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Livro_FILOSOFIA_DE_DIREITO

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Elementos de 
Filosofia do Direito 
 
 
Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira 
Sergio de Souza Salles 
 
 
Elementos de 
Filosofia do Direito 
 
Petrópolis, 2009 
© Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira & Sergio de Souza Salles 
 
1ª edição: 2009 
 
Esta edição é propriedade dos autores. 
 
Ficha Catalográfica 
 
S587a 
Silveira, Carlos Frederico G. C. da. 
 Elementos de Filosofia do Direito. / Carlos Frederico Gurgel Calvet da Silveira; Sergio 
de Souza Salles. Petrópolis : UCP, 2009. 
 
 114p. ; 14 x 21 cm 
 
 ISBN 978-85-60654-12-3 
 
 1. Direito - Filosofia 2. Jurídica - Filosofia 3. Direito 4. Justiça I. Salles, Sergio de Souza 
II. Título 
 CDU 340.12 
 
Bibliotecária Responsável : Antonieta Chinelli Souto – CRB-7 / 3508 
Imagem da capa: 
Jacobello del Fiore. A justiça entre os arcanjos Miguel e Gabriel. Têmpera sobre painel, 210 x 
190 cm. Veneza: Gallerie dell’Accademia, 1421. 
 
 
 
Universidade Católica de Petrópolis 
Rua Benjamin Constant, 213, Centro - Petrópolis, RJ 
CEP: 25610-130 
Telefone: (24) 2244-4000 
Sumário 
Prefácio 7 
 
1. Introdução 9 
 
2. Definições iniciais 13 
 2.1. Filosofia do Direito 13 
 2.2. Lei, justiça, ética e moral 15 
 
3. Breve história da Filosofia do Direito 17 
 3.1. A descoberta do direito natural 17 
 3.2. O processo histórico de negação do direito natural 31 
 3.3. As correntes contemporâneas 45 
 3.4. Ser e agir na constituição do direito 75 
 3.5. A retomada do direito natural em nova perspectiva 77 
 
4. Temas 81 
 4.1. Natureza e imutabilidade da lei 81 
 4.2. O sujeito do direito 87 
 4.3. A elaboração das leis 89 
 4.4. A hermenêutica 92 
 4.5. Deontologia jurídica 95 
 4.6. O direito de guerra 99 
 
5. Conclusão 103 
Referências Bibliográficas 107 
Índice 110 
Prefácio 
 Elementos de Filosofia do Direito foi elaborado com a meta de atender à 
demanda dos estudantes de direito e de filosofia da Universidade Católica de 
Petrópolis por um material didático que representasse as ideias e os valores 
ensinados efetivamente por seus professores, em comunhão com os princípios 
norteadores da própria Universidade Católica. 
Como material didático de caráter introdutório, o livro procura oferecer ao 
leitor os elementos que servem de base à reflexão filosófica sobre o direito em dois 
momentos distintos e complementares. O primeiro, marcado pela mediação 
histórica das filosofias do direito, procura incentivar os alunos à leitura 
comparativa dos filósofos, tendo como fio condutor a questão do direito natural. 
O segundo, estruturado de modo temático, acompanha a contribuição de Tomás 
de Aquino para o debate contemporâneo em torno da lei, do sujeito do direito e 
da deontologia e hermenêutica jurídica. 
A própria extensão da disciplina Filosofia do Direito, lecionada em um 
semestre, exigiu de nossa parte um olhar mais sintético do que analítico no 
tratamento dos autores e das questões. Embora nem sempre desejáveis, as 
omissões de autores, teorias e correntes filosóficas tornaram-se inevitáveis para 
que o livro fosse fiel à sua tarefa propedêutica. 
É nossa intenção aprofundar gradativamente esta primeira versão, 
conservando a natureza eficaz da síntese para os que se iniciam na reflexão 
filosófica sobre o direito. 
 
Os autores 
Petrópolis, 04 de agosto de 2009. 
1. Introdução 
 Aristóteles afirma, no início de sua Metafísica, que aquele que 
não sabe com clareza o problema que pretende tratar tampouco sabe 
que caminho tomar para sua solução e, o que nos parece igualmente 
grave, não poderá reconhecê-la, quando a encontrar: 
 
Aqueles que pesquisam sem antes terem examinado as dificuldades 
assemelham-se aos que não sabem aonde ir. Estes, ademais, não 
estão em grau de saber se encontraram ou não o que buscavam; de 
fato, não lhes é claro o fim que devem alcançar, enquanto que este é 
claro para o que antes compreendeu as dificuldades1. 
 
 Deve-se considerar que todo problema pode ser aprofundado 
em dois sentidos básicos: precisando a formulação do mesmo ou 
ainda ampliando sua abrangência. Frequentemente esses dois 
aspectos caminham juntos. 
 A história do direito revela exatamente esse aprofundar de 
problemas. Intimamente ligada à história da filosofia, a história do 
direito em seus temas específicos sempre absorveu conquistas da 
pesquisa filosófica, na área especulativa como na prática, isto é, tanto 
em metafísica quanto em ética. Um problema que aparece em direito, 
especialmente se põe em questão seus fundamentos, deve 
1 ARISTÓTELES. Metafísica, B, 995a 35 - 995b 2.encontrar uma formulação 
filosófica ulterior. 
 Um problema que se manifesta com frequência no pensamento 
clássico, e também no contemporâneo, independentemente da forma 
como se apresente, é a questão da existência do direito natural, que, 
na verdade, versa sobre a variabilidade da lei e a busca de um critério 
para regular sua variação. As diferentes respostas que apareceram ao 
longo dos séculos têm sido dadas a partir do próprio percurso da 
reflexão filosófica. Portanto, para o aprofundamento desse problema 
serão apresentadas as premissas filosóficas que servem de princípios 
a determinadas teorias do direito, como se pode observar a partir do 
próprio Aristóteles. 
A questão do direito natural, seu estatuto, isto é, sua natureza 
fundante para qualquer direito ulterior é, pois, o problema 
fundamental da Filosofia do Direito. Os professores Eduardo 
C.B.Bittar e Guilherme de Almeida, em livro de grande valor didático 
e teórico, sugerem algumas tarefas específicas da disciplina, que 
valem ser citadas aqui. Assim, a Filosofia do Direito deveria: 
 
