201 14 para efetivar os conhecimentos posteriores –, porém com ressalvas: o conhecimento, desde idades e entendimentos iniciais, deve ser orientado a fim de construir um saber completo, porém a possível impossibilidade de entendimento e as limitações de um corpo-mente novo no que tange a idade e o aparelho fisiológico- intelectivo irão influenciar o processo educacional e de aferição epistemológica. Essa contestação, de certo modo, retira Espinosa do campo pedagógico inicial, onde estão as crianças, e o posiciona no processo de aprendizado de jovens e adultos, já preenchido por seus aspectos morais e tendo ferramentas fisiológicas desenvolvidas. Voltando ao escopo central do capítulo, a teoria do conhecimento de Espinosa, o primeiro gênero de conhecimento é de ordem imaginativa e passiva, sendo o mais ineficaz para a construção e efetivação de um conhecimento adequado. Abarca a opinião infundada, o conhecimento pouco confiável e prático oriundo de experiências vagas e o desprendimento para com o caráter íntimo dos modos e dos afetos. É tido como ineficaz por conter em si conhecimentos baseados em percepções meramente sensoriais da realidade, desconhecendo as causas e afecções provenientes dos afetos, caracterizando a futilidade do mesmo. O primeiro gênero de conhecimento é então o conhecimento de efeitos do encontro, ou dos efeitos de ação e de interação das partes extrínsecas umas sobre as outras. Oh, não se pode definir melhor. É muito claro [...] os efeitos causados pelo choque ou pelo encontro de partes exteriores umas com as outras define todo o primeiro gênero de conhecimento. 8 Caracteriza-se pela aglomeração de sensações e sentimentos advindos, única e exclusivamente, da experiência sensível. Tal caracterização revela a problemática deste gênero: aquele que habita e adota tal postura vive em função das afecções resultantes dos afetos, no acaso e no vácuo do entendimento acerca das causas e afecções, além de trazer consigo concepções universais adventícias, externas ao corpo-mente e transpassadas de forma não reflexiva, gerando apenas o que Espinosa chama de imagens de coisas: Chamaremos de imagens de coisas as afecções do corpo humano, cujas ideias representam os corpos exteriores como nos estando presentes, embora elas não reproduzam as figuras das coisas. E quando a mente contempla os corpos sob essa relação, diremos que ela os imagina. 9 Um exemplo desse caráter imagético do conhecimento de primeiro gênero é a superstição. A superstição é uma forma de conhecimento imaginativo e imagético 8 DELEUZE,1981, p. 252. 9 ESPINOSA, 2009a, p. 35. 15 pouco fundamentado, que é transpassado pela tradição e pelas instituições morais que permeiam um corpo mente, ou seja, chegam até o mesmo de forma externa e o corpo-mente apenas cria uma imagem acerca dessa ideia, imagem esta que ele toma pra si como verdadeira sem nenhum tipo de reflexão autônoma e passa a ter a pretensão de universalizar essa construção epistemológica infundada e viciada, o que acaba por fazer dele refém de ideias vindas de outro. Ademais, é comum a confusão e uma fundamentação generalizada dos afetos dentro deste gênero epistemológico. Os corpos-mentes nele inseridos operam segundo uma dualidade estritamente oposta, tal como o maniqueísmo entre as concepções bem e mau: os traços e estruturas epistemológicas do corpo-mente inserido no primeiro gênero se embaraçam e esses termos (bem e mau) surgem porque o “corpo humano”, por ser limitado, “é capaz de formar, em si próprio distinta e simultaneamente, apenas um número preciso de imagens”.10 Essa confusão corriqueira é mais facilmente compreendida a partir de um exemplo ilustrativo que utiliza um elemento natural comum e presente, em variadas formas, na vida de todo homem, seja primitivo ou moderno: o fogo. O corpo-mente que habita esse primeiro gênero entende que o fogo queima e por isso, é algo ruim ou mau. Este corpo-mente não entende a causa que justifica o queimar, tampouco entende o afeto que se desvelou na afecção chamada queimadura. Ele percebe apenas o efeito resultante do encontro dos dois modos constituintes do afeto. O primeiro gênero (imaginação) é constituído por todas as ideias inadequadas, pelas afecções passivas e seu encadeamento, Esse primeiro gênero corresponde, antes de mais nada, ao estado de natureza: percebo os objetos ao sabor dos encontros, segundo o efeito que eles têm sobre mim. Esse efeito é apenas um ‘signo’, uma ‘indicação’ variável. Esse é um conhecimento por experiência vaga, e vaga, segundo a etimologia, se refere ao caráter casual dos encontros. Aqui, só conhecemos a “ordem comum” da Natureza, isto é, o efeito dos encontros entre partes, segundo determinações meramente extrínsecas. 11 A problemática, proveniente da falta de entendimento acerca dos encontros, se agrava com o funcionamento da memória. A associação e a comparação revelam-se, fazendo com que o corpo-mente se lembre de situações que obtiveram uma afecção semelhante. Todas as experiências que se assemelharem ao evento serão processadas e tratadas de uma mesma maneira, uma vez que o imaginativo da recordação age de maneira assimilativa e opera segundo a junção de objetos e 10 ESPINOSA, 2009a, p. 41. 11 DELEUZE, 1981, p. 201. 16 situações que são semelhantes. É mais trabalhoso à mente humana memorizar as diferenças. Dado tal processo, o assimilativo, cria-se um conhecimento universal acerca da experiência, conhecimento este que não possui outras fundamentações senão a experiência sensível, a recordação fisiológico-assimilativa e à indução, formas pouco confiáveis de conhecimento e que podem levar o corpo-mente a um conhecimento inadequado. A mente imagina um corpo qualquer porque o corpo humano é afetado e arranjado pelos traços de um corpo exterior da mesma maneira pela qual ele foi afetadoquando algumas de suas partes foram impelidas por esse mesmo corpo exterior. Mas (por hipótese), o corpo foi, naquela primeira vez, arranjado (dispositum) de tal maneira que a mente imaginou dois corpos ao mesmo tempo. Portanto, agora, ela imaginará, igualmente, dois ao mesmo tempo, e sempre que imaginar um deles, imediatamente se recordará também do outro. 12 Espinosa diz que o primeiro gênero de conhecimento, quando separado, só pode criar ideias ou conhecimentos inadequados. As ideias ou conhecimentos inadequados são construções conceituais estruturadas a partir da percepção sensorial, experimental e moral, que quando aferida pelo corpo-mente, tem parte de sua composição, as afecções e as causas, descartada e desconsiderada, gerando um conhecimento limitado e corrompido acerca do afeto. Carrega a palavra inadequada por conhecer apenas o resultado das afecções e não os afetos como um todo. O corpo-mente inserido nesse gênero não é capaz de absorver e perceber o que de fato ocorre, apenas separa e numera os efeitos segundo uma noção equivocada e maniqueísta, levando-o a crer que o saber se resume à futilidade de aplicar uma compleição moral aos fenômenos. Ou seja, conhece-se o efeito, enquanto a causa e a pretensão de saber acerca dela não são objeto de seu pensamento. Espinosa diz que muitos erros, não só no âmbito cotidiano, mas também cientifico e filosófico, ocorrem por conta da compleição moral e maniqueísta daqueles que habitam o primeiro gênero de conhecimento: Cada um, de acordo com a disposição do seu corpo, forma imagens universais das outras coisas. Não é de se surpreender que dentro os filósofos que pretendem explicar a natureza exclusivamente pelas imagens e sensações advindas das coisas, tenham surgido tantas contradições. 