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1 Direito Constitucional Apresentação – Noções do Direito Constitucional e de Federação Unidade I Prof. Dr. Fábio Bellote Gomes APRESENTAÇÃO DO PROFESSOR-AUTOR Fábio Bellote Gomes é professor-titular na Universidade Paulista – UNIP há mais de dezoito anos, nas disciplinas Direito Empresarial e Direito Administrativo. É bacharel (1998), mestre (2010) e doutor (2014) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, tendo realizado o mestrado e o doutorado na área de concentração em Direito Comercial naquela instituição. Durante a graduação na Faculdade de Direito da USP, foi aluno-monitor na cadeira de Direito Romano e bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), em nível de Iniciação Científica, na área de Direito Público. É autor de duas obras didáticas, que atualmente constituem bibliografia fundamental de diversos Cursos de Direito: “Manual de Direito Empresarial”, 7ª edição, Salvador, Ed. Juspodivm, 2018 e “Elementos de Direito Administrativo”, 2ª edição, São Paulo, Ed. Saraiva, 2012. É coordenador do curso de pós-graduação em Direito Empresarial Corporativo da Universidade Paulista – UNIP. Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/7100787923660549. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 4 1. ÂMBITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL – NOÇÕES BÁSICAS ACERCA DO DIREITO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS ...................................................... 5 1.1 INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS CONSTITUCIONAIS E REGRAS DE HERMENÊUTICA ........................................................................................................ 9 1.2 A INTERPRETAÇÃO E EFICÁCIA NORMATIVA DO PREÂMBULO CONSTITUCIONAL ................................................................................................... 14 2. FEDERAÇÃO E SUAS CARACTERÍSTICAS REPRESENTADAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 ....................................................................... 18 2.1 O ESTADO E A FEDERAÇÃO ..................................................................... 18 2.2 TIPOS DE CONSTITUIÇÃO ......................................................................... 23 REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 26 4 INTRODUÇÃO O curso de pós-graduação em Direito Constitucional visa estimular o pós-graduando a refletir acerca da robustez das instituições brasileiras e da contemporaneidade do ordenamento jurídico, que demanda do operador do direito maior versatilidade conforme a democracia e a cidadania plural se tornam cada vez mais complexas. Considerando o atual estado da constitucionalidade no país, em que o Poder Judiciário, na figura do STF, tenta concretizar os valores e normas contidos na Carta Magna, este curso de pós-graduação em Direito Constitucional tem como fulcro a análise das noções a serem concretizadas e o entendimento como tais direitos podem ser garantidos pela atuação do controle entre os Poderes, especialmente no que tange ao ativismo judicial, controle de constitucionalidade e das discussões contemporâneas acerca da reserva do possível e do mínimo existencial frente às garantias constitucionais. O supedâneo do livro-texto de Direito Constitucional terá por base as mais recentes decisões judiciais proferidas especialmente pelo Supremo Tribunal Federal, considerando, ainda, decisões históricas e marcantes, sempre buscando a ementa com conteúdo e definições as mais didáticas possíveis para a compreensão do instituto jurídico discutido. Assim, a estruturação do curso basear-se-á em três unidades. A primeira conterá as noções básicas de Constituição e governo, além da hermenêutica constitucional, fora questionamentos de decisões importantes e polêmicas condizentes com o ativismo judicial em voga. A unidade seguinte conterá os principais julgados e noções acerca das Garantias Fundamentais, corolário máximo da relação entre cidadão e Estado. Por fim, a unidade final terá como conteúdo o estudo das instituições por meio dos Três Poderes constituídos, tendo por análise a Administração Pública contemporânea, o equilíbrio entre os Poderes e o controle de constitucionalidade. 5 1. ÂMBITO DO DIREITO CONSTITUCIONAL – NOÇÕES BÁSICAS ACERCA DO DIREITO CONSTITUCIONAL E PRINCÍPIOS A definição de constituição perpassa por um longo estudo da história da humanidade, pela ruptura de impérios e nações, e a criação ou acordo entre novos principados, originando novas formas de poder, sempre embasada em bem fundadas teorias e movimentos sociopolíticos. Sucintamente, uma constituição significa o estabelecimento e hierarquização de um regramento que delimita as condutas sociais, necessitando, para tanto, constituir um estado – instituição – de onde tais normas serão emanadas e aplicadas onde se encontram as pessoas sujeitas a sua soberania e jurisdição. Conforme a Teoria Geral do Estado, este pode ser definido pela composição de três elementos: o povo, o território e a soberania. A engrenagem que faz essa estrutura funcionar precisa estar constituída como uma lei primordial, que fundamenta a criação de todas as demais leis, a Lex Mater. A “liga” ou “cola” que vincula e faz funcionar e reconhece as interações entre os três elementos aludidos é a “Carta Maior”. A partir dessa norma, as instituições irão emitir seus comandos aos cidadãos, e estes estarão amparados quanto a fruição de direitos e o cumprimento de deveres. Não somente as pessoas físicas e pessoas jurídicas de direito privado estarão sujeitas à obediência e amparo da Constituição, mas também o próprio poder constituído deverá seguir as prescrições da Lei Política. Nesse sentido, vemos esse entender posto explanado didaticamente nos próprios termos de um julgado proferido pelo Pretório Excelso: EMENTA: FEDERALISMO E RESPEITO ÀS REGRAS DE DISTRIBUIÇÃO DE COMPETÊNCIA. LEI FEDERAL 10.029/2000. COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA NORMAS GERAIS NA PREVISÃO DE PRESTAÇÃO VOLUNTÁRIA DE SERVIÇOS AUXILIARES NAS POLÍCIAS MILITARES E CORPO DE BOMBEIROS MILITAR (CF, ARTS. 22, INCISO XXI E 144, §7º). CONSTITUCIONALIDADE. AUSÊNCIA DE RAZOABILIDADE NA FIXAÇÃO DE LIMITES DE IDADE. PROCEDÊNCIA PARCIAL. 1. As regras de distribuição de competências legislativas são alicerces do federalismo e consagram a fórmula de divisão de centros de poder em um Estado de Direito. A própria Constituição Federal de 1988, presumindo de forma absoluta para algumas matérias a presença do Princípio da Predominância do Interesse, estabeleceu, a priori, diversas competências para cada um dos entes federativos e, a partir dessas opções, pode ora acentuar maior centralização de poder, principalmente na própria União (CF, art. 22), ora permitir uma maior descentralização nos Estados-Membros e nos Municípios (CF, arts. 24 e 30, I). 2. A Lei Federal 10.029/2000, que estabeleceu os parâmetros de organização de serviços voluntários nas Polícias Militares e nos Corpos de Bombeiros Militares, possui caráter nacional e foi editada dentro dos limites da competência da União (arts. 22, XXI, e 144, § 7º, da CF). Precedentes. 3. É incompatível com a Constituição a limitação máxima de idade para a prestação de quaisquer serviços voluntários na Polícia Militar e no Corpo de Bombeiros Militar. Inconstitucionalidade material da expressão “e menores de vinte e três anos”, constante do inciso I do art. 3º da Lei Federal 10.029/2000, por ausência de razoabilidade. 4. Ao dispor que os voluntários por ela disciplinados terão direito ao recebimento de auxílio mensal de natureza indenizatória “destinado 6 ao custeio das despesas necessárias à execução dos serviços a que se refere essa lei” (art. 6º), sem a configuração de “vínculo empregatício” ou de “obrigaçãode natureza trabalhista, previdenciária ou afim”, em decorrência da relação jurídica constituída (art. 6º, § 2º), a Lei Federal 10.029/2000 não viola o artigo 37, I, II e IX, da Constituição Federal, dada a diversidade da natureza dos vínculos jurídicos estabelecidos. 5. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada parcialmente procedente.1 (destaque) Contudo, não podemos olvidar as tradicionais definições, que confluem entre o sentido material e o sentido formal de constituição. Formalmente, entendemos por constituição toda norma ou dispositivo transcrito no corpo da Carta Magna, independentemente do seu conteúdo. Assim, a norma que determina Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantida na órbita federal (Art. 242, §2º), tem estatura constitucional e estará hierarquicamente superior às disciplinas infraconstitucionais. Já a conceituação material, ou melhor, substancial, estabelece como normas constitucionais aquelas denominadoras de conteúdo essencialmente político, como a distribuição de competência entre os entes federativos, bem como as normas de garantias fundamentais, que alicerçam o equilíbrio na relação cidadão-instituição. Embora algumas normas genéricas acerca do Direito Eleitoral constem no texto constitucional, o Código Eleitoral e a Lei dos Partidos Políticos podem ser definidos como normas materialmente constitucionais, mesmo que sejam essencialmente leis ordinárias ou complementares, sujeitas a um processo legislativo típico de normas infraconstitucionais. A complexidade da contemporaneidade e da participação cidadã no cenário do Direito, tem requisitado do Poder Judiciário, enquanto intérprete e garantidor da Constituição, atuação constante, por meio de proposições proativas às decisões prolatadas. Assim, com o advento do ativismo judicial, tem ocorrido a elasticidade da significância material de uma constituição. Hodiernamente, o Supremo Tribunal Federal (STF) vem adotando posturas proativas como guardião e intérprete máximo da Constituição da República Federativa do Brasil, por meio do ativismo judicial, ensejando até mesmo debates sobre extrapolação do desígnio típico de Poder Judiciário para uma peculiar e constante forma de exercer a função legiferante. Ou até mesmo função administrativa. A Carta Magna distribui competências para os entes federativos da República Federativa do Brasil de modo que as prescrições para atuação por parte daqueles permitem haver um saudável e funcional exercício do federalismo. Entretanto, caberá ao próprio Poder Judiciário – na figura do STF – pacificar os conflitos ou extrapolações do exercício de competência e de poder, de modo a compatibilizar com o princípio da separação e a harmonia entre os Poderes, dando a palavra final. Nesse sentido, de maneira implícita, ao próprio Poder Judiciário cumpre a função de garantidor do pacto federativo, na resolução de conflitos. Caberia, no entanto, vislumbrarmos a possibilidade de o Poder Judiciário situar- se de maneira proeminente diante dos demais Poderes, pois não apenas ele declara ser uma lei ou seu dispositivo constitucional ou inconstitucional, mas gera efeitos na 1 STF – ADI nº 4.173/DF. Tribunal Pleno. Min. Relator: Alexandre de Moraes. Julgado em: 19/12/2018. Publicação em: 25/02/2019. 7 execução da função administrativa. Todavia, o Poder Judiciário não vincule matéria legiferante impugnada por meio do controle de constitucionalidade, podendo esta ser rediscutida no Poder Legislativo. Nos dizeres do Ministro Luís Roberto Barroso, a Suprema Corte Brasileira decidiu casos singulares nos últimos anos: De fato, somente no ano de 2008, foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, no âmbito de ações diretas – que compreendem a ação direta de inconstitucionalidade (ADIn), a ação declaratória de constitucionalidade (ADC) e a argüição [sic] de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) –questões como: a) o pedido de declaração de inconstitucionalidade, pelo Procurador-Geral da República, do art. 5º da Lei de Biossegurança, que permitiu e disciplinou as pesquisas com células-tronco embrionárias (ADIn 3.150); (ii) o pedido de declaração da constitucionalidade da Resolução n.º 7, de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, que vedou o nepotismo no âmbito do Poder Judiciário(ADC 12); (iii) o pedido de suspensão dos dispositivos da Lei de Imprensa incompatíveis com a Constituição de 1988 (ADPF 130). No âmbito das ações individuais, a Corte se manifestou sobre temas como quebra de sigilo judicial por CPI, demarcação de terras indígenas na região conhecida como Raposa/Serra do Sol e uso de algemas, dentre milhares de outros2. Evidente que os exemplos trazidos não devem ficar à mercê da própria inconstitucionalidade; no entanto, o que motiva debates é a hipertrofia do Poder Judiciário enquanto o Executivo e o Legislativo falham em delinear suas ações e cumprir seu papel, o que inclui reformulação de atos ou decisão via controle externo do Poder Judiciário. Temos, nessa seara, o seguinte julgado, que, embora tenha uma ementa prolixa, faz-se necessário para a compreensão do caso: EMENTA (…) 1. As reiteradas decisões do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região que resultaram em bloqueio, arresto, penhora, sequestro e liberação de valores administrados pelo Poder Executivo do Estado do Rio de Janeiro para atender demandas relativas a pagamento de salário de servidores ativos e inativos, satisfação imediata de créditos de prestadores de serviços e tutelas provisórias definidoras de prioridades na aplicação de recursos públicos traduzem, em seu conjunto, ato do Poder público passível de controle pela via da arguição de descumprimento de preceito fundamental, cabível nos moldes dos arts. 1º, caput, e 4º, § 1º, da Lei 9.882/1999. 2. A efetividade do modelo de organização da Administração Pública preconizado pela Constituição Federal supõe a observância dos princípios e regras do sistema orçamentário (arts. 167, VI e X, da CF), do regime de repartição de receitas tributárias (arts. 34, V, 158, III e IV, e 159, §§ 3º e 4º, e 160, da CF) e da garantia de paramentos [sic] devidos pela Fazenda Pública em ordem cronológica de apresentação de precatórios (art. 100, da CF). Expropriações de numerário existente nas contas do Estado do Rio de Janeiro, para saldar os valores fixados nas decisões judiciais, que alcancem recursos de terceiros, escriturados 2 BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e democracia. Disponível em: http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Selecao.pdf. Acesso em: 12 ago. 2019. 8 contabilmente, individualizados ou com vinculação orçamentária específica implicam alteração da destinação orçamentária de recursos públicos e remanejamento de recursos entre categorias de programação sem prévia autorização legislativa, o que não se concilia com o art. 167, VI e X, da Constituição da República. A aparente usurpação de competências constitucionais reservadas ao Poder Executivo – exercer a direção da Administração – e ao Poder Legislativo – autorizar a transposição, remanejamento ou transferência de recursos de uma categoria de programação para outra ou de um órgão para outro – sugere lesão aos arts. 2º, 84, II, e 167, VI e X, da Carta Política. Precedente: ADPF 387/PI, Relator Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgamento em 23.3.2017. Fumus boni juris evidenciado. 3. Satisfeito o requisito do periculum in mora ante o elevado risco de comprometimento do patrimônio e das receitas correntes do Estado do Rio de Janeiro. 4. Deferimento apenas parcial para suspender os efeitos das decisões judiciais impugnadas exclusivamente nos casos em que as medidas constritivas nelas determinadas tenham recaído sobre recursosescriturados, com vinculação orçamentária específica ou vinculados a convênios e operações de crédito, valores de terceiros sob a administração do Poder Executivo e valores constitucionalmente destinados aos Municípios, em afronta aos arts. 2º, 84, II, e 167, VI e X, da Constituição da República. 