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INTRODUÇÃO À ARTE DE CONTAR HISTÓRIAS GRAMÁTICA da FANTASIA GIANNI RODARI Nos anos 1960, fruto do seu interesse pela literatura para crianças, Rodari percorre as escolas italianas a «contar histórias e a responder às perguntas das crianças. E dado que há sempre um menino que pergunta: “Como é que se inventam histórias?”, ele merece uma resposta honesta.» Através do contacto direto com as crianças, Rodari observa, conversa e tira apontamentos, tentando desvendar os procedimentos da arte de criar histórias. Esta atividade será a base da sua mais importante obra teórica A Gramática da Fantasia. Nela, o autor apresentará o «binómio fantástico», «o que aconteceria se…», a construção de adivinhas, a «salada de histórias» e restante repertório de propostas rodarianas para criar histórias. Na base desta obra está uma mensagem muito clara que faz referência à escola: nenhum tipo de hierarquia entre as diferentes disciplinas. E, no fundo, uma só disciplina: a realidade focada a partir de todos os pontos de vista, a começar pela realidade mais próxima, pela comunidade escolar, pela forma de estar e de trabalhar juntos. Numa escola deste género, a criança já não é vista como consumidora de cultura e de valores, mas como criadora e produtora de valores e de cultura. ISBN 978-989-99583-2-6 9 7 8 9 8 9 9 9 5 8 3 2 6 GR AM ÁT IC A DA FA NT AS IA GI AN NI R OD AR I GIANNI RODARI, jornalista, escritor e pedagogo, nasceu no Piemonte (Itália) a 23 de outubro de 1923. Dois anos depois de ter obtido o grau de mestre, em 1937, estalou a Segunda Guerra Mundial. Nessa altura aderiu ao Partido Comunista Italiano e começou a colaborar no jornal comunista L’Unità de Milão. Em 1948 estreou-se na escrita para crianças em diversos jornais, publicando poemas, lengalengas e histórias curtas de cariz humorístico ligadas à poesia popular italiana. Em 1958 foi contratado pelo Paese Sera de Roma, jornal onde trabalhou até ao fim da sua vida, em 1980. Ao longo desses anos, publicou uma extensa obra onde figuram títulos tão populares como Histórias ao Telefone, Baralhando Histórias, Histórias para Brincar, etc. Em 1970 Gianni Rodari foi galardoado com o prémio Hans Christian Andersen, em reconhecimento pela sua aclamada obra dedicada aos leitores mais novos. GRAMÁTICA da FANTASIA Introdução à arte de inventar histórias GIANNI RODARI À cidade de Reggio Emilia Título original: Grammatica della fantasia de Gianni Rodari © 1980, Maria Ferretti Rodari and Paola Rodari, Italy © 1991, Edizioni EL S.r.l., San Dorligo Della Valle (Trieste) - www.edizioniel.com © da tradução: Pia Mastrangelo e Elisabete Ramos, 2017 © desta edição: Kalandraka Editora Portugal Lda., 2017 Rua Alfredo Cunha, n.º 37, Sala 34 4450-023 Matosinhos. Portugal Telefone: (00351) 22 9375718 editora@kalandraka.pt www.kalandraka.com/pt/ Faktoria K de Livros é uma chancela da Kalandraka Ilustração da capa: João Fazenda Impresso em Rainho & Neves, Sta. M.ª da Feira, Portugal Primeira edição: abril, 2017 ISBN: 978-989-99583-2-6 DL: 423808/17 Reservados todos os direitos 1973, o ano da primeira edição pela Einaudi da Gramática da Fantasia, fruto dos Encontros com a Fantástica ministrados em março de 1972 por Rodari a professores, bibliotecários e agentes culturais em Reggio Emilia, constitui um ponto de referência em Itália e no estrangeiro para todos os profissionais da área da educação que se dedicam à leitura e à literatura para a infância. 1. ANTECEDENTES No inverno de 1937-38, por recomendação de uma professora primária, mulher de um agente da polícia municipal, fui contratado para dar aulas particulares de italiano aos filhos de um casal de judeus alemães que acreditavam – e continuaram a acreditar durante uns meses – ter encontrado em Itália um refúgio das perse- guições raciais. Eu morava ali com eles, numa quinta nas colinas junto ao lago Maggiore. Trabalhava com as crianças das sete às dez da manhã. O resto do dia passava-o nos bosques, a passear e a ler Dostoiévski. Foi uma bela fase, enquanto durou. Aprendi a falar um bocadinho de alemão e mergulhei nos livros desta língua com a paixão, desordem e deleite que rendem, a quem estuda, cem vezes mais do que cem anos de escola. Um dia, entre os Fragmentos de Novalis (1772-1801), encontrei um que dizia assim: «Se houvesse uma Fan- tástica, tal como há uma Lógica, já teria sido descoberta a arte de inventar.» Era muito bonito, como pratica- mente todos os Fragmentos de Novalis, pois