13 O trecho traz à tona a fragilidade e a probabilidade de se confundir quando se pretende atingir premissas verdadeiras a partir de um conhecimento puramente 12 ESPINOSA, 2009a, p. 43. 13 ESPINOSA, 2009a, p. 24. 17 imaginativo e que se baseia, única e exclusivamente, na observação de imagens das coisas ou representações das mesmas. Neste gênero do conhecimento o homem é refém das afecções resultantes da incompreensão acerca dos afetos. O corpo-mente nele posicionado apenas junta e separa as situações a partir dos efeitos que causam, resultando num conhecimento fracionado, caracterizado pela futilidade e apocrifidade. Trata-se de um gênero bastante comum, não só numa sala de aula, mas também na construção pedagógica de conteúdo. O gênero imaginativo do conhecimento encontra-se afastado de um elemento específico, elemento este que é fundamental para a formulação de um conhecimento adequado: a razão. Apesar de não descartar a possibilidade das experiências de maximizar e auxiliar a acepção de conhecimento, Espinosa considera que ela desacompanhada da razão pode levar a um conhecimento inadequado. A percepção e o uso da razão ocorrem somente a partir do momento que o corpo-mente adentra o segundo gênero de conhecimento: o conhecimento racional. 1.3 Segundo Gênero de Conhecimento: Conhecimento Racional Existe um hiato entre o primeiro e segundo gêneros de conhecimento. Este hiato só é superado a partir do uso continuado e perene da atividade racional. Mais extenso que o conhecimento imaginativo, o segundo gênero de conhecimento abarca objetos epistemológicos mais trabalhados a partir da potência de agir e pensar do corpo-mente, abrangendo um número maior de afecções e de causas, trazendo uma compreensão maior dos afetos e, por conseguinte, da realidade. Diferente do primeiro gênero de conhecimento espinosano, o segundo traz à tona uma nova perspectiva e um instrumento para o processo epistemológico de construção e acepção de conhecimento: a razão. Responsável pela criação e fomentação de noções gerais individuais e universais, esse gênero abarca uma compreensão mais profunda acerca da realidade, que deixa de ser imagética e imaginativa e passa a ser fundamentalmente racionalizada e alegre, seja no sentido das paixões ou da atividade da alegria. O segundo gênero é urdido a partir de um elemento basilar e necessário: a razão (ratio). A razão ou a atividade racional é posta como um instrumento apoiado em noções comuns para uma melhor efetivação e conservação da própria existência, o conatus. Caracterizada como um agente melhorativo do corpo-mente, 18 “a razão é potência de compreender na mente e agir no corpo, é o esforço para organizar os encontros de tal maneira que sejamos afetados por um máximo de paixões alegres”14. Ou seja, é uma ferramenta que possibilita o entendimento dos afetos e das afecções a partir do uso continuado da razão. Na relação entre o interior e o exterior, da particularidade e da universalidade, o corpo-mente potencializa as esferas do pensamento e as ações, trazendo-o certa autonomia e um entendimento que faz com que tenha somente desejos adequados, fundamentados e não fúteis como os do gênero imaginativo. A cada instante, portanto, as afecções determinam o conatus; mas a cada instante o conatus é a procura daquilo que é útil em função das afecções que o determinam. É por isso que um corpo vai sempre o mais longe que pode, tanto na paixão quanto na ação; e aquilo que ele pode é seu direito. 15 Este gênero epistemológico traz consigo uma postura mais ativa perante o conhecimento e os afetos, possibilitando um entendimento maior das relações que estruturam um corpo-mente e os demais modos que constituem a realidade. Isso ocorre a partir de uma mudança no paradigma interpretativo das afecções, fazendo com que o corpo-mente organize as afecções provenientes dos afetos a partir de um método que relaciona a composição e decomposição do próprio corpo, método este que se efetua com o instrumento racional, posicionando o conhecimento verdadeiro, como na máxima espinosana, como “o conhecimento das relações que me compõe e das relações que compõe as outras coisas”16. A partir desse gênero despede-se das noções individuais com pretensão universal e das concepções fundamentalmente pautadas na empiria, dando espaço para a superação das ideias imaginativas e ocasionando a transfiguração delas para as noções comuns. As noções comuns são “ideias ou noções comuns a todos os homens, todos os corpos concordam em certas coisas”17. Remetem a conceitos “presentes na mente de todos os seres humanos, conceitos esses que são ideias adequadas das quais decorrem verdadeiras ações”18. Trata-se da percepção e da compreensão dos aspectos universais e necessários que habitam e se aplicam a todos, o que acarreta na consciência acerca dos afetos, causas e efeitos, possibilitando um entendimento maior da realidade. 14 DELEUZE, 1968, p. 189. 15 Ibid., 1968, p. 177. 16 Ibid., 1981, p. 245. 17 ESPINOSA, 2009, p. 40. 18 DELEUZE, 1981, p. 161. 19 Para Espinosa, a razão é o único meio de decifrar e compreender os afetos e “é da natureza da razão perceber as coisas verdadeiramente como elas são em si mesmas, isto é, não como contingentes, mas como necessárias”19. Ela possibilita certa autonomia ao passo que coloca todo conhecimento à prova e elimina as noções universais inadequadas. Ademais, a razão possui a capacidade de retirar a caracterização, absurdamente comum no primeiro gênero, de resumir algo a um espectro maniqueísta: o fogo não é ruim porque queima. A afecção resultante de um afeto entre um corpo-mente e o fogo é que determina o resultado do afeto, ou seja, tudo depende da maneira em que o afeto e as afecções são compreendidos. Diferente do primeiro gênero de conhecimento, o conhecimento racional não é composto por imagens das coisas, pelo contrário, é formado por pensamentos sem imagem, eleindepende de signos e se efetiva a partir do encontro entre os modos, interpretando os afetos e as afecções a partir da conveniência entre a composição ou não entre os corpos. Sendo assim, é necessária uma busca perene para atingir a conveniência para com os encontros e efeitos. Tudo depende do fato de convir ou não ao corpo- mente e tudo que convém, de forma interessada e passiva, é tido como uma paixão alegre. As paixões alegres, mesmo sendo de ordem passiva e ainda ideias inadequadas, aumentam gradualmente a abertura à potência de agir e pensar de um corpo-mente: ao passo que o corpo-mente forma constantemente ideias inadequadas à luz das paixões alegres e da necessidade de existência proveniente do conatus, ele forma noções comuns individuais, que, paulatinamente, a partir do uso conivente da atividade reflexiva racional, passa a entender e efetivar as noções comuns universais. A razão é de extrema importância durante esse processo de percepção ou construção de uma noção comum universal. A percepção do comum-universal se dá a partir do uso racional e da aplicação dessa racionalidade às noções comuns menos universais e mais individualizadas. Quanto mais se forma noções individuais e próprias, mais se pode formar uma noção comum universal. Nesse processo a alegria perde a caracterização passiva. É necessária uma ação expressiva do corpo- mente para tal construção epistemológica, o que acaba por transfigurar a alegria passiva, proveniente das paixões alegres, em uma alegria ativa que sempre 19 ESPINOSA, 2009a, p. 43. 