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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO NÍVEL MESTRADO MATHEUS COSTELLA MENEGUSSI TÍTULO: O DESCAMINHO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL E A NECESSIDADE DE DIÁLOGOS INTERINSTITUCIONAIS São Leopoldo 2019 MATHEUS COSTELLA MENEGUSSI TÍTULO: O DESCAMINHO DAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE SAÚDE NO BRASIL E A NECESSIDADE DE DIÁLOGOS INTERINSTITUCIONAIS Trabalho apresentado para a disciplina de Estado e Administração Pública, pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, ministrada pela professora Têmis Limberger. São Leopoldo 2019 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 5 2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS ................................... 7 3 BASES NORMATIVAS DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL .............................. 16 4. DIÁLOGOS INTERINSTITUCIONAIS: UMA TENTATIVA DE RESOLUÇÃO NÃO JUDICIAL DOS CONFLITOS NA ÁREA DA SAÚDE .............................................. 19 4.1 COMITÊ EXECUTIVO NACIONAL E ESTADUAL DA SAÚDE ......................... 19 4.2 CÂMARA DE CONCILIAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE PÚBLICA ................ 30 5 A DESCENTRALIZAÇÃO DAS INSTÂNCIAS DE DIÁLOGO: UM NOVO HORIZONTE DE PERSPECTIVA AOS MUNICÍPIOS .............................................. 33 6 CONCLUSÃO ........................................................................................................ 36 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 38 RESUMO A incapacidade de o Estado garantir à população o acesso aos serviços na área da saúde tem levado a crescente busca de decisões judiciais para assegurar esse direito fundamental previsto na Constituição Federal de 1988. Diante desse quadro, o objetivo do presente trabalho é investigar em que medida estratégias extrajudiciais de índole preventiva podem contribuir para reduzir a judicialização da saúde no Brasil, a exemplo da criação dos comitês de saúde, da adoção de câmaras de conciliação da saúde e do reforço dos diálogos interinstitucionais entre entidades, como Defensoria Pública, Ministério Público, Secretaria de Saúde e Núcleos de Apoio Técnico dos tribunais. Palavras Chave: Dialogo Interinstitucional. Judicialização da Saúde. Processo Judicial. ABSTRACT The inability of the state to guarantee access to health services for the population has led to the increasing search for judicial decisions to guarantee this fundamental right provided for in the Federal Constitution of 1988. Given this scenario, the objective of the present paper is to investigate to what extent Extrajudicial preventive strategies can help reduce the judicialization of health in Brazil, such as the creation of health committees, the adoption of health conciliation chambers and the strengthening of interinstitutional dialogues between entities such as the Public Defender, the Public Prosecution Service, the Secretariat. Health Centers and Technical Support Centers. Keywords: Interinstitutional Dialogue. Judicialization of Health. Judicial Process. 5 1 INTRODUÇÃO O direito à saúde deixou de ser apenas uma norma programática e passou a ser considerado como uma norma de eficácia plena, passível de ser tutelado judicialmente, possibilitando, a intervenção do Poder Judiciário no sentido de determinar à Administração Pública o fornecimento gratuito de medicamentos, prestação de assistência médica e hospitalar e outros procedimentos terapêuticos em geral, em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Nos últimos anos, porém, contata-se que “o protagonismo desenfreado e excessivo do Judiciário tem ocasionado incertezas e contradições no sistema”1, colocando em risco a “própria continuidade das políticas de saúde pública, desorganizando a atividade administrativa e impedindo a alocação racional dos escassos recursos públicos”2. A exceção à regra (descaminho) tornou-se o modus ordinário; o córrego por onde deveriam passar águas rasas deu lugar a um longo rio de águas caudalosas. Hoje, sem dúvida, tem-se a clareza “de que a judicialização da política não resolveu o problema da eficácia dos direitos sociais, em especial do direito à saúde”3 e fomentou a necessidade de repensar o fenômeno partindo de arranjos não judiciais de solução de conflitos. Parte-se da premissa de que a judicialização possa funcionar como um alarme de incêndio aos gestores, sinalizando os principais problemas de acesso ao sistema de saúde, demonstrando não apenas falhas na prestação dos serviços, mas também a dificuldade que os cidadãos têm de compreender os caminhos institucionais do Sistema Único de Saúde. Nesse sentido, consideram-se possíveis medidas para (des)judicializar a saúde: a criação dos comitês de saúde, a adoção de câmaras de conciliação da 1 MARTINI, Sandra Regina; MACHADO, Clara. Desjudicialização da Saúde, Diálogos Interinstitucionais e Participação Social: em busca de alternativas para o sistema. Revista Estudos Institucionais, v. 4, n. 2, 2018, p. 776. Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/190. Acesso em: 11 de junho de 2019. 2 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 3 MARTINI, Sandra Regina; MACHADO, Clara. Desjudicialização da Saúde, Diálogos Interinstitucionais e Participação Social: em busca de alternativas para o sistema. Revista Estudos Institucionais, v. 4, n. 2, 2018, p. 776. Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/190. Acesso em: 11 de junho de 2019. 6 saúde e o reforço dos diálogos interinstitucionais entre entidades, como Defensoria Pública, Ministério Público, Secretaria de Saúde e Núcleos de Apoio Técnico dos tribunais. Este artigo pretende demonstrar que a adoção desses mecanismos, além de propiciar a prevenção de demandas evitáveis, diminuindo-as, atribui especial importância ao acesso qualitativo à justiça, porquanto “leva em conta não apenas os resultados adequados do processo, mas, preferencialmente, a satisfação das pretensões por vias extrajudiciais e consensuais de atuação”.4 E, quando eleita a via judicial, conduz a pretensão do demandante a níveis mais adequados de parametrização, primeiro, pela escolha correta de o ente federado a compor o polo passivo da relação processual e, segundo, em razão de que o juiz poderá dispor de instrumental técnico ou de informação para levá-lo a decidir sem desencadear amplas distorções no sistema da política pública, globalmente considerado. Para tanto, com o objetivo de desenvolver o tema proposto, o artigo será assim estruturado: a partir desta introdução, o tópico 2 discutirá a judicialização das políticas públicas, com ênfase no direito à saúde, abordando os sintomas desse fenômeno na atualidade. O tópico 3 traçará as bases normativas do direito à saúde no Brasil, conforme previsto na Constituição Federal de 1988, fazendo um rápido histórico da criação do SUS – Sistema Único de Saúde como parte deste preceito constitucional. O tópico 4 abordará os diálogos interinstitucionais como formas (mais) efetivas de se concretizar o direito à saúde, também preventivamente, e será subdivididoem dois sub-tópicos: 4.1 que tratará do Comitê Executivo Nacional e Estadual da Saúde e 4.2 que disporá acerca das Câmaras de Conciliação em matéria de saúde pública; ambos identificarão as composições, as áreas de atuação e os objetivos desses mecanismos; O tópico 5 desafiará o papel dos municípios na descentralização das instâncias de diálogo, abrindo novos horizontes de perspectivas para auxiliar os gestores na efetivação da política de saúde local. Por fim, será apresentada a conclusão. O método de pesquisa utilizado para realização deste artigo foi o dedutivo, exercido a partir da análise de dados estatísticos e pesquisa bibliográfica e documental. 4 SCHULMAN, Gabriel; DA SILVA, Alexandre Barbosa. (Des)judicialização da saúde: mediação e diálogos interinstitucionais. Revista Bioética, v. 25, n. 2, 2017, p. 295. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/1365 Acesso em: 11 de junho de 2019. 