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1 POR QUE AS PÍLULAS NÃO PODEM EDUCAR? Tácito Carderelli da Silveira Crer que se pode fundar a segurança da filiação no fato biológico é uma das maiores ilusões de nosso tempo. Irène Théry Se nos perguntássemos por que, nas últimas duas décadas, as crianças estão sendo cada vez mais medicadas para aprenderem e se comportarem melhor, teríamos várias respostas possíveis, mas elas provavelmente partiriam de duas perspectivas diferentes, que se opõem entre si. Para alguns essas crianças são portadoras de determinados transtornos psiquiátricos, descritos e supostamente comprovados pela ciência médica, ao que tudo indica herdados geneticamente e que prejudicam o bom funcionamento de seus cérebros, órgão responsável por suas aprendizagens e comportamentos. Para estes, trata- se de um problema cujos principais fatores determinantes são indiscutivelmente de base neurobiológica, devendo ser enfrentados, em muitos casos, preferencialmente pela via medicamentosa, no sentido de restabelecer o adequado funcionamento neuroquímico. Os fatores ditos ambientais podem contribuir mais ou menos, dependendo do caso, mas não devem ser considerados como a principal causa para esses transtornos. Para outros, entre os quais me incluo, as crianças estão tomando os chamados psicofármacos porque seus comportamentos perturbadores e seus baixos desempenhos escolares estão deixando os adultos, pais e professores, confusos e inseguros a respeito do que fazer para contornar tais problemas. E que ao invés de procurarmos as supostas causas em seu funcionamento cerebral, deveríamos contextualizá-las em relação à nossa contemporaneidade, procurando conhecer a dinâmica atual de instituições sociais importantes como a família e a escola para entender de que forma elas, tentando enfrentar seus novos desafios, participam desse estado de coisas. Para estes, além de ocultar importantes questões de ordem social e política, tal fenômeno representa uma das faces de um movimento muito maior e também mais lucrativo que afirma ser o consumo dessas substâncias o caminho mais curto e eficaz para a solução de não poucos problemas que experimentamos em nossa pós, hiper ou líquida modernidade. 2 Para Moysés & Collares (2011): Nas sociedades ocidentais, é crescente a translocação para o campo médico de problemas inerentes à vida, com a transformação de questões coletivas, de ordem social e política, em questões individuais, biológicas. Tratar questões sociais como se biológicas iguala o mundo da vida ao da natureza. Isentam-se de responsabilidades todas as instâncias de poder, em cujas entranhas são gerados e perpetuados tais problemas. [...] A medicalização naturaliza a vida. (MOYSÉS & COLLARES, 2011, p. 134). As divergências e antagonismos entre essas duas posições têm a ver, portanto, com os diferentes pressupostos nos quais elas se baseiam, por isso seria muito difícil supor que haveria, no contexto atual, um pensamento capaz de fazer convergir tais perspectivas. Tanto é assim, que dessa polarização no campo das ideias, decorre também um embate no campo social, pois seus desdobramentos e consequências afetam, direta ou indiretamente, a vida de muitas pessoas. De qualquer forma, isso não significa que não devamos continuar debatendo, ao contrário, pois somente assim teremos mais elementos para analisar de forma mais ponderada e menos superficial toda esta polêmica. Mas nosso objetivo, nesta comunicação, não será o de aprofundar essas divergências, mas sim tentar responder à pergunta formulada no título, isto é, procuraremos demonstrar como, além de evitar o debate sobre as condições atuais tanto da família quanto da escola, a utilização de medicamentos para tratar dificuldades relacionadas à educação pode, muitas vezes, não só gerar efeitos iatrogênicos como também acabar frustrando as expectativas daqueles que acreditam ser esta a resposta mais efetiva para impasses desse tipo. E para isso buscaremos problematizar algumas questões que possivelmente estariam na origem deste fenômeno, bastante representativo da nossa época, embora frequentemente desconsideradas por aqueles que acreditam estarmos diante de uma verdadeira epidemia de doenças mentais1. 1 Conforme sugere o título de um artigo da médica americana Marcia Angell (2011) publicado na Revista Piauí e que faz duras críticas à expansão e medicalização das chamadas doenças mentais. 