20 produzirá ideias adequadas e juntamente com as paixões alegres formarão o entendimento do corpo-mente sobre a realidade. É importante salientar que Espinosa, enquanto racionalista, acredita num sistema hierárquico que coloca a razão como elemento súpero para a construção de conhecimento. Não obstante a esse fato, Espinosa não desconsidera, tampouco separa a razão das experiências e dos aspectos subjetivos e emocionais que permeiam um corpo-mente. O aspecto racional não habita um campo metafisico distante e intocável, pelo contrario, ela se apresenta ao passo que ela se relaciona com os eventos e afecções, concretizando-se também como afeto e possibilitando a efetivação do mais potente dos afetos: o conhecimento. As afecções resultantes dos afetos configuram uma incorporação, onde o indivíduo entra em composição com o que o afeta. O homem que habita o segundo gênero de conhecimento não teme o fogo e a sua capacidade de queimar, ele entende e percebe que o resultado depende única e exclusivamente, da relação dele com o modo. Trata-se de um domínio mais abrangente do conhecimento, uma vez que abarca as relações e as possibilidades dos afetos, dimanando a capacidade do corpo-mente de se relacionar com o conhecimento e a natureza, que não é mais vetada a ele, mas sim uma noção imutável e eterna, disposta a interagir com o corpo-mente, configurando uma relação afetuosa entre a natureza e a razão. É necessário o desenvolvimento e a aplicação desse gênero de conhecimento no campo educacional. O entendimento de determinados conteúdos se dá apenas a partir do uso continuado da razão, o que possibilita um entendimento mais aprofundado do conteúdo estudado. Devem-se entender os aspectos que permeiam, causam e resultam de determinado conhecimento. O conteúdo dado por si só, sem posicionamento desses aspectos citados, fica estirado ao vento e não provoca interesse algum no educando, tampouco o agrega de forma verdadeira, uma vez que um conhecimento dado por outrem de forma parcial, sem as causas efeitos provenientes do mesmo, é tido como fútil e possui pouca fundamentação. Dado o conhecimento racional, que é adequado, o individuo percebe os elementos que antecedem e resultam no afeto: as causas. A causa, para Espinosa, é o ápice do conhecimento verdadeiro, sendo caracterizada como um elemento, por elemento entende-se qualquer ato, aspecto, sejam material ou não, que se dá a priore do afeto, resultando num embate e consecutivamente, numa afecção. A partir do conhecimento das causas é possível superar os enganos e erros adquiridos a 21 partir da opinião e perceber o movimento natural do todo, movimento esse que se alicerça em noções comuns, que é a causa direta de uma ideia adequada. Não obstante ao alto nível de compreensão do segundo gênero, Espinosa busca entender a realidade com ainda mais afinco. A razão por si só “não é suficiente, uma vez que lida com elementos comuns, mas falha ao conhecer casos particulares da existência”20, fazendo emergir a necessidade de um terceiro gênero de conhecimento, gênero esse que tem pretensão ainda mais arrojada que o primeiro e o segundo gêneros, ambicionando um conhecimento ainda mais intimo, buscando conhecer aquilo cuja essência envolve a existência: a ciência intuitiva. 1.4 Terceiro Gênero de Conhecimento: A ciência intuitiva Os gêneros de conhecimento se organizam de forma ordenada e crescente. Começa-se com um conhecimento imaginativo, pouco seguro e um tanto quanto supersticioso; a compreensão gradativa dos encontros e a análise destes, leva ao uso continuado da racionalidade pelo corpo-mente que passa a entender o desvelamento dos afetos e afecções a partir da causa; por fim, os conhecimentos, imaginativos e racionais, levam à figura divina, como causa anterior a causa, uma causa geradora de tudo e inclusive de si mesmo, abarcando um conhecimento íntimo e essencial dos modos existentes. Deve-se “passar pela imaginação e pelas noções comuns para atingir as ideias de terceiro gênero”21. Espinosa vê grande importância nesse âmbito de conhecimento. Todos os gêneros de conhecimentos já citados postulam, imprescindivelmente, a necessidade de formulação de um gênero que ultrapasse as ideias imaginativas do primeiro gênero e as noções comuns da racionalidade, uma vez que “o esforço supremo da mente e sua virtude suprema consistem em compreender as coisas através do terceiro gênero do conhecimento”22. O corpo-mente que habita este gênero descobre em si mesmo e no mundo a potência criadora, potência essa que advém do aparato divino e se fixa no homem, concebendo-o a capacidade criadora advinda da natura naturans23. Diferente dos gêneros anteriores, a ciência intuitiva busca, a partir da potência do ser e da natureza criativa divina presente no corpo-mente, perceber a unicidade e 20 RABERNOT, 2016, p. 177. 21 DELEUZE, 1968, p. 210. 22 ESPINOSA, 2009a, p. 115. 23 Trata-se da essência da natureza proveniente de Deus, natureza esta que permite ao corpo-mente criar e modificar os modos presentes na realidade. 22 o elemento que coliga todo o cosmo e, ao mesmo tempo, perceber o que há de particular e único num modo. Essa percepção só ocorre a partir do entendimento intuitivo de que existe uma potência divina que se efetiva a partir da criação e modificação do mundo, potência essa que ao mesmo tempo é o mundo e modifica a si mesma. Caracterizado pela capacidade de experimentar e contemplar a essência das coisas e a eternidade que se exprime a partir do todo, é um gênero um tanto quanto abstrato. Chega-se ao conhecimento intuitivo e constata-se a potência criadora em tudo que constitui a realidade. O corpo-mente deriva de uma substância monista, ele é uma afecção da mesma. Ademais, a ciência intuitiva só é capaz de produzir ideias ou conhecimentos adequados, visto que apresenta a causa e adentra ainda mais na especificidade de um conhecimento, abarcando também sua essência. A relação de interconectividade é ainda mais evidente neste gênero. O corpo- mente constitui e é o mundo, uma vez que possui a mesma essência e a potência criadora advindas de Deus. Conhece-se e se percebe o produtor no produto, o queantecede a causa e qualquer noção de técnica: Deus dispõe e manifesta no corpo- mente um anseio; o corpo-mente é contagiado por tal anseio, o anseio de criação, de produção. Por fim, o corpo-mente se torna inventor, produtor de si mesmo e do mundo, aproximando-se cada vez mais da liberdade e, por corolário, da beatitude, qualidades de corpos-mentes que só estão disponíveis quando se alcança o terceiro gênero de conhecimento. Toda vez que um homem age segundo aspectos que divergem da sua própria natureza, é coagido, o que resulta num estado de servidão. A liberdade, tangente oposta da servidão, é posicionada por Espinosa de uma maneira diferente. Para ele “a liberdade não é uma propriedade do sujeito, mas um estado do ser” 24, uma vez que ela não se efetiva de modo contínuo e incessável, pelo contrário, os corpos- mentes são afetados e coagidos a todo o momento. Sendo assim, a liberdade emerge ao passo que a razão é exercitada e começa a analisar, refrear, pensar e ponderar os afetos. Trata-se de um processo ativo de estudo da realidade, estudo esse que qualifica o corpo-mente e possibilita-o enfrentar e compreender um número maior de afetos e, por corolário, o capacita para selecionar afetos que aumentarão 24 ESPINOSA, 2009a, p. 19. 