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O SUJEITO ALIENADOR Thalita Faria Machado do Carmo Sandra Maria Baccara Araújo A ideia deste estudo surgiu com a demanda crescente de famílias que vêm buscando atendimento psicológico, em decorrência do sofrimento oriundo da vivência do processo de Alienação Parental. Decidimos dar um enfoque diferente para o trabalho, olhando principalmente para aquele que ocupa o lugar do agressor, ou seja, o alienador. Entendemos que não adianta tratar somente aqueles que são vítimas do processo, pois enquanto o alienador não receber a ajuda adequada, continuaremos cuidando apenas das consequências do processo sem olhar para as causas. Acreditamos que a eficácia e o real funcionamento das políticas públicas também poderiam atuar como prevenção nestes processos, tendo em vista que, se as famílias fossem de fato acompanhadas pelas políticas de saúde e educação, seria mais fácil identificar indícios de comportamentos alienantes e então, encaminhar estas famílias para tratamento antes que o processo se instale. Nosso intuito não é desresponsabilizar o agressor, mas sim oferecer uma escuta adequada para que ele possa ressignificar e elaborar o processo de separação conjugal. Segundo Trindade (2008;105), “a Alienação Parental exige uma abordagem terapêutica específica para cada uma das pessoas envolvidas, havendo a necessidade de atendimento da criança, do alienador e do alienado”. Muitos autores acreditam que o comportamento alienante, descontrolado e sem nenhuma ligação com a realidade surge com o processo de separação do casal. Porém, entendemos que são comportamentos que remetem a uma estrutura psíquica já constituída, manifestando-se de forma patológica quando algo sai do seu controle. De fato, estavam lá, não é a separação que os instaura, ela apenas os revela (SIMÃO, 2007). Neste estudo, utilizaremos a teoria winnicottiana do amadurecimento para entender quais foram as possibilidades de constituição psíquica de um genitor alienador que justificam o comportamento alienante. A ruptura da vida conjugal pode ocasionar no genitor alienador um sentimento de abandono, rejeição e traição, gerando uma grande tendência vingativa. Ao não elaborar adequadamente o luto da separação, estrutura-se um processo de destruição, desmoralização e descrédito do ex-cônjuge. Assim, ao ver o interesse do outro genitor em preservar a convivência com o filho, quer vingar-se, afastando o filho do genitor (DIAS, 2007). Winnicott (1958) escreveu um capítulo em seu livro “Privação e Delinquência” onde discute a reação à perda, a partir do texto “Luto e Melancolia” de Freud. Neste capítulo o autor afirma que para uma plena compreensão da angústia de separação existem palavras que devem ser relacionadas a outras, como por exemplo: a reação à perda deve ser relacionada com o desmame, com a aflição, com o luto e com a depressão. Não é a perda do objeto que determina a “doença”, e sim o estágio do desenvolvimento emocional, o momento de vida em que a perda ocorre. Quando essa ocorre num estágio do desenvolvimento emocional, no qual a criança ou o bebê ainda não são capazes de uma reação madura a ela, o ego não pode lamentar a perda, ou seja, sentir o luto. Assim, precisamos compreender a psicologia do luto para começar a entender a atuação de um genitor alienador (WINNICOTT, 1958). O luto, além de outras coisas, diz da maturidade do indivíduo. O processo do luto consiste em: sujeito à perda de um objeto o indivíduo introjeta este objeto, que será submetido ao ódio dentro do ego. Durante este processo, o indivíduo pode ser temporariamente feliz. O objeto ganha vida ao ser introjetado, mas existe mais ódio por vir e, mais cedo ou mais tarde, a depressão retorna, ou sem causa óbvia, ou em virtude de eventos fortuitos ou aniversários que recordam a relação com o objeto e voltam a ressaltar o fracasso deste, por ele ter desaparecido. Porém, o tempo e a saúde psíquica possibilitam que o objeto internalizado se liberte do ódio que no início era tão poderoso e, assim o indivíduo é capaz de ser feliz novamente, apesar da perda do objeto. Contudo, “é impossível um bebê, que não atingiu ainda um certo estágio de maturidade, seguir um processo tão complexo” (WINNICOTT, 1958; 150). Diante desta breve explicação do processo de luto, podemos examinar o tema da “de-privação” e discutir a atuação do alienador como uma consequência da perda atual (separação conjugal), que o remete a perda do objeto