1. proceder à crítica das práticas, das atitudes e atividades dos 
operadores do direito; 
2. avaliar e questionar a atividade legiferante, bem como oferecer 
suporte reflexivo ao legislador; 
3. proceder à avaliação do papel desempenhado pela ciência 
jurídica e o próprio comportamento do jurista ante ela; 
4. investigar as causas da desestruturação, do enfraquecimento ou 
da ruína de um sistema jurídico; 
5. depurar a linguagem jurídica, os conceitos filosóficos e científicos 
do Direito; 
6. investigar a eficácia dos institutos jurídicos, sua atuação social e 
seu compromisso com as questões sociais, seja no que tange a 
indivíduos, seja no que tange a grupos, seja no que tange a 
coletividades, seja no que tange a preocupações humanas 
universais; 
7. esclarecer e definir a teleologia do Direito, seu aspecto valorativo 
e suas relações com a sociedade e os anseios culturais; 
8. resgatar origens e valores fundantes dos processos e institutos 
jurídicos; 
9. por meio da crítica conceitual institucional, valorativa, política e 
procedimental, auxiliar o juiz no processo decisório.2 
 Algumas dessas tarefas serão contempladas nesta obra de 
introdução à Filosofia do Direito, ao menos parcialmente. E isso 
através de três momentos principais: a primeira parte, que visa à 
introdução de conceitos básicos; a segunda, mais extensa, que 
pretende traçar um perfil histórico-crítico das concepções filosóficas 
do direito, especialmente em referência ao conceito de lei natural; e, 
finalmente, uma série de temas próprios da disciplina, tais como o 
sujeito de direito, o direito natural, a hermenêutica jurídica e os 
princípios de uma deontologia jurídica. 
 A linha de desenvolvimento dos argumentos segue o realismo 
tomista, em constante diálogo com os pensadores contemporâneos. 
2 BITTAR, Eduardo & ALMEIDA, Guilherme. Curso de Filosofia do Direito, p.44-45. 
2. Definições Iniciais 
2.1. Filosofia do Direito 
 
Considerando a definição aristotélica da filosofia como a ciência 
das causas últimas e dos princípios primeiros de todas as coisas, 
pode-se dizer que a filosofia do direito é a ciência filosófica que busca 
esclarecer a natureza, a origem, os meios e os fins do direito. 
Contudo, essa definição, de cunho metafísico, pode ser matizada e 
atualizada coma que propõe Giorgio Del Vecchio1: 
 
A Filosofia do Direito abrange, portanto, diversas investigações (a 
lógica, a fenomenológica e a deontológica) e pode assim definir-se: a 
disciplina que define o Direito na sua universalidade lógica, investiga os 
fundamentos e os caracteres gerais do seu desenvolvimento histórico e 
avalia-o segundo o ideal de justiça traçado pela razão pura.2 
 
Como se pode notar, para Del Vecchio, a Filosofia 
1 Giorgio del Vecchio nasceu em Bolonha, aos 26 de agosto de 1878 e morreu em 
Gênova no dia 28 de novembro de 1970. Ensinou em diversas universidades italianas, 
entre as quais, a de Bolonha e a de Roma. Filósofo do direito, Del Vecchio defende uma 
visão do Estado como emanação da natureza humana. Suas obras mais importantes são: 
Il concetto di diritto, Bolonha, 1906; Sulla statualità del diritto, Milão, 1928; Parerga, Milão, 
1961-67; Lezioni di filosofia del diritto, Milão, 1967. 
2 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, p. 304-307.do Direito 
abrange três áreas de investigação: a lógica − quer saber o que o 
Direito é; a fenomenológica − investiga a manifestação do Direito na 
história; a deontológica − indica o que o direito deveria ser. 
Por outro lado, pode-se assumir uma definição do direito de 
acordo com a seguinte formulação: poder moral de possuir, fazer, ou 
exigir alguma coisa. Esta concepção do direito, que é clássica, supõe 
que o direito é um ato moral que se pode cumprir ou exigir de outro. 
Embora estas concepções iniciais sejam passíveis de crítica – como, 
aliás, é tarefa específica da filosofia do direito – elas oferecem 
elementos para uma primeira abordagem do fenômeno jurídico. 
 Voltando a Del Vecchio, a tarefa da filosofia do direito é de 
natureza universal, de modo que é o único saber que pode dar conta 
do sentido último do direito: 
 
É claro que nenhuma ciência jurídica particular pode dizer-nos sic et 
simpliciter o que o direito em si é, considerado no seu aspecto 
universal; pode apenas dizer-nos o que é o Direito de certo povo em 
uma determinada época. A definição do Direito in genere é, pois, 
tarefa que excede a competência de qualquer ciência jurídica 
particular. Está aí a primeira tarefa da Filosofia do Direito. Como 
justamente notou Kant as ciências jurídicas não respondem à 
pergunta quid jus? (que coisa se deve entender in genere por Direito), 
mas apenas à pergunta quid juris? (que coisa é estabelecida pelo 
direito de um determinado sistema)3. 
 