23 sua potência de pensar e agir, instruindo-o a evitar os maus-encontros e proporcionando-o um aumento no próprio estado de perfeição. A liberdade25 apresenta-se ao passo que se executa a própria vontade e desejo de criar e existir, o conatus. Aquele que age exclusivamente pela natureza de sua necessidade de existir e criar é livre quando o faz e essa necessidade de existência postula bons encontros e um entendimento mais íntimo da realidade, entendimento esse que não habita somente os campos imaginativo e racional de conhecimento, mas também o intuitivo, da essência que coliga o corpo-mente e os demais modos que constituem a realidade. Como resultado dessa relação mais intimista e intuitiva, constrói-se certa conectividade e harmonia: o corpo-mente percebe o elemento que unifica o cosmo e age de modo a preservar esse aspecto harmônico e o utiliza para benefício próprio e de toda a unidade, ou seja, o homem aprende a interagir e existir em harmonia com a natureza de todas as coisas, sendo assim, a liberdade é conhecimento essencial de si mesmo e da natureza, liberdade essa que se maximizada, de forma súpera e máxima, faz do corpo-mente beato, detentor da beatitude. Mais do que perceber e entender a realidade, o conhecimento de terceiro gênero possibilita produzir uma compreensão acerca da essência e da verdade do objeto, dissemelhante do solipsismo racional, a ciência intuitiva é a própria natureza pensando no corpo- mente. Seguindo a mesma base exemplificativa do presente escrito, o indivíduo que habita o campo da ciência intuitiva percebe que é parte do fogo, uma vez que o afeto entre os dois é que constitui a existência e a realidade do objeto. Ademais, vê em si mesmo a capacidade de criar e produzir, o que proporciona um entendimento completo do fogo, incluindo sua criação, o manuseio e o modo de agir harmoniosamente com esse elemento natural. Trata-se de uma esfera do conhecimento que abarca todas as outras: no conhecimento intuitivo compreende-se o caráter imagético e imaginativo, interpreta-se de modo racional a fim de criar noções comuns sobre o objeto e contempla-se a essência e a possibilidade de convívio harmonioso entre os modos. 25 É importante posicionar o pensamento de Espinosa sobre a questão que envolve a liberdade. Para ele a liberdade “não é uma propriedade do sujeito, mas um estado do ser” (ESPINOSA, 2009a, p.19), caracterizando o ser livre como aquele que age exclusivamente pela natureza de sua necessidade de existir e resistir, o conatus. 24 Conforme um indivíduo entende os afetos, potências, encontros, e, por conseguinte, sua posição no cosmo a partir da ciência intuitiva, vai obtendo o status de eterno. A finitude não seria adequada, ao passo que a essência criadora, da produção, parte idiossincrática do corpo-mente, sempre existiu. Quando um corpo- mente morre, ele é acometido por um afeto, trata-se de uma mudança de estado, sua parte material deixa de existir, mas a mente, a sua produção e as mudanças que ele fizera enquanto vivo, suas relações e a interconectividade, sempre existirão. As esferas de conhecimento dispostos por Espinosa constituem e apresentam uma sistematização do conhecimento humano e dos fenômenos, apresentando as possibilidades e posturas possíveis do conhecimento, desde o gênero imaginativo, onde o corpo-mente é refém dos efeitos resultante dos afetos e não compreende as relações, caracterizando o homem fútil; à perene e necessária atividade racional, que coloca o corpo-mente numa postura ativa de construção e efetivação de noções comuns particulares e universais, tipificando o sábio; para enfim, num movimento independente, chegar à intuição, onde o corpo-mente pensa e age de forma harmônica consigo mesmo e com os demais modos existentes, atingindo a beatitude advinda do conhecimento das essências e pela percepção da interconexão entre os modos, particularizando o virtuoso. Tais posturas configuram a escalada comum aos homens, que transacionam e visitam os diversos gêneros em toda construção epistemológica, construção essa que acontece de modo simultâneo, envolvendo todos os gêneros de conhecimento e consumando a epistemologia espinosana. Os gêneros de conhecimento se efetivam a partir de um elemento idiossincrático do pensamento de Espinosa. Tal elemento é causa necessária para a estruturação e manutenção de todo o sistema filosófico espinosano. Traz consigo um entendimento profundo e se caracteriza como a única possibilidade para a construção de conhecimento: os afetos. O capitulo seguinte tem por objetivo apresentar a teoria dos afetos e aplicar esse conteúdo à reflexão central do presente trabalho, a educação. 25 Capítulo 2: A afetividade Os filósofos concebem os afetos com que nos batemos como vícios em que os homens caem por culpa própria. Por esse motivo, costumam rir-se deles, lamentá-los, maltratá-los e (quando querem parecer os mais santos) detestá-los. Acreditam assim, fazer coisa divina e alcançar o cume da sabedoria, ao louvar de muitas maneiras uma natureza humana que em lugar nenhum existe e fustigar com suas sentenças aquela que deveras existes. 26 Desde os primórdios do pensamento clássico, tratar da questão afetiva do homem sempre disse respeito à supressão e condenação das paixões e dos afetos. Correntes filosóficas clássicas, como as que servem de base ao cristianismo e o estoicismo, enxergavam a afetividade humana como uma esfera existencial desmedida e viciada, distante de uma vida racional e virtuosa. Com a transição do medievo para a modernidade, esse pensamento tão engendrado começa a ser discutido. Porém, somente com Espinosa o pensamento vigente, que colocava os afetos como algo maldito a ser freado, passa a ser combatido de forma reativa e bastante sólida. Destoando do pensamento convencional, Espinosa enxerga os afetos de uma maneira diferente. Essa esfera da natureza humana, tão criticada, subjugada e posta como maldita, não possui em si mesma nenhuma dessas características negativas. Discordando do pensamento moralista e religioso, sobretudo dos sacerdotes ascéticos que “concebem os homens não como são, mas como gostariam que fossem”27, Espinosa propõe um estudo mais íntimo das questões que antecedem, acompanham e resultam dos afetos, a fim de extinguir essa noção negativa e trazer ao corpo-mente a ciência de seu estado, tirando-o do desalento proveniente da deturpação de sua própria natureza e existência. Os objetivosde Espinosa ao dissecar os afetos são claros: retirar o caráter maniqueísta e ascético acerca da concepção, caráter esse que, para ele, é contra a vida e não acrescenta nenhum dado positivo para a mesma, uma vez que se choca com a natureza humana, afastando o corpo-mente e impedindo-o que acesse e efetive tudo aquilo que de fato pode. Ademais, o projeto espinosano sobre os afetos não objetiva a destruição das paixões e as considera uma parte intrínseca e muito importante da constituição de um corpo-mente. 26 ESPINOSA, 2009b, p. 5. 27 Ibid., p. 5. 