contêm ideias extraordinárias. Poucos meses depois, tendo descoberto os surrealistas franceses, julguei ter encontrado no seu método de trabalho aquela «Fantástica» de que Novalis andava à 9 Então voltei a lembrar-me da Fantástica e desenvolvi-a, tornando-a útil àquela nova e imprevista atividade. Só a preguiça, uma certa relutância à sistematização e a falta de tempo me impediram de falar dela publica- mente até que, em 1962, publiquei no jornal romano Paese Sera um «Manual para inventar histórias» em duas edições (9 e 19 de fevereiro). Nestes artigos distanciava-me respeitosamente do assunto, fazendo de conta ter recebido de um jovem investigador japonês, que conhecera em Roma durante os Jogos Olímpicos, o manuscrito da tradução inglesa de um opúsculo que teria sido publicado em Estugarda, em 1912, pela Novalis-Verlag, da improvável autoria de Otto Schlegel-Kamnitzer, cujo título seria: Grundle- gung zur Phantastik – Die Kunst Märchen zu schreiben, ou seja: Fundamentos para uma Fantástica – A arte de escrever histórias. No quadro desta pouco original ficção, expunha, algures entre o sério e o burlesco, algumas técnicas de invenção simples: as mesmas que, poste- riormente e durante anos, divulguei em todas as escolas onde fui contar histórias e responder às perguntas das crianças. E dado que há sempre um menino que pergunta: «Como é que se inventam histórias?», ele merece uma resposta honesta. Voltei a pegar no tema, mais tarde, no Giornale dei genitori, para sugerir aos leitores uma maneira de criarem sozinhos as «histórias de embalar» (Che cosa succede se il nonno diventa un gatto?, dezembro 1969; Un piatto di storie, janeiro-fevereiro 1971; Storie per ridere, abril 1971). 11 procura. É bem verdade que o pai e profeta do surrealismo escreveu, logo no primeiro manifesto do movimento: «As futuras técnicas surrealistas não me interessam.» Mas, entretanto, os seus colegas escritores e pintores já tinham inventado umas quantas. Por essa altura, após a partida dos meus judeus em busca de outra pátria, eu dava aulas numa escola do primeiro ciclo. Devia ser um péssimo professor, mal preparado para o meu trabalho e com a cabeça em tudo: da linguística indo- -europeia ao marxismo (o Cavaleiro Romussi, diretor da Biblioteca Pública de Varese, pese embora o retrato de Mussolini estivesse bem visível por cima da sua secretária, entregava-me, sempre e sem pestanejar, qualquer livro que eu viesse a requisitar); tinha a cabeça em tudo menos na escola. Todavia, talvez não tivesse sido um professor maçador. Por simpatia mas também por brincadeira, contava às crianças histórias sem a mínima ligação à realidade ou ao senso comum, que eu inventava utilizando as «técnicas» propostas e ao mesmo tempo reprovadas por Breton. Foi nessa altura que dei o pomposo título Caderno da Fantástica a uma modesta sebenta onde apontava não as histórias que eu próprio narrava, mas a forma como nasciam, os truques que descobria ou julgava des- cobrir, para pôr em ação palavras e imagens. Tudo isto acabou por ficar esquecido e enterrado durante muito tempo até que, quase por acaso, por volta de 1948, comecei a escrever para as crianças. 10 partir de um ex-pavilhão dos bombeiros, ornamentada com colunas de ferro pintadas de roxo. Isto sim, era emocionante. O terceiro motivo de felicidade, o mais substancial, residia na possibilidade que me foi pro- porcionada de refletir, durante algum tempo e siste- maticamente, sob o controlo constante da discussão e da experimentação, não somente sobrea função da imaginação e das técnicas para a estimular, mas também sobre como transmitir a todos aquelas técnicas para, por exemplo, fazer delas um instrumento para a educação linguística (e não só...) das crianças. No fim daquele «breve curso» fiquei na posse do texto daquelas cinco conversações, graças ao gravador que as recolheu e à paciência de uma datilógrafa. O livrinho que aqui apresento não passa de uma reelaboração das tais conversas de Reggio Emilia. Não pretende ser – quero aqui precisar – nem a tentativa de fundar uma «Fantástica» a bom rigor, pronta para ser ensinada e estudada nas escolas, tal como a geometria, nem sequer uma teoria completa da imaginação e da invenção, para a qual bem seria necessário outro arcaboiço e alguém mais conhecedor do que eu. Também não é um «ensaio». Na verdade, nem eu sei bem o que é. Nela fala-se de algumas formas de inventar histórias para crianças e de como ajudá-las a inventar histórias sozinhas: mas sabe-se lá