5. Medida cautelar deferida em parte3. (Destaque) No caso em tela, foram impugnadas decisões judiciais demandando restrição patrimonial contra o Estado do Rio de Janeiro para atender à demanda judicial de servidores públicos, ativos e inativos, vitimados com atraso no pagamento da remuneração. Porém, como reflexo da medida de controle externo realizada, o Poder Executivo estadual estava na emergência de sofrer comprometimento de seus recursos orçamentários. Foi necessário haver parâmetros para aplicação de tal contingenciamento de gastos para destinar recursos aos agentes públicos querelantes. Os fundamentos nucleares da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) diziam respeito à segurança orçamentária e à competência do chefe do Poder Executivo quanto à condução da gestão para qual foi eleito, admitindo- se que as decisões judiciais favoráveis aos agentes públicos poderiam comprometer a harmonia e equilíbrio dos Poderes, porquanto o Judiciário estaria alocando ou priorizando verba orçamentária atinente ao âmbito da Administração Pública, pela execução orçamentária. Poder-se-ia fundamentar a interferência do Poder Judiciário com fulcro no princípio da inafastabilidade da jurisdição, consagrado no Inciso XXXV, do Art 5º, da Carta Política, uma vez que no ordenamento jurídico brasileiro a Administração Pública stricto sensu não exerce jurisdição própria, como preceituado pelo modelo francês; assim, até mesmo as querelas entre Administração Pública contratante e agentes públicos ocupantes de cargo de efetivo exercício ou empregados públicos deverão provocar o Judiciário para solucionar conflitos que possam repercutir em ameaças ou concretas lesões a direito. 3 ADPF 405 MC / RJ. Tribunal Pleno. Min. Relatora: Rosa Weber. Julgado em: 14/06/2017. Publicado em: 05/02/2018. 9 Diante disso, os operadores do Direito necessitam conhecer as metodologias de interpretação constitucional, principalmente quando as querelas judiciais acabam por extrapolar as hipóteses contidas na lei. Buscar o equilíbrio entre a aplicação de princípios ou garantias salutares a um Estado Democrático de Direito e o harmonioso exercício dos Poderes torna-se o dever do intérprete do Direito Constitucional. É possível constatar rotineiramente o quão complexa a democracia e o saudável exercício da cidadania têm se tornado, demandando das instituições atuação para sanar as mais variadas formas de litígio; vemos então as formas de equiparação de direitos trabalhistas; o reconhecimento de parentesco socioafetivo para fins de registro, pensão alimentícia e herança; a união homoafetiva. Na mesma esteira, surgem novos conflitos e temores, como o contrato de namoro, desinformação quanto à união estável presumida. O Direito Constitucional contemporâneo necessita passar por esse conflito, já que vivenciamos um percurso entre o já estabelecido civil law e chegando a um incipiente e atuante commow law. Para este desiderato, utilizaremos das técnicas de hermenêutica constitucional. 1.1 Interpretação das normas constitucionais e regras de hermenêutica Na didática de Uadi Lammêgo Bulos (2015; p. 446), interpretar é: “[…] descobrir o significado, o conteúdo e o alcance dos símbolos linguísticos escritos em seus artigos, parágrafos, incisos e alíneas”. Hermenêutica é como se denomina a ciência da interpretação. Assim, concebemos que esta ciência é constituída de métodos e regras próprios capazes de investigar e alcançar o conteúdo e significado do texto jurídico. Partimos, portanto, do conteúdo semântico e alcançamos até mesmo o propósito de determinada norma, aplicando critérios racionais ou teleológicos. Alguns doutrinadores traçam a distinção entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica constitucional no sentido de estar esta última além daquela, mas não sendo opositora, somente complementar4. Todos os agentes públicos e operadores do Direito são intérpretes das normas jurídicas; mas, no âmbito constitucional, principalmente em sede de controle de constitucionalidade, será o STF quem determinará o significado das normas submetidas a seu julgo, valendo-se sempre das regras de hermenêutica. A exegese mais moderna e adequada ao atual contexto constitucionalista é a que se dá pela mutação constitucional ou interpretação conforme a constituição. Isso não significa estabelecer que os métodos clássicos e principiológicos estejam necessariamente superados, mas sim que se tornam cada vez mais acessórios ou secundários frente ao dinamismo e eficácia oriundos dos novos métodos. 4 FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. SALVADOR: Juspodivm. 2017. p. 182. 10 Assim, por mais que seja realizada uma interpretação conforme a Constituição, pode ser aplicada uma leitura teleológica do dispositivo discutido e coadunado com os atuais valores cívicos da sociedade brasileira, especialmente dando guarida a princípios construídos doutrinariamente, especialmente em face de vieses garantistas. Nos anos recentes, tivemos, então, históricas decisões como a da prisão civil do depositário infiel (HC n.º 90.450 - MG e HC n.º 94.695 - RS) e do reconhecimento da união estável homoafetiva (ADI n.º 4.277 – DF e ADPF n.º 132 - RJ). Embora algumas decisões proferidas pelos Ministros do STF pareçam unicamente caprichos narcísicos para o senso comum, vemos uma finalidade premente de adequação a tratados e convenções anteriormente acatados pela República Federativa do Brasil. Nesse sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos traz em seu bojo que “ninguém deve ser detido por dívidas” (Art.º 7; n. 7), com a clara exceção para o inadimplemento de obrigações alimentícias. O advento da Emenda Constitucional n.º 45/2004, acrescentando o § 3º ao Art. 5º da Constituição, trouxe uma nova hierarquização dos tratados internacionais aprovados pelo rito de emendas constitucionais. Para tanto, no magno e didático entendimento do Pretório Excelso: EMENTA: “HABEAS CORPUS” - DENEGAÇÃO DE MEDIDA LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR - PRISÃO CIVIL - DEPOSITÁRIO JUDICIAL - A QUESTÃO DA INFIDELIDADE DEPOSITÁRIA - CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS (ARTIGO 7º, n. 7) - HIERARQUIA CONSTITUCIONAL DOS TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS - “HABEAS CORPUS” CONCEDIDO “EX OFFICIO”. DENEGAÇÃO DE MEDIDA LIMINAR - SÚMULA 691/STF - SITUAÇÕES EXCEPCIONAIS QUE AFASTAM A RESTRIÇÃO SUMULAR. (…) A INTERPRETAÇÃO JUDICIAL COMO INSTRUMENTO DE MUTAÇÃO INFORMAL DA CONSTITUIÇÃO. - A questão dos processos informais de mutação constitucional e o papel do Poder Judiciário: a interpretação judicial como instrumento juridicamente idôneo de mudança informal da Constituição. A legitimidade da adequação, mediante interpretação do Poder Judiciário, da própria Constituição da República, se e quando imperioso compatibilizá-la, mediante exegese atualizadora, com as novas exigências, necessidades e transformações resultantes dos processos sociais, econômicos e políticos que caracterizam, em seus múltiplos e complexos aspectos, a sociedade contemporânea. HERMENÊUTICA E DIREITOS HUMANOS: A NORMA MAIS FAVORÁVEL COMO CRITÉRIO QUE DEVE REGER A INTERPRETAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. - Os magistrados e Tribunais, no exercício de sua atividade interpretativa, especialmente no âmbito dos tratados internacionais de direitos humanos, devem observar um princípio hermenêutico básico (tal como aquele proclamado no Artigo 29 da Convenção Americana de Direitos Humanos), consistenteem atribuir primazia à norma que se revele mais favorável à pessoa humana, em ordem a dispensar-lhe a mais ampla proteção jurídica. - O Poder Judiciário, nesse processo hermenêutico que prestigia o critério da norma mais favorável (que tanto pode ser aquela prevista no tratado internacional como a que se acha positivada no próprio direito interno do