26 Mais do que entender e pensar os afetos e sua potência, o pensamento espinosano propõe a instauração de uma estrutura de estudo, estudo esse que tem postura cientifica e objetiva a compreensão, explicação e tratamento dos afetos como um todo, incluindo as paixões, ações, ideias e os desvelamentos de todos esses itens, ocasionando uma reviravolta no pensamento vigente e fazendo emergir uma sistematização humana e realista da vida dos homens. Espinosa, enquanto sistemático, proporciona diversas aplicações para seu pensamento. O presente capítulo apresentará, num primeiro momento, um trabalho descritivo acerca do que o filósofo chama de afetos e uma discussão acerca das possibilidades desse aspecto humano para, num segundo momento, postular a necessidade de tratamento e potencialização da afetividade a partir dos remédios afetivos. A teoria doa afetos se configura como um dos elementos centrais da filosofia espinosana e tem por intuito tornar um corpo-mente mais ciente da vida e dos desvelamentos afetivos que o cerca, ao passo que faz dele mais compreensivo e autônomo perante o encontro entre modos existentes. 2.1 A teoria dos afetos A afetividade humana é tema recorrente e possui um papel central nos escritos de Espinosa, sendo responsável por transfigurar o pensamento teórico espinosano em prático. Os afetos são construídos a partir de encontros experienciais. Mesmo racionalista Espinosa não descarta, tampouco despreza a experiência. A razão não se separa da experiência afetiva, uma vez que a experiência habita o primeiro gênero de conhecimento e a racionalidade o segundo e, por se tratar de um sistema epistemológico interdependente, a razão necessita da experiência para se constituir como tal. Sendo assim, o conhecimento só pode ser obtido a partir dos afetos, pois “só modificamos nossa maneira de pensar e agir na medida em que há uma experiência afetiva em jogo, pois um afeto só é vencido por outro mais forte e contrário”28. Para Espinosa, não existe separação entre afetos e razão, mas existe entre passividade e atividade, constituindo duas hipóteses para a afetividade humana, sendo uma mais sólida do que a outra. Agimos ativamente, de fato, se e somente se, “somos causa interna dos efeitos que produzimos dentro e fora de nós, da mesma forma que padecemos na passividade quando a causa dos efeitos que 28 ESPINOSA, 2009a, p. 82. 27 produzimos nos é exterior”29. É importante salientar a potência dos afetos: o afeto em si ainda é mais forte do que qualquer construção abstrata e cognitiva possível, mesmo se tratando de uma ideia verdadeira e dotada de razão. Para não padecer na passividade afetiva e ser dominado, o corpo-mente deve construir relações de composição, coligando-se com o máximo de elementos da natureza que convém a sua potência e, por conseguinte, estruturando um corpo mais potente. As afecções, parte fundamental dos afetos, remetem a essa possibilidade de composição, de afetar e ser afetado de um corpo-mente. Das afecções resultam afetos que proporcionam uma passagem de um estado de perfeição para outro, ocasionando um aumento ou uma diminuição na potência de agir e pensar de um corpo-mente. A alegria, por exemplo, é a passagem de um estado menor de perfeição para um maior e só existe ao passo que um corpo-mente coliga-se com ela e a adiciona em sua composição; e a tristeza, tangente oposta da alegria, caracterizada pela passagem de um estado maior de perfeição para um menor, só existe e afeta o corpo-mente quando o mesmo entra em composição com ela. Esses encontros e composições, chamados de agenciamentos, alargam ou diminuem a potência de agir e pensar dos corpos-mentes, ocasionando um maior número de possibilidades de afetar e ser afetado, concretizando novas formas de se relacionar com o mundo o qual compõe. Alegria e tristeza não possuem um sentido usual na filosofia de Espinosa. Alegria sempre vai remeter a um aumento da potência de agir e pensar, o que pode resultar de uma experiência que não é alegre no sentido literal da palavra e o contrário também existe, experiências alegres e que diminuem a potência de agir e pensar de um corpo-mente. Ambas as esferas afetivas, alegria e tristeza, são chamados de afetos primários e deles resultam todas as possibilidades afetivas existentes: da alegria advém o amor, a coragem, a parcimônia e outros afetos que aumentam a potência de agir e pensar de um corpo-mente; ao passo que da tristeza agir e pensar de um corpo-mente. Mais do que remeter ao experiencial, a importância advém do que se faz com o efeito que resulta do afeto que causa a afecção. Ademais, um afeto passivo, vulgo paixão, não é necessariamente ruim e se 29 MARQUES, 2012, p. 14. 28 efetiva enquanto melhoria do corpo-mente quando lhe adiciona uma maior percepção sobre a realidade que o cerca. Aumentar nossa potência é expandir nosso território de ação no mundo e caminhar em direção a uma independência maior em relação ao ambiente – o que não significa diminuir as relações com a exterioridade, mas sim o contrário –, pois apenas quando somos a causa interna de nossos afetos aumentamos nossa potência de agir. As relações que mantemos com os outros corpos podem nos beneficiar ou aprisionar nossa expansão e, no segundo caso, reagiremos aos encontros ao invés de agirmos sobre eles. 30 Por afeto, Espinosa (Ética, parte III, prop. III) compreende as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas afecções, sendo a ação uma afetividade mais ativa e a paixão mais passiva , mas ambas tendo sua validade. Afeto (affectus) exprime o transito de estados entre corpos envolvidos num mesmo encontro, ou seja, tanto no corpo afetante como no afetado. Caracteriza-se como potência em estado de variação, variação essa que resulta em um estado maior ou menor de perfeição para com os corpos-mentes envolvidos no encontro. Tudo que é vivo possui em si certa potência de agir e pensar. Alguns uma potência mais alargada, outros uma potência pouco desenvolvida, e essa variação entre limites mínimos e máximos é o que se chama de afeto. A potência aumenta ou diminui a partir das possibilidades afetivas dos corpos-mentes dentro de situações e condições específicas, mas ainda sim conservam o mesmo grau de perfeição. Por exemplo, seguindo o escopo do presente trabalho, um aluno não é menos perfeito ou menos desenvolvido potencialmente por não ser tão bom em matérias exatas quanto é em artísticas e vice-versa, são perfeitos em si e devem ser trabalhados a fim de desenvolver suas potencialidades como um todo, mas respeitando sua potencialidade particular e subjetiva, a fim de não suprimir ou ocultar certos aspectos particulares do mesmo. Espinosa acredita que toda paixão é um afeto, mas nem todo afeto é uma paixão. O afeto ativo sempre exprime um avanço, a passagem de um estado de perfeição menor para um maior, ao passo que a paixão pode ser uma regressão, remetendo à passagem de um estado maior de perfeição para um menor. Esses avanços reverberam nocorpo-mente, causando afecções (affectio), que são modificações. Para Espinosa, essas afecções, independente do tipo, ocorrem na unidade humana e não em partes específicas, ou seja, são modificações que 30 MARQUES, 2012, p. 16. 