quantas outras maneiras se poderiam encontrar e descrever. É simplesmente abordada a invenção através das palavras e sugere-se apenas, mas 13 Listar tantas datas até parece mal. A quem poderiam interessar? Mesmo assim gosto de alinhá-las uma a seguir à outra, como se fossem importantes. O leitor faça de conta que está a brincar àquele jogo que a psico- logia transacional chama de «Olha, mãe, agora sem mãos!» Toda a gente gosta de se gabar de alguma coisa, não é? De 6 a 10 de março de 1972 em Reggio Emilia, a convite da Câmara Municipal, presidi a uma série de encontros com cerca de cinquenta professores do en- sino pré-escolar e do primeiro e segundo ciclos do ensino básico. Aqui apresentei, conclusiva e oficialmente, por assim dizer, todas as minhas ferramentas do ofício. Há três coisas que me hão de fazer sempre recordar aquela semana como uma das mais bonitas da minha vida. A primeira é que o cartaz afixado pela Câmara para essa ocasião anunciava a todo o seu comprimento Encontros com a Fantástica e, portanto, finalmente pude ler nas paredes estupefactas da cidade aquela palavra que me acompanhava há trinta e quatro anos. A segunda é que no mesmo cartaz alertava-se que as «reservas» estavam limitadas «a cinquenta» pessoas: um número mais elevado de participantes, como é óbvio, transfor- maria os encontros em conferências, que não seriam úteis a ninguém; mas no fundo era como se a advertência ocultasse o receio de que multidões descontroladas se lançassem ao som da «Fantástica», para tomar de assalto o lugar dos encontros, ou seja, uma sala reconvertida a 12 2. UM SEIXO NO CHARCO Um seixo lançado a um charco provoca ondas con- cêntricas que se alargam à superfície e abrangem no seu movimento diferentes efeitos a diversas distâncias: o nenúfar e a cana, o barquinho de papel ou a boia do pescador. É como se estes objetos, encontrando-se cada um deles no seu cantinho, no seu sossego ou no seu sono, fossem chamados à vida, obrigados a reagir, a relacio- nar-se entre si. Enquanto o seixo se precipita agitando as algas, afugentando peixes, causando sempre novas agitações moleculares, nas profundezas propagam-se outros movimentos invisíveis em todas as direções. Quando, por fim, toca no fundo, revolve a lama, empurra os objetos que se encontravam lá esquecidos, alguns ficam agora desenterrados e outros são tapados um a um pela areia. Num brevíssimo espaço de tempo suce- dem-se inúmeros eventos ou microeventos. Mesmo tendo tempo e vontade, talvez não conseguíssemos registá-los todos, sem omissões. Da mesma forma, uma palavra lançada aleatoriamente na mente produz ondas à superfície e em profundidade, provoca uma série infinita de reações em cadeia uma vez que, na queda, estão envolvidos sons e imagens, 15 sem aprofundar, que as técnicas seriam facilmente transferidas para outras linguagens, dado que uma história pode ser contada por um único narrador ou por um grupo, mas pode também transformar-se em teatro ou num guião para um espetáculo de marionetas, fazer dela banda desenhada, um filme, ficar registada num gravador e ser enviada aos amigos. Estas técnicas pode- riam ser aplicadas em todo o tipo de jogos infantis, mas muito pouco é dito acerca disso. Eu espero que este livrinho possa também ser útil a quem acredita na necessidade de que a imaginação ocupe o seu lugar na educação, a quem confia na cria- tividade das crianças, bem como a quem sabe o valor libertador que a palavra pode ter. «Todos os usos da palavra para todos» parece-me um bom lema, com uma sonoridade bem democrática. Não para que todos se tornem artistas, mas para que ninguém seja escravo. 14 vinho branco e a conversar sobre Kant. Também nos encontrávamos no comboio, éramos os dois estudantes de fora. Amedeo vestia uma longa capa azul-escura. Às vezes, por debaixo da capa, podia adivinhar-se o vulto do estojo do seu violino. A alça do meu estava partida e tinha de o levar debaixo do braço. O Amedeo alistou-se na infantaria alpina e morreu na Rússia. Noutra ocasião, a figura de Amedeo surgiu-me fruto de uma «pesquisa» acerca da palavra «bloco», que me trouxe à memória uns fornos baixos, que há nos campos da Lombardia, e longas caminhadas na neblina, ou nos bosques, onde muitas vezes eu e o Amedeo passáva- mos tardes inteiras a conversar sobre Kant, Dostoiévski, Montale ou Alfonso Gatto. As amizades dos dezasseis anos são as que deixam as marcas mais profundas na nossa vida. Mas isso agora não interessa. O que inte- ressa é tomar nota de como uma palavra qualquer, escolhida ao acaso, pode funcionar como palavra mágica para desenterrar campos da memória que jaziam debaixo do pó do tempo. O sabor da madeleine atuava de forma semelhante na memória de Proust. E a seguir a ele todos os «escri- tores da memória» aprenderam a ouvir, até demais, os ecos sepultados das palavras, dos cheiros, dos sons. Mas nós queremos inventar histórias para as crianças, e não escrever contos para recuperar e salvar a nossa vida perdida. Quando muito, de vez em quando, também será divertido e útil jogar ao jogo da memória com as crianças. 