7 2 A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS No Brasil, a constitucionalização dos direitos de “segunda geração” ocorreu somente no século XX, por meio da Carta Constitucional de 1934.1 Naquele período, no entanto, ditos direitos longe estavam de apresentar efetiva materialização. Apesar de reconhecidos no texto legal, na prática, não redundavam em proteção ou melhoria da qualidade de vida das pessoas, porquanto tinham baixa normatividade e eficácia reduzida.2 Esse cenário veio a se agravar, ainda mais, no período de 1964 a 1985, com a instalação dos sucessivos governos militares no país. Nesse sentido, merece registro a contribuição de Luiz Werneck Vianna: O regime militar, se trouxe o resultado de uma nova onda expansiva do capitalismo brasileiro, produziu também, do ponto de vista da sociabilidade e da vertebração associativa, uma verdadeira lesão no tecido social, aprofundando a atitude de indiferença política da população, e dificultando, pela perversão individualista, a passagem do individuo ao cidadão, especialmente no caso dos setores subalternos do campo, que passaram a ocorrer em massa aos polos urbanos-industriais, onde chegavam destituídos de direito e de proteção das politicas públicas.3 O Poder Constituinte de 1988, face aos enormes desafios do Poder Público na área social e no intuito de fazer avançar o projeto de democratização do país, inseriu uma vasta gama de direitos sociais fundamentais na Carta Constitucional, que foram assegurados como garantia do cidadão e veiculados em normas que constituem direitos diretamente aplicados (artigo 5º, §1º, da Constituição Federal). Vanice Lírio do Valle esclarece que: A Constituição de 1988 se apresentava – muito embora, à época, disso não cogitasse a comunidade acadêmica – como verdadeira manifestação de constitucionalismo de transição. A proposta, mais do que viabilizar a transição política, era de construir o caminho para a reversão de um quadro perverso em que, ainda que não se tivesse experimentado a barbárie do apartheid ou do genocídio, tinha à sua frente a tarefa de resgate de um expressivo débito social para com os excluídos.4 1 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 19. 2 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 19. 3 WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p.152-153. 4 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 19. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 8 Foram elencados em dois títulos independentes: (i) direitos e garantias fundamentais: significa que eles são parte essencial daquilo que o Estado deve garantir a seus indivíduos (artigo 6º); (ii) ordem social: trata-se da necessidade de estabelecer uma sociedade capaz de perpetuar-se ao longo do tempo de maneira harmônica (artigos 190-230). Apesar de possuírem aplicação imediata e de determinarem “de per si um direito subjetivo em favor do cidadão”5, os direitos sociais do trabalho (artigo 6º), educação (art. 205), moradia, saúde, cultura e assistência social (artigo 203) “dependem, na sua atualização, da satisfação de uma série de pressupostos de índole econômica, política e jurídica”6 para serem concretizados. O que significa dizer que esses direitos devem ser formulados, implementados e mantidos por meio de políticas sociais impulsionadas pela composição dos orçamentos financeiros da União, dos Estados e dos Municípios. Com especial enfoque ao direito à saúde, a Constituição Federal de 1988 prevê no seu artigo 196, que a sua garantia dependerá de políticas sociais e econômicas, senão vejamos: Art. 196: A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. A fim de melhor elucidar o assunto, o termo política pública significa a conduta da Administração Pública voltada à “consecução de programa ou meta previsto em norma constitucional ou legal, sujeita ao controle jurisdicional no tocante à eficiência dos meios empregados e à avaliação dos resultados alcançados”.7 Isso fica ainda mais claro no Estado Social de Direito, em que a lei não representa um fim em si mesmo, mas um instrumento – caminho – para se alcançar o telos desejado por meio de condutas positivas, de acordo com as 5 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 4. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 6 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 21. 7 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 32. 9 “correspondentes responsabilidades administrativas e políticas atribuídas ao Estado e aos seus agentes”.8 No papel, toda política social funciona perfeitamente; no juízo deontológico do dever-ser todas as configurações sociais, as obrigações impostas e as condutas planejadas parecem profícuas e altamente resolutivas; na prática, porém, nem sempre é fácil e possível tornar o ideário realidade concreta, sobretudo em sociedades complexas e estratificadas com níveis de desigualdade de diversos gêneros, a exemplo da brasileira. Nos dias atuais, o Estado está cada vez mais distante de cumprir seu papel de provedor das demandas sociais, sobretudo em áreas essenciais como saúde e assistência social - com ênfase às políticas preventivas de saneamento básico (acesso à coleta e ao tratamento de esgoto, à água potável, combate a agentes patológicos etc.). Vejamos os indicadores abaixo. Não obstante o Brasil ocupe a nona colocação entre os dez países com a maior economia do mundo e possua uma constituição avançada a respeito dos direitos sociais, dados do IBGE9 apontam que: Segundo a linha de pobreza proposta pelo Banco Mundial (até R$ 406 por mês), a proporção de pessoas pobres no Brasil variou de 25,7% da população em 2016 para 26,5% em 2017. Em números absolutos, esse contingente passou de 52,8 milhões para 54,8 milhões de pessoas, no período. Já o contingente de pessoas com renda inferior a R$ 140 por mês, que estariam na extrema pobreza de acordo coma linha proposta pelo Banco Mundial, representava 6,6% da população do país em 2016, que passou para 7,4% em 2017. Em números absolutos, esse contingente aumentou de 13,5 milhões em 2016 para 15,2 milhões de pessoas em 2017. Em 2017, mais de um terço (35,9%) da população tinha restrição de acesso ao serviço de esgotamento sanitário por rede coletora ou pluvial. O Piauí registrou a maior proporção da população com essa restrição, 91,7%. Já a ausência de coleta direta ou indireta de lixo atingiu 10,0% da população, e 15,1% do total de pessoas não era abastecida por rede geral de água. Uma 8 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. 2001, p. 731 apud. KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 32. 9 Análise das condições de vida da população brasileira, IBGE/2018. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c 2542b0.pdf. Acesso em: 06 de julho de 2018. https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/media/com_mediaibge/arquivos/ce915924b20133cf3f9ec2d45c2542b0.pdf 10 proporção de 37,6% residia em domicílios onde faltava ao menos um desses serviços de saneamento básico. Em relação ao abastecimento de água por rede, a maior restrição foi em Rondônia (54,0%). A maior restrição à coleta de lixo foi no Maranhão (32,7%). Os indicadores analisados demonstram que, no Brasil, mais de 70 milhões de pessoas não recebem atendimento de mínima qualidade em serviços públicos básicos, vivem em condições precárias, alimentam-se mal ou passam fome. Sem sombra de dúvidas, esses dados alarmantes refletem diretamente nas condições de saúde da população de baixa renda, haja vista que inúmeras doenças se originam e se proliferam em razão da ausência de água e de esgotamento adequados, como diarreias – que afetam principalmente as crianças – hepatite A e febres entéricas.10 Isso nos leva a refletir sobre o evidente insucesso do estado brasileiro como provedor das promessas constitucionais para a vasta maioria da sua população - e, por consequência -, sobre as possibilidades e consequências de os cidadãos constitucionalizarem seus direitos subjetivos11, a fim de que o Poder Judiciário possa exigir a sua implementação em face dos poderes Executivo e Legislativo. Constitucionalizar, segundo Luís Roberto Barroso, “é, em última análise, retirar um tema do debate político e trazê-lo para o universo das pretensões judicializáveis”.12 Nas razões trazidas por Andreas Joachim Krell13: Na medida em que é menor o nível de organização e atuação da sociedade civil para participar e influenciar na formação da vontade política, aumenta a responsabilidade dos integrantes do Poder Judiciário na concretização e no cumprimento das normas constitucionais, especialmente as que possuem uma alta carga valorativa e ideológica. Em prestigio à força normativa da Constituição, os magistrados devem tomar para si a corresponsabilidade de fazer o dever de casa de outros poderes estatais, 10 LIMBERGER, Têmis. Saneamento: remédio preventivo em políticas públicas de saúde. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 71, jan./abr. 2002, p. 70. Disponível: https://www.amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/arquivo_1342124364.pdf Acesso em: 06 de julho de 2019. 11 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 20. 12 BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: direito e política no Brasil Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito – UERJ, Rio de Janeiro, v. 2, nº 21, jan./jun., 2012, p. 6. Disponível em: https://www.e- publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/1794 Acesso em: 06 de julho de 2019. 13 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 70. 