29 ocorrem simultaneamente no corpo e na mente, partes distintas de um único modo existente, o corpo-mente. É impossível desvincular a filosofia de Espinosa do conceito de potência. Potência, no sentido espinosano, não diz respeito apenas à ação, mas também à recepção, caracterizando-se como o “poder de afetar e de ser afetado que a substância e seus modos possuem, mesmo que em proporções distintas”31. Deleuze, grande estudioso acerca dos afetos, reconfigurou o pensamento espinosano, fazendo emergir duas concepções que exemplificam de forma clara a construção de um corpo-mente e a forma como ele interage com o mundo à sua volta: latitude (afetos) e longitude (relações de repouso e movimento que compõe um corpo). A vida de um corpo-mente se resume a um sistema interligado de afetos, sistema esse que resulta e postula a necessidade de cálculos utilizando a latitude e a longitude no sentido deleuzeano. Um corpo pode ser qualquer coisa, pode ser um animal, pode ser um corpo sonoro, pode ser uma alma ou uma idéia, pode ser um corpus lingüístico, pode ser um corpo social, uma coletividade. Entendemos por longitude de um corpo qualquer conjunto das relações de velocidade e de lentidão, de repouso e de movimento, entre partículas que o compõem desse ponto de vista, isto é, entre elementos não formados. Entendemos por latitude o conjunto dos afetos que preenchem um corpo a cada momento, isto é, os estados intensivos de uma força anônima (força de existir, poder de ser afetado). Estabelecemos assim a cartografia de um corpo. O conjunto das longitudes e das latitudes constitui a Natureza, o plano de imanência ou de consistência, sempre variável, e que não cessa de ser remanejado, composto, recomposto, pelos indivíduos e pelas coletividades. 32 Pensar os afetos sempre vai ser pensar a expansão e a retração da potência e das possibilidades de agir e pensar de um corpo-mente. Mais do que isso, “experimentar os afetos é antes de tudo experimentar-se a si mesmo, e é dessa maneira que formamos um primeiro ‘conhecimento’ de nós mesmos”33. Objetivando um maior número de possibilidades de afetar ser afetado, uma necessidade vem à tona: a liberdade. Diferente das concepções de liberdade comuns na filosofia, a espinosana traz um panorama verdadeiro da realidade e destoa de qualquer caráter utópico. Para ele, “a liberdade não é uma propriedade do sujeito, mas um estado do ser”34. Tal afirmação posiciona o ser livre como aquele que age exclusivamente pela natureza de sua necessidade de existir e resistir, o conatus. Ademais, a liberdade se efetiva ao passo que um corpo-mente se relaciona com o ambiente no qual está 31 MARQUES, 2012, p. 16. 32 DELEUZE, 2002, p. 132. 33 PAULA, 2009, p. 59. 34 ESPINOSA, 2009a, p. 19. 30 inserido, ou seja, ser livre “é acrescentar mais realidade à própria vida, fazer com que os encontros possam somar experiências ao invés de subtrair nossa potência de agir e conhecer o mundo e a nós mesmos”35. A teoria dos afetos é um elemento idiossincrático do pensamento espinosano e é responsável por transfigura toda a teoricidade à práxis afetiva. O modo como Espinosa enxerga esse aspecto da natureza humana é muito dissemelhante da tradição filosófica vigente em sua época. Trazendo à tona e sistematizando a vida do homem de forma mais humana, o pensamento espinosano carrega consigo uma sensibilidade experiencial associada à racionalidade afetiva, caracterizando uma justa medida entre elementos postos, de forma errônea, como estritamente antagônicos. O mundo é um amontoado de afetividades que intercorrem de forma tautócrona e compreender essas afetividades não é apenas entender um âmbito humano supostamente desmedido, mas sim toda as relações de composição, as afecções, os encontros experienciais e os desvelamentos afetivos, ou seja, compreender os afetos é compreender a realidade. 2.2 O tratamento dos afetos Num primeiro momento, o pensamento espinosano acerca dos afetos pode parecer de certo modo lascivo, mas isso não é verdade. Mesmo considerando as possibilidades e a importância da experiência para a constituição de um corpo- mente, Espinosa ainda se mantém essencialmente racionalista. Sendo assim, a afetividade humana ainda depende, necessariamente, da razão para manter-se e se efetivar de forma saudável. A teoria dos afetos tem por finalidade não apenas explicitar ou descrever como os afetos e seus desvelamentos ocorrem, mas também tratá-los de modo a tornar a racionalidade e a paixão afetos dosados na vida de um corpo-mente. Essa busca por um equilíbrio abrange um pensamento fármaco para os problemas e desvelamentos provenientes dos afetos, pensamento esse que segue um ordenamento sistemático que objetiva compreender e melhorar esse âmbito das vivências humanas. Como resposta às problemáticas afetivas e a partir da necessidade de um tratamento fármaco para com os afetos, Espinosa propõe ao longo de sua obra principal, Ética demonstrada à maneira dos geômetras (1667), uma série de contribuições e “remédios” afetivos. Esses remédios possuem o papel de estruturar 35 MARQUES, 2012, p. 15. 31 e assegurar o desenvolvimento e a manutenção da vida afetiva de um corpo-mente, cedendo-lhe instrumentos que possibilitam uma clareza perante a realidade dos afetos e fazendo dele mais ciente de si mesmo e do mundo que o cerca. O primeiro dos remédios afetivos descritos por Espinosa, diz respeito à construção conceitual. “Não há nenhuma afecção do corpo da qual não possamos formar algum conceito claro e distinto”36. Concatenado com o paralelismo monista e psicofísico, esse primeiro passo para o tratamento dos afetos refere-se à unicidade humana, mais especificamente, ao fato de que a construção de um conhecimento ocorre tanto no âmbito corporal quanto no mental, uma vez que possuem uma mesma ordem de conexão de ideias, sendo a mente uma ideia de um corpo que foi afetado. Ademais, a mente, a partir das afecções resultantes dos afetos, é apta a reconhecer a concordância ou a discrepância entre a construção de um corpo-mente e de outro corpo que o afeta, além de ser capaz de perceber o que há de comum entre os mesmos e ponderar a composição e o enlace entre os corpos envolvidos num mesmo afeto. Sendo assim, pela potência de pensar um afeto recepcionado pelo corpo de um corpo-mente, adquire-se a possibilidade de se relacionar com o mais potente dos afetos: o próprio conhecimento. Elencado com o primeiro tratamento dos afetos, o segundo remete à formação de ideias claras e distintas a partir de afetos passivos, as paixões. O que transfigura um afeto numa paixão é o meio pela qual se adquire o mesmo. As paixões, mesmo enquanto elemento positivo para um corpo-mente, advêm de causas e efeitos externos e essa característica é o que posiciona os afetos passivos como paixões. Porém, uma paixão sempre é um conhecimento inacabado e incompleto, uma vez que não parte de um corpo-mente e é recebido de forma passiva, o que dificulta um conhecimento mais íntimo e causal acerca desse tipo de afeto. Como resposta a essa problemática afetiva, Espinosa suscita a necessidade de transmutar as paixões para compreendê-las de forma mais abrangente, uma vez que “um afeto que é uma paixão deixa de ser uma paixão assim que formamos dele uma ideia clara e distinta”37. Para transformar uma paixão em uma ideia clara e distinta, o corpo-mente deve desassocia-la de sua causa exterior e a conectar compensamentos próprios e mais adequados. Mais que entender a relação causal dos afetos externos, esse remédio afetivo do sistema espinosano reforça a compreensão 36 ESPINOSA, 2009a, p. 109. 37 Ibid., p. 109. 