3 DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de Filosofia do Direito, p. 304. 
2.2. Lei, justiça, ética e moral 
 
A lei, consoante a definição de Santo Tomás de Aquino, é “certa 
ordenação da razão em prol do bem comum, promulgada por quem 
tem o encargo da comunidade” (quaedam rationis ordinatio ad bonum 
commune, ab eo, curam communitatis habet, promulgata). Esta definição 
será analisada em capítulo posterior. Por ora, ela tem a função de 
estabelecer as relações entre ética e direito, entre outras coisas. 
Destarte, pode-se dizer que é a lei que funda o direito, se se toma a lei 
no seu sentido mais amplo ou na seguinte ordem: lei divina − direito 
divino − lei natural − direito natural − lei positiva − direito positivo, o 
que na verdade significa que o fundamento do direito é a própria 
realidade, enquanto obra divina. 
A justiça, por outro lado, é a disposição firme e constante da 
vontade em dar a cada um o que é seu (perpetua et constans voluntas, 
ius suum unicuique tribuens). Comumente falando, chama-se justo 
quem respeita o direito: “iustus dicitur quis ius custodit”, afirma o 
pensador medieval, referindo-se às palavras de Santo Isidoro de 
Sevilha. 
A ética, por sua vez, é a disciplina filosófica prática normativa 
da ação humana, segundo a luz natural da razão. Admitindo-se que a 
ética se distingue da moral, pode-se dizer que a ética é uma disciplina 
exclusivamente filosófica, enquanto a moral pressupõe princípios que 
não são derivados da própria razão, como, por exemplo, princípios 
tomados da tradição, do costume ou da religião. 
3. Breve História da Filosofia do Direito 
3.1. A descoberta do Direito Natural 
 
 A concepção clássica 
 
Já na própria mitologia grega encontram-se elementos de 
fundamentação do direito natural. Hesíodo e Homero contribuíram 
com imagens valiosas do suposto conflito, do qual o mito quer dar 
conta entre cosmos, com suas leis, e o caos que parece querer 
reabsorvê-lo. 
Os primeiros filósofos, chamados de “pré-socráticos”, como 
Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes, Parmênides e Heráclito, 
ao investigarem a estrutura da natureza em busca do seu princípio 
primeiro, introduziram o tema da universalidade das leis do universo 
físico, que, com o progresso da reflexão filosófica, se tornará a 
referência primeira das leis morais e políticas. 
Tales, por exemplo, indaga sobre a composição das coisas 
naturais, isto é, de quê são feitas as coisas: é a pergunta sobre a arkhé 
(ajrchv), o princípio de todas as coisas. A indagação de Tales 
modificou o panorama da cultura grega ao abrir o caminho da 
fundamentação racional da natureza. A partir dela surgiu uma 
variedade imensa tanto de respostas quanto de novas questões. 
Logo se assistiria, então, à primeira grande guinada da história 
da filosofia. É o surgimento, com Parmênides, da reflexão sobre o ser, 
o tema central da metafísica. “É indiferente para mim donde eu 
comece, porque para lá sempre voltarei”, isto é, para o ser, diz o 
filósofo de Eléia. 
O texto a que tal fragmento pertence, chamado de Sobre a 
Natureza, aponta ao leitor três vias para o conhecimento: a via da 
verdade, a via do erro e a via da opinião. Em seu proêmio, há uma 
alegoria, relativa à experiência da verdade, cuja provável origem 
religiosa não descarta um sentido racional. E é em função do caráter 
inefável dessa experiência que a deusa que recebe o filósofo em seu 
poema aparece de modo polinômico: é chamada de Justiça, Verdade, 
Moira, Lei divina, Necessidade, Divindade que tudo governa, e 
Persuasão. O ser, que é o tema central da obra, também será 
entendido a partir de uma importante gama de predicados, que 
servirão de referência para toda a metafísica posterior. 
O mesmo se pode dizer quanto à influência da obra de 
Heráclito. Para ele, o princípio das coisas é o fogo, o elemento que 
melhor exprimiria a dinâmica da natureza, pois nela tudo é 
movimento, devir: “tudo flui” (Pavnta r&ei~). A grande novidade de 
Heráclito, entretanto, está na defesa de que o movimento da natureza 
tem uma razão interna, uma lei, o logos (lovgoς). É o logos que 
explica o movimento e que permite a compreensão da natureza. 
Embora o logos seja um elemento oculto na natureza, ele é 
perceptível pela inteligência humana. Assim, pelo logos, a 
inteligência descobre a harmonia do universo, que se manifesta 
através de opostos. 
No prosseguimento dessa busca da lei, da razão, da ordem, 
estão justamente os filósofos posteriores que enveredam por um 
aprofundamento de cunho mais antropológico. Sócrates inaugura 
essa tendência. O bem moral, para Sócrates, consiste na realização da 
racionalidade do homem. A liberdade é justamente o domínio da 
racionalidade sobre a animalidade. Saber, conhecer a verdade é o 
bem supremo do homem e esse conhecimento é suficiente para que 
ele pratique o bem. Em outras palavras, para Sócrates, saber o que é 
certo já garante a ação justa. É o que se chama de intelectualismo 
ético. 
 Desde então, o pensamento ético grego gira em torno do ideal 
de virtude, areté, que significa tornar perfeito aquilo que é próprio de 
alguém. Portanto, a areté máxima, no intelectualismo de Sócrates, é o 
aperfeiçoamento da racionalidade. Essa tendência cada vez mais 
metafísica do pensamento grego chega à sua perfeição, como se sabe, 
com Platão e Aristóteles. 
 