17 analogias e recordações, significados e sonhos, num movimento que afeta a experiência e a memória, a fantasia e o inconsciente, e que se torna mais complexo pelo facto de a referida mente não assistir passivamente à representação, ela intervém continuamente nesta, para aceitar e rejeitar, aliar e censurar, construir e destruir. Tomemos como exemplo a palavra «seixo». Ao cair na mente, esta arrasta consigo ou empurra ou evita, enfim, entra em contacto de diversas formas: com todas as palavras que começam por s-mas não continuam com -e-, como «saco», «silêncio», «sístole»; com todas as palavras que começam por sei-, como «seio», «seis», «seiscentos», «seita», «seitoura», «seiva», «seixal»; com todas as palavras que rimam com -eixo, como «deixo», «desleixo», «freixo», «queixo», «semieixo», «teixo»; com todas as palavras próximas do seu campo semântico, através do significado: «pedra», «mármore», «bloco», «rocha», «granito», «quartzo», «feldspato», etc. Estas são as associações mais preguiçosas, uma pa- lavra puxa pela outra por inércia. É difícil dizer se isso é suficiente para se dar o clique (mas nunca se sabe). Entretanto, a palavra precipita-se noutras direções, afunda-se no mundo passado, traz à superfície presenças submersas. Desta perspetiva, para mim, «seixo» é Santa Caterina del Sasso, um santuário suspenso sobre o lago Maggiore. Ia até lá de bicicleta. Íamos juntos, eu e o Amedeo. Sentávamo-nos numas frescas arcadas a beber 16 Nono-Berio-Maderna1, algo de fazer delirar Stockhausen (que tem mais direito a entrar na imagem do que os outros, com o seu «Haus» – «casa» – incluído no apelido). Mas não se trata apenas de uma casa. Há toda uma terra musical que contém a casa-piano, a casa-celesta, a casa-fagote. É uma terra-orquestra. Ao serão, os habitantes tocam as próprias casas e todos juntos dão um belo concerto antes de irem para a cama... À noite, enquanto todos dormem, um prisioneiro toca grades na sua cela, etc. A história jáseguiu o seu rumo... Acho que o prisioneiro entrou na história graças à relação de aliteração estabelecida entre «seixo» e «cela», de que eu não era consciente mas que, evidentemente, me estava a preparar uma emboscada. As grades seriam uma consequência óbvia, mas duvido. Devem antes ter sido sugeridas pela lembrança fugaz do título de um filme antigo: Prisão sem grades. A imaginação pode seguir agora outro caminho: Caem todas as grades de todas as prisões do mundo. Todos fogem. Os ladrões também? Sim, também os ladrões. É a prisão que faz os ladrões. Se acaba a prisão, acabam-se os ladrões... E aqui reparo como, no processo aparentemente mecânico, a minha ideologia cai numa espécie de molde que, posteriormente, modifica. Ouço o eco das leituras 19 Qualquer palavra poderá ajudá-los a recordar «daquela vez em que...», a descobrirem-se no tempo que passa, a medir a distância entre hoje e ontem, se bem que os seus «ontem», felizmente, ainda são poucos e pouco preenchidos. Neste tipo de investigação que parte de uma única palavra, o «tema fantástico» nasce quando se criam combinações invulgares, quando nos complexos movi- mentos das imagens e nas suas interferências caprichosas surge um parentesco imprevisível entre palavras que pertencem a cadeias diferentes. «Bloco» trouxe consigo: «toco», «troco», «sufoco», «foco», «floco»... «Bloco» e «toco» apresentam-se, a meu ver, como uma dupla interessante, se bem que não tão «bonita como o fortuito encontro entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa cirúrgica» (Lautréamont, Os cantos de Maldoror). No confuso conjunto de palavras até agora evocadas, «bloco» está para «toco» como «seixo» está para «queixo». Prova- velmente, o violino de Amedeo acrescenta um elemento afetivo e sugere uma imagem musical. Eis a casa musical. É feita de blocos musicais, de pedras musicais. As suas paredes, ao serem percutidas com pequenos martelos, emitem todas as notas