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35 Unidade 3 Libras: variações, iconicidade e arbitrariedade linguística Como vimos, a Libras é linguisticamente estruturada, portanto apresenta variações linguísticas e iconicidade própria como qualquer língua que se estrutura por meio de sinais icônicos e arbitrários, aspec- tos que serão abordados no decorrer desta unidade. Variações linguísticas Nas mãos de seus mestres, a Língua de Sinais é extraordinariamente bela e expressiva, um veí- culo para o qual nem a ciência, nem a arte produziu um substituto à altura. Aqueles que não a entendem falham em perceber as suas possibilidades para os surdos, sua poderosa influência sobre o moral e a felicidade social daqueles que são privados da audição, e seu admirável poder de conduzir o pensamento a mentes que, de outro modo, estariam em perpétua escuridão. Tampouco podem avaliar o poder que ela tem sobre os surdos. Enquanto houver dois surdos sobre a face da Terra e eles se encontrarem, haverá sinais. J. Schuyler Long (1910) Esse pensamento reflete a riqueza da Língua de Sinais e as possi- bilidades por ela proporcionadas aos surdos. Mais adiante, você terá contato com o alfabeto manual. Sobre ele também pairam algumas crenças equivocadas, como a de que ele é suficiente para o estabele- cimento da comunicação com os surdos, enquanto ele é apenas um recurso da Libras. 36 Na unidade anterior, vimos que as Línguas de Sinais, assim como as línguas orais, apresentam, em sua estrutura, um sistema linguístico e gramatical complexo, que exige a prática constante da língua pela pessoa surda, de modo a desenvolver sua fluência, e requer o estudo sistemático de sua estrutura para que seja usada de maneira coerente, como ocorre com o português. No momento em que começamos a perceber como se constituem os enunciados, os diálogos, as estruturas e a articulação dos sinais na Libras é que temos a dimensão de sua riqueza e dos aspectos linguísticos envolvidos. Por isso, é fundamental que o sistema linguístico da Libras seja compreendido. Como abordamos anteriormente, como qualquer outra língua, as Línguas de Sinais apresentam variações linguísticas, próprias de cada país. Por exemplo, o sinal MÃE em Libras é totalmente diferente na Língua de Sinais Americana: MÃE MÃE/MOTHER LIBRAS ASL (Língua Brasileira de Sinais) (American Sign Linguage) Na unidade anterior, também falamos sobre as variações regio- nais que ocorrem em um país e são decorrentes de aspectos sociais e mudanças históricas. Aqui, veremos como elas se caracterizam. P rz em ys la w Z yt ri ck i/ S to ck .X C H N G 37 As variações regionais são bastante comuns. Por exemplo, se con- versarmos com um surdo usuário da Libras em Curitiba e, depois, com um surdo originário do Rio de Janeiro, perceberemos que alguns sinais são diferentes, como acontece no português com as palavras “man- dioca”, “aipim” e “macaxeira”, que designam a mesma raiz. Observe o exemplo a seguir, que ilustra a sinalização da palavra “verde”. VERDE Rio de Janeiro São Paulo Curitiba Ocorrem também variações sociais, que se caracterizam por alguma mudança na configuração das mãos (CM) e no movimento (M) destas que não alteram o sinal. Como é social, o sinal pode mudar de uma comunidade, de um grupo para outro ou de uma pessoa para outra. CONVERSAR Grupo X Grupo Y Mencionamos a configuração das mãos e o movimento e é muito importante entendermos que, na Língua de Sinais, a reprodução da forma e do movimento e sua relação espacial são fundamentais, pois ela é percebida no espaço. O aspecto visual da Libras, que é a nossa Língua de Sinais, é de extrema importância, por isso, ao conversarmos com um surdo, devemos ter em mente que ele está visualizando a con- versa, razão pela qual precisamos ser bastante claros ao articularmos os sinais. Por outro lado, apesar desse cuidado, é importante que haja naturalidade na articulação desses sinais, pois algumas pessoas tendem 38 a exagerar nas expressões faciais e corporais, o que não é necessário: seja o mais natural possível. As mudanças históricas dos sinais também se fazem presentes nas variações pelas quais passa a Libras e isso ocorre de forma semelhante à evolução gradual (com o passar do tempo) de termos do português, como ocorreu com a expressão VOSSA MERCÊ – VOSSEMECÊ – VOSMECÊ – VANCÊ – VOCÊ. AZUL 1.