11 “tendo que orientar a sua atuação para possibilitar a realização de projetos de mudança social, o que leva à ruptura com o modelo jurídico subjacente ao positivismo”14, de modo a reduzir as desigualdades sociais. Com peculiar destreza, Andreas Joachim Krell adverte, contudo: Em princípio, o Poder Judiciário não deve intervir em esfera reservada a outro Poder para substituí-lo em juízos de conveniência e oportunidade, querendo controlar as opções legislativas de organização e prestação, a não ser, excepcionalmente, quando haja uma violação evidente e arbitrária, pelo legislador, da incumbência constitucional.15 Acertadamente, a nosso ver, o autor ressalta o termo ‘excepcionalmente’ quando sugere que a atuação do Terceiro Poder deve ocorrer com parcimônia e cautela, apenas se justificando quando restar provado que os poderes legalmente investidos para garantir o cumprimento racional dos preceitos constitucionais (Legislativo e Executivo) não forem capazes de fazê-lo em benefício do cidadão. Disso resulta a compreensão da ideia de descaminho, que nada mais é senão a via de exceção da intervenção direta do Poder Judiciário em casos de omissões constitucionais. No intuito de contextualizar o tema, convém trazer à baila que esse fenômeno da judicialização da política16 já foi abordado de maneira precursora, no final do século XIX, por Luiz Werneck Vianna, autor influente no campo da teoria social, que teve a perspicácia de compreender as mutações na organização e no funcionamento das instituições contemporâneas, sobretudo após a nova institucionalização da democracia política, notadamente em questões envolvendo a efetividade da Carta em relação a seus compromissos valorativos. Segundo o autor: 14 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 73-74. 15 KRELL, Andreas Joachim. Direitos Sociais e controle judicial no Brasil e na Alemanha: os (des)caminhos de um direito constitucional “comparado”. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 22. 16 Segundo Luís Roberto Barroso, o termo judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas tradicionais, que são o Legislativo e o Executivo. (...) No Brasil, o fenômeno assumiu proporção ainda maior em razão da constitucionalização abrangente e analítica. (BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: direito e política no Brasil contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, Rio de Janeiro, v. 2, n. 21, p. 1- 50, jan./jun. 2012, p. 5). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/1794 Acesso em: 06 de julho de 2019 12 A expansão do direito e do Poder Judiciário, em uma sociedade que jamais conheceu, de fato, a liberdade, se reveste, portanto, de uma dupla inspiração. De um lado, nasce, como em outros contextos nacionais contemporâneos, da ocupação de um vazio deixado pela crise das ideologias, da família, do Estado e do sistema da representação; de outro, reitera uma prática com raízes profundas na história brasileira, em que o direito, como instrumento de ação de uma intelligentsia jurídica, se põe a serviço da construção da cidadania e da animação da vida republicana.17 Já naquela época, a invasão da política e da sociedade pelo direito, e o próprio gigantismo do PoderJudiciário, coincidiram com o “desestimulo para um agir orientado para fins cívicos; o juiz e a lei tornando-se as derradeiras referências de esperança para indivíduos isolados e socialmente perdidos”.18 Retomando as rédeas do tempo presente, decorridas mais de três décadas de vigência constitucional do Brasil redemocratizado, a questão principal continua sendo a busca pela efetividade dos direitos19, porém, agora ela passa a ser relacionada com outro fenômeno, cuja importância é peculiar neste ensaio: a excessiva judicialização dos direitos subjetivos, com especial relevo na área da saúde e no fornecimento de medicamentos. Para ilustrar melhor a questão, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o número de demandas judiciais relativas à saúde aumentou 130% entre 2008 e 2017, enquanto o número total de processos judiciais cresceu 50%. Em sete anos, houve um crescimento de aproximadamente 13 vezes nos gastos do Ministério da Saúde com demandas judiciais, atingindo R$ 1,6 bilhões em 2016. 20 Com base no ano de 2011, foram distribuídos 240.98021 processos judiciais referentes a demandas na área da saúde, enquanto em 2014, esse número saltou 17 WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p.153. 18 WERNECK VIANNA, Luiz. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. p. 15-44. 19 LIMBERGER, Têmis. Políticas públicas e o direito à saúde: a busca da decisão adequada constitucionalmente. In: STRECK, Lenio Luiz, MORAIS, José Luís Bolzan de. (orgs.). Constituição, Sistemas Sociais e Hermenêutica. Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos, São Leopoldo: Livraria do Advogado, 2009, cap. IV, p. 53-70, p. 53. 20 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 13. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 21CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Brasil tem mais de 240 mil processos na área de saúde. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/56636-brasil-tem-mais-de-240-mil-processos-na- area-de-saude> Acesso em 07 de julho de 2019. 13 para 392.92122. Em apenas um ano depois, em 2015, a quantidade mais que duplicou, alcançando a marca de 854.50623 processos judiciais. O descaminho, citado por Andreas Joachim Krell, realmente foi levado a efeito pelo Poder Judiciário, que “ocupou um lugar central na equação política do poder, tendo em conta o empoderamento dos direitos fundamentais”24, acarretando com isso “sérios reflexos no planejamento das ações das distintas entidades federadas, para não falar nos riscos democráticos e mesmo de politização da justiça”.25 A exceção que se afigurava como recurso último para o impasse de implementação da Constituição Cidadã vem se tornando o modo ordinário de sua aplicação.26 Outrossim, a esmagadora maioria das demandas judiciais que veiculam prestações em saúde “envolvem a solução de casos singulares, que, por isso mesmo, tendem a não se revelar significativos no seu potencial de promover, efetivamente, as desejadas transformações sociais”27, vez que o consenso acaba “resumindo àquele determinado individuo beneficiado pela decisão judicial, sem alcançar todos os demais eventualmente na mesma situação, igualmente merecedores de prestação por parte do Estado”.28 Acrescenta-se, ainda, o fato de serem instruídas e julgadas de acordo com o processo interno de compreensão de cada juiz, “que permite superar quaisquer argumentos que se oponham àquilo que se acredita seja a concretização de direitos fundamentais”29, deixando-se de lado questões de acentuada importância como a alocação racional dos escassos recursos orçamentários por parte dos poderes públicos (princípio da reserva do possível). 22 Disponível: http://www.cnj.jus.br/imagens/programas/forumdasaude/demandasnostribunaisforumSaude.pdf Acesso em 07 de julho de 2019. 23 Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/pj-justica-em-numeros> Acesso em 07 de julho de 2019 24 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 4. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 25 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 5. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 26 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 19. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 27 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 17. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. 28 CHAVES, Vinícius Figueiredo. Possibilidades e Riscos da Judicialização da Política para a Consolidação Democrática Brasileira. Revista Direitos Humanos e Democracia, Editora Unijuí, ano 1, n. 1, jan./junho. 2013. p. 116-146, p. 138. Disponível em: <http://revistas.unijui.edu.br>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 29 VALLE, Vanice Regina Lírio do. Judicialização das Políticas Públicas no Brasil: até onde nos podem levar as asas de Ícaro, p. 17. Original cedido pelo autor. No prelo para publicação. http://www.cnj.jus.br/imagens/programas/forumdasaude/demandasnostribunaisforumSaude.pdf 14 O contexto é bastante preocupante e pode chegar ao ponto de colocar em “risco a própria continuidade das políticas de saúde púbica, desorganizando a atividade administrativa”.30 Corrobora o exposto o entendimento abordado por Lenio Luiz Streck: (...) a análise das demandas individuais, desvinculadas do contexto sistemático do SUS e da análise constitucional, que conjuga os aspectos dos direitos sociais com os dispositivos orçamentários conduz a decisões judiciais solepsista.31 Alexandre Barbosa da Silva e Gabriel Schulman enfatizam que: Os orçamentos foram completamente dilacerados com a impossibilidade de previsão de valores a serem dispendidos com essas determinações provenientes da judicialização. Os custos dos processos são exorbitantes em todos os níveis, desde os valores como multas por atraso, custas, honorários e demais despesas do processo.32 Desse modo, ao que nos parece, o fenômeno em si da excessiva judicialização da saúde (medicamentos, consultas, internações/tratamentos hospitalares, leitos em UTI, saúde mental etc.) é apenas um dos lados da moeda, que necessita de atenção e cuidados; o outro lado, a nosso ver, mais relevante, é o modo pelo qual o Poder Judiciário, por meio dos seus órgãos, está levando a cabo a judicialização das ações. Explica-se: o ativismo judicial33 do juiz vai ao encontro da excessiva judicialização, quando, por exemplo, defere um pedido judicial de bloqueio para 30 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 2007, p. 4. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 31 STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 104. 32 SCHULMAN, Gabriel; DA SILVA, Alexandre Barbosa. (Des)judicialização da saúde: mediação e diálogos interinstitucionais. Revista Bioética, v. 25, n. 2, 2017, p. 296. Disponível em: http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/1365Acesso em: 11 de junho de 2019. 33 No entendimento de Luís Roberto Barroso, o ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance (...). O oposto do ativismo é a autocontenção judicial, conduta pela qual o Judiciário procura reduzir sua interferência nas ações dos outros Poderes. A principal diferença metodológica entre as duas posições está em que, em princípio, o ativismo judicial legitimamente exercido procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, inclusive e especialmente construindo regras específicas de conduta a partir de enunciados vagos (princípios, conceitos jurídicos indeterminados). Por sua vez, a autocontenção se caracteriza justamente por abrir mais espaço à atuação dos poderes políticos, tendo por nota fundamental a forte deferência em relação às ações e omissões desses últimos. (BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia 15 aquisição de um medicamento, cuja dispensação é regular e o fornecimento está disponível na farmácia básica do Município (de acordo com o Sistema de Administração de Medicamentos - AME), bastando que seja requerido pelo paciente na via administrativa. Em casos como esse, a postura do magistrado deveria ser a de autocontenção judicial e não a de ativismo, vindo a contribuir com a diminuição de casos em que a judicialização seja evitável. O Poder Judiciário, consoante Luís Roberto Barroso: Não deve querer ser mais do que pode ser, presumindo demais de si mesmo e, a pretexto de promover os direitos fundamentais de uns, causar grave lesão a direitos da mesma natureza de outros tantos. Na frase inspirada de Gilberto Amado, querer ser mais do que se é, é ser menos.34 Nesse cenário, faz-se necessário repensar essa sistemática, trazendo à tona um cenário de alternativas concretas à desjudicialização da saúde, envolvendo um diálogo de arranjos interinstitucional entre os poderes, seus órgãos e gestores do Sistema Único de Saúde, numa tomada de decisão inteligente e aberta, apta a prevenir causas, superar dificuldades jurídicas comunicacionais e coibir iniquidades. Nessa perspectiva: (...) na judicialização da saúde o juiz tem que intermediar um conflito que não é jurídico, envolvendo a decisão política de fazer ou não fazer, a questão da gestão do sistema, as possibilidades de itinerário dentro do SUS e o conhecimento deste pela população etc. Enfim, a judicialização desafia o magistrado a dialogar com a política e as políticas públicas.35 Também significa dizer que “é preciso “racionalizar o uso do modelo adversarial do Poder judiciário”36, visto que envolve “demandas distributivas de Judicial: direito e política no Brasil Contemporâneo. Revista da Faculdade de Direito – UERJ, Rio de Janeiro, v. 2, nº 21, jan./jun., 2012, p. 10). Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/1794 Acesso em: 06 de julho de 2019 34 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 200, p. 4. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 35 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 93. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 36 ASENSI, Felipe; PINHEIRO, Roseni. Judicialização da Saúde e Diálogo Institucional: a experiência de Lages (SC). Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 17, n. 2, jul/out. 2016, p. 59. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/122306 Acesso em: 11 de julho de 2019. 16 caráter plurilateral (o vencedor não pode excluir o perdedor), e não conflitos comutativos de feição bilateral (um ganha e o outro perde)”.37 Assim, dentre os principais sintomas do modelo atual que precisam ser superados, destacam-se: 1) prevalência de solução judicial diante de negativas, com grande número de ações individuais em detrimento das coletivas; 2) diálogo insuficiente entre entes públicos e privados e entre diferentes esferas da administração pública; 3) os elevados custos relacionados a tratamentos não previstos no sistema único de saúde; 4) ônus do tempo na disponibilização do tratamento/medicamento pleiteado; e 5) demasiada prevalência do tratamento/medicamento prescrito pelo médico(a) assistente do(a) paciente em detrimento das alternativas existentes no SUS. A partir disso, nos tópicos a seguir, pretende-se desenvolver esses assuntos e identificar possíveis soluções aos sintomas suprarreferidos, dentro dos limites de extensão possíveis, não tendo esse ensaio o escopo de aprofundar o tema, tampouco esgotar suas controvérsias. 3 BASES NORMATIVAS DO DIREITO À SAÚDE NO BRASIL No escopo de desempenhar a função expressa no artigo 196 da CF/1988, já apresentado, foi criado o Sistema Único de Saúde (SUS), que é constituído por meio de ações e serviços de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada e que atuam na prevenção e no tratamento de saúde da população. Conforme estabelece o artigo 198 da CF/1988, esse sistema adota como diretrizes: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. (....) 37 MARTINI, Sandra Regina; MACHADO, Clara. Desjudicialização da Saúde, Diálogos Interinstitucionais e Participação Social: em busca de alternativas para o sistema. Revista Estudos Institucionais, v. 4, n. 2, 2018, p. 790. Disponível em: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/190. Acesso em: 11 de junho de 2019. 17 O inciso II reflete o princípio da integralidade aplicado ao direito à saúde, e significa que deve ser oferecido aos cidadãos brasileiros um conjunto de ações que incluam todas as etapas de atendimento necessárias a garantir a saúde, desde campanhas preventivas e vacinação, até atendimentos mais complexos para tratamento de doenças graves38. No intuito de dar cumprimento a esses preceitos constitucionais, em 1990, foi editada a Lei nº 8.080 (Lei Orgânica da Saúde), que regula as ações e os serviços de saúde em todo o território nacional, fixando o modelo operacional e a estrutura do SUS, além de propor a sua forma de organização e funcionamento.39 Entre as principais atribuições do SUS, está a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção (art. 6, VII). A Lei Orgânica da Saúde elenca, ainda, os princípios que o SUS deve obedecer. Entre os mais importantes destacam-se: o princípio da integralidade já mencionado, o da universalidade, equidade, subsidiariedade e o da municipalização. O princípio da universalidade estabelece que todos os cidadãos brasileiros e estrangeiros residentes no país, sem qualquer tipo de discriminação, têm direito ao acesso às ações e serviços de saúde, de forma gratuita.40 Por sua vez, o princípio da equidade visa assegurar igual oportunidade de acesso aos serviços e ações de saúde a todos os brasileiros, dando tratamentodiferenciado aos diversos segmentos da população conforme suas necessidades, procurando minimizar as suas desigualdades.41 Os princípios da subsidiariedade e da municipalização, por sua vez, procuram atribuir prioritariamente a responsabilidade aos Municípios na execução das políticas de saúde em geral, e de distribuição de medicamentos em particular (art. 7º, I e IX). 38 BRASIL. Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. 39 De acordo com o art. 5º são objetivos do SUS: I - a identificação e divulgação dos fatores condicionantes e determinantes da saúde; (...) III - a assistência às pessoas por intermédio de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, com a realização integrada das ações assistenciais e das atividades preventivas. (BRASIL. Lei Federal nº 8.080, de 19 de setembro de 1990). 40FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Universalidade. Disponível em: <http://pensesus.fiocruz.br/universalidade>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 41 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ. Equidade. Disponível em: <http://pensesus.fiocruz.br/equidade>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 18 No que pertine particularmente à distribuição de medicamentos, a competência da União, Estados e Município não está explicitada na CF/88, nem na Lei Orgânica da Saúde, mas se encontra esboçada em diversos atos administrativos e portarias dos entes da federação. A Politica Nacional de Medicamentos será analisada adiante, no âmbito dos comitês de saúde. A respeito da repartição de competências, do ponto de vista federativo, a CF/1988 atribuiu competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios (art. 24, XII, e 30, II). À União cabe o estabelecimento de normas gerais (art. 24, §1º); aos Estados, suplementar a legislação federal (art. 24, §2º); e aos Municípios, legislar sobre os assuntos de interesse local, podendo igualmente suplementar a legislação federal e a estadual, no que couber (art. 30, I e II).42 No que diz respeito ao aspecto administrativo, a CF/1988 atribuiu competência comum à União, aos Estados e aos Municípios, de forma que os três entes que compõe a federação brasileira podem formular e executar políticas públicas (art. 23, II). Entretanto, na visão de Luís Roberto Barroso: A atribuição de competência comum não significa, porém, que o propósito da Constituição seja a superposição entre a atuação dos entes federados, como se todos detivessem competência irrestrita em relação a todas as questões. Isso, inevitavelmente, acarretaria a ineficiência na prestação dos serviços de saúde, com a mobilização de recursos federais, estaduais e municipais para realizar as mesmas tarefas.43 Na medida em que todas as esferas de governo são competentes, impõe-se que haja diálogo e cooperação entre elas, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem estar em âmbito nacional (CF/1988, art. 23, parágrafo único). Feitas essas breves considerações, compete, agora, adentrar no estudo dos diálogos interinstitucionais e seus mecanismos de cooperação entre as partes envolvidas na judicialização da saúde. Para tanto, cumpre esclarecer que a abordagem será eminentemente prática, oriunda do ofício do autor deste artigo junto à Procuradoria Geral do Município de Estância Velha/RS – na área contenciosa da 42 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. 43 BARROSO, Luís Roberto Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 200, p. 15. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 11 de julho de 2019. 19 Saúde (desde 2015) – levando-se em conta, também, o cotejo com dados extraídos do relatório elaborado pelo Conselho Nacional de Justiça (Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução), no ano de 2019. 4. DIÁLOGOS INTERINSTITUCIONAIS: UMA TENTATIVA DE RESOLUÇÃO NÃO JUDICIAL DOS CONFLITOS NA ÁREA DA SAÚDE Como já dizia Aristóteles, “o homem é um animal social” e, portanto, necessita socializar-se com os seus pares. Por mais forte e astuto que seja não conseguirá satisfazer suas necessidades e concretizar seus interesses mantendo-se isolado dos demais; o diálogo é condição de abertura para o fortalecimento das relações. Da mesma forma, o Estado somente será capaz de atender efetivamente as demandas prestacionais constitucionalizadas (em especial, o direito à saúde) quando seus poderes constituídos, órgãos e agentes que os compõem, aproximarem-se num colóquio frutuoso – por meio de mecanismos de cooperação – em que a política possa interagir mais intensamente com o direito; gestores públicos, juízes, promotores, defensores públicos e particulares, cada qual na sua função, devem atuar conjuntamente, em sinergia, identificando as potenciais causas do problema e buscando novos caminhos para preveni-las, de modo a enfrentar os gargalos que tornaram a judicialização da saúde hoje um problema jurídico-social no Brasil. Não se pretende com isso afastar o principio da inafastabilidade do controle jurisdicional, mas se objetiva fomentar ações extrajudiciais e de cooperação, a partir da utilização de práticas dialógicas e mediadoras. Afinal de contas, como já dizia a canção popular: “uma andorinha, voando sozinha, não faz verão”. 4.1 COMITÊ EXECUTIVO NACIONAL E ESTADUAL DA SAÚDE A atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na busca de alternativas para superar o grande número de demandas envolvendo assistência em saúde em tramitação no Poder Judiciário e o representativo dispêndio de recursos públicos 20 decorrente desses processos judiciais, teve início a partir dos resultados da Audiência Pública nº 4, realizada pelo STF em abril e maio de 2009.44 A referida audiência contribuiu para a constituição de um grupo de trabalho, por meio da Portaria nº 650, de 20 de novembro de 200945, voltado para a apresentação de estudos e propostas normativas para as demandas judiciais envolvendo a matéria. Os frutos desse trabalho resultaram na aprovação da Recomendação nº 31, de 30 de março de 201046, que traçava medidas visando (i) melhor orientar e subsidiar os magistrados e demais operadores do direito quanto ao tratamento dado às demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde; (iI) responder às reiteradas reinvindicações do gestor para que seja ouvido antes da concessão de provimentos judiciais de urgência, no intuito de prestigiar sua capacidade gerencial, as politicas públicas existentes e a organização do sistema público de saúde; entre outras medidas. Como desdobramento dessa iniciativa, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução nº 107, de 06 de abril de 201047, que, no seu artigo 1º, institui, no âmbito do próprio CNJ, o Fórum Nacional do Judiciário, cujas atribuições estão previstas no artigo 2º da citada Resolução, a saber: Art. 2º Caberá ao Fórum Nacional: I – o monitoramento das ações judiciais que envolvam prestações de assistência à saúde, como o fornecimento de medicamentos, produtos ou insumos em geral, tratamentos e disponibilização de leitos hospitalares; II – o monitoramento das ações judiciais relativas ao Sistema Único de Saúde; III – a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à otimização de rotinas processuais, à organização e estruturação de unidades judiciárias especializadas; 44 Disponível em: http://cnj.jus.br/programas-e-acoes/forum-da-saudeAcesso em 15 de julho de 2019. 45 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Portaria nº 650, de 20 de novembro de 2009. Cria grupo de trabalho para estudo e proposta de medidas concretas e normativas para as demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 24 nov.2009. 46 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Recomendação nº31, de 30 de março de 2010. Recomenda aos Tribunais a adoção de medidas visando melhor subsidiar os magistrados e demais operadoras do direito, para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br///images/atos_normativos/recomendacao/recomendacao_31_30032010_2210 2012173049.pdf> Acesso em: 12 de julho de 2019. 47 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 107, de 06 de abril de 2010. Institui o Fórum Nacional do Judiciário para o monitoramento e resolução das demandas de assistência à saúde. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/files/atos_administrativos/resoluo-n107-06-04-2010- presidncia.pdf> Acesso em: 12 de julho de 2019. 21 IV – a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário; V – o estudo e a proposição de outras medidas consideradas pertinentes ao cumprimento do objetivo do Fórum Nacional. Ademais, o artigo 3º institui no âmbito do Fórum Nacional os comitês executivos - como instâncias adequadas para encaminhar soluções para a melhor forma de prestação jurisdicional na área da saúde - e traça suas atribuições, como se vê: Art. 3º No âmbito do Fórum Nacional serão instituídos comitês executivos, sob a coordenação de magistrados indicados pela Presidência e/ou pela Corregedoria Nacional de Justiça, para coordenar e executar as ações de natureza específica, que forem consideradas relevantes, a partir dos objetivos do artigo anterior. No que toca à criação dos Comitês Estaduais da Saúde nos órgãos de justiça estadual e federal e à sua composição, o artigo 1º da Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 238, de 06 de setembro de 201648, estabelece que: Art. 1º Os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais criarão no âmbito de sua jurisdição Comitê Estadual de Saúde, com representação mínima de Magistrados de Primeiro ou Segundo Grau, Estadual e Federal, gestores da área da saúde (federal, estadual e municipal), e demais participantes do Sistema de Saúde (ANVISA, ANS, CONITEC, quando possível) e de Justiça (Ministério Público Federal e Estadual, Defensoria Pública, Advogados Públicos e um Advogado representante da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil do respectivo Estado), bem como integrante do conselho estadual de saúde que represente os usuários do sistema público de saúde, e um representante dos usuários do sistema suplementar de saúde que deverá ser indicado pela Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor por intermédio dos Procons de cada estado. O § 2º do artigo 1º complementa, ainda, que: § 2º Aplicam-se aos Comitês Estaduais de Saúde, naquilo que lhe compete, as mesmas atribuições previstas ao Comitê Executivo Nacional pela Resolução CNJ 107/2010, destacando-se aquela estabelecida no seu inciso IV do artigo 2º, que dispõe sobre a proposição de medidas concretas e normativas voltadas à prevenção de conflitos judiciais e à definição de estratégias nas questões de direito sanitário. 