Estado), deverá extrair a máxima eficácia das declarações internacionais e das proclamações constitucionais de direitos, como 11 forma de viabilizar o acesso dos indivíduos e dos grupos sociais, notadamente os mais vulneráveis, a sistemas institucionalizados de proteção aos direitos fundamentais da pessoa humana, sob pena de a liberdade, a tolerância e o respeito à alteridade humana tornarem-se palavras vãs. - Aplicação, ao caso, do Artigo 7º, n. 7, c/c o Artigo 29, ambos da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica): um caso típico de primazia da regra mais favorável à proteção efetiva do ser humano5. (destaque) Pelo caso em comento, poder-se-ia conjecturar uma reforma constitucional informal, realizada pela hermenêutica, restringindo o alcance gramatical da parte final do Inciso LXVII do Art. 5º (“não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”). Ponderou-se pelo viés garantista em prol da amplitude da proteção aos direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, vemos o seguinte julgado acerca da interpretação realizada pela Corte Suprema sem realizar alteração textual, apenas da sua amplitude semântica: EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTS. 20 E 21 DA LEI N. 10.406/2002 (CÓDIGO CIVIL). PRELIMINAR DE ILEGITIMIDADE ATIVA REJEITADA. REQUISITOS LEGAIS OBSERVADOS. MÉRITO: APARENTE CONFLITO ENTRE PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS: LIBERDADE DE EXPRESSÃO, DE INFORMAÇÃO, ARTÍSTICA E CULTURAL, INDEPENDENTE DE CENSURA OU AUTORIZAÇÃO PRÉVIA (ART. 5º INCS. IV, IX, XIV; 220, §§ 1º E 2º) E INVIOLABILIDADE DA INTIMIDADE, VIDA PRIVADA, HONRA E IMAGEM DAS PESSOAS (ART. 5º, INC. X). ADOÇÃO DE CRITÉRIO DA PONDERAÇÃO PARA INTERPRETAÇÃO DE PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL. PROIBIÇÃO DE CENSURA (ESTATAL OU PARTICULAR). GARANTIA CONSTITUCIONAL DE INDENIZAÇÃO E DE DIREITO DE RESPOSTA. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE PARA DAR INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO AOS ARTS. 20 E 21 DO CÓDIGO CIVIL, SEM REDUÇÃO DE TEXTO. (…) privacidade, à honra e à imagem. 8. Para a coexistência das normas constitucionais dos incs. IV, IX e X do art. 5º, há de se acolher o balanceamento de direitos, conjugando-se o direito às liberdades com a inviolabilidade da intimidade, da privacidade, da honra e da imagem da pessoa biografada e daqueles que pretendem elaborar as biografias. 9. Ação direta julgada procedente para dar interpretação conforme a Constituição aos arts. 20 e 21 do Código Civil, sem redução de texto, para, em consonância com os direitos fundamentais à liberdade de pensamento e de sua expressão, de criação artística, produção científica, declarar inexigível autorização de pessoa biografada relativamente a obras biográficas literárias ou audiovisuais, sendo também desnecessária autorização de pessoas retratadas como coadjuvantes (ou de seus familiares, em caso de pessoas falecidas ou ausentes).6 (destaque) 5 HC nº 94.965 / RS. 2ª Turma. Min. Relator: Celso de Mello. Julgamento em: 23/09/2008. Publicação em: 06/02/2009. 6 ADI 4815/DF. Tribunal Pleno. Min. Relatora: Carmen Lúcia. Julgamento em: 10/06/2015. Publicação em: 01/02/2016. 12 A alteração da interpretação sem realizar uma efetiva alteração do texto constitucional é conhecida como “mutação constitucional”, fenômeno abundante no ordenamento jurídico brasileiro atual. Possui alicerce na “interpretação conforme a Constituição”, que, embora pareça carregar redundância, traduz o significado e o fim da sua investida por parte do STF. A primeira vez que este princípio – ou método – foi adotado pelo Supremo Tribunal Federal se deu na Representação n.º 1.417-7, do ano de 1987: REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO 3 DO ARTIGO 65 DA LEI ORGÂNICA DA MAGISTRATURA NACIONAL, INTRODUZIDO PELA LEI COMPLEMENTAR N. 54/86. - O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO (VERFASSUNGSKONFORME AUSLEGUNG) E PRINCÍPIO QUE SE SITUA NO ÂMBITO DO CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE, E NÃO APENAS SIMPLES REGRA DE INTERPRETAÇÃO. A APLICAÇÃO DESSE PRINCÍPIO SOFRE, PORÉM, RESTRIÇÕES, UMA VEZ QUE, AO DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DE UMA LEI EM TESE, O STF - EM SUA FUNÇÃO DE CORTE CONSTITUCIONAL - ATUA COMO LEGISLADOR NEGATIVO, MAS NÃO TEM O PODER DE AGIR COMO LEGISLADOR POSITIVO, PARA CRIAR NORMA JURÍDICA DIVERSA DA INSTITUÍDA PELO PODER LEGISLATIVO. POR ISSO, SE A ÚNICA INTERPRETAÇÃO POSSÍVEL PARA COMPATIBILIZAR A NORMA COM A CONSTITUIÇÃO CONTRARIAR O SENTIDO INEQUÍVOCO QUE O PODER LEGISLATIVO LHE PRETENDEU DAR, NÃO SE PODE APLICAR O PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO, QUE IMPLICARIA, EM VERDADE, CRIAÇÃO DE NORMA JURÍDICA, O QUE É PRIVATIVO DO LEGISLADOR POSITIVO. - EM FACE DA NATUREZA E DAS RESTRIÇÕES DA INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO, TEM-SE QUE, AINDA QUANDO ELA SEJA APLICÁVEL, O É DENTRO DO ÂMBITO DA REPRESENTAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE, NÃO HAVENDO QUE CONVERTER-SE, PARA ISSO, ESSA REPRESENTAÇÃO EM REPRESENTAÇÃO DE INTERPRETAÇÃO, POR SEREM INSTRUMENTOS QUE TÊM FINALIDADE DIVERSA, PROCEDIMENTO DIFERENTE E EFICÁCIA DISTINTA. - NO CASO, NÃO SE PODE APLICAR A INTERPRETAÇÃO CONFORME A CONSTITUIÇÃO POR NÃO SE COADUNAR ESSA COM A FINALIDADE INEQUIVOCAMENTE COLIMADA PELO LEGISLADOR, EXPRESSA LITERALMENTE NO DISPOSITIVO EM CAUSA, E QUE DELE RESSALTA PELOS ELEMENTOS DA INTERPRETAÇÃO LÓGICA. - O PARÁGRAFO 3 DO ARTIGO 65 DA LEI COMPLEMENTAR N. 35/79, ACRESCENTADO PELA LEI COMPLEMENTAR N. 54, DE 22.12.86, É INCONSTITUCIONAL, QUER NA ESFERA FEDERAL, QUER NA ESTADUAL. VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 57, II, 65 E 13, III E IV, BEM COMO SEU PARÁGRAFO 1, DA CARTA MAGNA. REPRESENTAÇÃO QUE SE JULGA PROCEDENTE, PARA SE DECLARAR A INCONSTITUCIONALIDADE DO PARÁGRAFO 3 DO ARTIGO 65 DA LEI COMPLEMENTAR N. 35/79, INTRODUZIDO PELA LEI COMPLEMENTAR N. 54, DE 22.12.86. (destaque)7 A ementa em questão traduz que a interpretação conforme a Constituição não pode ser usada no sentido de legislação positiva, estipular uma disposição normativa 7 RP. 1417 – DF. Tribunal Pleno. Min. Relator: Moreira Alves. Julgamento em: 09/12/1987. Publicação em: 15/04/1988. 13 pela interpretação distinta daquela pretendida pelo Poder Legislativo, pois, nesse caso, configuraria usurpação de Poderes. O disposto é ainda didático no sentido de expor que a interpretação não é ilimitada e ampla, devendo buscar sua própria finalidade em primor da própria norma constitucional. O instituto em voga serve para sanar a polissemia dos dispositivos constitucionais, excluindo a interpretação de natureza inconstitucional, v.g., a que propuser a diminuição ou limitação de direitos e garantias fundamentais. Assim, quando da publicação da Lei Maria da Penha, Lei n.º 11.340/2006, nasceram duas posições distintas acerca do núcleo desta norma: ao se estabelecer um tratamento diferenciado a homens e mulheres no tocante à política penal, haveria sido criada uma discriminação que privilegia determinado grupo em ofensa à igualdade, de que todos seriam iguais perante a lei, ou a distinção em questão estaria alicerçada em peculiaridades culturais e físicas entre homens e mulheres?8 Frente às duas posições, pode-se dizer que a discriminação ao arrepio do princípio da igualdade é flagrantemente inconstitucional ou que a mesma distinção com base em dados e em aspectos culturais e físicos aproxima homens e mulheres frente à dignidade, tornando-se uma medidaclaramente constitucional. Desta feita, a Corte Suprema entendeu pela intepretação que atribuía distinção constitucionalmente condizente com o propósito de coibir violência nas relações familiares (ADC n.º 19 – DF. Tribunal Pleno. Min. Relator: Marco Aurélio. Julgamento em: 09/02/2012. Publicação em: 29/04/2014). De maneira similar, quando do julgamento da ADI n.