Platão (ca. 428-347 a. C.) 
 
A grande herança de Platão vem imediatamente de Sócrates. 
Contudo, para determinados temas e princípios, a filosofia pré-
socrática e a tradição literária da Gréciasão a sua verdadeira fonte. 
De modo muito especial, a filosofia de Parmênides − a herança 
propriamente metafísica legada a Platão. 
 A novidade platônica é estabelecer que, sob determinado 
aspecto, o não-ser é, o que implica em um ataque à tese parmenídea 
do ser. O termo mhV o#n, não-ser, inaugurado por Parmênides, e 
posto à prova por Górgias, é igualmente confrontado por Platão. Ao 
caracterizar o sofista como aquele que ilude, na medida em que 
pretende tudo saber, Platão insere o tema da ilusão, e traz à tona a 
discussão dialética sobre o ser e o não-ser. O não-ser não será mais 
entendido em oposição ao ser mas como contrário ao mesmo e ao 
idêntico. 
 A crítica platônica aos pré-socráticos é feroz. “Dão-me todos 
eles a impressão de contar-nos fábulas”. Segundo ele, o problema está 
na obscuridade do método desses sábios. Entra-se em contato com 
suas teorias — as mais divergentes mesmo sobre os fundamentos — e 
não se sabe qual delas aceitar, pois não há justificação explícita por 
parte de nenhum deles. Em suas palavras: “todos eles prosseguem 
em suas teses até o fim, sem se importarem em saber se nós os 
estamos acompanhando ou se, já muito antes nos perdemos.” 
 Na tentativa de solucionar as contradições encontradas nas 
noções da tradição, Platão visa a realizar uma síntese entre as teorias 
de Heráclito, que defende que o devir com seu logos é a verdadeira 
realidade e de Parmênides, para quem só o imutável é verdadeiro, 
tende um pouco mais para este último. De modo que a abordagem da 
phýsis assume paulatinamente uma dimensão estritamente metafísica, 
cujo princípio fundamental é a teoria da participação das coisas 
sensíveis em uma realidade superior, o mundo das formas. 
Mas, entre tantos temas abordados por Platão e que são uma 
das grandes fontes de qualquer teoria da justiça no Ocidente, é certo 
que o tema da participação do homem na construção da cidade justa 
é um dos mais significativos. 
O trabalho ou a função que cada qual desempenha na cidade é 
critério para o juízo sobre o homem e aquilo que o faz melhor. Érgon 
é o termo que indica tal concepção na filosofia de Platão e Aristóteles. 
Platão defende que a excelência (areté) é justamente o resultado desse 
poder, desse trabalho, dessa função — érgon —, que faz com que cada 
homem opere bem. 
Contra Sócrates1, Glauco e Adimanto, no início do diálogo 
República, defendem que o homem é definido pela força de sua 
epithymía, ou de seu apetite concupiscível. Eventualmente, ele pode 
até mesmo reconhecer a utilidade das leis e da justiça e da parte mais 
elevada de sua alma, a razão, mas não é esta que o conduz. Somente 
na sociedade, entendida como fruto de um pacto em favor de maiores 
vantagens para o indivíduo é que a justiça pode ter sua força. Por 
conseguinte, o homem, entendido como ser passional, 
1 Sócrates é personagem frequente dos diálogos de Platão. Suas falas parecem em 
geral dar voz às ideias do autor: o discípulo põe suas palavras na boca do mestre já 
falecido.precisa de uma cidade e de uma ética que controlem tais 
paixões, quase como algo extrínseco a ele. Esta era a tese dos novos 
interlocutores de Sócrates. 
Posto o desafio de Glauco e Adimanto, Sócrates conduz seus 
solertes interlocutores por uma via que os leve a reconsiderar suas 
proposições. Percorre com eles um caminho que lhes mostra que, 
embora suas concepções de justiça não estejam de todo desprovidas 
de acerto, são, porém, insuficientes para a construção da cidade ideal. 
Se considerarmos a estratégia argumentativa de Sócrates, 
veremos que ele parte da própria concepção parcial de homem, 
apresentada por Glauco e Adimanto, para alçá-lo à sua condição 
ideal, isto é, de excelência. Ora, concebendo o homem sob a ótica das 
paixões, descobre-se um elemento importante de sua constituição, a 
epithymía ou concupiscência. Esta é uma parte reconhecida no 
homem, mas não se pode reduzi-lo a ela. Abre-se então a 
consideração de outros dois elementos que constituem a alma do 
homem, a saber, o irascível e o racional. Sócrates, usando do mesmo 
recurso de seus interlocutores, examina a justiça baseada nestes dois 
outros elementos constitutivos do homem. É um longo percurso que, 
por isso mesmo, ajudará a situar essas dimensões humanas com o fito 
de reordená-las para uma concepção mais abrangente e íntegra da 
justiça. 
O princípio resultante da investigação platônica é simples: se já 
uma das faculdades humanas pode colaborar com a justiça, todas 
juntas poderão colaborar mais ainda. Ademais, se considerarmos que 
existe uma ordem, uma hierarquia entre esses elementos, a perfeita 
justiça só será concebida quando a reconhecermos. E é isto que 
acontece: o racional é o que há de mais elevado no homem, 
especialmente se considerarmos que as outras dimensões são comuns 
aos animais — a função racional tem uma especificidade que só 
compete ao homem. É assim que vemos nascer uma nova concepção 
da justiça. 
Todo esse percurso serve para Platão explicitar sua concepção 
integral de homem e a maneira pela qual o próprio homem se 
humaniza na cidade justa. Por isso vemos no livro VIII a discussão 
das quatro formas de governo da cidade, e o porquê da insuficiência 
de determinados sistemas políticos: a parcialidade na concepção do 
homem. Essa parcialidade cancela a liberdade do homem e torna sua 
vida intolerável: 
 