48 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 238 de 06 de setembro de 2016. Dispõe sobre a criação e manutenção, pelos Tribunais de Justiça e Regionais Federais de Comitês Estaduais da Saúde, bem como a especialização de vara em comarcas com mais de uma vara de fazenda pública. 22 O Comitê Estadual seria, portanto, um espaço de discussão, debate e reflexão, em que os representantes da Justiça Estadual e Federal (Juízes, Defensores Públicos e Promotores), gestores (municipal, estadual e federal), procuradores e/ou assessores jurídicos com experiência preventiva e contenciosa na área, demais participantes do Sistema Único de Saúde (profissionais que atuam nas áreas de baixa, média e alta complexidade - médicos, farmacêuticos, enfermeiros etc.), além de outros, discutiriam soluções para os problemas que impedem a população de ter acesso ao serviço de saúde e essas decisões seriam repassadas para os magistrados das varas especializadas49, para que possam proferir decisões mais técnicas e precisas, de acordo com as orientações do Comitê. A esse respeito, destaca-se a iniciativa do estado do Rio Grande do Sul, onde: A principal característica da gestão da judicialização da saúde no estado é a íntima articulação de atores por meio do Comitê Estadual. Em todas as entrevistas realizadas no estado os atores destacaram o comitê como um divisor de águas na história da judicialização do estado que passou a responder com uma paulatina redução de novas ações e custos desde 2010, quando foi instituído logo após a Resolução CNJ n. 107 de 201050. (g.n.) Como explica o Desembargador Martin Schulze51, ex-Coordenador do Comitê de Saúde do CNJ no estado do Rio Grande do Sul: O comitê atua e se organiza a partir de ações de planejamento e de gestão sistêmicos com foco na saúde, promovendo o diálogo entre diferentes atores do sistema de justiça e de saúde diante de problemas focalizados.52 Outrossim, de acordo com o relatório da Judicialização da Saúde no Brasil, na maioria dos estados federados, em geral, as ações em saúde são individuais e 49 Art. 3º Os Tribunais Estaduais e Federais, nas Comarcas ou Seções Judiciárias onde houver mais de uma vara de Fazenda Pública, promoverão a especialização de uma das varas em matéria de saúde pública, compensando-se a distribuição. Resolução CNJ nº 238/2016 50 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 110. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 51 O Desembargador Martin Schulze foi substituído pelo Desembargador Niwton Carpes da Silva, atualmente coordenador do Comitê da Saúde do Estado do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://saude.rs.gov.br/secretaria-arita-pr-posse-de-novo-desembargador-na-coordenacao-do-comite- de-saude-da-justica. Acesso em: 11 de julho de 2019. 52 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 110. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 23 contam com uma maior participação da Defensoria Pública Estadual, com exceção do estado do Pará, o que pode ser explicado pela falta de defensorias instaladas por todo o estado, contando atualmente com defensores em 100 das 143 comarcas do estado.53 As Defensorias Públicas, por atuarem na interface entre o mundo jurídico e o mundo das políticas públicas, na defesa do acesso aos direitos sociais, podem instruir o Comitê com informações relevante sobre as doenças mais comuns, consultas, exames e medicamentos mais judicializados, entes mais demandados etc. Esses dados, além de contribuírem no processo da desjudicialização, também são importantes para possibilitar ao gestor municipal uma tomada de ações preventivas no âmbito local, baseadas em estratégias de perfis epidemiológico e nosológico, em articulação conjunta à Vigilância Sanitária, a fim de investigar o estado de saúde da comunidade e combater às patologias prevalentes e ou incidentes que mais acometem a sua população. Antes de combater a consequência é preciso, preventivamente, descobrir a causa e saneá-la. Como já referidonos indicadores do IBGE, a maioria da população de baixa renda não possui acesso à água potável e ao saneamento básico (coleta e tratamento de esgoto), razão pela qual é facilmente vitimada por doenças, levando ao ajuizamento de processos54 na área da saúde e, por consequência, o dispêndio avultante de recurso público para implementá-las, curativamente. Nesse sentido, empenhar recursos públicos em saneamento básico é prevenção; é investir de forma efetiva e inteligente em benefício do cidadão. Porquanto, se não houver efetividade, apenas serão contabilizados dados, e não vidas com qualidade. Não é despiciendo lembrar as lições de Têmis Limberger: 53 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 95-96. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019.. 54 O instrumento do processo é binário e define quem será o vencedor e o perdedor, mas não auxilia necessariamente na efetivação do direito à saúde de maneira ampla, inclusive no que concerne a seus aspectos preventivos. (ASENSI, Felipe; PINHEIRO, Roseni. Judicialização da Saúde e Diálogo Institucional: a experiência de Lages (SC). Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 17, n. 2, jul/out. 2016, p. 59). Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rdisan/article/view/122306 Acesso em: 11 de julho de 2019. 24 As ações curativas e preventivas não se opõem, mas são complementares. O sistema de saúde pública, porém, deve atentar ao preventivo, pois programas bem implantados de saúde diminuem substancialmente a parte curativa. Isto proporciona uma potencialização dos recursos a serem investidos em outras áreas de relevância social.55 A relação continuada de comunicação entre atores envolvidos na judicialização, por meio do comitê, permite, inclusive, tornar sindicável a atuação de médicos do sistema público que indicam tratamentos fora da política, como aconteceu no Distrito Federal, o que “levou a Secretaria da Saúde a estabelecer Instrução Normativa para disciplinar a atuação desses profissionais a partir de um formulário padronizado para a justificação do pedido fora da política”.56 Além disso, outro ponto que merece destaque e pode ser administrado por meio de acordo entre as Defensorias Públicas no âmbito do comitê diz respeito à legitimação passiva dos entes federados em ações judiciais para concessão gratuita de medicamentos. Contudo, antes de prosseguir nesse ponto, é preciso introduzir algumas noções. A título de esclarecimento, a distribuição de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde encontra-se especialmente estruturada na Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 199857, do Ministério da Saúde, que estabelece a Política Nacional de Medicamentos. A partir dessa formulação, “os diferentes níveis federativos, em colaboração, elaboram listas de medicamentos que serão adquiridos e fornecidos à população”.58 Com efeito, ao gestor federal caberá estabelecer normas e promover a assistência farmacêutica - nas três esferas de governo - e a Política Nacional de 55 LIMBERGER, Têmis. Saneamento: remédio preventivo em políticas públicas de saúde. Revista do Ministério Público do RS, Porto Alegre, n. 71, jan./abr. 2002, p. 72. Disponível: https://www.amprs.com.br/public/arquivos/revista_artigo/arquivo_1342124364.pdf Acesso em: 06 de julho de 2019. 56 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 98. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 57 BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. A Política Nacional de Medicamentos tem como propósito garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade destes produtos, a promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais. Assim, as suas principais diretrizes são a definição de medicamentos essenciais, a reorientação da assistência farmacêutica, o estímulo à produção de medicamentos e a sua regulamentação sanitária. 