º 4.274, acerca da denominada Marcha da Maconha ser exercício da liberdade de expressão ou apologia a crime previsto na Lei de Drogas, foi dada a intepretação que tornasse o conteúdo constitucional (ADI n.º 4274 – DF. Tribunal Pleno. Min. Relator: Ayres Britto. Julgamento em: 23/11/2011. Publicação em: 02/05/2012). O princípio da interpretação conforme a Constituição se sobressai pelo ferramental de controle de constitucionalidade perante os demais princípios, os quais são alicerces da própria interpretação constitucional. No entanto, pode ser questionado se tal metodologia – ou forma de controle de constitucionalidade – conflita com princípios interpretativos, em especial o da unidade da constituição. Esse baluarte hermenêutico preconiza uma equidade hierárquica entre as próprias normas contidas no texto constitucional, coibindo contradições, especialmente no que tange às cláusulas pétreas de encontro às demais normas constitucionais. Mas não seria toda exegese realizada uma tentativa de equalizar as próprias normas constitucionais, priorizando uma em detrimento de outra? Por exemplo, o reconhecimento da união estável homoafetiva, com base nas garantias de direito de família, dignidade da pessoa humana e liberdade de foro íntimo, não estaria em confronto com o texto do §3º, Art. 226, que menciona precisamente a união estável entre homem e mulher? A unidade da constituição como bastião exegeta estabelece não o perecimento da norma em face de uma subsunção, mas fornece amplitude para o instituto da “união 8 NUNES JÚNIOR, Flávio Martins. Curso de Direito Constitucional. Revista dos Tribunais: São Paulo. 2017. 14 estável” de modo a abarcar outras formas afetivas para cumprimento das garantias e direitos do Art. 5º. Harmonizaram-se duas dinâmicas de direito dentro do sistema constitucional de normas: admitindo-se a união estável entre homem e mulher, e a união homoafetiva. Com base no princípio da correção funcional, temos que a hermenêutica irá priorizar a estabilidade entre os Poderes. Deu-se no caso da constrição de dotações orçamentárias para atender à demanda de agentes públicos com salários em atrasos, no Estado do Rio de Janeiro (ADPF 405 MC / RJ. Tribunal Pleno. Min. Relatora: Rosa Weber. Julgado em: 14/06/2017. Publicado em: 05/02/2018). Esses, entre outros, são uníssonos em estabelecer uma interpretação ou alteração semântica do conteúdo positivado constitucionalmente sem acarretar distorções jurídicas da norma em análise, justamente em homenagem à tripartição dos Poderes. Em sentido diverso, ampliando ou distorcendo desarrazoadamente, estaríamos falando em uma usurpação do poder legiferante. Assemelha-se ao princípio da concordância prática, que estatui pelo não esgotamento da norma constitucional posta em discussão pelo Judiciário: no conflito, deve valorar os efeitos da norma, equilibrá-los, mas sem esgotá-los de valor ou aplicação. Todos estes celebram o princípio da máxima eficácia e efetividade da Constituição, relacionado com a concretização da Constituição. Assim, o intérprete deverá aplicar o significado que atribuir maior eficácia às normas constitucionais. Todos esses princípios sobressaem na aplicação do método hermenêutico- concretizador, corroborado por Konrad Hesse, que consiste na exegese a partir do problema trazido aos olhos do Poder Judiciário. Busca homenagear a norma sem, contudo, menosprezar o caso em tela. Não se deve perder o texto constitucional de vista, para poder estar face ao problema, primando a norma sobre o conflito. No sentido contrário, no método tópico-problemático, prioriza-se a resolução de conflitos, estando a norma constitucional questionada aberta a interpretações subjetivas, para adaptar parcela de sua interpretação – uma entre muitas – ao problema. 1.2 A interpretação e eficácia normativa do preâmbulo constitucional Peculiar questão que possa surgir acerca da exegese aplicada à Constituição diz respeito a que valor ou eficácia pode-se atribuir ao preâmbulo. O preâmbulo disposto na Carta Magna de 05 de outubro e 1988 está disposto nos seguintes termos: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia [sic] Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a 15 proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Pelo conteúdo preceituado, tratou-se de uma fotografia do momento da promulgação do documento político. Inaugurou-se uma nova ordem constitucional com base naqueles valores ali declarados. Contudo, estaria tal formalidade caracterizada como norma constitucional? Aliás, poderia ser denominada norma constitucional programática? Diante disso, buscou-se algumas teorias acerca de seu peso jurídico, sendo três delas de especial valoração para sanar a dúvida: a da irrelevância jurídica, a da valoração jurídica direta (eficácia direta) e a da valoração jurídica reflexa (eficácia indireta). A que demanda maiores esclarecimentos é essa última: pela teoria da eficácia indireta, os prolegômenos constitucionais estariam consagrados como elemento norteador da interpretação e aplicação das normas constitucionais positivadas. Seria, portanto, um critério ou base exegética para o entendimento das normas constitucionais. Para além de um mero expediente ou formalidade, seria uma diretriz para as normas constitucionais. Pondo fim a essa questão, o STF vaticinou que não fosse norma central constitucional, conforme vemos a seguir: EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS. Constituição do Acre. I. – Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque, reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP (RTJ 147/404). II. – Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central. Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. – Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente9. Nesse sentido, entende-se não ser uma norma de matriz política; assim, não necessita ser reproduzida nas constituições estaduais, alinhada ao que conhecemos como princípio da simetria, que estabelece haver consonância das normas constitucionais dos Estados-membro com a da Constituição Federal. Após esse entender, a Min. Carmén Lúcia elucidou a querela novamente: (…) E, referindo-se, expressamente, ao Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988, escolia José Afonso da Silva que “O Estado Democrático de Direito destina-se a assegurar o exercício de determinados valores supremos. ‘Assegurar’, tem, no contexto, função de garantia dogmático-constitucional; não, porém, de garantia dos valores abstratamente considerados, mas do seu ‘exercício’. Este signo desempenha, aí, função pragmática, porque, com o 9 ADI 2.076, Min. Relator: Carlos Velloso, Julgamento em: 15/08/2002. Publicado em: 08/08/2003. 16 objetivo de ‘assegurar’, tem o efeito imediato de prescrever ao Estado uma ação em favor da efetiva realizaçãodos ditos valores em direção (função diretiva) de destinatários das normas constitucionais que dão a esses valores conteúdo específico” (…). Na esteira destes valores supremos explicitados no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1988 é que se afirma, nas normas constitucionais vigentes, o princípio jurídico da solidariedade.10 Também é compreendido que não há necessidade da reprodução da expressão ou signo acerca de Deus, ou de matriz religiosa propriamente. Como mencionado, foi o reflexo histórico de 1988 e, sendo norma de estatura constitucional, estaria sujeito à emenda constitucional para acrescer ou mudar signos de valores (filosóficos, ideológicos ou religiosos). Coube também o devido questionamento acerca da laicidade do Estado: mencionando a proteção de Deus, estaria o ordenamento jurídico sujeito a um valor predominantemente cristão em detrimento de outras crenças e filosofias? O entendimento é que não há essa valoração jurídica de cunho cristão, não sendo obrigatória também a reprodução dos termos específicos na promulgação das Constituições estaduais. No entanto, poder-se-ia sugerir que o conteúdo dos prolegômenos se aproxima de uma norma programática, no sentindo de estar consubstanciada em valores a serem alcançados. Assim, haveria valores sociais de cunho cristão quando da promulgação da Carta Política, que podem ser posteriormente alcançados quando da realização de políticas públicas. Paulo Roberto Lyra Pimenta classifica normas programáticas: (…) Com base nessa separação, evidencia-se que as normas programáticas criam para o particular o direito a algo, ou seja, direito a prestações positivas por parte do Estado, as quais podem consistir em prestações fáticas ou normativas. As normas programáticas em sentido estrito estabelecem programas, exigindo que o legislador os implemente por meio de lei, vale reafirmar. Sendo assim, criam para os seus destinatários direito subjetivo a prestações normativas, pois normas gerais deverão ser veiculadas por meio de lei para que o direito seja satisfeito. (…)11 De tal sorte, é entendido que, por meio da norma programática, será disparado um comando para o Estado alcançar o exercício de direito por parte de um cidadão. 