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Campanha Nacional das Escolas da Comunidade – CNEC Faculdade CNEC Santo Ângelo Curso de Graduação em Direito Direito do Consumidor Prof. Dr. Doglas Cesar Lucas AULA 01 PONTOS INICIAIS DE DIREITO DO CONSUMIDOR1 CONTEÚDO DE HOJE: Considerações preliminares sobre o Direito do Consumidor; Aspectos históricos; Consumo e contemporaneidade. 1. Algumas notas iniciais sobre sociedade do consumo 1 Este material foi elaborado pela pelo Professor Doglas Cesar Lucas, com base na doutrina de Flavio Tartuce e Humberto Theodoro Júnior, constituindo, inclusive, por diversas vezes, literal reprodução destas fontes, de modo que não deve ser compartilhado como se fosse de minha autoria. https://www.youtube.com/watch?v=-H4wgsnvz2w “O consumo é o único fim e propósito de toda a produção; e o interesse do produtor deve ser atendido até o ponto, apenas, em que seja necessário para promover o do consumidor. A máxima é tão perfeitamente evidente por si mesma, que seria absurdo tentar prová-la [...] . No sistema mercantilista o interesse do consumidor é quase que constantemente sacrificado pelo do produtor; e ele parece considerar a produção, e não o consumo, como o fim último e o objeto de toda a indústria e comércio”. (Adam Smith, Princípios da Economia de Mercado Competitivo). O ato de consumir, hoje, transcende a mera aquisição de um produto. Convivemos, de um lado, com a mercadoria colocada como protagonista das práticas cotidianas. De outro, experenciamos uma constante orientação para que o modelo de conduta seja sempre mediado, articulado, orientado pelo ato de consumir. E isso não é por acaso. É por isso que, para Zygmunt Bauman (2008, p. 154), “A busca por prazeres individuais articulada pelas mercadorias oferecidas hoje em dia, uma busca guiada e a todo tempo redirecionada e reorientada por campanhas publicitárias sucessivas, fornece o único substituto aceitável – na verdade, bastante necessitado e bem-vindo – para a edificante solidariedade dos colegas de trabalho e para o ardente calor humano de cuidar e ser cuidado pelos mais próximos e queridos, tanto no lar como na vizinhança.” Para o sociólogo polonês, falecido em janeiro de 2017, o jogo do mercado é configurado por três regras: 1. Todo produto é vendável e visa a ser consumido; 2. Esse consumo não é um consumo em si, é um consumo vinculado à satisfação de um desejo. 3. O valor a ser pago depende diretamente da confiabilidade da “promessa de satisfação’’ e “intensidade de desejos”. Nessa perspectiva, “a ‘subjetividade’ do sujeito, e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir, concentra-se num esforço sem fim para ela própria se tornar, e permanecer, uma mercadoria vendável”. (BAUMAN, 2008, p. 20). Essa mesma análise pode ser visualizada na teorização do filósofo francês Gilles Lipovetsky (2007), para quem a sociedade do hiperconsumo está vocacionada a uma felicidade que ele chama de paradoxal. Com efeito, a produção dos bens, os serviços, as mídias, os lazeres, a educação, a ordenação urbana, tudo é direcionado, em tese, para proporcionar mais e mais felicidade. Quanto mais uma sociedade enriquece, supostamente maior seria o consumo e as necessidades de consumir, promovendo-se uma “mercantilização” das necessidades. Lipovetsky diz que as “receitas da felicidade” espalhar-se-iam nos diversos campos (alimentação, afeto, sexualidade, comunicação, educação, criação dos filhos etc.), de modo que haveria uma espécie de treinamento generalizado para condicionar o “uso” da felicidade por todos. Vejam que o próprio STF já se valeu de uma retórica, não isenta de críticas, afinada com este debate: o princípio da felicidade. Nesse sentido, os produtos “fálicos” materalizam não somente uma aquisição, mas também uma potência que, como veremos, converte-se num “sonho”: Ainda, sob a alcunha de “turboconsumidor”, Lipovetsky alude às rápidas mudanças sociais e econômicas que levaram o ser humano não apenas a um consumo em massa, mas a uma situação de individualização e hiperindividualização do consumo. 2. Breve evolução histórica Evolução Histórica da proteção do consumidor Código de Hamurabi: para construção civil 229. Se um construtor construir uma casa para outrem, e não a fizer bem feita, e se a casa cair e matar seu dono, então o construtor deverá ser condenado à morte. 