Ora, se a vida parece intolerável, quando a nossa constituição física 
decai, nem que se tenha o que há de melhor em alimentação, em 
bebida, riqueza e poder, como poderia tornar-se suportável quando 
o tumulto e a ruína afetarem a constituição do próprio princípio 
pelo qual vivemos, ainda que cada um faça o que lhe apetece, 
exceto o dar algum passo para se libertar da maldade e da injustiça, 
e adquirir a justiça e a virtude?2 
 
Na cidade ideal, entretanto, pode-se alcançar a mais alta justiça, 
e esta se realiza de modo excelente porque é o érgon racional do 
homem que a sustenta. É o homem de valor 
2 PLATÃO. República, IV, 445b.que se faz na cidade ideal. Se a díke, isto 
é, a justiça permite o surgimento desse homem, por outro lado, ela se 
alimenta da própria função do humano. Toda a phýsis liberta-se 
quando o homem justo opera bem, quando ele age do modo que lhe é 
próprio. 
 
Aristóteles (ca. 384-322 a. C.) 
 
 Aristóteles formula assim a questão do direito natural: existe o 
direito natural e o direito positivo; o direito positivo é mutável. O 
Estagirita chega até a admitir a mudança no direito natural, o que não 
é razão suficiente para negar sua existência. 
 É no famoso capítulo 7 do quinto livro da Ética a Nicômaco que 
se encontra essa doutrina aristotélica: “...existem pois duas espécies 
de direito, o natural e o legal: é natural o justo que tem a mesma 
validade em todo lugar, e não depende do fato de ser ou não 
reconhecido;”3 e ainda: 
 
Há um tipo de justo que se funda na natureza e outro que não se 
funda na natureza. Ora, entre as normas que podem também ser 
diversas, é claro qual seja por natureza, qual não seja por natureza 
mas por lei, se é verdade que tanto natureza quanto a lei sejam 
mutáveis.4 
 
Essa mutabilidade conduz a dois problemas: a ori 
3 ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, 1134b, 18-20. 
4 ID.IBID., 1135b, 30-33.gem da mutabilidade e o critério de 
mutabilidade. 
Aristóteles situa o direito no âmbito da Política, pois o direito é 
parte da ética e esta se insere na vida da pólis. Aristóteles trata da 
justiça, do direito tanto em sua Política quanto em suas obras de ética, 
especialmente a Ética a Nicômaco. 
A Política é um trabalho indescritível de Aristóteles. Tem 
havido muita discussão em torno da ordem “correta” dos livros ou 
capítulos que compõem a obra. Ela consiste realmente em um 
conjunto de ensaios, originariamente independentes, os quais não 
receberam uma elaboração num todo homogêneo. 
A Política de Aristóteles compreende oito livros, que se 
agrupam nos seguintes temas: 
1o A Economia doméstica como fundamento da cidade: I2o Sobre as cidades antigas (ideais) e as constituições atuais: II 
3o Sobre a cidade, o cidadão e a classificação das constituições: 
III 
4o Sobre as constituições inferiores: IV - VI 
5o Sobre a cidade ideal: VII - VIII 
Seu método consiste num processo largamente indutivo. Mas, 
simultaneamente, fundamenta os seus pontos de vista políticos em 
teorias mais compreensivas e fundamentais, de ordem metafísica ou 
ética. Defende a prioridade do todo em relação à parte ou, em outras 
palavras, a superioridade do bem comum em relação ao bem 
particular. Além desse princípio geral, outros princípios conduzem a 
reflexão de Aristóteles, como: a identidade da natureza de uma coisa 
com o fim para o qual ela se move; a superioridade da alma sobre o 
corpo, da razão sobre o desejo; a importância do limite e da 
moderação; a diferença entre partes fundamentais e acessórias da 
vida pública. 
Os seus pontos de vista políticos fazem parte de um sistema 
vasto e coerente, apesar de em alguns momentos sustentar algumas 
arbitrariedades. 
A Política de Aristóteles começa com uma justificação do 
Estado, a pólis, face ao ponto de vista sofístico que o representa como 
existindo por convenção e sem fundamento. Assim, para Aristóteles, 
o Estado é natural e deriva da família. 
A natureza revela-se não na sua origem mas no seu destino. O 
homem é animal político. A definição de Estado poderia ser 
comunidade, associação. Entretanto, este conceito ainda é genérico. 
Importa encontrar o elemento que determine melhor o tipo de 
comunidade que é o Estado. Assim, vejamos as associações humanas: 
1) a família: unidade social básica; 
2) a aldeia: agrupamento de famílias; 
3) o Estado: agrupamento de aldeias. 
A diferença específica, isto é, o que determina o tipo de 
associação que é o Estado, está no proporcionar de uma vida boa. 
Assim, definimos o Estado como “comunidade de homens livres 
orientada ao viver bem, isto é, segundo a virtude”. 
 É sempre útil citar a célebre passagem em que Aristóteles 
caracteriza o homem como animal político, já que isso ilustra 
perfeitamente o seu realismo ético e jurídico: 
 
É evidente, pois, que a cidade faz parte das coisas da natureza, que o 
homem é naturalmente um animal político, destinado a viver em 
sociedades, e que aquele que, por instinto, e não porque qualquer 
circunstância o inibe, deixa de fazer parte de uma cidade, é um ser 
vil ou superior ao homem. Tal indivíduo merece, como disse 
Homero, a censura cruel de ser um sem família, sem leis, sem lar. 
Porque ele é ávido de combates, e, como as aves de rapina, incapaz 
de se submeter a qualquer obediência. Claramente se compreende a 
razão de ser o homem um animal sociável em grau mais elevado que 
as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. A natureza, 
dizemos, nada fez em vão. O homem só, entre todos os animais, tem o 
dom da palavra; a voz é o sinal da dor e do prazer, e é por isso que 
ela foi também concedida aos outros animais. Estes chegam a 
experimentar sensações de dor e de prazer, e a se fazer 
compreender uns aos outros. A palavra, porém, tem por fim fazer 
compreender o que é útil ou prejudicial, e, em consequência, o que é 
justo ou injusto. O que distingue o homem de um modo específico é 
que ele sabe discernir o bem do mal, o justo do injusto, e assim 
todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui 
precisamente a família do Estado5. 
 