inicial de amor, no início do estágio de dependência relativa, onde ainda não era possível elaborar o luto, pois o bebê não estava preparado para se separar de seu objeto de amor e viver psiquicamente de forma independente. Assim, frente à incapacidade de um ego, ainda imaturo de elaborar o luto, podemos entender a dificuldade do alienador em lidar com a separação de outra forma, sendo a atuação, ou seja, deslocar para o meio a sua raiva e frustração, sua única saída. Entre os extremos das reações muito primitivas à perda e ao luto podemos observar clinicamente toda a sintomatologia do que Winnicott chamou de tendência antissocial (WINNICOTT, 1958). Partiremos do princípio defendido pelo autor de que a tendência antissocial se manifesta enquanto ainda existe um sentimento de esperança de reaver aquilo que foi perdido. Quando existe uma tendência antissocial, houve um verdadeiro desapossamento (não uma simples carência); quer dizer houve perda de algo bom que foi positivo, e que foi retirado (WINNICOTT, 1956). [...] a conduta anti-social visa a resgatar a mãe provedora perdida pelos sintomas nos quais ele vive maniacamente a fantasia do controle e domínio absoluto. Ele estaria tentando inconscientemente e de forma defensiva e atuadora quebrar todas as barreiras e superar quaisquer obstáculos para reaver o paraíso perdido. Um ato de apropriação à força do objeto primário, travestido pelos substitutos: ganho do controle, do poder, do dinheiro, da respeitabilidade. Um ato de anulação de qualquer reconhecimento da função paterna interditora – da lei (JUSTO, 2009; 71). Neste sentido, o processo de separação conjugal entraria como uma perda atual que remete o sujeito a momentos iniciais de seu desenvolvimento emocional onde ele não foi capaz de lidar com a perda do objeto. Diante da imaturidade egóica e da dificuldade de lidar com a perda, o sujeito regride e atua com um gesto de esperança de resgatar o ‘paraíso perdido’. Trindade (2008) afirma que a alienação parental pode ser uma tentativa desesperada de busca de equilíbrio, uma vez que mobiliza familiares, amigos, vizinhos, profissionais e as instituições judiciais, existindo sempre a fantasia de que estas pessoas, de alguma maneira, irão re-estabelecer a homeostase familiar que foi perdida. ... o sujeito provoca reações ambientais totais, como se buscasse um sistema cada vez mais amplo, um círculo que teria tido como seu primeiro exemplo os braços ou o corpo da mãe. Uma série pode ser discriminada – o corpo da mãe, os braços da mãe, a relação parental, o lar, a família, incluindo primos e parentes próximos, a escola, a localidade com suas delegacias de polícia, o país com suas leis (WINNICOTT,1956; 505). Winnicott (1956; 503), conclui então que “a tendência antissocial se caracteriza por possuir um elemento que compele o meio ambiente a ser importante. O paciente, através de impulsos conscientes, força alguém a se encarregar de seu manejo”. “A manifestação da tendência antissocial inclui o roubo e a mentira, a incontinência e a destrutividade” (WINNICOTT, 1956; 506). Contudo, discutiremos tal manifestação apenas sob as duas perspectivas mais importantes, mesmo que por vezes uma prevaleça sobre a outra. Uma delas é representada tipicamente pelo roubo e a outra pela destrutividade. Ao impedir que o outro genitor tenha acesso aos filhos, podemos fazer uma analogia e, dizerque o alienador “rouba” tanto dos filhos quanto do outro genitor o direito de convivência. Uma das características do alienador é fazer de tudo para subtrair o ex-cônjuge da vida dos filhos, favorecendo a ocorrência de situações em que este último acabe por se sentir humilhado e impotente, achando que não tem mesmo condições de criar e educar satisfatoriamente os filhos e, com muito sofrimento, muitas vezes, desaparece como uma forma de evitar a angústia que o contato com a prole lhe provoca” (DUARTE, 2009; 15). Para tanto, o alienador não mede esforços, é capaz de mentir com o objetivo de “destruir” o outro não só para os filhos, como também, para si mesmo e para os demais envolvidos no processo de separação como é o caso de familiares, amigos e profissionais que estejam auxiliando no processo. O alienador não respeita as regras e costuma não obedecer às sentenças judiciais. Presume que tudo lhe é devido e que as regras são só para os outros. É às vezes sociopata e sem consciência moral. É incapaz de ver a situação de outro ângulo que não o seu e especialmente o ponto de vista