230. Se morrer o filho do dono da casa, o filho do construtor deverá ser condenado à morte. 231. Se morrer o escravo do proprietário, o construtor deverá pagar por este escravo ao dono da casa. https://www.youtube.com/watch?v=94FV8Kv7xD8 232. Se perecerem mercadorias, o construtor deverá compensar o proprietário pelo que foi arruinado, pois ele não construiu a casa de forma adequada, devendo reerguer a casa às suas próprias custas. 233. Se um construtor construir uma casa para outrém, e mesmo a casa não estando completa, as paredes estiveram em falso, o construtor deverá às suas próprias custas fazer as paredes da casa sólidas e resistentes. Grécia- estabelecia controle de mercadorias... “são também designados por sorteio os fiscais de mercado, cinco para o Pireu e cinco para a cidade; as leis atribuiem-lhes os encargos atinentes as mercadorias em geral; a fim de que os produtos vendidos não contenham misturas , nem sejam adulterados, são também designados por sorteio os fiscais das medidas, cinco para a cidade e cinco para o Pireu, ficam a seu encargos as medidas e os pesos em geral, a fim de que os vendedores utilizem os corretos [...] são também designados por sorteio dez inspetores do comércio, os quais se atribuem os encargos mercantis, devendo eles obrigar os comerciantes a trazerem para a cidade dois terços de trigo transportados para a comercialização [...]” (Constituição de Atenas, Aristóteles). No Brasil Colônia: – Lei de 1652, vigente em Salvador... quem vende-se o canada (medida de 1,4 litros de vinho) acima de 800 réis, seria “preso na enxovia e dela levado para ser acoitado nas ruas, ficará inábil para vender e desterrado dessa capitania para todo o sempre”. Resolução 39/248 da ONU (1985). Traçou política geral de proteção aos consumidores destinada aos estados filiados tendo em conta seus interesses e necessidades em todos os países, reconhecendo que o consumidor se encontra em situação de vulnerabilidade econômica, social, cultural e que todos os consumidores devem ter acesso a produtos e serviços não perigosos, que promovam o desenvolvimento social e econômico justo, equitativo e seguro (informação, educação, ressarcimento, liberdade). No Brasil mais recente. O consumo se intensificou após o início de nossa industrialização, em meados da década de 1930, sendo que, já nessa época, o Estado possuía características fortemente intervencionistas na ordem econômica. • Década de 70 – associações e entidades de proteção do consumidor: • 1974 – RJ – CONDECON • 1976 – Curitiba – Assoc. de Defesa e Orientação do Consumidor • 1976 – Porto Alegre – Assoc. de Proteção do Consumidor • 1976 – São Paulo → Decreto 7890 cria o Sistema Estadual de Proteção do Consumidor • Lei nº 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública - proteção dos interesses difusos da sociedade. Bruna Destacar • A Constituição Federal de 1988 em vários dispositivos referiu-se à proteção do consumidor: • No art. 5º, inciso XXXII, entre os direitos individuais e coletivos, estabeleceu que Estado deve promover, na forma da lei, a defesa do consumidor. • Nos arts. 23, inciso VIII, e 24, atribui a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre consumo. • Em matéria tributária, no art. 150, §5º, exigiu o esclarecimento ao consumir acerca dos impostos incidentes sobre mercadorias e serviços. • No art. 170 elegeu a defesa do consumidor comoprincípio geral da ordem econômica e financeira. Por fim, no art. 175, inciso II, no que concerne aos serviços públicos, determinou que a lei disporá especificamente sobre os direitos dos usuários. • Art. 48, ADCT. O Congresso Nacional, dentro de 120 dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor. → O ADCT impôs a elaboração do CDC. • Assim, em 11 de setembro de 1990, foi publicada a Lei 8078. O Código de Defesa do Consumidor surge no bojo de um movimento tendente a tutelar grupos minoritários vulneráveis. O seu texto começou a ser idealizado antes mesmo da promulgação da Constituição Federal de 1988, por meio da constituição de comissão formada no âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, com a finalidade de elaborar um