32 da composição entre um corpo-mente e os demais modos existentes e, por corolário, retira o caráter maniqueísta acerca das afecções provenientes dos afetos: tudo depende da relação de conveniência que se têm, sendo assim, bom ou ruim, bem ou mal, entre outras oposições maniqueístas, dependem apenas da relação e interpretação de um corpo-mente envolvido num afeto. O terceiro remédio afetivo descrito por Espinosa opera em consoante com o pensamento racional e é responsável pela organização harmoniosa dos afetos. Trata-se de uma atividade perene de checagem e reflexão acerca dos afetos, sendo o corpo-mento o único que detém “o poder de ordenar e concatenar as afecções do corpo segundo a ordem própria do intelecto”38. Ao passo que se pensa sobre os afetos o corpo-mente adquire mais informações afetivas e, por conseguinte, acaba se afastando do mero acaso existencial. Produzindo e percebendo a realidade de forma racionalizada, o corpo-mente se aparta cada vez mais da passividade e da confusão afetiva, o que resulta num aumento qualitativo e quantitativo da criação e percepção de mais noções comuns. A partir da possibilidade e necessidade de uma pluralidade afetiva, de afetar e ser afetado, em consoante com as inevitabilidades para uma afetividade saudável, emerge o fármaco afetivo plura simul. A teoria dos afetos de Espinosa postula a pluralidade afetiva, uma vez que “é útil ao homem aquilo que dispõe seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores”39. Plura simul, ou simplesmente aptidão ao múltiplo, é uma das partes idiossincráticas do conatus, da força de existir e ir além, e diz respeito ao esforço e ao movimento natural de abertura e ampliação das possibilidades de afetar e ser afetado. Essa ampliação à afetividade não é exclusividade do aparelho corporal, visto que não existe a dicotomia corpo e mente no pensamento espinosano. Nesse sentido, quanto mais um corpo-mente pensa, mais ele age e vice-versa, sendo ambos, corpo e mente, aptos de forma igual aos encontros e resultados provenientes dos afetos. Quanto mais um corpo é capaz, em comparação com os outros, de agir simultaneamente sobre um número maior de coisas, ou de padecer simultaneamente de um número maior de coisas, tanto mais sua mente é capaz, em comparação com as outras, de perceber, simultaneamente, um número maior de coisas. 40 38 ESPINOSA, 2009a, p. 111. 39 Ibid., p. 92. 40 Ibid., p. 32. 33 A aptidão ao múltiplo, mesmo configurando um movimento de abertura à totalidade, ainda opera segundo uma racionalidade extrema, racionalidade essa que é impregnada e imbuída de afetos. O pensamento espinosano sobre os afetos sempre intentará a alegria ativa e perene, que provém de um afetar e ser afetado de modo a conservar e aumentar a potência de agir e pensar de um corpo-mente. Sob o conceito de alegria e da necessidade do aumento da potencialidade de um corpo- mente, Espinosa apresenta as noções de bem, mau, bom, ruim e todas essas concepções postas como essencialmente maniqueístas e exclusivistas, sendo elas apenas dependentes da conveniência de um corpo-mente para com um afeto e seus desvelamentos. Todos os remédios afetivos têm um único propósito: oferecer ao corpo-mente possibilidades de afetar e de ser afetado de forma positiva. O último dos remédios afetivos, elencado e associado com todos os outros, diz respeito às vivências humanas propriamente ditas e à parcimônia afetiva. Dependente da execução dos demais tratamentos, o quinto remédio se ampara na efetivação saudável dós fármacos já citados e tem o intuito de proporcionar uma vida moderada e assertiva quanto às possibilidades de agir, de pensar, de afetar e de ser afetado. Aquele que constrói ideias claras e distintas da realidade, que compreende e transmuta as próprias paixões, que é instruído a ordenar e concatenar a esfera afetiva de forma racional e que é apto e aberto ao múltiplo, possui conhecimentos profundos sobre si mesmo e também do mundo o qual compõe. Essa ciência de si, do outro e do mundo faz com que um corpo-mente seja capaz de traçar planos e controlar mais o âmbito afetivo, resultando numa vida mais alegre, no sentido espinosano da palavra, evitando ao máximo a tristeza afetiva. Somente a partir da compreensão e do tratamento dos afetos que se é capaz de moderar e manipular os encontros de modo a conservar e expandir a potência de agir e de pensar de um homem. Os afetos são um elemento idiossincrático do sistema de pensamento espinosano. Esse âmbito epistemológico sempre foi associado a uma deturpação moral e do aparato divino, associação essa que é desmistificada e anulada na filosofia de Espinosa. Os afetos não se configuram apenas como uma parte importante da estrutura humana, eles são o próprio homem e suas vivências, sendo assim, a hostilização para com a afetividade é um ataque contra o homem e sua própria natureza. Não obstante ao caráter natural da afetividade, a mesma não deve ser posta como incompreensível e imutável, tampouco é impraticável uma possível 34 melhoria, e é dessa problemática que Espinosa se ocupa. A compreensão da esfera afetiva é gradual e concebe ao corpo-mente a possibilidade de tratá-la a partir de remédios afetivos, remédios esses que trazem ao homem clareza e distinção perante a realidade a qual compõe, além da possibilidade de transmutar e reinterpretar as paixões afetivas, fazendo dele capaz de ordenar e concatenar sobre os afetos a partir de uma abertura para contemplar a multiplicidade e as diversas formas de afetar e ser afetado, resultando num controle afetivo e numa vida moderada, onde se objetiva alcançar um número maior de afetos alegres, em detrimento dos afetos tristes. 35 Capítulo 3: Espinosa e a educação Espinosa nunca escreveu com objetivos diretamente pedagógicos e educacionais. Uma educação com clave espinosana emerge ao passo que elementos distintos, porém interligados, de seu sistema filosófico são postos em conexão de modo a pensar a questão do ensinar e do aprender. Assentado na expressividade dos afetos e na estrutura epistemológica dos gêneros de conhecimento, o pensamento espinosano aplicado ao âmbito da educação tem por intuito administrar e oferecer bons encontros entre os modos que constituem o afeto educacional. Pensar sobre a educação é analisar encontros afetivos que se efetuam a partir da relação de composição entre os diversos modos inseridos na circunstancia educacional. Os encontros afetivos ocorrem a partir da relação do educador com o educando, sendo o conhecimento, que também se configura como um afeto, a resultante desse encontro, conhecimento esse que possui a capacidade de aumentar ou diminuir a potência de agir e de pensar tanto do educando, como do educador. Mais que dispor conteúdos e orientar as possibilidades epistemológicas do professor e do aluno, o pensamento espinosano aplicado à questão educacional possibilita um entendimento mais abrangente da estrutura e do cerne da educação, uma vez que orienta não só o trabalho professoral, mas também a atividade e as possibilidades de aprendizado. O projeto educacional advindo do pensamento de Espinosa posiciona o aluno numa dinamicidade dos afetos, tornando-o ciente de um movimento afetivo perene e propondo um aprendizado ativo e autônomo, voltada à autoeducação e ao convivo com a multiplicidade. O presente capítulotrará, a partir de uma análise e aplicação do pensamento espinosano, explicitar as possibilidades e os desvelamentos da questão afetiva dentro do âmbito educacional, envolvendo todas as partes que constituem um dos mais celebres dos afetos: a educação. Dar-se-á em dois momentos diferentes, porém interdependentes. O primeiro abordará a figura do educador e o papel que o mesmo possui perante o ato de ensinar e de aprender; enquanto o segundo momento intentará uma reflexão sobre o construto educacional como um todo, abordando a possibilidade de uma educação a partir da aplicação do pensamento de Espinosa. 