3 Num artigo publicado em meados da década de noventa, Lajonquière fez um diagnóstico interessante a respeito de algumas dificuldades enfrentadas pela escola e pelos educadores naquele momento. Ele escreveu: É provável que, no futuro, as últimas décadas deste século fiquem gravadas na memória pedagógica como a época dos ‘problemas de aprendizagem’ (...) Entretanto, se tomarmos uma certa distância da história oficial que o discurso pedagógico hegemônico parece estar escrevendo, e nos determos, pelo contrário, nas conversas com nossos colegas, é possível concluir que o mal da educação atual não seria apenas um, mas dois, pois haveria de se acrescentar a chamada indisciplina escolar. (LAJONQUIÈRE, 1996, p. 25). Olhando em perspectiva tal afirmação, somos levados a pensar que não apenas a última década do século passado teria sido palco desse tipo de dificuldades, afinal de contas, tanto os problemas de aprendizagem quanto a indisciplina escolar são antigos protagonistas da cena educativa. No entanto, mesmo que o cenário não tenha mudado muito, o que de fato parece ter se modificado foi a forma como esses dois problemas relacionados à educação passaram a ser identificados, diagnosticados e tratados nas últimas décadas. E possivelmente aí, na maneira como pais, professores e especialistas têm tentado responder a esses impasses, possamos acompanhar algumas das transformações importantes que o tempo vem imprimindo nessas duas instituições que, por serem co-responsáveis pelos processos de transmissão e filiação das novas gerações, constituem a base das nossas sociedades. Segundo alguns autores (ANGELL, 2011; GUARIDO, R. & VOLTOLINI, R., 2009; MOYSÉS & COLLARES, 1992/2011; SOUZA, 2010; UNTOIGLCH, 2011, entre outros), o que estamos assistindo é um processo de expansão da medicalização da sociedade, em sentido amplo, mas que no caso específico da educação ele é também decorrente do entrecruzamento de outros fenômenos contemporâneos. De um lado, temos a associação entre os interesses financeiros da indústria farmacêutica e a formulação de manuais de psiquiatria, cujo principal objetivo é multiplicar as categorias psicopatológicas a partir da ampliação dos critérios diagnósticos e, com isso, obviamente, propagar a utilização em massa dos psicofármacos. E de outro, o fato de 4 vivermos em uma cultura que demanda cada vez mais por soluções rápidas2 para qualquer expressão de nosso mal-estar, somado a um progressivo esvaziamento do valor simbólico da palavra, o que certamente dificulta bastante qualquer possibilidade de transmissão. Em suma, enquanto a palavra vem perdendo valor no mercado das trocas simbólicas, os psicofármacos surgem como a mais nova “solução” para um velho problema: o fracasso escolar. Diante disso, pareceria até desnecessário questionar ou debater a respeito de quaisquer aspectos pedagógicos, psicológicos ou mesmo sociais eventualmente relacionados às crianças que não estão aprendendo ou se comportando como deveriam, basta aceitarmos resignadamente que, de acordo com as evidências científicas reveladas pelas pesquisas no campo médico, elas sofrem de transtornos neuropsiquiátricos, isto é, elas estão doentes e, como tal, devem ser tratadas3. A despeito de supostas evidências, é justamente isto que nos interessa questionar, pois não nos parece razoável supor que estamos diante de uma “mutação genética” que, de forma maisou menos caprichosa, esteja alterando o funcionamento neurológico de toda uma geração de crianças e jovens, prejudicando-lhes “exclusivamente” a aprendizagem e o comportamento. E mesmo que se diga que esses problemas não são novos, o que se sabe é que eles ainda não foram definitivamente comprovados4. Sendo assim, estamos praticamente convencidos de que se trata de mais um sintoma da nossa contemporaneidade, fortemente influenciado por um discurso cientificista que ocupa quase a totalidade do campo educativo, seja ele escolar ou familiar. 2 É muito conhecido entre nós um jargão repetido ad nauseam por programas de venda na TV e que até se tornou tema de um programa de humor que diz: “Seus problemas acabaram...”. Emblema da nossa cultura, narcísica e consumista, essa expressão mostra o quanto ainda somos seduzidos por esse tipo de (falsas) promessas. 3 Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, Transtorno Desafiador Opositivo, Transtornos da Aprendizagem são algumas das psicopatologias descritas pelos manuais de psiquiatria. 