Anteprojeto de Código. Após diversos trabalhos, discussões, audiência pública e criação de uma Comissão Mista, foi apresentado um novo texto de Projeto de Código, que culminou na promulgação da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (THEODORO JÚNIOR, 2017). Tartuce adverte que o CDC surge no seio da pós-modernidade jurídica. A “pós-modernidade é utilizada para simbolizar o rompimento dos paradigmas construídos ao longo da modernidade, quebra ocorrida ao final do século XX. Mais precisamente, parece correto dizer que o ano de 1968 é um bom parâmetro para se apontar o início desse período, diante de protestos e movimentos em prol da liberdade e de outros valores sociais que eclodiram em todo o mundo. Em tais reivindicações pode ser encontrada a origem de leis contemporâneas com preocupação social, caso do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor.” (TARTUCE, 2017, p. 21-22). Por conseguinte, não é exagero dizer que o CDC é uma típica norma pós-moderna, no sentido de rever conceitos clássicos do Direito Privado, tais como o contrato, a responsabilidade civil, a prescrição e o ônus da prova. Quanto àquilo que chamamos de pós-modernidade, em termos jurídicos, podemos identificar alguns fatores fundamentais: Bruna Destacar 1. Globalização e a ideia de unidade mundial; No caso do CDC brasileiro, tal preocupação pode ser notada pela abertura constante do seu art. 7º, que admite a aplicação de fontes do Direito Comparado, caso dos tratados e convenções internacionais: Art. 7º, CDC. Os direitos previstos neste Código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. 2. Inflação legislativa: “No caso brasileiro, convive-se com mais de 40 mil leis, a deixar o aplicador do Direito desnorteado a respeito de sua incidência no tipo (fattispecie). Mesmo em relação aos consumidores, em muitas situações, há uma situação de dúvida sobre qual norma jurídica deve incidir no caso concreto.” (TARTUCE, 2017, p. 22-23). 3. Pluralismo: esse movimento é intensificado pela valorização dos direitos humanos e das liberdades. Em face desse pluralismo, há a inflação legislativa a que nos referimos anteriormente e uma abundância na proteção jurídica, de modo que é comum verifica-se na pós-moderndade a colisão entre esses direitos, conflitos estes que acabam por ser resolvidos a partir da ponderação e à luz da Constituição. 4. Hipercomplexidade: “Na contemporaneidade, os prosaicos exemplos de negócios e atos jurídicos entre Tício, Caio e Mévio, comuns nas aulas de Direito Romano e de Direito Civil do passado (ou até do presente), não conseguem resolver os casos de maior complexidade, particularmente aqueles relativos a colisões entre direitos considerados fundamentais, próprios da pessoa humana. Ademais, muitas situações envolvendo os contratos de consumo superam aquela antiga visualização. A título de ilustração, imagine-se que um consumidor brasileiro compra um produto americano acessando seu computador no Brasil, estando o provedor da empresa vendedora localizado na Nova Zelândia. Pergunta-se: quais as leis aplicadas na espécie? Sem se pretender ingressar no mérito da questão, o exemplo demonstra quão complexas podem ser as simples relações de consumo.” (TARTUCE, 2017, p. 25). O juiz argentino Ricardo Luis Lorenzetti fala em “era da desordem, que, em síntese, pode ser identificada pelos seguintes aspectos: a) enfraquecimento das fronteiras entre as esferas do público e do privado; b) pluralidade das fontes, seja no Direito Público ou no Direito Privado; c) proliferação de conceitos jurídicos indeterminados; d) existência de um sistema aberto, sendo possível uma extensa variação de julgamentos; e) grande abertura para o intérprete estabelecer e reconstruir a sua coerência; f) mudanças constantes de posições, inclusive legislativas; g) necessidade de adequação das fontes umas às outras; h) exigência de pautas mínimas de correção para a interpretação jurídica. Nessa perspectiva, o Código de Defesa do Consumidor enquadra-se perfeitamente em tal realidade pós-moderna. Primeiro, por trazer como conteúdo questões de Direito Privado e de Direito Público. Segundo, por encerrar vários conceitos indeterminados, Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar como o de boa-fé. Terceiro, por representar uma norma aberta, perfeitamente afeita a diálogos interdisciplinares, como se verá (diálogo das fontes). Quarto, por encerrar a pauta mínima de proteção dos consumidores (TARTUCE, 2017). 