10 ADI 2.649, voto Ministra Relatora Cármen Lúcia, Julgamento ocorrido em: 08-5-2008, P, DJE de 17-10-2008. 11 PIMENTA, Paulo Roberto Lyra. As normas constitucionais programáticas e a reserva do possível. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496554/000940642.pdf?sequence=1. Acesso em: 20 ago. 2019. 17 Podemos vislumbrar claramente o teor programático do Art. 6º, caput, e do Art. 7º, IV, da Carta Magna. Porém, torna-se mais nebuloso atribuir o mesmo entendimento para o preâmbulo. Pode-se afirmar, no entanto, que um valor a ser atingido não fica esgotado em um único dispositivo, sendo reforçado ao longo do texto constitucional. Podemos mencionar o princípio da legalidade, nas searas penal e tributária, acarretando limitações ao poder de império e garantindo equilíbrio democrático ao jurisdicionado na relação jurídica em curso – a defesa contra a acusação e a previsão legal cumprida quando da exação. Os direitos sociais mencionados no preâmbulo coadunam-se posteriormente ao Art. 6º, caput; também ao Título VIII, que trata da ordem social. Assim, temos diversos comandos constitucionais no sentindo de se alcançar determinado fim ao cidadão, tendo uma consonância temática e política com o outro. Da mesma forma, o preâmbulo constitucional encontra-se germinado por diversos dispositivos no decorrer do texto constitucional. 18 2. FEDERAÇÃO E SUAS CARACTERÍSTICAS REPRESENTADAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Conforme mencionado anteriormente, o Estado é a união de três elementos distintos: o povo, o território e a soberania. A Carta Magna de um país é o documento que o constitui uníssono entre aqueles três fatores. Nas palavras de Celso Ribeiro Bastos, o Estado é: (…) a organização política sob a qual vive o homem moderno. Ela caracteriza- se por ser a resultante de um povo vivendo sobre um território delimitado e governado por leis que se fundam num poder não sobrepujado por nenhum outro externamente e supremo internamente.12 O elemento que delineia o poder sobre o qual se funda encontra-se justamente no seu texto constitucional. Porém, em decorrência de fatores histórico-políticos, nem todo Estado organizou-se de maneira semelhante, o que reflete em elementos peculiares em sua constituição, caso comparemos com a brasileira. Nesse sentido, o nascimento de um Estado está indissociável do modo em que foi tecido seu respectivo Diploma Político. A cisão pela qual veio tal preceito deu-se pelo paradigma edificado após a Revolução Francesa. Tínhamos que o poder constituído era imbuído ao monarca, e a origem desse poder teria base metafísica e abstrata. A partir do Período das Revoluções, tal poder deveria estar constituído materialmente por intermédio das instituições de Estado. Uma Constituição reparte o todo o poder em esferas funcionais, como os Poderes Legislativo, Judiciário e Executivo, além de descentralizações administrativas, na forma de províncias, comunas, municípios ou unidades federadas. A soberania é exercida quando, de forma unitária, esse poder todo é avocado por uma descentralização administrativa de cunho maior, para expor qual o alcance da nova ordem jurídica. Para compreendermos melhor a natureza da Constituição Federal de 1988 e da República Federativa do Brasil, necessário se faz perscrutar as principais características acerca do Estado e as de uma federação, além de compreender os tipos de constituição. 2.1 O Estado e a Federação Historicamente, o ser humano sempre necessitou de uma força hierárquica forte e legitimada para impor ordem ao agrupamento do qual fazia parte. 12 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. SARAIVA: São Paulo, 1989, p. 10. 19 Entre os registros mais consolidados acerca dessa força, somos, primeiramente, remetidos à Grécia Antiga, e posteriormente, ao século XVI, com o tratado de Maquiavel. Tínhamos, portanto, que as constituições eram classificadas conforme a forma de governo vigente. No contexto da Grécia, havia constituições monárquicas, aristocráticas e democráticas13. A concepção mais sofisticada do atual modelo parlamentar remonta ao século XII, quando o rei inglês era assessorado por um conselho, composto em maioria por barões e vassalos. Mas o que compete ao atual Direito Constitucional refere-se à estruturação das Unidades Federativas, componentes de um Estado, e a como tais entes comportam- se frente à distribuição de competência na forma de sua Carta Magna. Uma federação perpassa pela questão territorial, onde entes agregados abrem parte de seu poder político para um ente maior representante do todo, a União. Assim, os entes de então tornam-se autônomos e o ente centralizador soberano. A federação está prevista no primeiro dispositivo constitucional, nos seguintes termos: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: No caso da Carta Magna de 1988, este fenômeno ocorre pela repartição de competências no seu texto, além das regras disciplinadoras e excepcionais aplicáveis (intervenção federal). Assim, para compreendermos melhor a institucionalização do Estado, adentraremos em novos conceitos, passando necessariamente pelas definições de dominância ou governo; a partir dessas, amoldam-se as formas de regime político e estruturação do Estado, como instituição. Assim, a monocracia, ou monarquia, caracteriza-se por ser o governo exercido por um único ente.Os poderes então constituídos voltam-se na centralização desse governante absoluto. O exemplo mais icônico está na figura do reino de Luís XIV, o rei sol, famoso pela expressão L’Êtat c’est moi14. Essa referência expõe muito bem a centralidade do poder na figura de uma pessoa, conforme a metáfora do sol, cujos raios atingem toda extensão da terra durante o dia. A estrutura mais moderna, desde a monarquia absoluta, consiste na monarquia parlamentar. Nesse modelo, dentre diversas formas de figurações dos seus Poderes, a Chefia de Estado ainda está consubstanciada na figura do monarca, enquanto a Chefia de Governo é exercida por um agente eleito pelo Parlamentar, órgão deliberativo e representativo da população. 13 BASTOS, Celso Ribeiro. Op. Cit. p. 46. 