e interesse dos filhos são ignorados. Não distingue a diferença entre dizer a verdade e mentir. Deixar os filhos em contato com o outro genitor ou mesmo qualquer outra pessoa é para ele como arrancar parte de seu corpo, sendo muito convincente no seu desamparo e nas suas descrições quanto ao mal que lhe foi infligido e às crianças pelo genitor alvo. Consegue muitas vezes fazer as pessoas envolvidas com seu caso acreditarem nele. (MOTTA, 2007; 43). Desta forma, acreditamos que o genitor alienador é o produto de um sistema ilusório, criado por ele mesmo, onde ele se orienta completamente para a destruição da relação dos filhos com o outro genitor (DARNALEL apud MOTTA, 2007). O alienador passa em alguns momentos por uma dissociação com a realidade e acredita naquilo que criou sozinho. E o pior, faz com que os filhos também acreditem, sintam e sofram com algo que não existiu, exprimindo emoções falsas”. (SIMÃO, 2007; 30). Paradoxalmente, ao impedir o convívio do genitor não-guardião com os filhos, o guardião alienador pode acusá-lo de negligência, projetando nos filhos todas as suas revoltas e dessa maneira deixar cada vez mais afastado o(a) ex-parceiro(a) da prole, Pode-se indagar se o alienador, ao atacar o(a) cônjuge com verbalizações negativas e destrutivas não estaria projetando no outro seus próprios sentimentos de desvalorização, de perdas não suficientemente elaboradas, ou reeditando situações da infância mal resolvidas (DUARTE, 2009; 16). “O relacionamento desses genitores que tentam destruir o vínculo de seu ex-parceiro, com seus filhos, é frequentemente caracterizado nos registros parciais, ou no relato de testemunhas, como extremamente controlador e simbiótico”. (MOTTA, 2007; 45). Este funcionamento simbiótico nos remete, mais uma vez, a um estágio primitivo do desenvolvimento emocional onde o bebê ainda não era capaz de reconhecer o objeto externo, vivendo num estado fusional com a mãe. Como já afirmamos anteriormente, o alienador possui um ego imaturo que de alguma forma se encontra ‘preso’ a processos referentes ao início do estágio de dependência relativa. Assim, atualiza na relação com seus filhos a simbiose da qual não conseguiu se livrar na relação com sua mãe. Major também enfatiza que para o genitor ‘alienador’ ter o controle total de seus filhos é uma questão de vida ou de morte. Esse genitor alienador não é capaz de individualizar, de reconhecer os filhos como seres humanos separados de si mesmo (MOTTA, 2007; 43). A simbiose é clara quando ao exame de determinadas situações encontramos crianças incapazes de autonomia no fazer e no pensar, reportando-se para tudo e a todos os momentos ao genitor alienador que funciona como um ‘ego auxiliar’ sem o qual essas crianças parecem incapazes de sobreviver (MOTTA, 2007; 45). Outro fator que também nos remete ao estágio de dependência relativa é a ausência de culpa do alienador, mesmo diante do sofrimento dos filhos. Ao contrário do esperado, existe um sentimento de alegria e vitória diante do fato de manter seus filhos afastados do genitor que está sendo alienado. As atitudes do alienador revelam que os sentimentos que lhe sobressaem são a alegria, o triunfo, a vitória sobre o derrotado genitor ‘alvo’. Parecem não sentir culpa pela dor deste e nem mesmo pela dor causada aos filhos pela situação ansiogênica e emocionalmente difícil de ter de negar-se a estar com o outro genitor (MOTTA, 2007; 48). Winnicott (1963a; 74) explica a ausência do sentimento de culpa enquanto um “fracasso da mãe-objeto em sobreviver ou da mãe-ambiente em prover oportunidades consistentes para a reparação”. Ou seja, no período em que a criança destrói o objeto, sua tentativa de reparar o dano causado não é reconhecida. Desta forma, a criança pode se inibir diante de seus impulsos, assim como pode perder a capacidade de sentir culpa, o que gera uma cisão em sua personalidade total (KAMINSKI, 2008). O processo que torna o bebê capaz de sentir culpa faz parte do relacionamento a duas pessoas entre o lactente e a mãe ou a substituta da mãe. Ou seja, este estágio é anterior ao complexo de Édipo, que envolve um relacionamento a três pessoas. Assim podemos pensar na tentativa de destruir o outro genitor enquanto uma maneira de permanecer em uma relação dual com os filhos, caracterizada pelo fato de que o alienador “já não escuta seus filhos, não considera o sentimento deles, nem possibilita a manifestação de suas subjetividades. É como se os filhos não existissem