3. O CDC e sua posição hierárquica: revisitando a pirâmide kelseniana O Código de Defesa do Consumidor é norma que tem relação direta com os direitos humanos de terceira geração. É comum relacionar as três primeiras gerações, eras ou dimensões com os princípios da Revolução Francesa. Mencionada divisão das gerações foi levada a cabo pelo jurista tcheco Karel Vasak, em 1979, em exposição feita em aula inaugural no Instituto Internacional dos Direitos Humanos, em Estrasburgo, na França. Geração Direitos consagrados 1ª Princípio da liberdade. 2ª Princípio da igualdade. 3ª Princípio da fraternidade (pacificação social). → Aqui melhor se enquadra o CDC. 5ª Proteção do patrimônio genético. 6ª Proteção de direitos no mundo digital. Nesse sentido, o Código de Defesa do Consumidor é concebido pela doutrina como uma norma principiológica, diante da proteção constitucional dos consumidores, que consta, especialmente na CF: Art. 5º, XXXII - o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor; Além disso, não se pode perder de vista o fato de que o CDC assumiu especial relevância também em relação aos direitos difusos e coletivos, pois muitas de suas normas são mais favoráveis aos lesados do que, por exemplo, a Lei da Ação Civil Pública ou a Lei da Ação Popular. Bruna Destacar Por isso, Tartuce defende que o CDC tem eficácia supralegal, ou seja, está em um ponto hierárquico intermediário entre a Constituição Federal de 1988 e as leis ordinárias. Para tal dedução jurídica, pode ser utilizada a simbologia do sistema piramidal, atribuída a Hans Kelsen. Em que pese a percepção acima possa causar estranheza em termos de processo legislativo constitucional, juristas como o Juiz de Direito Marco Fábio Morsello, defendem essa postura no sentido de que a norma consumerista sempre deve prevalecer, por seu caráter mais especial, tendo o que ele denomina como segmentação horizontal. De outra forma, sustenta que a matéria consumerista é agrupada pela função e não pelo objeto. É, em poucas palavras, forma de efetivação de direitos fundamentais na perspectiva da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. MAS CUIDADO! Essa compreensão sofre profundas alterações diante do recente entendimento do STJ e do STF acerca da reparação de danos por ocasião de extravio de bagagem ocorrido em transporte internacional: *Em caso de extraviode bagagem ocorrido em transporte internacional envolvendo consumidor, aplica-se o CDC ou a indenização tarifada prevista nas Convenções de Varsóvia e de Montreal? As Convenções internacionais. Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor. Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade. STF. Plenário. RE 636331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes e ARE 766618/SP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgados em 25/05/2017 (repercussão geral) (Info 866). *O STJ passou a acompanhar o mesmo entendimento do STF: É possível a limitação, por legislação internacional espacial, do direito do passageiro à indenização por danos materiais decorrentes de extravio Constituição Federal Código de Defesa do Consumidor Leis ordinárias Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar de bagagem. STJ. 3ª Turma. REsp 673.048-RS, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 08/05/2018 (Info 626). Tartuce (2017) afirma que a decisão acima “trata-se de um enorme retrocesso quanto à tutela dos consumidores, pelos argumentos outrora expostos. Como se retira do seu art. 1º, o CDC é norma principiológica, tendo posição hierárquica superior diante das demais leis ordinárias, caso das duas Convenções Internacionais citadas. Porém, infelizmente, tal entendimento, muito comum entre os consumeristas, não foi adotado pela maioria dos julgadores. Esclareça-se, por oportuno, que o decisum apenas diz respeito à limitação tabelada de danos materiais, não atingindo danos morais e outros danos extrapatrimoniais.” 