4 Nos textos: A história não contada dos distúrbios de aprendizagem, 1992 e O lado escuro da dislexia e do TDAH, 2011, Moysés & Collares produzem uma revisão histórica detalhada e aprofundada dessas supostas doenças que afetam aprendizagem e comportamento, e nos convidam a “uma viagem que passa ao largo de evidências científicas, rigor metodológico, ética; em síntese, ao largo da ciência” (p. 137, 2011). 5 Em outras palavras, o que está se passando com as crianças, bem como com os adolescentes5, diz respeito a nós adultos de maneira inescapável, embora muitos não pareçam dispostos a aceitar este fato. Por isso, ao falarmos de sintoma, a partir de uma perspectiva da psicanálise, estamos nos referindo a algo que, à nossa revelia, isto é, inconscientemente, “fala” de/em nós. E a estes fenômenos que, pela sua incidência e permanência, caracterizam ou representam uma determinada época, a psicanálise chama de sintoma social. Se de fato é disso que se trata, e é esta nossa hipótese, então somos levados inevitavelmente à seguinte questão: o que este sintoma (nos) fala, embora muitos não queiram escutar? Para tentarmos responder a esta pergunta, devemos partir da premissa de que a educação, isto é, aquilo que se passa na vida cotidiana entre adultos e crianças, não é um processo natural, biologicamente determinado, mas um processo de filiação simbólica que constitui um sujeito, posicionando-o em relação a uma determinada história e tradição no interior do campo da palavra e da linguagem. Nesse sentido, devemos considerar que somente através da palavra este processo pode ser colocado em marcha. Simplesmente porque a palavra é a ferramenta educativa por excelência e somente endereçando a palavra a uma criança podemos educá-la. Quer dizer, a educação para um sujeito implica dirigir a palavra a uma criança, falar com ela. (LAJONQUIÈRE, 2010). Tanto é assim que, segundo Dufour: ...a transmissão de narrativas foi por todo o sempre um meio utilizado pela geração dos pais para a formação da geração seguinte. Transmitir uma narrativa é, com efeito, transmitir conteúdos, crenças, nomes próprios, genealogias, ritos, obrigações, saberes, relações sociais... mas é também e antes de tudo transmitir um dom de palavra. É fazer passar de uma geração a outra a aptidão humana para falar, de modo que o destinatário da narrativa possa, por sua vez, identificar-se como si e situar os outros a seu redor, antes dele e depois dele, a partir desse ponto. (DUFOUR, 2005, p. 128). Portanto, para que possamos demonstrar o quanto os adultos, representantes de uma determinada geração, estarão sempre implicados, enquanto sujeitos, naquilo que transmitem às gerações seguintes, faz-se necessário des-naturalizar os processos de 5 Embora estejamos quase sempre nos referindo às crianças, pois para a psicanálise a infância é o tempo próprio da constituição subjetiva, faremos também referência aos adolescentes, uma vez que estes sujeitos são, por conta de suas dificuldades, igualmente afetados pelo processo de medicalização da educação. 6 filiação simbólica. E isso é o mesmo que dizer que são os nossos sonhos, medos e desejos em relação a um futuro que deverão balizar a maneira como estabelecemos as trocas intergeracionais. É de fundamental importância considerar também que entre uma geração e outra sempre se instala uma diferença, que nenhuma educação será capaz de apagar. O que a educação pode (e deve) fazer é dar à criança a possibilidade de deslocar-se dessa condição de estranho, para assim tornar-se pouco a pouco mais familiar. Mas o impossível da educação, ao qual se refere o aforismo freudiano6, está justamente em fazermos da criança um clone, isto é, um ser perfeitamente adequado à nossa imagem e semelhança, aos nossos mais secretos votos narcísicos. É exatamente isto o que nos faz sonhar com uma suposta “criança ideal” – em casa ou na sala de aula – e é por isso também que nos sentimos frustrados quando nos deparamos com essas crianças e adolescentes, de carne e osso, que com seus “transtornos” insistem em jogar na nossa cara que nossas aspirações não são totalmente realizáveis. É precisamente sobre isto que nos adverte Voltolini ao afirmar que: Todo aquele que se aventurar no campo educativo (haverá alguém que possa escapar dele?) terá que se confrontar, mais cedo ou mais tarde, com a decepção. Os resultados atingidos estarão sempre aquém daqueles imaginados no ponto de partida. (VOLTOLINI, 2011, p. 27). Contudo, se acreditamos