58 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 200, p. 17. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em 12 de julho de 2019. 25 Medicamentos, que envolve, também, a elaboração da Relação Nacional de Medicamentos (RENAME). A União é responsável pela aquisição e distribuição de fármacos em caráter excepcional (componente estratégico)59, conforme relação abaixo: SUS - RESPONSABILIDADE POR AQUISIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DE MEDICAMENTOS Responsabilidade da União (Ministério da Saúde) Medicamentos destinados a Programas Estratégicos: - Pneumologia Sanitária (Tuberculose) - Hemoderivados (Medicamentos produzidos a partir do sangue humano ou de suas frações) - Dermatologia Sanitária (Hanseníase) - AIDS (Anti-Retrovirais) - Endemias focais - Diabetes (Insulina) Ao gestor estadual, compete promover a formulação da política estadual de medicamentos; definir a relação estadual de fármacos com base na RENAME, em conformidade com o perfil epidemiológico do estado e definir o elenco de medicamentos que serão adquiridos diretamente, inclusive os de dispensação em caráter excepcional (componente especializado)60, destinando orçamento adequado à sua aquisição. Ao gestor municipal, por seu turno, cabe definir a relação municipal de medicamentos essenciais61 com base na RENAME e executar a assistência farmacêutica. Os Municípios são responsáveis pelos medicamentos destinados à atenção básica de saúde da sua população e outros medicamentos essenciais que não são 59 Os medicamentos de dispensação excepcional são, geralmente, de uso contínuo e de alto custo. São usados no tratamento de doenças crônicas e raras, e dispensados em farmácias específicas para este fim. Por representarem custo elevado, sua dispensação obedece a regras e critérios específicos. O Programa de Medicamentos Excepcionais foi criado em 1993 e posteriormente, através de novas Portarias, o Ministério da Saúde ampliou de forma significativa o número de medicamentos excepcionais distribuídos pelo Sistema Único de Saúde(SUS). Disponível em: http://www.saude.sp.gov.br/content/geral_acoes_politica_estadual_medicamentos_lista_medicamen tos_excepcionais.mmp. Acesso em: 12 de julho de 2019. 60 BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. O Estado é responsável pela aquisição e distribuição dos medicamentos excepcionais que, segundo o Ministério da Saúde, são medicamentos utilizados em doenças raras, geralmente de custo elevado, cuja dispensação atende a casos específicos. 61 BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. De acordo com o glossário de termos técnicos da citada portaria, medicamentos essenciais são aqueles medicamentos de importância máxima, básicos e indispensáveis para atender as necessidades de saúde da população. Devem estar disponíveis permanentemente, nas formas apropriadas, a todos os segmentos da sociedade. 26 de responsabilidade nem do Ministério da Saúde (União), nem dos Estados.62 Alguns Municípios, inclusive, estabelecem a Relação Municipal de Medicamentos Essenciais (REMUNE), “instrumento técnico-normativo que reúne todo o elenco de medicamentos padronizados usados pela Secretaria Municipal de Saúde”.63 Após a descrição desse quadro, denota-se “que as listas definidaspor cada ente federativo veiculam as opções do Poder Público na matéria, tomadas – presume-se – considerando as possibilidades financeiras existentes”.64 Assim, não nos parece acertado o entendimento adotado pelo Judiciário no sentido de responsabilizar os entes da federação solidariamente ao fornecimento de medicamentos em ações judiciais, sob o pretexto de se tratar de competência comum (CF/88, art. 23, II). O diálogo interinstitucional, porém, pode dar solução a isso. A título de exemplo, no estado da Bahia, desde abril de 2018: As defensorias têm competência dividida por acordo explícito, no qual a Defensoria Pública do Estado cuida da transferência para unidades hospitalares, exames e consultas médicas, realização de procedimentos cirúrgicos e fornecimento de medicamentos que constem na RENAME ou REMUNE; enquanto a Defensoria Pública da União é responsável pelo fornecimento de próteses ortopédicas e órteses que não constem na RENASES, realização de consultas, exames, tratamentos que só podem ser realizados fora do território nacional, fornecimento de medicamentos off label ou daqueles que não constam na lista RENAME.65 Daí a importância de as Defensorias Públicas integrarem o comitê da saúde e, mais do que isso, disporem-se a celebrar acordos de competência para o ajuizamento das ações judiciais na área da saúde. De fato, é algo que merece ser 62 BRASIL. Portaria nº 3.916, de 30 de outubro de 1998. De acordo com o glossário de termos técnicos da citada portaria, medicamentos para atenção básica são aqueles necessários à prestação do elenco de ações e procedimentos compreendidos na atenção básica à saúde - procedimentos ambulatoriais e de baixa complexidade. 63 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 2007, p. 18. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 12 de julho de 2019. 64 BARROSO, Luís Roberto Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 2007, p. 20. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 12 de julho de 2019. 65 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 93-94. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019.. 27 acompanhado de perto por outros estados, pois se trata de possível solução para a questão federativa em torno da judicialização. Outro ponto a ser destacado, agora no âmbito interno das Defensorias Públicas, é a necessidade de um(a) funcionário(a) – “facilitador” ou “articulador da rede”, que faça a intermediação entre a Defensoria Pública e o gestor da saúde, informando o cidadão sobre qual o serviço do SUS que deve procurar para obter o serviço ou medicamento desejado. Isso possibilita um diálogo anterior à judicialização.66 Obviamente, o ideal seria que também o Defensor(a) Público(a) se dispusesse a visitar os Conselhos Municipais e Estaduais da Saúde, bem como as unidades de saúde pública ou conveniadas do SUS, dispensários de medicamentos e hospitais habilitados e credenciados, a fim de tomar conhecimento prático do funcionamento67 do sistema público, a fim de interagir mais concretamente com o gestor da área da saúde. Outrossim, os magistrados também devem buscar uma aproximação mais frequente com membros da Secretaria de Saúde, a fim de aprimorarem seu conhecimento a respeito da rede pública, buscando apoio técnico para solução de demandas envolvendo a matéria. Como adverte o juiz de Direito Homero Lamarão Neto, coordenador do Comitê Executivo de Saúde do estado do Pará – CIRADS, “muitos magistrados cedem aos pedidos dos pacientes sem perceber que estão sendo influenciados pela indústria farmacêutica”.68 A questão, inclusive, foi objeto de Recomendação do Conselho Nacional de Justiça nº 31, de 30 de março de 2010, conforme se vê na alínea “a) do item I”: I. Recomendar aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais que: a) até dezembro de 2010 celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto de médicos e farmacêuticos para auxiliar os 66 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 94. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019.. 67 Trata-se da recomendação do Conselho Nacional de Justiça nº 31/2010 que, embora dirigida aos Tribunais de Justiça dos Estados e aos Tribunais Regionais Federais, pode, também, ser direcionada à Defensoria Pública dos Estados e da União, tendo em vista o objeto comum de assegurar mais eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde. 68 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 98. Disponível em <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019.. 28 magistrados na formação de um juízo de valor quanto à apreciação das questões clinicas apresentadas pelas partes das ações relativas à saúde, observadas as peculiaridades regionais.69 (g.n.) (...) Nessa toada, a fim de materializar a adoção dessas medidas de auxílio, a Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 238, de 06 de setembro de 2016 impôs a criação dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS), com função exclusiva de apoio, no termos dos §§1º e 5º do artigo 1º da citada Resolução: (...) § 1º O Comitê Estadual da Saúde terá entre as suas atribuições auxiliar os tribunais na criação de Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NATJUS), constituído de profissionais da Saúde, para elaborar pareceres acerca da medicina baseada em evidências, observando-se na sua criação o disposto no parágrafo segundo do art. 156 do Código de Processo Civil Brasileiro. (...) § 5º Os Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário (NAT-JUS) terão função exclusivamente de apoio técnico não se aplicando às suas atribuições aquelas previstas na Resolução CNJ 125/2010. 