 
 
5 ARISTÓTELES. Política, I, 9. 
A Idade Média 
Santo Tomás de Aquino (ca. 1225-1274) 
 
O Estado em Tomás de Aquino, como em Aristóteles, tem 
origem natural; não é, como talvez pense Agostinho, fruto do pecado. 
Tem origem na natureza social do homem e nos seus sentimentos. 
Nasce da necessidade do homem ter um guia: Estado, autoridade e 
governo são praticamente o mesmo, mas têm uma ordem lógica: 1o) 
vem a autoridade; 2o) o governo, porque a autoridade compete a 
quem governa; 3o) o Estado: o governo compete a quem é chefe do 
Estado. Mas a base da autoridade é a própria lei, que quem governa 
deve fazer cumprir (leis naturais são aplicadas através das positivas). 
O bem comum é o fim do Estado. Enquanto a moral diz o que o 
homem deve fazer para ser homem, a política diz o que ele deve fazer 
para ser cidadão: “O bem comum não é a mera soma do bem dos 
membros da sociedade singularmente considerados; não é o bem das 
partes singulares mas do todo”6. 
Com muita sabedoria Tomás traz um exemplo do primado do 
bem comum citando o dito de Valério Máximo (20 d.C.) segundo o 
qual, os antigos romanos “preferiam ser pobres em um império rico 
do que ricos em um império pobre”. Assim se entende que a riqueza, 
o lucro, a saúde, a cultura etc., são bens particulares a serem 
ordenados ao bem 
6 TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q. 47, a. 10, ad 2m.comum, da 
coletividade, para que, com a troca e a comunhão desses, se assegure 
o bem viver de todos. Santo Tomás defende que a comunhão dos bens 
pertence à essência mesma da sociedade organizada politicamente: 
 
O Estado é perfeita comunhão (de bens). E é perfeita comunhão que 
provê que o homem tenha suficientemente aquilo que é necessário à 
sua vida; tal comunhão é o Estado (= cidadania).7 
 
 Santo Tomás segue a ordem e a classificação aristotélica, 
contudo, em geral, defende a monarquia; já em outras obras fala de 
um governo misto. Mas não há regime perfeito. Então, a forma de 
governo é secundária, o importante é que possa assegurar a justiça 
aos cidadãos. Assim, o juízo sobre o governo e o regime deve 
verificar: 
 1) se o povo leva uma vida virtuosa; 
 2) se salvaguarda a paz; 
 3) se garante os bens materiais necessários. 
 Em poucas palavras, pode-se dizer que o critério fundamental 
da filosofia do direito de Tomás de Aquino é o próprio direito que 
decorre da natureza humana (o direito natural) na riqueza inefável de 
seu ser, que, embora mantenha sua essência, revela-se sempre nova 
nos diferentes momentos da história do homem. A atualização do 
direito 
7 “Civitas est communicatio perfecta. Illa erit perfecta communicatio quae 
ordinatur ad hoc ut homo habeat sufficienter quidquid est necessarium ad vitam; talis 
autem communicatio est civitas” (TOMÁS DE AQUINO. In I Politicorum, lect. 1.).deve 
ser feita tendo em vista este referencial: a natureza humana, que só 
muda no sentido de sua profundidade, nunca no sentido de 
substituição do que o homem é em sua essência. 
 
3.2. O processo histórico de negação do Direito natural 
 
Pode-se dividir a história do direito a partir da aceitação e da 
negação do direito natural. A tradição filosófica que afirma o direito 
natural vem de antes de Aristóteles, é plenamente desenvolvida por 
este filósofo, como já se acentuou, e chega ao ápice da sua formulação 
em Santo Tomás de Aquino. Também no início da modernidade o 
direito natural será afirmado, embora de modo diferente da 
contribuição clássica, e a figura mais importante neste caso é Grócio. 
 Assim, podemos reconhecer três tradições fundamentais de 
afirmação do direito natural: a tradição clássica, a tomista e a 
moderna. Considerando que as três afirmam o direito natural, o que 
as distingue é a identificação de sua origem, ou seja, enquanto no 
pensamento clássico o natural está ligado ao divino e o fundamento é 
a própria essência, na formulação moderna, é a razão a fonte dessa 
norma. Em Santo Tomás, em contrapartida, a base dessa formulação 
é a sua teoria do ser, que não exclui nem sua origem divina, nem sua 
racionalidade. 
 Por outro lado, a negação do direito natural vai sendo 
preparada por novas posturas filosóficas que surgem na 
modernidade. Uma das maiores expressões dessa negação no 
pensamento contemporâneo é a obra de Hans Kelsen, que, ao 
defender o positivismo jurídico, nega, em nome do rigor científico, 
qualquer possibilidade de fundamentação metafísica do direito, 
considerada ideológica; tal fundamento “significa a invasão do 
tratamento científico do direito positivo pela teoria do direito natural, 
e,na medida do possível, uma analogia com as ciências naturais, uma 
intrusão da metafísica no domínio da ciência8.” Na verdade, a própria 
doutrina do direito positivo de Kelsen está eivada de ideologia, como 
se verá adiante. 
 Portanto, para que fiquem claras as premissas que levaram à 
negação do direito natural, é importante apresentar o itinerário 
filosófico dos pensadores modernos aos contemporâneos nesse 
campo. 
Pode-se também dividir a história da filosofia em dois grandes 
blocos: o pensamento clássico (isto é, antigo e medieval) e o 
pensamento moderno. O primeiro podemos dizer que foi 
inaugurado por Platão e pode ser caracterizado de filosofia da 
transcendência; o segundo encontra em Spinoza o seu modelo: é a 
filosofia da imanência. 
 