4. O CDC e a teoria do diálogo das fontes No Brasil, a principal expressão da teoria do diálogo das fontes se dá justamente na interação entre o CDC e o CC/2002, em matérias como a responsabilidade civil e o Direito Contratual. Do ponto de vista legal, a tese está baseada no art. 7º do CDC, que adota um modelo aberto de interação legislativa: Art. 7º Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade. *O art. 7º da Lei 8.078/90 fixa o chamado diálogo das fontes, segundo o qual sempre que uma lei garantir algum direito para o consumidor, ela poderá se somar ao microssistema do CDC, incorporando-se na tutela especial e tendo a mesma preferência no trato da relação de consumo (STJ, REsp 1037759). Nesse ínterim, é possível que a norma mais favorável ao consumidor esteja fora da própria Lei Consumerista, podendo o intérprete fazer a opção por esse preceito específico. Nesse sentido: Enunciado nº 1 do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (BRASILCON): As normas e os negócios jurídicos devem ser interpretados e integrados da maneira mais favorável ao consumidor. Por conseguinte, o que temos é um sistema que permite a adoção da norma mais favorável ao vulnerável (no nosso caso, o consumidor), independentemente do diploma no qual ela esteja alocada. Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar http://genjuridico.com.br/2018/05/23/a-aplicacao-da-teoria-do-dialogo-das-fontes-no-direito-do-consumidor-brasileiro/#:~:text=Por%20meio%20da%20teoria%20do,certeza%20ao%20sistema%20de%20direito. https://www.conjur.com.br/2016-mar-29/arthur-moura-dialogo-fontes-chave-destrancar-cpc Para Claudia Lima Marques, o diálogo das fontes “é uma tentativa de expressar a necessidade de uma aplicação coerente das leis de direito privado, coexistentes no sistema. É a denominada ‘coerência derivada ou restaurada’ (cohérence dérivée ou restaurée), que, em um momento posterior à descodificação, à tópica e à microrrecodificação, procura uma eficiência não só hierárquica, mas funcional do sistema plural e complexo de nosso direito contemporâneo, a evitar a ‘antinomia’, a ‘incompatibilidade’ ou a ‘não coerência’.” (MARQUES, 2009 p. 90). Enunciado 167: Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”. “Simbologicamente, pode-se dizer que, pela teoria do diálogo das fontes, supera-se a interpretação insular do Direito, segundo a qual cada ramo do conhecimento jurídico representaria uma ilha (símbolo criado por José Fernando Simão). O Direito passa a ser visualizado, assim, como um sistema solar (interpretação sistemática e planetária), em que os planetas são os Códigos, os satélites são os estatutos próprios (caso do CDC) e o Sol é a Constituição Federal, irradiando seus raios solares – seus princípios – por todo o sistema (figura de Ricardo Luis Lorenzetti). Vejamos tais visualizações, de forma esquematizada.” (TARTUCE, 2017, p. 34): TIPOS DE DIÁLOGOS DAS FONTES DEFINIÇÃO EXEMPLO DIÁLOGO SISTEMÁTICO DE COERÊNCIA → Conceito Consiste no aproveitamento da base conceitual de uma lei pela outra. Considerando que o CDC não define o que seja bem móvel ou imóvel, o aplicador se vale dos conceitos fixados no CC (arts. 79 a 84). Bruna Destacar Bruna Destacar DIÁLOGO SISTEMÁTICO DE COMPLEMENTARIDADE E SUBSIDIARIEDADE Adoção de princípios e normas, em caráter complementar, por um dos sistemas, quando se fizer necessário para a solução do caso concreto. Considerando que o CDC não definiu o prazo para ajuizamento da ação de repetição de indébito (art. 42, parágrafo único), aplica-se, de forma complementar, o prazo prescricional fixado pela regra geral do CC, a saber, 10 anos (art. 205). DIÁLOGO DE INFLUÊNCIAS RECÍPROCAS Influência do sistema especial no geral e do geral no especial. Considerando que o CC/2002 se tornou suficiente para harmonizar as relações entre iguais, a aplicação do CDC foi direcionada apenas para a proteção do vulnerável, o que explica a atual opção do STJ pela teoria finalista (simples ou mitigada), na definição do conceito de consumidor. Outros exemplos apontados são os artigos do Novo CPC sobre competência e sobre demandas individuais repetitivas: Art. 22, CPC. Compete, ainda, à autoridade judiciária brasileira processar e julgar as ações: II - decorrentes de relações de consumo, quando o consumidor tiver domicílio ou residência no Brasil; Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: X - quando se deparar com diversas demandas individuais repetitivas, oficiar o Ministério Público, a Defensoria Pública e, na medida do possível, outros legitimados a que se referem o art. 5º da Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985 , e o art. 82 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 , para, se for o caso, promover a propositura da ação coletiva respectiva. Some-se a isso a evidente pluralidade de fontes normativas que tangenciam a temática das relações de consumo e a nova visão dos direitos fundamentais não apenas como deveres de abstenção do Estado (direitos de defesa do particular em face do Poder Público), mas principalmente como uma dimensão ativa, que enseja posições jurídicas para os seus titulares, de forma que o Estado deve também promovê-los positivamente. É a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e sua dimensão objetiva. Questão Ano: 2018 Banca: FCC Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar Órgão:DPE-RS A respeito do microssistema consumerista e da proteção ao consumidor no ordenamento jurídico, considere: I. A Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, dispõe de cláusulas abertas e de conceitos legais indeterminados, que permitem melhor adequação ao caso concreto. II. Em consonância com a Constituição Federal de 1988, a defesa do consumidor constitui um direito fundamental de proteção à pessoa em situação de vulnerabilidade. III. Consoante teoria do diálogo das fontes e o próprio Código de Defesa do Consumidor, admite-se a aplicação da norma mais favorável ao consumidor, mesmo que esta se encontre externamente ao microssistema consumerista. IV. O consumidor é vulnerável e hipossuficiente no mercado de consumo consoante presunção jure et de jure. → Não é uma presunção absoluta (veremos isso em momento oportuno). É correto o que consta APENAS de: I, II e III. A professora Claudia Lima Marques demonstra três diálogos possíveis a partir da teoria do diálogo das fontes: 1. Havendo aplicação simultânea das duas leis, se uma lei servir de base conceitual para a outra, estará presente o diálogo sistemático de coerência. Exemplo: os conceitos dos contratos de espécie podem ser retirados do Código Civil, mesmo sendo o contrato de consumo, caso de uma compra e venda (art. 481 do CC). 2. Se o caso for de aplicação coordenada de duas leis, uma norma pode completar a outra, de forma direta (diálogo de complementaridade) ou indireta (diálogo de subsidiariedade). O exemplo típico ocorre com os contratos deconsumo que também são de adesão. Em relação às cláusulas abusivas, pode ser invocada a proteção dos consumidores constante do art. 51 do CDC e, ainda, a proteção dos aderentes constante do art. 424 do CC. 3. Os diálogos de influências recíprocas sistemáticas estão presentes quando os conceitos estruturais de uma determinada lei sofrem influências da outra. Assim, o conceito de consumidor pode sofrer influências do próprio Código Civil. Como afirma a própria Claudia Lima Marques, “é a influência do sistema especial no geral e do geral no especial, um diálogo de doublé sens (diálogo de coordenação e adaptação sistemática)”. 5. Algumas palavras finais Diante de todo o exposto, verifica-se que a criação do Direito do Consumidor como uma disciplina autônoma tornou-se necessária, em razão da evidente superioridade do fornecedor frente ao consumidor em suas relações contratuais. Se é certo que a sociedade de consumo trouxe benefícios, “em certos casos, a posição do consumidor, dentro desse modelo, piorou em vez de melhorar”, na medida em que “agora é o fornecedor Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar Bruna Destacar (fabricante, produtor, construtor, importador ou comerciante) que, inegavelmente, assume a posição de força na relação de consumo e, por isso mesmo, ‘dita as regras’” (THEODORO JÚNIOR, 2017). Já que o mercado não consegue, por si mesmo, superar esse desequilíbrio, tornou-se imprescindível a intervenção estatal, consubstanciada na edição de um Código de Defesa do Consumidor. Agora que já conversamos sobre os aspectos iniciais da disciplina e que vão nortear todo o nosso estudo ao longo do semestre, proponho que discutamos em um fórum os reflexos da pandemia