70 No estado da Bahia, por exemplo, o serviço de apoio já existe desde 2012 e vem proporcionando bons frutos à solução das demandas, como se denota no relato abaixo: Além da CCS e do comitê, uma terceira ferramenta institucional para a gestão da judicialização foi a criação do NAT-Jus para o Judiciário estadual. O serviço, que funcionava desde 2012 como “Plantão Médico para Assessoramento ao Juiz” (Decreto Judiciário n. 287, de 14 de fevereiro de 2012), adotou a nomenclatura NAT – Núcleo de Assessoria Técnica em 2015 (Decreto n. 877, de outubro de 2015), e em 2017 passou a ser denominado de Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário – NAT-JUS (Decreto Judiciário n. 795 de 30 de agosto de 2017), em atendimento à Resolução CNJ n. 238, de 6 de setembro de 2016. O NAT-Jus é sobretudo importante para os juízes de primeiro grau, que podem consultar e ter um assessoramento especializado rápido, até para decidir casos de tutela antecipada.71 Além disso, de acordo com o juiz de Direito Rodrigo Otávio Donati Barbosa, Coordenador do Comitê ExecutivoDistrital da Saúde do Distrito Federal, há 69 BRASIL. Recomendação do Conselho Nacional de Justiça nº 31 de março de 2010. 70 BRASIL. Resolução do Conselho Nacional de Justiça nº 238, de 06 de setembro de 2016. 71 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 91. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019.. 29 perspectivas de que o sistema de apoio passe a existir, também, em plataformas eletrônicas, facilitando o seu acesso de pesquisas: Uma das possibilidades de melhora no acesso a pareceres por juízes se dará por meio do e-NAT-Jus, plataforma em desenvolvimento pelo CNJ, alimentado por pareceres de NAT-Jus do país inteiro, para que se formem consultas diretas ao sistema, sem que o magistrado precise pedir para o NAT-Jus do seu próprio tribunal. Como se vê, o NAT-JUS, a partir da medicina baseada em evidências, pode contribuir significativamente aos juízes, que tomarão suas decisões com mais segurança. Outro ponto de enfrentamento que deve ser abordado no Comitê da Saúde diz respeito ao papel do Ministério Público no processo da judicialização – no que tange ao ajuizamento de ações coletivas que visem, sobretudo, corrigir distorções da politica pública num sentido mais amplo, não individualizado. Ao menos no Município de Estância Velha/RS, ainda é bastante comum em ações individuais de saúde o deferimento judicial de medicamentos não constantes das listas. Não obstante isso seja autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça, desde que presentes, cumulativamente, os requisitos fixados no Recurso Especial nº 1657156/RJ (TEMA 106)72, não impede que as próprias listas sejam discutidas judicialmente. O que se propõe, todavia, é que essa revisão ocorra tão-somente no âmbito de ações coletivas (produzindo efeitos erga omnes) ou mesmo por meio de ações abstratas de controle de constitucionalidade. Luís Roberto Barroso expõe algumas razões para isso, e dentre elas, destaca-se a seguinte: Em primeiro lugar, a discussão coletiva ou abstrata exigirá naturalmente um exame do contexto geral das políticas públicas discutidas (o que em regra não ocorre, até por sua inviabilidade, no contexto de ações individuais) e tornará mais provável esse exame, já que os legitimados ativos (Ministério Público, associações etc.) terão melhores condições de trazer tais elementos aos autos e discuti-los. Será possível ter uma ideia mais realista de quais as dimensões da necessidade (e.g., qual o custo médio, por mês, 72 A tese fixada estabelece que constitui obrigação do poder público o fornecimento de medicamentos não incorporados em atos normativos do SUS, desde que presentes, cumulativamente, os seguintes requisitos: 1 - Comprovação, por meio de laudo médico fundamentado e circunstanciado expedido por médico que assiste o paciente, da imprescindibilidade ou necessidade do medicamento, assim como da ineficácia, para o tratamento da moléstia, dos fármacos fornecidos pelo SUS; 2 - Incapacidade financeira do paciente de arcar com o custo do medicamento prescrito; e 3 - Existência de registro do medicamento na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Disponível em: <http://portaljustica.com.br/acordao/2109140> Acesso em: 12 de julho de 2019. 30 do atendimento de todas as pessoas que se qualificam como usuárias daquele medicamento) e qual a quantidade de recursos disponível como um todo73. Afora isso, a presença do representante do Ministério Público no comitê também oportuniza o diálogo interinstitucional com o gestor da saúde. Para o Promotor Jairo Bisol – membro do Comitê Distrital de Saúde do Distrito Federal, o “dialogo é importante, pois às vezes o MP convence o gestor do descaminho da política pública, e às vezes o contrário acontece: a SES apresenta ao MP suas razões de agir”.74 Também é de suma importância a aproximação da Procuradoria Geral à Secretaria de Saúde, a fim de estabelecer prioridades, aproximar experiências e sanar conflitos e ruídos em sua atuação de defesa e cumprimento das demandas judiciais, além de propiciar novos horizontes à prevenção de conflitos. A informatização de sistemas em rede poderá auxiliar para estreitar o alcance efetivo dessa comunicação. Demonstrada a existência e a importância dos diálogos interinstitucionais nos Comitês de Saúde, somada à criação dos Núcleos de Apoio Técnico de aporte às decisões judiciais, o ensaio abordará no item a seguir outra ferramenta de impulsão à desjudicialização denominada “Câmara de Conciliação de Saúde”. 4.2 CÂMARA DE CONCILIAÇÃO EM MATÉRIA DE SAÚDE PÚBLICA A Câmara de Conciliação em Saúde (CCS) também é resultado da Resolução nº 107 de 2010, do Conselho Nacional de Justiça. Seu objetivo é diminuir os casos evitáveis da judicialização, garantir mais agilidade e eficácia no acesso da população à saúde, através dos parâmetros estabelecidos pela Política Nacional de Assistência Farmacêutica. De modo prático, a CCS pretende evitar que diante da certidão negativa de fornecimento administrativo o paciente salte diretamente ao Poder Judiciário. 73 BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Interesse Público. Belo Horizonte, v. 9, n. 46, nov. 200, p. 31. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/casos/direito/artigo_prof_luis_roberto_barroso_da_falta_de_efetivid ade_a_judicialização_excessiva_pdf>. Acesso em: 12 de julho de 2019. 74 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Judicialização da Saúde no Brasil: perfil das demandas, causas e propostas de solução. Justiça e Pesquisa: relatório analítico propositivo. Brasília: INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA – INSPER, 2019, p. 105. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/> Acesso em 11 de julho de 2019. 31 De acordo com Alexandre Barbosa da Silva e Gabriel Schulman: Ultrapassada a fase dos indeferimentos a pedidos administrativos formulados para Secretarias de Saúde, entrarão em cena as câmaras. Esses entes analisarão detidamente os procedimentos, avaliando a possibilidade de concessão – independentemente de processo judicial – das ações de saúde requeridas e justificadamente negadas.75 Nessa linha, é muito interessante o programa de integração interinstitucional adotado pelo estado de São Paulo, denominado “Acessa SUS”, que visa o diálogo e coordenação entre a Secretaria da Saúde, Defensoria Pública, Judiciário e Ministério Público. O sistema busca estabelecer uma triagem administrativa de pedidos que possivelmente virariam ações judiciais76, funcionando da seguinte forma: O defensor prioriza a resolução administrativa, encaminhando o demandante à unidade do Acessa SUS no AME Maria Zélia. Em 24h os técnicos do AME respondem ao defensor sobre as possibilidades do pedido em quatro respostas possíveis – não será atendido; será atendido em caráter não emergencial em até 30 dias; será atendido em caráter emergencial em até 72h; ou os profissionais do AME indicam uma alternativa terapêutica para que o paciente volte ao seu médico de origem e solicite a substituição. Dependendo da resposta e dos interesses do demandante, bem como diante das possibilidades ou não de efetivar uma liminar em tempo menor pela via judicial, o defensor pondera qual a melhor alternativa para proteger os direitos de seu cliente.77 (g.n.) Em um ano de atuação – desde 2017, “conta o defensor público que já houve uma redução na propositura de novas ações de 15%”.78 Todavia, para que o programa dê respostas técnicas aos requerentes, torna- se imprescindível que a Secretaria da Saúde conte
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