3.1 O Educador 36 Espinosa sempre foi um bom aluno. Seu desempenho na escola rabínica era invejável. Possuía fluência em hebraico e um vasto conhecimento acerca do judaísmo e das Sagradas Escrituras. Ademais, conhecia a fundo a literatura filosófica clássica, a medieval e o cartesianismo, além de estudar as ciências da natureza. Na tangente oposta, no que diz respeito ao ato de ensinar, Espinosa lecionou poucas vezes. Seja na troca de correspondências com Willem van Blijenbergh, ou na tutoria privada de Johannes Casearius, Espinosa descortinava “que seu possível papel como educador possuía limites”41, mas foi “a impossibilidade de cessar as críticas para com as religiões estabelecidas, a relutância em incitar controvérsias inevitáveis e a falta de vontade de abandonar a pesquisa filosófica42” que o afastaram definitivamente do professorado. Pode aparentar, por conta das queixas sobre os limites educacionais, que Espinosa não acredita na educação e na construção epistemológica a partir de uma troca existencial, porém é justamente o contrario. É a partir da “aceitação da impossibilidade de compartir o pensamento com todos e sob quaisquer circunstâncias43”, que o educador percebe a importância e a inviabilidade de construção e efetivação de uma teoria educacional senão pela via dos encontros potenciadores. Pensar a educação é pensar um encontro existencial. O processo educacional é, basicamente, um encontro. Esse encontro ocorre a partir da relação afetiva entre os modos que constituem a realidade circunstancial do ambiente escolar, mais especificamente, a sala de aula. Tais modos constituintes são, necessariamente, o educador e o educando, além das metodologias e conteúdos dispostos para o aprendizado como um todo. A palavra ‘educador’ tem origem no latim ‘educare’ e significa, basicamente, criar e alimentar, além de ser correlacionado com a terminologia ‘educere’, que remete a um fazer sair, pôr para fora e pôr no mundo. A base etimológica da palavra educador, num primeiro momento, parece ser distante do sentido usual e da realidade de alguém que exerce o professorado, mas, para Espinosa, é exatamente isso que um educador deve fazer. Associado com um desenvolvimento da potência de um corpo-mente, o educador deve ter como objetivo a efetivação de um ato 41 RABERNOT, 2016, p. 21. 42 Ibid., p. 67. 43 Ibid., p. 21. 37 educativo por excelência, sendo o ato educativo por excelência “aquele que permite que cada um expresse sua própria potência de pensar e agir”44. Sendo assim, o papel central e fundamental do educador é possibilitar que o educando exprima e execute sua própria potência de pensar e agir. A premissa aparenta certa simplicidade quanto ao papel daquele que educa, mas em tempos com exigências para com o cumprimento de normas curriculares e a acentuação do fator de preenchimento subjetivo do educando, o que significa possibilitar que alguém pense e aja? Refletir acerca do procedimento metodológico e pedagógico de um educador com clave espinosana revela um processo educacional um tanto quanto difícil, porém necessário. Além dos obstáculos e limitações advindas das exigências de ordenamento político-curricular e das questões sociais que permeiam a construção e a efetivação do educando enquanto sujeito imbuído de diversos aspectos subjetivos, o ato de ensinar, que consiste em permitir a expressão da potência de agir e pensar esbarra num problema basilar: “o aprender não é efeito direto do ensinar”45. Dada a discrepância entre o aprender e o ensinar, o papel do educador aparenta conservar em si certa fragilidade e irrelevância dentro do sistema de pensamento disposto por Espinosa, mas isso não é verdade. Os preceitos espinosanos e as experiências particulares de Espinosa para com o ato professoral demonstram a necessidade de uma postura distinta ante o afeto educacional. O educador deve agir tal como um provedor, estimulando e cedendo os instrumentos e ferramentas que possibilitam a aferição do conhecimento e, por fim, o aprendizado. Portanto, o processo de aprendizado ocorre segundo mediação do educador no que tange os fomentos e métodos para a captação, construção, efetivação e transmissão do conhecimento adquirido, conhecimento esse que é tido como um resultado particular do educando a partir dos instrumentos disponibilizados pelo educador e é à esse processo de construção epistemológica a partir de métodos externos que é dado o nome afeto educacional. Dentre as responsabilidades fundamentais do educador, uma em especial é mais trabalhosamente específica e refere-se às possibilidades de estimular algum educando sobre algum conteúdo. Os educandos não são, apesar dos ditames 44 RABERNOT., 2016, p. 16-17. 45 Ibid., p. 17. 38 político-curriculares, padronizados e isso acaba por criar uma nova problemática frente à realidade do processo educacional como um todo. A subjetividade e os gostos particulares do aluno interferem em todo o processo educacional e cabe ao educador, enquanto agente fomentador dos estímulos e do aprendizado, instigar o educando diante do conteúdo. Essa realidade postula a adoção de uma proposta que disponha de diferentes formas para sensibilizar o educando, a fim de estabelecer certa rotatividade no que tange os estímulos e atividades, sejam com atividades práticas, oficinas interdisciplinares, conversas, gestos e métodos diferenciados, intentando uma maior abrangência do caráter subjetivo dos corpos- mentes que constituem uma sala de aula e a efetivação de uma abertura à potência do pensar e agir para uma quantidade maior de alunos. O educador, a partir de um processo interno de abertura às diversas formas de sensibilizar e atingir os educandos, conserva em si um princípio espinosano que é fundamental para a construção de um maior número de conhecimentos, além de alargar as possibilidades de transmitir conhecimento: o plura simul (aptidão ao múltiplo). É fundamentalmente necessário àquele que exerce o trabalho professoral que seja apto ao múltiplo e que tenha a capacidade de afetar os educandos de diversas maneiras. Porém, voltando à questão afetiva, também é responsabilidade do educador fustigar no educando uma maior abertura para as diferentes formas de sensibilização. Tornar o educando apto ao múltiplo é permitir que ele afete e seja afetado de diversas maneiras e, por corolário, isso expande suas possibilidades de aprendizado, uma vez que “é útil ao homem aquilo que dispõe seu corpo a poder ser afetado de muitas maneiras, ou que o torna capaz de afetar de muitas maneiras os corpos exteriores”46. Pode aparentar que o pensamento de Espinosa inferioriza a ideia tradicional de um professor e sua possível contribuição para a construção epistemológica de um aluno, porém é justamente o contrário. Partindo de uma idiossincrática racionalidade, cabe ao educador orientar, cuidar, refrear e estimular o educando enquanto ele transita na dinamicidade afetiva. Ademais, cabe a ele, o professor, ceder os instrumentos, e por instrumentos entende-se o próprio conhecimento, as ferramentas e os métodos de aprendizado, ao educando