possíveis. Só que há um dó sustenido sobre o sofá, o fá mais agudo está por baixo da janela, o chão está todo em si bemol maior, uma tonalidade excitante. Há uma fabulosa porta atonal, serial, eletrónica: basta deslizar os dedos por ela para obter uma cena ao estilo 18 1 Todos estes autores, juntamente com Stockhausen, são pioneiros da música eletrónica. (N. das T.) Neste momento, eu não saberia o que fazer com as xícaras ocas inventadas pelos sete elefantes, a não ser usá-las para construir um nonsense que rimasse: Sete elefantes inventam xícaras ocas para comerem muitas sopas... Mas também não é preciso esperarmos um resultado interessante à primeira tentativa. Procuremos outra série com o mesmo sistema: S – Setecentos E – Engenheiros I – Interpretavam X – Xistosas O – Ocarinas Este «setecentos» é um prolongamento automático do «sete» anterior. As «ocarinas» impuseram-se pela evidente sugestão da palavra «ocas»: mas, nesta inda- gação, não podemos ignorar que se viram favorecidas pela proximidade com os outros instrumentos musicais citados mais acima. Um cortejo de setecentos engenhei- ros a interpretar ocarinas não é uma imagem de se deitar fora. Pessoalmente, tenho inventado muitas histórias a partir de uma palavra escolhida à sorte. Uma vez, por exemplo, partindo da palavra «castelo» obtive esta sequência: «castelo-Castelo Branco» (peço desculpa pelo uso um tanto ou quanto arbitrário de um nome ilustre num campo também relativo às histórias...) 21 antigas e recentes. Os mundos dos excluídos reclamam com veemência que alguém pronuncie o seu nome: or- fanatos, reformatórios, lares, manicómios, salas de aula. A realidade irrompe no exercício surrealista. No fim de contas, se a terra musical se transformasse numa história, talvez não se tratasse de uma fantasia evasiva, mas antes de uma maneira de redescobrir e representar a realidade num novo formato. Mas a exploração da palavra «seixo» ainda não aca- bou. Devo ainda rejeitá-la como organismo com um determinado significado e com um determinado som, decompô-la nas suas letras, descobrir as palavras que rejeitei, sucessivamente, para chegar à sua pronúncia: – S – E – I – X – O Agora, ao lado de cada letra posso escrever a primeira palavra que me vier à cabeça, obtendo uma nova série (por exemplo: «sardinha-escritor-ilha-xilofone-oleiro»). Ou posso escrever ao lado das cinco letras, o que será mais divertido, cinco palavras que formem uma frase com sentido, assim: S – Sete E – Elefantes I – Inventam X – Xícaras O – Ocas 20 3. A PALAVRA «OLÁ» Há alguns anos, nos jardins de infância de Reggio Emilia, nasceu o «jogo do contador de histórias». Um a um, os meninos sobem a um estrado, uma espécie de tribuna, e contam aos colegas, que estão aconchegados no chão, uma história inventada por eles. A educadora transcreve-a e o menino está atento para que ela não esqueça nem altere nada. Depois a criança ilustra a sua história com um grande desenho. Mais adiante anali- sarei uma destas histórias espontâneas. Aqui, o «jogo do contador de histórias» serve apenas de premissa do que se segue. Depois de eu ter falado sobre o modo de inventar uma história a partir de uma dada palavra, a educadora Giulia Notari do jardim de infância Diana perguntou se algum menino queria inventar uma história segundo aquele novo sistema, e sugeriu a palavra «olá». Um rapaz de cinco anos contou esta história: Um menino tinha perdido todas as palavras bonitas e só tinha ficado com as más: merda, cocó, cagalhão, etc. Então a mãe leva-o a um médico, que tinha um bigode grande, assim, e que lhe diz: – Abre a boca, põe a língua de fora, olha para cima, olha para dentro, enche as bochechas de ar. 23 «branco-ovo-oval-órbita-ovo em órbita». Parei aqui e escrevi Un mondo in un uovo, uma história algures entre a ficção científica e a brincadeira. Agora podemos deixar a palavra «seixo» ir à sua vida. Mas sem a ilusão de termos esgotado as suas potencialidades. Paul Valéry disse: «Não há palavra que se possa compreender se cismarmos nela.» E Wittgens- tein: «As palavras são como a tona das águas profundas.» As histórias procuram-se precisamente ao mergulharmos nessas águas. Quanto à palavra «bloco», vou recordar o teste ame- ricano de criatividade que Marta Fattori refere no seu fantástico livro Creatività ed educazione.Nele, as crianças são convidadas a fazer uma lista com todos os usos que conheçam ou consigam imaginar da palavra «bloco». Talvez a palavra «bloco» se tenha imposto com tanta força por ter lido este teste recentemente nesse livro. Infelizmente, este tipo de teste não pretende estimular a criatividade infantil mas sim medi-la para selecionar «o melhor a imaginação» como noutros se seleciona «o melhor a matemática». Naturalmente, terão a sua utilidade, mas perseguem fins alheios aos inte- resses das crianças. Por sua vez, o jogo do «seixo no charco» que acabei de ilustrar brevemente, vai no sentido oposto: deve servir as crianças, e não servir-se delas. 