de coronavírus nas relações consumeristas. Para tanto, sugiro a leitura da seguinte matéria do JOTA, cujo inteiro teor segue abaixo: Em tempos de pandemia do coronavírus (COVID-19), tem-se visto, com crescente frequência, situações em que os fornecedores de produtos e serviços estão impossibilitados de cumprir com suas obrigações contratuais. Casos em que o fornecedor, mesmo que envidasse todos os esforços ao seu alcance, não conseguiria fornecer o serviço ou produto contratado. Esse é o caso, por exemplo, de fornecedor que não consegue entregar o produto final vendido ao consumidor, porque o seu fornecedor chinês não entregou os insumos necessários para a elaboração do produto final. Ou então o caso de empresa aérea que não consegue transportar os consumidores de determinados voos, porque o país de destino fechou as suas fronteiras para estrangeiros. Esse é ainda o caso de produtora de eventos que não pode realizar grande show programado há meses, em face de norma estatal promulgada recentemente que proíbe a realização de eventos que gerem a aglomeração de mais de 500 pessoas. Mas o que acontece nesses e noutros casos? Quais são os direitos (e eventuais deveres) dos consumidores? E quais são os deveres (e eventuais direitos) dos fornecedores? O que diz o Código de Defesa do Consumidor (CDC)? A lacunosa regulamentação do CDC https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/coronavirus-e-o-cdc-o-virus-que-revela-a-vulnerabilidade-da-lei-hospedeira-18032020 Em uma leitura atenta do CDC, nota-se que esses casos não são bem regulados. A principal norma sobre descumprimento das obrigações é o art. 35, o qual prevê os direitos do consumidor apenas em caso de “o fornecedor de produtos ou serviços recusar cumprimento à oferta, apresentação ou publicidade”. Nessa hipótese, é facultado ao consumidor, entre outras medidas, “exigir o cumprimento forçado da obrigação”, ou “aceitar outro produto ou prestação de serviço equivalente” (art. 35, inc. I e II, CDC). Acontece que as situações de impossibilidade não configuram hipótese de “recusa do fornecedor” ao cumprimento. Nesses casos, o fornecedor não está se recusando a cumprir suas obrigações contratuais. Muito pelo contrário. Ele quer fazê-lo. Ele apenas não consegue, como no referido exemplo de vendedor que não recebeu os insumos necessários do seu fornecedor chinês. Ou não pode, como no referido caso de proibição de eventos que aglomerem pessoas. O CDC, por outro lado, mais para o seu final, acaba fazendo menção à figura da impossibilidade. No título sobre “defesa do consumidor em juízo”, prevê que, “na ação que tenha objeto o cumprimento da obrigação de fazer ou não fazer”, será admissível “a conversão da obrigação em perdas e danos”, “se por elas optar o autor ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.” (art. 84, § 1.º, CDC). Essa previsão está sujeita a críticas e questionamentos. Em primeiro lugar, é estranho a sua localização em título sobre direito processual. A questão aqui é, sobretudo, de direito material. O problema não é se é possível ou não ao juiz garantir a tutela específica, ou seja, se há ou não meios para o juiz constranger o réu a cumprir a obrigação, ou garantir-lhe por outra via a satisfação do seu interesse. A questão é, antes de mais, de direito material: se o devedor consegue ou não cumprir a sua obrigação e, consequentemente, quais são os direitos do credor em cada um desses cenários. Isso tudo se passa normalmente antes e independentemente de uma ação judicial. Além disso, em face desse dispositivo, surgem questões relevantes: por que uma previsão como essa, de impossibilidade de cumprimento da obrigação e conversão da obrigação em perdas e danos, refere-se apenas às obrigações de fazer e de não fazer e não também às obrigações de dar? E a previsão de impossibilidade configura-se apenas no caso de impossibilidade objetiva ou também subjetiva? Apenas de impossibilidade definitiva ou também temporária? De impossibilidade superveniente ou também originária? Um possível argumento para a falta de regulamento para o caso de obrigações de dar, é o fato de o mercado de consumo ser formado, na sua grande maioria, por obrigações de dar coisa incerta. Isto é, por obrigações genéricas, cujo