º 2.º 3.º Diante dessas constatações, é possível perceber que as Línguas de Sinais podem ser comparadas às línguas orais no que diz respeito às variações linguísticas. Essa é mais uma constatação sobre o quanto a Libras é rica linguística e culturalmente. Sinais icônicos e sinais arbitrários Muitas pessoas questionam o significado dos sinais com pergun- tas como esta: Por que esse sinal é assim, não se parece com o objeto? Isso ocorre porque tendemos a comparar os sinais arbitrários e icôni- cos – cuja estruturação é diferenciada – existentes na Libras, porém devemos compreender que esta apresenta essas duas categorias de sinais. Sinais icônicos Na Libras, há sinais que são icônicos, ou seja, representam objetos e ideias por meio de formas bastante alusivas. Por exemplo, o sinal referente ao termo “casa”. Observe-o: 39 CASA Você percebeu como esse sinal se assemelha muito a uma casa? Ele nos remete de forma bastante direta e clara ao significante “casa”, por isso é um sinal icônico. Significante – Forma fonológica do signo e, por extensão, de uma palavra. O significante muda segundo a língua em que é expresso. Por exemplo, há diferença entre os significan- tes “céu” e “sky” em português e inglês respectivamente. A criação desse tipo de sinal é um fenômeno que reflete a cultura e os costumes de um povo. Como refere Brito (1990), os sinais icôni- cos nem sempre são iguais em todas as Línguas de Sinais, pois cada comunidade surda pode ter um modo diferente de expressar e captar o significante. Como neste exemplo: CASA LIBRAS ASL Há ainda os chamados sinais classificadores, que também tomam a forma do objeto, tornando o significado mais claro. A maneira como eles se caracterizam você verá mais adiante. 40 Sinais arbitrários O sinais arbitrários não são análogos (idênticos) ao objeto, à rea- lidade que representam. Essa propriedade – a arbitrariedade – está presente em qualquer língua, e não seria diferente com a Libras. É por meio da arbitrariedade que podemos representar até mesmo conceitos abstratos, que são mais complexos que os concretos. IDADE PESSOA FILHO MULHER Todos esses aspectos que acabamos de explorar, além de muitos outros, é que fazem com que a Libras tenha o mesmo status linguístico das línguas orais e atribuem a ela o caráter de língua natural. E o que é uma língua natural no sentido linguístico? O texto a seguir, de autoria de Quadros e Karnopp (2004), poderá ajudar no entendimento dessa questão. A língua de sinais brasileira como língua natural (...) a partir do início das pesquisas linguísticas nas línguas de sinais, em torno dos anos 1960 (Stokoe, 1960; Stokoe et al. 1965), obser- vou-se que o entendimento sobre línguas em geral e sobre línguas de modalidade visoespacial aumentou consideravelmente. Hoje há uma quantidade razoável de investigações na área da linguística, não apenas sobre a estrutura, mas também sobre a aquisição, o uso e o funciona- mento dessas línguas. (...) Considere-se a definição de Chomsky (1957) de língua natural em termos formais: um conjunto (finito ou infinito) de sentenças, cada uma finita em comprimento e construída a partir de um conjunto finito de elementos. Portanto, esses elementos básicos são as palavras faladas para as línguas orais e as palavras sinalizadas para as línguas de sinais, sendo as frases da língua, por sua vez, representáveis em termos de uma sequência dessas unidades. 