22 Trata-se de uma operação criativa que também apre- senta um aspeto estético e que aqui interessa no que diz respeito à criatividade, não à arte. Da segunda vez, os espetadores interromperam o narra- dor para explorarem o «jogo do médico», procurando variantes ao tradicional «põe a língua de fora». A diversão tinha aqui um duplo significado: um psicológico, porque através da comicidade servia para desdramatizar a figura do médico, sempre um pouco temida; e outro com- petitivo, para ver quem encontrava a variação mais surpreendente e inesperada («olha para dentro»). Um jogo deste tipo já é teatro, é a unidade mínima da dramatização. Mas vamos à estrutura da história. Na realidade não se baseia exclusivamente na palavra «olá», ou seja, no seu significado e no seu som. O rapaz que começou a história escolheu como tema a expressão «a palavra olá», no seu conjunto. Foi por isso que na sua imagi- nação não prevaleceu, ainda que se produzisse noutro momento, a procura de palavras próximas ou parecidas, de situações em que se usasse a palavra destemodo ou daquele; mesmo o uso mais simples, o da saudação, parece ser substancialmente recusado. Em contrapartida, a expressão «a palavra olá», deu imediatamente lugar, sobre o «eixo da seleção», à construção de duas classes de palavras: as «palavras bonitas» e as «palavras feias»; e sucessivamente, através do gesto, a outras duas classes: a das «palavras curtas» e a das «palavras compridas». 25 O médico diz-lhe para ele procurar à sua volta uma palavra bonita. Primeiro, ele encontra uma palavra assim (o rapaz indica um comprimento de uns vinte centímetros), que era «uf», que é feia. Depois encontra outra, comprida, assim (uns cinquenta centímetros), que era «desenrasca-te», que é feia. Depois encontra uma palavrinha cor de rosa, que era «olá»; mete-a no bolso, leva-a para casa e aprende a dizer palavras simpáticas e fica bom. Durante a narração, os espetadores interromperam duas vezes para recuperar ou desenvolver ideias inte- ressantes que a história oferecia. Da primeira vez, sobre o tema das palavras «feias», improvisaram alegremente uma ladainha dos chamados «palavrões», recitando toda a série que conheciam e que fora evocada pela primeira. Faziam-no, obviamente, em jeito de desafio, como um jogo libertador de comicidade escatológica, bem conhe- cido por quem lida com crianças. Tecnicamente, o jogo das associações evoluía sobre aquilo que os linguistas chamam de «eixo da seleção» (Jakobson), como uma exploração das palavras próximas ao longo da cadeia do significado. Mas essas palavras não representavam um desvio, um abandono do tema da história, antes pelo contrário, aclaravam e determinavam o seu desen- volvimento. No trabalho do poeta, diz Jakobson, o «eixo da seleção» projeta-se sobre o «eixo da combinação»: pode ser um som (uma rima) a evocar um significado, uma analogia verbal a suscitar uma metáfora. Quando a criança inventa uma história, acontece o mesmo. 24 amigos, a estar em grupo, a brincar em conjunto. Elas já não são o oposto das palavras «bonitas», em abstrato, mas sim das palavras «justas e simpáticas». Daí nasce uma nova classe de palavras, em que se revelam os novos valores que o menino absorve naquela escola. A mente chegou a este resultado reagindo perante as suas próprias imagens, julgando-as, controlando as suas associações com a ajuda de uma pequena personalidade em ação. E fica claro porque é que «olá» tem de ser uma «pala- vrinha cor de rosa»: porque é uma cor amável, delicada, não agressiva. A cor é um indicador de valor. Todavia, foi uma pena não ter perguntado ao rapaz: «Porquê cor de rosa?» A sua resposta ter-nos-ia dito algo que não sabemos e que agora é muito difícil de reconstruir. 