O racionalismo jurídico 
 
John Locke fixou definitivamente as bases da doutrina liberal 
da concepção política moderna, repropondo o valor do direito 
natural e opondo-se a toda forma de governo 
8 KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado,p. 386.absoluto – é, 
portanto, considerado o “pai do pensamento liberal moderno, que 
pretende racionalizar rigorosamente o exercício do poder. O indivíduo 
como fundamento da soberania é outra característica desse 
liberalismo. Os Dois tratados de Locke podem ser considerados como: 
a) uma polêmica contra o poder absoluto e o direito divino do 
rei; 
b) uma apologia da revolução e do partido; 
c) uma doutrina de origem consensual do governo. 
O primeiro tratado reza que os reis (que têm direito divino) 
sejam herdeiros da suposta autoridade de Adão. A segunda parte 
trata mais estritamente das questões liberais. 
Em 1748, Montesquieu teve publicado seu Do Espírito das Leis 
(De L’Esprit des Lois, ou du rapport que les lois doivent avoir avec la 
constitution de chaque governement, les moeurs, le climat, la religion, le 
commerce, etc). Esta obra é composta de trinta e um livros, divididos 
em pequenos capítulos onde são analisadas as leis existentes no 
século XVIII. 
Tematicamente, os livros estão assim distribuídos: 
1) as leis dos homens estão determinadas pela natureza do 
governo: 1-13; 
2) as leis também são determinadas pelo clima e a natureza do 
solo: 14-18; 
3) o espírito da nação desempenha também um papel 
preponderante sobre as leis: 19-26; 
4) as leis romanas, as leis feudais, as leis francesas: 27-31. 
A concepção spinozista de direito natural 
 
Para Spinoza, tudo aquilo que está fora de Deus é fruto da 
imaginação do homem. Esta imaginação, que é um grau de 
conhecimento, tem um paralelo com a condição corpórea do homem 
e, por isso mesmo, é passível de iludir cada indivíduo com a mesma 
ilusão que ele possa ter a respeito do poder do seu corpo. E é aqui 
que se deve situar o problema do direito, especialmente quando se 
trata do direito natural, pois o natural acrescenta ao conceito de 
direito essa dimensão física. 
Entretanto, ao se remeter ao conceito de natureza, o natural 
exige uma reflexão sobre o significado metafísico da mesma. Isso se 
verifica por antonomásia no pensamento jurídico de Spinoza. Por 
conseguinte, a exposição da teoria spinozista do direito natural exige 
uma explanação de uma metafísica que se tornou aparentemente tão 
peculiar quanto caduca, e, destarte, necessita de um desenvolvimento 
que vem a ser um tratado, mesmo que breve. 
No que concerne à questão do direito, Spinoza insere-se na 
tradição que defende a existência do direito natural, mas sua 
peculiaridade está em assumir tanto o racional quanto o divino na 
fundamentação do direito, graças à identificação da natureza com o 
próprio Deus. Afirma Spinoza: 
 
Todos existem por direito supremo da natureza e 
consequentemente cada um faz, pelo direito supremo da natureza, 
o que decorre da necessidade de sua própria natureza; e assim cada 
um julga, pelo direito supremo da natureza o que é bom, o que é 
mau, ou consulta a sua utilidade segundo o seu engenho, se vinga, e 
se esforça por conservar aquilo que ama, e por destruir aquilo que 
odeia. Porque se os homens vivessem dirigidos pela razão, cada 
um possuiria o direito que lhe pertence, sem nenhum prejuízo para 
outrem.9 
 
 Esta passagem da Ethica ilustra de modo exemplar a concepção 
de direito natural que Spinoza defende. Os elementos que compõem 
a doutrina sintetizada nesse parágrafo podem ser mais bem 
entendidos por meio de outra passagem, igualmente fundamental, do 
Tratado Teológico-Político, capítulo XVI, que justamente se intitula Dos 
fundamentos do Estado, do Direito Natural e Civil de cada indivíduo e do 
direito dos Soberanos. Embora o título anuncie outros temas 
importantes, o cerne da discussão é o direito natural. 
As teses principais enunciadas no referido capítulo podem ser 
agrupadas segundo os seguintes elementos: primeiro, a existência é 
decorrência de um direito supremo da natureza: 
 
1. Por direito e instituição da natureza entendo unicamente as 
regras da natureza de cada 
9 ID. IBID., IV, p. 37, sch 2: “Existit unusquisque summo naturae jure, & 
consequentersummo jure naturae unusquisque ea agit, quae ex suae naturae necessitate 
sequuntur; atque adeo summo naturae jure unusquisque judicat, quid bonum, quid malum sit, 
suaeque utilitati ex suo ingenio consulit, seseque vindicat, & id, quod amat, conservare, & id, 
quod odio habet, destruere conatur. Quod si homines ex ductu rationis viverent, potiretur 
unusquisque hoc suo jure absque ullo alterius damno.”indivíduo, regras segundo as quais 
concebemos qualquer ser como naturalmente determinado a existir e a agir de 
uma certa maneira10. 
 