41 As línguas de sinais são consideradas línguas naturais e, consequen- temente, compartilham uma série de características que lhes atribui caráter específico e as distingue dos demaissistemas de comunicação, conforme discutido anteriormente. As línguas de sinais são, portanto, consideradas pela linguística como línguas naturais ou como um sistema linguístico legítimo e não como um problema do surdo ou como uma patologia da linguagem. Stokoe, em 1960, percebeu e comprovou que a língua dos sinais atendia a todos os critérios linguísticos de uma língua genuína, no léxico, na sintaxe e na capacidade de gerar uma quantidade infinita de sentenças. Stokoe observou que os sinais não eram imagens, mas símbolos abs- tratos complexos, com uma complexa estrutura interior. Ele foi o pri- meiro, portanto, a procurar uma estrutura, a analisar os sinais, dissecá- los e a pesquisar suas partes constituintes. Comprovou, inicialmente, que cada sinal apresentava pelo menos três partes independentes (em analogia com os fonemas da fala) – a localização, a configuração de mãos e o movimento – e que cada parte possuía um número limitado de combinações. Em Sign Language Structure, publicado em 1960, ele delineou dezenove configurações de mão diferentes, doze localizações distintas e vinte e quatro tipos de movimentos como os componentes básicos dos sinais. Além disso, inventou um sistema de notação para tais elementos (Stokoe et al., 1976). Com a obra Dictionary of American Sign Language, publicada pelo mesmo autor em 1965, diferentemente dos demais dicionários das lín- guas de sinais, os itens lexicais não foram arrumados de forma temá- tica (ou seja, sinais para alimentos, sinais para animais, etc.), mas de forma sistemática, de acordo com suas partes constituintes. Sign Language Structure e Dictionary of ASL marcaram um ponto de transição para o estudo das línguas de sinais, já que foram os primei- ros trabalhos a reconhecerem a organização interna de uma língua de sinais e a tornar em algumas destas organizações explícitas. Naturalmente que o trabalho de Stokoe (1960) representou o pri- meiro passo em relação aos estudos das línguas de sinais. Pesquisas posteriores, feitas em grande parte com a língua de sinais americana, mostraram, entre outras coisas, a riqueza de esquemas e combinações possíveis entre os elementos formais que servem para ampliar consi- deravelmente o vocabulário básico. Pesquisas realizadas em diversos países procuram descrever, analisar e demonstrar o status linguístico das línguas de sinais, desmistificando concepções inadequadas em relação a esta modalidade de língua. QUADROS, R. M. de; KARNOPP, L. Língua de Sinais Brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: ArtMed, 2004. p. 30-31. 42 Estudo linguístico da Libras Você já parou para pensar como são formados os sinais na Libras? Ela, assim como todas as outras línguas, é estruturada pelos níveis fonológico, fonético, morfológico, semântico, sintático e pragmático. Os níveis fonético e fonológico dizem respeito aos fonemas e às relações entre eles. Esse nível também está presente na Libras, porém há algumas particularidades. Você deve estar se perguntando: Se a fonologia é o estudo dos fonemas/sons, como isso ocorre na Libras? Bem, não se preocupe, veremos esses aspectos mais à frente. O nível morfológico refere-se à formação das palavras. Por exem- plo, o termo “menininhas” em português tem quatro morfemas: raiz (menin), marca (desinência) do grau diminutivo (inh), marca (desinência) do gênero feminino (a) e marca (desinência) do plural (s). Os morfemas também existe na Libras, que se caracterizam pela expressão facial, pelo movimento, enfim, o modo como o sinal é articulado. A sintaxe diz respeito à estruturação das sentenças, ou seja, à rela- ção entre os termos de uma oração. Já a semântica corresponde aos significados de um vocábulo. Por fim, a pragmática relaciona-se ao contexto em que a língua é utilizada, ou seja, a língua é observada em seu uso efetivo. Agora que temos essas noções esclarecidas, podemos nos deter na fonética e na fonologia da Libras, que são fatores fundamentais para a compreensão de como são formados os sinais. Fonética e fonologia – A fonética é o ramo da linguística que estuda a produção e a percepção dos sons da fala, o sistema