27 Aquele gesto não é uma improvisação, é uma apro- priação. Certamente o rapaz viu na televisão a publicidade de uma marca de rebuçados em que aparecem duas mãos a aplaudir e que depois se afastam, enquanto aparece escrito o nome da marca anunciada entre uma e outra. O rapaz recuperou esse gesto da memória e usou-o de um modo pessoal e original. Rejeitou a men- sagem publicitária, mas aceitou a implícita e não desejada, não programada: o gesto que mede o comprimento das palavras. Nunca podemos saber exatamente o que aprende uma criança quando vê televisão. E nunca de- vemos subestimar a sua capacidade de reagir de forma criativa àquilo que viu. Na história intervém, no momento certo, a censura exercida pelo modelo cultural. O rapaz define como «feias» as palavras que lhe ensinaram em casa a considerar incorretas. São os pais que definem as palavras como «feias». Mas este menino encontra-se num ambiente educativo que lhe permite superar certos condiciona- mentos: uma escola não repressiva onde não o censuram ou ralham se utilizar essas palavras. Deste ponto de vista, o resultado mais extraordinário da história consiste no abandono final das classes de palavras estabelecidas no início. As «palavras feias» que o rapaz encontra na sua exploração: «uf», «desenrasca-te», não são más relati- vamente a um sistema repressivo; são palavras que afastam, que ofendem os outros, que não ajudam a fazer 26 e da figuração, escreve que «o conceito é impossível sem o seu oposto. Não existem conceitos que se devam a si mesmos, geralmente são binómios de conceitos». Uma história só pode nascer a partir de um «binó- mio fantástico». «Cavalo-cão» não é verdadeiramente um binómio fantástico. É uma mera associação dentro da mesma classe zoológica. A imaginação assiste indiferente à evocação dos dois quadrúpedes. É como um acorde em terceira maior: não promete nada de excitante. É necessária uma certa distância entre as duas palavras, que uma seja suficientemente estranha à outra e o seu encaixe discretamente insólito, para que a imaginação se veja obrigada a pôr-se em movimento, a fim de esta- belecer um parentesco entre elas para construir um conjunto (fantástico) em que os dois elementos estranhos possam conviver. Por isso, convém escolher um binómio fantástico com a ajuda do acaso. As duas palavras podem ser ditas por duas crianças individualmente, podem ser atiradas à sorte, podem ser assinaladas por um dedo que não saiba ler em duas páginas do dicionário, uma longe da outra. Quando eu era professor, mandava um aluno escrever uma palavra na parte da frente do quadro, enquanto outro escrevia outra palavra do lado oculto. O pequeno rito preparatório tinha a sua importância. Criava expe- tativa. Se uma criança escrevia, à vista de todos, a palavra «cão», esta era já uma palavra especial, disposta a fazer 29 4. O BINÓMIO FANTÁSTICO Já vimos nascer o tema fantástico, a ideia para uma história a partir de uma simples palavra. Mas tratou-se, sobretudo, de ilusão ótica. Na realidade não basta um polo elétrico para provocar uma faísca, são precisos dois. Uma simples palavra «age» («Búfalo. E o nome agiu...», diz Montale) apenas quando encontra outra que a provoca, que a obriga a sair do trilho habitual, a descobrir novas capacidades de significar. Onde não há luta, não há vida. Isto depende do facto de a imaginação não ser uma faculdade isolada da mente: é a própria mente, na sua in- tegridade que, aplicada a uma determinada atividade, utiliza sempre os mesmos procedimentos. E a mente nasce na luta, não na calma. Henry Wallon, no seu livro As origens do pensamento na criança, escreveu que o pensamento se forma aos pares. A ideia de «mole» não se forma antes ou depois da ideia de «duro», forma-se simultaneamente, num choque gerador: «o elemento fundamental do pensamento é essa estrutura binária, não os simples elementos que a cons- tituem. A dupla, o par precede o elemento isolado». Portanto, no princípio era a oposição. Também Paul Klee é da mesma opinião quando, na sua Teoria da forma 28 «descontextualizadas», «estranhadas», lançadas uma contra a outra sob um céu nunca antes visto. Então encontram-se nas melhores condições para gerar uma história. Peguemos então nas palavras «cão» e «armário». O procedimento mais simples para criar uma relação entre elas é uni-las através de uma preposição. Obte- remos, assim, diversas figuras: o cão com o armário, o armário do cão, o cão em cima do armário, o cão no armário, etc. Cada uma destas imagens oferece-nos o esquema de uma situação fantástica: 1. Um cão passa na rua com um armário às costas. É a sua casota. Trá-la sempre com ele, como um caracol com a sua concha. O resto, ad libitum. 