14 O Estado sou eu. 20 Naturalmente, o sistema de freios e contrapesos é exercido nos moldes instituídos pela Carta Política vigente. Dando seguimento, há um termo deveras abrangente, referente à oligarquia, na qual o governo é exercido por uma classe social ou estamental. Com uso também de maneira pejorativa, tem-se nos moldes da aristocracia, não bastando que haja uma forma constituída juridicamente nos moldes da sua Constituição, mas sim que pragmaticamente uma classe específica usurpe institucionalmente os Poderes para seus próprios interesses. A última das três principais formas e mais moderna consiste na democracia, o governo realizado pelo próprio povo. Pragmaticamente difícil de ser exercida ao pé da letra, este regime viabiliza-se predominantemente pela representatividade indireta, na qual o povo, possuidor do poder constituído, elege um mandatário para representá-lo; e, excepcionalmente, exercido de maneira direta pelo povo. Seria o caso, conforme a Constituição Federal de 1988, do exercício dos institutos do plesbicito e do referendo, além da hipótese de iniciativa popular de leis. A República Federativa do Brasil é caracterizada nesse modelo e contém previsão expressa no parágrafo único do Art. 1º da Carta Magna, em que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”15. Minuciosamente a esses conceitos, existe uma forma de definir o sistema, a forma como se dá a dinâmica entre os Poderes, especialmente o Legislativo e o Executivo, no tocante ao sistema de controle e o relacionamento institucional. Nesse sentido, teremos os sistemas de governo. Um dos mais tradicionais é justamente o parlamentarismo, no qual o Poder Legislativo e o Executivo estão entrelaçados institucionalmente e aquele realiza um controle mais amplo sobre este último. Consiste em um sistema para monarquias e para repúblicas, embora sejam mais conhecidas as monarquias parlamentares. A pessoa incumbida da Chefia de Governo é escolhida pelo Parlamento, este o representante do povo. De maneira distinta, o presidencialismo, sistema vigente no Brasil, consiste na união da Chefia de Governo e da Chefia de Estado numa única pessoa, eleita pelo povo, havendo maior cisão relacional entre o Poder Executivo e o Legislativo, mas sem haver abolição do controle externo. O presidencialismo não abre mão do sistema de freios e contrapesos (checks and balances) apesar de ter essa dinâmica distinta do parlamentarismo. Assim, entre as competências exclusivas do Congresso Nacional, há a autorização para o Presidente da República declarar guerra ou celebrar paz (Art. 49, II) e para que se ausente do país por mais de quinze dias (Art. 49, III), e os casos de composição de cargos a serem sabatinados pelo Senado Federal quando escolhidos pelo Presidente da República (Art. 52, III, “b” e “d”) ou de realizar o processo e julgamento do Presidente da República em crimes de responsabilidade (Art. 52, I). As principais questões polêmicas acerca do controle externo ou da invasão de competências diz respeito à realização de atos por parte do Poder Legislativo ou a edição de normas pelo Poder Executivo. Este o faz de maneira mundana, quando 15 BRASIL. Constituição (1988), de 05 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm. Acesso em: 12 set. 2019. 21 deveria fazê-lo excepcionalmente, como o caso de medidas provisórias. Podemos conjeturar essa circunstância nos moldes do seguinte julgado: EMENTA CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. MEDIDA PROVISÓRIA. ESTABELECIMENTO DA ORGANIZAÇÃO BÁSICA DOS ÓRGÃOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA E DOS MINISTÉRIOS. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 62, CAPUT e §§ 3º e 10, CRFB. REQUISITOS PROCEDIMENTAIS. REJEIÇÃO E REVOGAÇÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA COMO CATEGORIAS DE FATO JURÍDICO EQUIVALENTES E ABRANGIDAS NA VEDAÇÃO DE REEDIÇÃO NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA. INTERPRETAÇÃO DO §10 DO ART. 62 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONVERSÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE SUPERVENIENTE. ADITAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. PRECEDENTES JUDICIAIS DO STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE. (…) 4. O argumento de desvio de finalidade para justificar o vício de inconstitucionalidade de medida provisória, em razão da provável direção de cargo específico para pessoa determinada não tem pertinência e validade jurídica, porquanto, na espécie, se trata de ato normativo geral e abstrato, que estabeleceu uma reestruturação genérica da Administração Pública. Esse motivo, inclusive, autorizou o acesso à jurisdição constitucional abstrata. 5. Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada, nos termos do prescreve o art. 62, §§2º e 3º. Interpretação jurídica em sentido contrário, importaria violação do princípio da Separação de Poderes. Isso porque o Presidente da República teria o controle e comando da pauta do Congresso Nacional, por conseguinte, das prioridades do processo legislativo, em detrimento do próprio Poder Legislativo. (…) (ADI n.º 5.709 – DF. Tribunal Pleno. Min. Relatora: Rosa Weber. Julgamento em: 27/03/2019. Publicação em: 28/06/2019) Tem-se, assim, que a Federação constituída para o Brasil é descentralizadora. A União Federal exerce maior poder e cumpre maiores competências, como a emissão de moeda (Art. 21, VII) e a realização de serviços de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras (Art. 21, XXII), afinal ela representa a República Federativa do Brasil no âmbito internacional. Entretanto, a União pode estipular regras genéricas e amplas (Art. 24, §1º), ou ainda, exercer competência comum com os Estados, DF, Territórios e Municípios, sendo que estes a exercem nas suas peculiaridades (Art. 23). Como exemplo, há a competência comum elencada nos Incisos do Art. 23, como a de proteção ao meio ambiente e combate à poluição (Art. 23, VI). Já, de maneira concorrente, a União e os Estados poderão legislar sobre direito financeiro e penitenciário (Art. 24, I), sendo o caso de a União estabelecer apenas regras gerais para os demais entes (Art. 24, §1º). Historicamente, a instituição do presidencialismo fora definida por intermédio de um plebiscito, conforme prescrição do Art. 2º do Atos das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT. 22 Na letra do dispositivo, constava que: no dia 7 de setembro de 1993 o eleitorado definirá, através de plebiscito, a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) que devem vigorar no País (BRASIL, 1992). Foi, no entanto, antecipado para o dia 21 de abril de 1993, por força da Emenda Constitucional n.º 02 de 1992, e foram escolhidos como forma de governo a república e como sistema de governo o presidencialismo. A questão que pode ser suscitada com relação a isso é se um plebiscito de estatura constitucional estaria consubstanciado como cláusula pétrea. Afinal, as normas do ADCT são em sua maioria referentesa questões transitórias e adaptativas de uma ordem constitucional a outra. Esse debate foi trazido à tona em virtude do Mandado de Segurança n.º 22.972, do Distrito Federal. O remédio constitucional foi impetrado no ano de 1997 contra a tramitação da PEC n.º 20-A, de 1995, que tratava da implementação do parlamentarismo no Brasil. Ocorre que, pelo transcurso do tempo, os autores do mandamus não estão mais exercendo cargo como parlamentares; em razão disso, foi homologada a desistência da ação16. Assim, veio à tona a possibilidade de rediscutir a satisfação do povo com sistema e forma de governo, principalmente depois de muitos escândalos de corrupção e ingerência entre cargos do alto escalão dos Três Poderes. No entanto, é um debate que não se encontra pacificado, havendo posicionamentos voltados para a natureza de cláusula pétrea e outros advogando pela possibilidade de haver uma mudança. Conforme estipulado no Art. 60, §4º, Incisos I ao IV, da Carta Maior, não podem ser objeto de emendas constitucionais com o intuito de abolir a forma federativa de Estado: o voto direto, secreto, universal e periódico; a separação dos Poderes; e os direitos e garantais individuais. A doutrina e a jurisprudência entendem que o intuito de abolir também compreende a ideia de limitar as referidas matérias. No entanto, não há impeditivo para que haja mudança para instituto semelhante ou alternativa, desde que não implique limitação ou eliminação. Seria o caso da possibilidade de haver uma EC tornando o voto em facultativo. Nos dizeres do Min. Sepúlveda Pertence: (…) de resto as limitações materiais ao poder constituinte de reforma, que o art. 60, § 4º, da Lei Fundamental enumera, não significam a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege17. 