que os tropeços nas aprendizagens ou a falta de controle nos comportamentos são manifestações de uma patologia – individual e orgânica – que afeta o funcionamento cerebral das crianças e adolescentes, tentamos justamente evitar o reconhecimento (inevitável) do quanto estamos implicados na situação. Ou ainda, quando apostamos que o uso dos medicamentos poderá trazer, além de um ansiado alívio do nosso mal-estar, uma resposta definitiva às nossas angústias e frustrações, tentamos mais uma vez escapar ao confronto (inescapável) com essa impossibilidade – estrutural e não contingente – das crianças não poderem corresponder totalmente aos nossos ideais narcísicos. 6 Para Freud há três profissões impossíveis de serem realizadas de maneira absoluta: educar, governar e analisar. O que nos obriga, portanto, a realizá-las continua e indefinidamente, conscientes de que o preço a pagar é a renúncia aos nossos ideais narcísicos. Em outras palavras, não temos como fazer do outro um ser idêntico a nós, pois isto seria tão mortal como Narciso diante de sua imagem refletida na superfície do lago. 7 Sendo assim, ao insistirmos em substituir nossa palavra adulta no ato de educar por um medicamento qualquer, desimplicando-nos subjetivamente de assumir suas consequências, condenamos a criança a experimentar um vazio em relação ao lugar que deveria ser ocupado por um sujeito, em posição de educador. Esse vazio pode representar a ausência das coordenadas necessárias para a criança atravessar seu mais ou menos tortuoso processo de subjetivação, e permanecer não mais na condição de um estranho, mas sim na de um selvagem ou extraterrestre, pois, segundo Lajonquière: Não há educação possível se o pequeno-ser está marcado a fogo pela selvageria ou pela extraterritorialidade. Por isto, se as crianças ficam à margem, é porque simplesmente as deixamos de lado quando renunciamos ao ato de educar. Deixamo-las de lado para nada virmos a saber delas, d’isso “mesmo” que nos faz estranhos a nós mesmos. A renúncia dos “adultos” ao ato de educar é uma forma de infanticídio (LAJONQUIÈRE, idem, p. 219). Vale ressaltar, antes de concluir, queem momento algum estamos negando ou subestimando o fato de que existam crianças e adolescentes que apresentam problemas, às vezes graves e preocupantes, em seus processos de escolarização e socialização, bem como que os psicofármacos não possam trazer uma melhora na qualidade de vida de muitos sujeitos cujo nível de sofrimento psíquico representa o rompimento de laços sociais e o consequente isolamento. Nosso propósito foi demonstrar, nesta breve reflexão, algo que nos parece evidente e que justamente por isso não pode ser ocultado ou silenciado. A saber, o fato, praticamente irrefutável, de que estamos vivendo um processo de excessiva medicalização da vida, impulsionado não só por uma proliferação injustificável de patologias psiquiátricas, bem como por interesses financeiros de uma indústria em plena economia ultraliberal, mas, sobretudo, por não conseguirmos suportar os efeitos que a renúncia aos nossos ideais representa e preferirmos acreditar que a solução definitiva para isso deve estar nos “remédios da alma”, conforme propõe a etimologia do termo psicofármaco. Em suma, não há educação sem palavras, não há educação sem um sujeito, sempre implicado naquilo que fala e, consequentemente, responsável pela transmissão oral entre gerações. Isso nos parece suficiente para afirmar que nenhuma substância química, seja ela qual for, poderia ocupar ou substituir o lugar da palavra de um adulto 8 cuja tarefa é educar, pois não teria como produzir os efeitos subjetivantes próprios ao ato educativo, embora possa produzir outros efeitos não tão educativos assim. Será que conseguimos responder à questão de por que as pílulas não podem de fato educar? Referências bibliográficas ANGELL, M. A epidemia da doença mental. Revista Piauí, n. 59, ano 5. Rio de Janeiro: Editora Alvinegra, agosto/2011. DUFOUR, D.-R. A arte de reduzir as cabeças: sobre a nova servidão na sociedade ultraliberal . Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2005. GUARIDO, R. & VOLTOLINI, R. O que não tem remédio, remediado está? Educação em Revista. Belo Horizonte, MG, v. 25, n. 01, PP. 239-263, abr. 2009. JERUSALINSKY, A. & FENDRIK, S. (orgs.). O livro negro da psicopatologia contemporânea. São Paulo: Via Lettera, 2011. LAJONQUIÈRE, L. 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