2. O armário do cão parece-me mais uma ideia para arqui- tetos, designers e decoradores de luxo. Está pensado para guardar a capinha do cão, a coleção de açaimes e trelas, as pantufas de pelo, o protetor de cauda com pompons, os ossos de borracha, os gatos de brincar, o guia da cidade (para ir comprar leite, o jornal e cigarros ao dono). Não sei se também pode conter uma história. 3. O cão no armário soa-me bem mais sugestivo. O doutor Polifemo regressa a casa, abre o armário para ir buscar o robe, e depara-se com um cão. De repente somos obrigados a imaginar algo que explique essa aparição. Mas a explicação 31 parte de uma surpresa, a inserir-se numacontecimento imprevisível. Aquele «cão» não era um quadrúpede qualquer, era já uma personagem aventureira, disponível, fantástica. Ao dar a volta ao quadro, lia-se, por exemplo, a palavra «armário», que era saudada com uma gargalhada; «ornitorrinco» ou «tetraedro» não teriam alcançado tanto sucesso. Um armário, por si só, não faz rir nem chorar. É uma presença inerte, uma banalidade. Mas aquele armário emparelhado com um cão era algo muito diferente. Era uma descoberta, uma invenção, um estímulo excitante. Anos mais tarde, li o que Marx Ernst escreveu para explicar o seu conceito de «desorientação sistemática». Também ele se servia da imagem de um armário, aquele que De Chirico pintou no meio de uma paisagem clássica, entre oliveiras e templos gregos. Assim «desorientado», precipitado num contexto inédito, o armário transfor- mava-se num objeto misterioso. Talvez estivesse cheio de roupa, talvez não; mas estava certamente repleto de fascínio. Viktor Chklóvski descreve o efeito de «estranha- mento» (em russo, ostranenije) que Tolstói consegue ao falar de um simples sofá, nos termos que usaria uma pessoa que nunca tivesse visto nenhum, nem suspei- tasse dos seus possíveis usos. No «binómio fantástico» as palavras não ficam presas no seu significado quotidiano, são libertadas das cadeias verbais de que habitualmente fazem parte, são 30 tem uma importância concreta, e dela falaremos mais adiante. Mas não prestaremos menos atenção aos seus efeitos de alegria. Em geral, nas nossas escolas ri-se muito pouco. A ideia de que a educação da mente deve ser algo triste é das mais difíceis de combater. Quem sabia muito disso era Giacomo Leopardi quando escreveu no seu Zibaldone, a 1 de agosto de 1823: «A mais bela e afortunada idade do homem, a infância, vê-se atormentada de mil maneiras, por mil angústias, temores e fadigas da educação e da instrução, pelo que o adulto, apesar de viver na infelicidade... nunca aceitaria voltar a ser criança, sob a condição de sofrer o que sofreu na sua infância.» 33 pode esperar. Neste momento é mais interessante analisar a situação de perto. A raça do cão é indefinível. Talvez seja um cão para ir às trufas, talvez um cão para ir aos cíclames. Aos rododendros. Muito afável com o próximo, abana a cauda afetuosamente, dá a pata com bons modos, mas, por mais que o doutor Polifemo lhe implore, não quer saber de sair do armário. A seguir, o doutor Polifemo vai tomar duche e encontra outro cão no armário da casa de banho. Também está outro na prateleira do móvel das panelas, outro no lava- -louça, outro meio congelado no frigorífico. Há um cão de água no móvel das vassouras, um chiuaua na gaveta da secre- tária. Chegado a este ponto, o doutor Polifemo poderia chamar o porteiro para que o ajudasse a expulsar os invasores, mas não é isso que lhe diz o seu coração cinófilo. Pelo contrário, vai a correr ao talho e compra dez quilos de bifes para alimentar os seus hóspedes. Desde então, todos os dias compra dez quilos de carne. E aquilo começa a chamar a atenção. O talhante desconfia. Começa o falatório. Nasce a maledicência, as calúnias. Será que esse tal doutor Polifemo tem espias atómicos em casa? Será que ele faz experiências diabólicas com aqueles bifes e com aquelas febras todas? O pobre doutor perde a clientela. Chegam rumores à polícia e o inspetor-chefe ordena uma inspeção à sua casa. E assim se descobre que o doutor Polifemo teve de sujeitar-se, sendo inocente, a todas aquelas buscas por amor aos cães, etc. A história, nesta fase, não passa de «matéria-prima». Fazer dela um produto acabado é dever do escritor. Aqui só interessava exemplificar o uso de um binómio fantástico. O nonsense pode manter-se assim. Trata-se de uma técnica que as crianças aplicam com grande facilidade e muita diversão, como tive ocasião de constatar em tantas escolas italianas.O exercício - entenda-se bem - 32
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