enquanto sujeitos, posto que não possam desejar para além do alienador” (SIMÃO, 2007; 31). O alienador acredita, mesmo que inconscientemente, poder formar entre ele e o filho uma díade completa, onde nada falta, privando a criança do contato, até mesmo de manifestar sentimentos e percepções. Esta completude precisa ser quebrada, para que a criança possa desejar além do alienador, sob pena de se cair numa psicose, pois se nada falta, o que buscar? (SIMÃO 2007; 03). Concluindo, podemos pensar que, na concepção do alienador, a relação conjugal trazia em si a díade formada pelo casal e filhos. Com a separação do casal a relação deixa de ser dual e passa a ser triangular, uma vez que o casal se divide em dois genitores. O genitor alienador, diante de sua fragilidade egóica, causada por uma perda prematura no seu processo de desenvolvimento, não suporta a cisão e tenta a qualquer custo excluir o ex- cônjuge da relação, mantendo uma díade entre ele e os filhos, caracterizando então o processo de alienação parental. SEPARAÇÃO ALIENAÇÃO CASAL FILHOS GENITOR GENITOR FILHOS Assim, diante da concepção winnicottiana de que a tendência antissocial implica esperança, entendemos a alienação parental enquanto um comportamento antissocial que não deixa de ser uma demonstração de esperança do alienador em recuperar uma experiência que foi positiva e foi perdida. Enfatizamos a idéia de que o entendimento de que o ato antissocial é uma expressão de esperança é vital para o tratamento de pessoas com comportamentos antissociais. Dessa forma, este estudo chama a atenção para a importância de perceber que a Alienação Parental é um pedido de ajuda do alienador, que neste momento precisa de limites, mas também precisa ser ouvido e acolhido em seu sofrimento. Mais uma vez, ressaltamos o fato de que não queremos com este estudo justificar o comportamento alienante, e sim compreendê-lo para poder tratá-lo de forma adequada, prevenindo danos maiores às famílias em processo de separação conjugal em que a Alienação Parental se torna uma arma. GENITOR GENITOR FILHOS GENITOR + FILHOS GENITORGENITOR FILHOS Olhar para um agressor por um ângulo diferente do senso comum é sempre um desafio. Contudo, é preciso lembrar que por trás da agressão cometida existe sempre um sujeito que também precisa de ajuda. Não estamos defendendo a impunidade, mesmo porque, entendemos que o limite imposto pela punição, quando bem aplicada, pode contribuir para o tratamento. Nesse sentido concluímos que a Alienação Parental pode ser compreendida como um comportamento antissocial do genitor alienador, entendendo que o ato de alienar é um gesto de esperança, vivido através de comportamentos bastante primitivos. Em suas raízes, o sujeito busca recuperar algo bom que foi perdido durante o seu processo de desenvolvimento emocional primitivo. BIBLIOGRAFIA DIAS, Maria Berenice. Síndrome da Alienação Parental. O que é isso? In: APASE. Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião. Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2007, p. 11-14. DUARTE, Lenita. A guarda dos filhos na família em litígio. 3a. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. JUSTO, JOSÉ STERZA; BUCHIANERI, Luis Guilherme Coelho. A constituição da Tendência Anti-Social segundo Winnicott – Desafios Teóricos e Clínicos. In: Outeiral, José. Winnicott Seminários de Campinas. Rio de Janeiro: Revinter, 2009 p. 59-77. KAMINSKI, Rui Aragão. Contribuições do Pensamento de Winnicott para o Sentido e a Prática de Atividades Musicais na Educação Infantil. Monografia (Licenciatura). Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. 2008. MOTTA, Maria Antonieta Pisano. A Síndrome da Alienação Parental. In: APASE. Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião. Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2007, p. 40-72. SIMÃO, Rosana Barbosa Cipriano. Soluções Judiciais Concretas contra a Perniciosa Prática da Alienação Parental. In: APASE. Síndrome da Alienação Parental e a Tirania do Guardião. Aspectos Psicológicos, Sociais e Jurídicos. Porto Alegre: Equilíbrio, 2007, p. 15-28. TRINDADE, Jorge, Síndrome da Alienação Parental (SAP). In: DIAS, Maria Berenice. Incesto e Alienação Parental: Realidades que a justiça insiste em não ver. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 101-111. WINNICOTT, D. W. Preocupação Materna Primária (1956). In: Textos Selecionados da Pediatria à Psicanálise. 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