objeto é determinado pelo gênero e pela quantidade (art. 243, CC). Por exemplo, a compra e venda de um iPhone (coisa incerta), em vez da compra e venda do Abaporu, de Tarsila do Amaral (coisa certa). E, em relação às obrigações genéricas, vigora tradicionalmente o princípio de que “o gênero nunca perece”. Então,como antes da concentração o devedor não pode alegar a perda ou deterioração da coisa (art. 246, CC) e, consequentemente, não seria possível ao devedor alegar impossibilidade de cumprimento, o legislador poderia ter ficado com a impressão de seria desnecessário e inútil regular a impossibilidade de cumprimento nos casos de obrigação de dar. Mas, se é que esse foi o caso, a percepção não se sustenta. Entre outros motivos, porque a destruição da coisa pode se dar depois da sua concentração, de modo que o regramento a ser aplicado é o das obrigações de dar coisa certa, no qual a impossibilidade de cumprimento por perda da coisa é tradicionalmente conhecida (ver, por exemplo, art. 234, CC). Além disso, apesar de excepcional, é possível que o gênero pereça, como na hipótese de expropriação de todas as coisas do gênero pelo Estado. Nesse caso, “o devedor de coisa incerta é, assim como o de coisa certa, liberado por impossibilidade jurídica superveniente.” E quanto aos efeitos, o CDC não prevê a extinção da obrigação, mas a sua conversão em perdas e danos. Trata-se então de impossibilidade por culpa do devedor? Esse questionamento impõe-se, pois tradicionalmente entende-se que, em caso de impossibilidade não culposa, o devedor não responde por perdas e danos. Esse é o caso clássico da impossibilidade por caso fortuito ou de força maior (art. 393, CC). Por fim, vale questionar acerca do conteúdo dessas perdas e danos. Trata-se de indenização pelo interesse positivo ou pelo negativo? O CDC, infelizmente, não responde a nenhuma dessas questões. É possível, portanto, concluir que a regulamentação do CDC é lacunosa em relação aos casos de impossibilidade de cumprimento. Como, então, resolver esses casos? O CDC não contém dispositivo análogo ao art. 8.º, 1.º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o qual prevê que “o direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho”. Nada obstante, a solução de aplicar o CC às relações de consumo é justificada por diversas vias: seja pela ideia de “diálogo das fontes”, mais especificamente pela via do diálogo da complementaridade e subsidiariedade[2], ou pela interpretação sistemática entre as normas do CDC e do CC. Conclusão A pandemia de coronavírus tem gerados um número crescente de casos de impossibilidade de cumprimento das obrigações por parte do fornecedor. O CDC, por sua vez, apresenta regulamento extremamente lacunoso e mal localizado para lidar com esses casos: dispõe apenas de lacônica regra, em título voltado à tutela processual do consumidor, sobre impossibilidade das obrigações de fazer e de não fazer. Entre outras possíveis críticas, deve-se censurar a falta de uma regulação mais pormenorizada e que, sobretudo, abarcasse as obrigações de dar. A solução para esse problema é a aplicação do regramento sobre impossibilidade de cumprimento das obrigações presente no CC, naquilo que for compatível com o sistema do CDC. Essa solução encontra respaldo na teoria do diálogo das fontes, ou na interpretação sistemática das referidas leis. → Vejam que aqui temos a previsão do diálogo das fontes. 6. Referências Doutrina-base BAUMAN, ZYGMUNT. A vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. LIPOVETSKY, Gilles. A felicidade paradoxal: ensaio dobre a sociedade de hiperconsumo. Lisboa: Edições 70, 2007. MARQUES, Claudia Lima. Manual de direito do consumidor. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. TARTUCE, Flávio; NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito do consumidor: direito material e processual. 7. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018. THEODORO JÚNIOR, Humberto. Direitos do consumidor. 9. ed. ref., rev. e atual. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. Dispositivos legais Art. 7º, CDC. Art. 5º, XXXII, CF + 178, CF. Art. 48, ADCT. Jurisprudências Dizer o Direito https://www.dizerodireito.com.br/
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