sonoro. A fonologia estuda a maneira como esses sons se relacionam entre si. Como é possível falarmos em fonética e fonologia na Libras se não ela é uma língua oral? Em 1960, os primeiros estudos realizados por Stokoe identi- ficaram unidades de sinais, que foram denominadas quiremia, assim sendo, seu estudo é a quirologia (quiro = mão), porém, por uma questão de padronização de discussões teóricas, os termos fonética e fonologia foram eleitos para tais denominações. Como ocorre com o estudo das demais línguas, na Libras, existem pesquisadores e linguistas que estudam seus níveis linguísticos. Isso significa que a Libras apresenta sua própria linguística, cujos estudos buscam explicar algumas diferenças e semelhanças entre as Línguas de Sinais e as línguas orais, destacando, sobretudo, o aspecto visuoes- pacial da Língua de Sinais. 43 Por isso, é importante que, antes de tudo, pensemos na Língua de Sinais como uma língua de modalidade diferente da língua oral, ou seja, uma língua que tem como canal a visão e o espaço de articulação. Essa compreensão é fundamental para que nos comuniquemos com os surdos. (...) Stokoe (1960) apresentou a primeira análise linguística da língua de sinais americana com evidências de que um sinal era resultado de com- binações de unidades menores: a configuração da mão, o local de articu- lação e o movimento. Stokoe apresenta uma análise com base na simul- taneidade, ou seja, as unidades são combinadas simultaneamente para a produção do sinal. QUADROS, R. M. de. Efeitos de modalidade de língua: as línguas de sinais. ETD – Educação Temática Digital, Campinas: Unicamp, v. 7. n. 2, p. 168-178, jun. 2006. Disponível em: <http://www. fe.unicamp.br/revista/index.php/etd/article/view/1640/1487>. Acesso em: 11 abr. 2011. Então, é como se os parâmetros da Língua de Sinais correspon- dessem aos fonemas das línguas orais. No entanto, enquanto na lín- gua oral são produzidos sequencialmente, na Língua de Sinais são produzidos simultaneamente, ou seja, ao mesmo tempo que confi- guro a mão, faço o movimento, estabeleço o ponto de articulação e a expressão facial. Para você compreender melhor o processo fonológico, vamos pen- sar em um exemplo da língua portuguesa: para formar uma palavra, você junta fonemas e grafemas (som e letra). A combinação desses fonemas é que dará sentido à palavra. Veja: /p/ /a/ /t/ /o/ (pato). Se você alterar a ordem das letras, terá outra palavra ou uma pala- vra sem significado (OTAP, por exemplo). Na Libras, a formação de um sinal se dá por meio da combinação de alguns parâmetros, cuja função se assemelha à dos fonemas. Então, se você alterar um desses parâmetros, terá outro sinal ou, dependendo da combinação, poderá produzir um sinal sem sentido. Por exemplo: se a configuração de mão em C for articulada na testa, o sinal significará TI@ TIO/TIA (@ registra a transição da marca de gênero, que você vai estudar na unidade 4), mas, se ele for articulado em frente ao peito, significará CUNHAD@ CUNHADO/CUNHADA (como você verá, posterior- mente, nos sinais referentes à família). Há também a possibilidade de esse sinal ser articulado de forma a não abrigar sentido algum, ao ser configurado ao lado da testa, por exemplo. Portanto, como já ressal- tamos aqui, é essencial o entendimento desses parâmetros, que se dá pelo estudo e pela prática da Libras. 44 Para você ampliar seus conhecimentos sobre a Libras e outros assuntos ligados à surdez, acesse a página da editora Arara Azul (<http://www.editora-arara-azul.com.br>), que disponibiliza artigos, monografias, trabalhos acadêmicos, entre outros materiais. Outra ótima sugestão é o filme E seu nome é Jonas, que relata a história de Jonas, criança surda e erroneamente diagnosticada como deficiente intelectual. A criança e sua mãe enfrentam as dificuldades e os preconceitos relacionados àsurdez e buscam formas de superar o isolamento a que Jonas é submetido até começar seu aprendizado da Língua de Sinais.
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