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maldizer, que dá vazão aos baixos instintos, tanto ao ódio quanto às volúpias, como ainda a críticas a grupos sociais, profissionais e ao mundo político e religioso. É nesse último grupo de poemas (escárnio e maldizer) que vamos encontrar a primeira manifestação anticlerical da literatura em português. Trata-se de três cantigas de um nobre galego chamado Fernão Paes de Tamalancos (séc. XIII). Pouco se sabe a respeito desse trovador, e o fato de ele ser galego, e não português, não impede que seja estudado no Trovadorismo português, já que a língua utilizada configurou uma comunidade literária (ver Saraiva e Lopes 2005:49). As cantigas de números 5, 6 e 7 de Tamalancos da edição de Graça Videira Lopes (2002, p. 28-30) se referem a uma abadessa, prima do poeta, a quem ele servia de modo cortês, ou seja, ele lhe era dedicado, dando-lhe atenção e proteção, mas sem compensações físicas. Aconteceu que um cavaleiro de posição inferior deu um presente à freira e conquistou assim o seu afeto. As duas primeiras cantigas reportam o amor sincero do eu lírico à moça e a forma ingrata como a abadessa o trocou por alguém de menor valor. Mas é a cantiga 7 que nos interessa. Esta, já de caráter satírico, insinua com ironia que a freira havia se corrompido, atentando contra a virtude de seus votos eclesiásticos. Leiamos essa cantiga (do lado direito fizemos uma paráfrase para melhor compreensão do leitor): Original Quand’eu passei per Dormã preguntei por mia coirmã, a salva e paçãã. Disserom: - Nom é aqui essa, alhur buscade vós essa; mais é aqui a abadessa. Preguntei: — Por caridade, u é daqui salvidade que sempr'amou castidade? Disserom: - Nom é aqui essa, alhur buscade vós essa; mais é aqui a abadessa. (In Lopes 2002:30) Paráfrase Quando passei por Dormã (ou Dormea (Segundo a estudiosa Carolina Michaëlis, o poema se refere ao convento de S. Cristóvão de Dormea, na região de Santiago de Compostela, Galícia (cf. Lopes 2002:30). ) ) Perguntei por minha prima, a pura e nobre (educada no paço). Disseram-me: não está aqui, deveis buscá-la em outro lugar, mas aqui está a abadessa. Perguntei: por caridade, onde está a moça pura que sempre amou a castidade? Disseram-me: não está aqui, deveis buscá-la em outro lugar, mas aqui está a abadessa. 60