16 STF extingue processo que discutia parlamentarismo. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI281505,21048- STF+extingue+processo+que+discutia+parlamentarismo. Acesso em: 30 ago. 2019. 17 ADI nº 2.024 – DF. Tribunal Pleno. Ministro Relator: Sepúlveda Pertence. Julgamento em 03 maio 2007. Publicado em: 22 jun. 2007. 23 Todavia, no rol mencionado não estão expressos como cláusula pétrea o sistema e a forma de governo. Daí, então, há o posicionamento pela possibilidade de mudar o sistema e a forma de governo. Pode-se, no entanto, questionar se o parlamentarismo afetaria a separação dos Poderes (Art. 60, §4º, III). CARACTERÍSTICAS DO GOVERNO NO BRASIL REGIME SISTEMA FORMA Democracia Presidencialismo República Fonte: Gomes, 2019. 2.2 Tipos de constituição Após vermos as principais características dos sistemas e formas de organização de um governo, conhecer a classificação das constituições permite-nos ver como Constituição e Estado se amoldam de maneira harmoniosa. Tendo como critério a origem, as principais classificações voltam-se para o modelo de outorga, democrática, cesarista e dualista. Constituição outorgada, também denominada de autocrática, consiste na carta resultante da outorga do agente em poder, que unilateralmente a impõe ao povo. Na história do Brasil, as Constituições de 1824, de 1937 e de 1967 (e a EC n.º 01 de 1969) nasceram da vontade do grupo dominante. Daí podemos considerar que sejam modelos pouco simpáticos para uma república democrática. No sentido oposto, a constituição democrática nasce da vontade popular – democraticamente. No exemplo recente, a Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 da República Federativa do Brasil nasceu desse modelo, no qual o povo estava representado na Assembleia Nacional Constituinte. Além do atual Texto Republicano, o Brasil já teve como constituição democrática a de 1891, a de 1934 e a de 1946. Quanto às formas cesaristas e dualistas, não existiram no curso da história do Brasil. A cesarista, também chamada de bonapartista, nasce de duas forças, exercendo atos contíguos: primeiramente, ela nasce do ato unilateral do poder dominante, e posteriormente é referendada pelo povo. Um exemplo deste modelo é a Carta Constitucional elaborada pelo General Augusto Pinochet, em 1981, no Chile. Por fim, a dualista, ou pactuada, nasce da colisão de duas classes ou poderes antagônicos. Historicamente, nasceu em virtude da decadência de uma monarquia e a ascensão de burgueses. Acerca da elaboração, costuma haver duas classificações: dogmáticas e históricas. As dogmáticas são sistematizadas, elas nascem a partir de valores e princípios vigentes em uma determinada época. Inauguram uma nova ordem a partir dos valores 24 de sua época (o repúdio ao racismo e o pluralismo político, por exemplo). A Carta Magna de 1988 é dogmática, o que pode ser constatado de maneira clara quando lemos o preâmbulo. As históricas nascem em virtude das tradições em curso, consolidando-se em torno de leis costumeiras. Não é comum em nosso legado do direito romano. Temos como principal exemplo, e talvez o maior, a Constituição inglesa. Com relação ao rigor empregado para a mutabilidade do texto constitucional – a sua estabilidade –, podem ser denominadas como imutável e rígida. Há variações conforme a doutrina, como o caso da super-rígida ou da semirrígida. Nesse aspecto, a atual Carta Magna do Brasil pode ser considerada rígida ou super-rígida, conforme a lavra doutrinária. A rigidez é conferida pelo grau de obstáculos ou rigor para realizar uma mudança no texto constitucional. Há, assim, um rito próprio, distinto do rito legislativo para as demais normas, além das limitações pétreas (Art. 60, §4º). Se a Constituição Brasileira, em seu todo, for rígida, pode-se afirmar que as cláusulas pétreas façam parte do texto constitucional super-rígido. As demais classificações elencadas pela Doutrina permitem estabelecer uma maior inter-relação entre as denominações18. A título de exemplo, a constituição- garantia (classificada de acordo com a finalidade) assemelha-se à sintética (taxinomia empregada pela extensão) por serem consideradas constituições negativas, uma vez que buscam limitar a atuação do Estado frente à emancipação do indivíduo-cidadão. No sentido contrário, a constituição-dirigente se amolda com muita facilidade à denominação analítica, por haver uma extensa e detalhada disposição acerca das finalidades que o Estado deve alcançar. Temos como um claro modelo a Constituição de 1988. Considerando o conteúdo textual, as constituições podem ser nominadas como material ou formal. Essa classificação é importante considerando o histórico da teoria política, remetendo aos estudos de Carl Schmitt. A constituição material seria não apenas o texto constitucional em si, mas também os dispositivos específicos, referentes à estrutura do Estado e à vida política do país. Permite, então, haver normas de matriz constitucional fora do texto constitucional. Nesse diapasão, o Código Eleitoral e a Lei dos Partidos Políticos seriam normas materialmente constitucionais, por disciplinarem a participação da pluralidade social e o exercício da soberania popular pelo voto. Já quanto ao sentido formal de constituição, basta considerar como de estatura constitucional qualquer conteúdo do texto constitucional. Por essa perspectiva, o Art. 242, §2º, que mantém o Colégio Pedro II na esfera federal, está em nível de igualdade com qualquer outra norma politicamente relevante do texto constitucional. Frente a isso, a Carta Republicana de 1988 se aproxima do conceito formal, não havendo distinção do teor dos dispositivos constitucionais nem se considerando normas infraconstitucionais como constitucionais em razão da matéria. Exceção a esta hipótese consiste na previsão de os Tratados Internacionais de Direitos Humanos aprovados por quórum de Emenda Constitucional terem a natureza jurídica destas últimas (Art. 5º, §3º),mesmo sendo elas leis. 18 AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 96 25 Quanto aos tratados internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pelo rito legislativo ordinário, adquirirão o status de supralegal. Portanto, a título de exemplo, são equivalentes a emendas constitucionais a Convenção sobre Direito das Pessoas com Deficiência (Decreto n.º 6.949, de 25 de agosto de 2009) e o Tratado de Marraqueche para Facilitar o Acesso a Obras Publicadas às Pessoas Cegas, com Deficiência Visual ou com Outras Dificuldades para Ter Acesso ao Texto Impresso (Decreto n.º 9.522, de 8 de outubro de 2018). Tendo em vista essa diversidade de nomenclaturas ao texto constitucional, pode-se observar que não há uma superação de uma definição por outra mais nova, mas eventualmente tal fato pode ocorrer. O que ocorre com mais frequência é a complementação entre as definições trazidas e como se amoldam a um e outro sistema ou regime governamentais, até pela natureza histórica e circunstancial da sua realização. 26 REFERÊNCIAS AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2018. BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e democracia. Disponível em: http://www.direitofranca.br/direitonovo/FKCEimagens/file/ArtigoBarroso_para_Seleca o.pdf. Acesso em: 12 ago. 2019. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. São Paulo: Saraiva, 1989. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. Salvador: Juspodivm, 2017. NUNES JÚNIOR, Flávio Martins. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. PIMENTA, Paulo Roberto Lyra. As normas constitucionais programáticas e a reserva do possível. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496554/000940642.pdf?sequen ce=1. Acesso em: 20 ago. 2019.
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