2. É, com efeito evidente que a natureza, considerada em absoluto, 
tem direito a tudo o que está em seu poder, isto é, o direito da 
natureza estende-se até onde se estende a sua potência, pois a 
potência da natureza é a própria potência de Deus, o qual tem pleno 
direito a tudo11. 
 
3. Nem vemos que haja aqui qualquer diferença entre os homens e 
os outros seres da natureza, ou entre os homens dotados de razão e 
os outros que ignoram a verdadeira razão, ou ainda entre os 
imbecis e dementes e as pessoas sensatas12. 
 
Segundo, o agir segue a necessidade da natureza de cada um: 
 
4. O direito natural de cada homem determina-se, portanto, não 
pela reta razão, mas pelo desejo e a potência13. 
 
10 TTP, XVI, 189, 12-15: Per jus & institutum naturae nihil aliud intelligo, quam regulas 
naturae uniuscujusque individui, secundum quas unumquodque naturaliter determinatum 
concipimus ad certo modo eixstendum & operandum. 
11 TTP, XVI, 189, 17-21: Nam certum est naturam absolute consideratam jus summum 
habere ad omnia, quae potest, hoc est, jus naturae eo usque se extendere, quo usque ejus potentia 
se extendit; naturae enim potentia ipsa Dei potentia est, qui summum jus ad omnia habet... 
12 TTP, XVI, 189, 30-34: Nec hic ullam agnoscimus differentiam inter homines & 
reliqua naturae individua, neque inter homines ratione praeditos & inter alios, qui 
veram rationem ingorant, neque inter fatuos, delirantes, & sanos. 
13 TTP, XVI, 190, 13-14: Jus itaque naturale uniuscujusque hominis non sana 
ratione, sed cupiditate & potentia determinatur. 
5. De tudo isto se conclui que o direito é aquilo que foi instituído 
pela natureza, direito sob o qual todos nascem e sob o qual vive a 
imensa maioria, não proíbe nada a não ser o que ninguém deseja ou 
ninguém pode14. 
 
6. Posto isto, é igualmente incontroverso ser muito mais útil para os 
homens viverem segundo as leis e os rigorosos ditames da razão, 
que apontam, como já dissemos, apenas para o que lhes é 
verdadeiramente útil15. 
 
Terceiro, o juízo sobre o bem e o mal é relativo à conservação do 
que interessa ao esforço de autopreservação: 
 
7. Manda a lei universal da natureza humana que ninguém 
despreze o que considera ser bom, a não ser na esperança de um 
bem maior ou por receio de um maior dano, nem aceite um mal a 
não ser para evitar outro ainda pior ou na esperança de um maior 
bem 16. 
Quarto, o seguimento da razãoé o critério para o 
reconhecimento do próprio direito sem prejuízo de terceiros: 
 
8. ...cada indivíduo deve transferir para a sociedade toda a sua 
própria potência, de forma a que só aquela detenha, sobre tudo e 
sobre todos, o supremo direito de natureza, isto é, a soberania 
14 ???????????????????????????????????????????????????????????????? TTP, XVI, 190, 30-32: Ex quibus 
sequitur Jus & Institutum naturae, sub quo omnes nascuntur, & máxima ex parte vivunt, 
nihil nisi quod nemo cupit, & quod nemo potest, prohibere. 
15 ???????????????????????????????????????????????????????????????? TTP, XVI, 191, 13-14: Verum 
enimvero, quanto fit hominibus utilius secundem leges, & certa nostrae rationis 
dictamina vivere, quae, uti diximus, non nisi verum hominum utile intendunt, nemo 
potest dubitare. 
16 TTP, XVI, 191, 34-35: Nam lex humanae naturae universalis est, ut nemo aliquid, 
quod bonum esse judicat, negligat, nisi spe majoris boni, vel ex metu majoris damni; nec 
aliquod malum perferat, nisi ad majus evitandum, vel spes majoris boni.suprema, à 
qual todos terão de obedecer, ou livremente ou por receio da pena capital. O 
direito de uma sociedade assim chama-se Democracia17. 
 
9. Por isso, a república mais livre é aquela cujas leis se 
fundamentam na reta razão; porque aí, cada um, sempre que quiser, 
pode ser livre, isto é, viver inteiramente de acordo com a razão 18. 
 
 Fica aberta a porta para uma síntese entre essa imanência 
metafísica e a gnosiológica, que se opera com Kant. 
 
 Immanuel Kant (1724-1804) 
 
 Em 1770, em famosa dissertação que distingue duas esferas da 
realidade, o númeno e o fenômeno, Kant, 1724-1804, tem a intuição 
da maior reviravolta da filosofia moderna. 
 Depois de distinguir entre númeno e fenômeno, Kant procura 
resolver o dilema deixado pelas posturas empirista e racionalista. O 
racionalismo defendia que somente a razão seria a fonte do 
conhecimento, enquanto o empirismo 
17 TTP, XVI, 193, 21-24: ... si nimirum unusquisque omnem, quam habet, potentiam in 
societatem transferat, quae adeo summum naturae jus in omnia, hoc est, summum imperium sola 
retinebit, cui unusquisque vel ex libero animo, vel metu summi supplicii parere tenebitur. Talis 
vero societatis jus Democratia vocatur. 
18 TTP, XVI, 195, 2-5: ... ideo illa Respublica maxime libera est, cujus leges sana 
ratione fundatae sunt; ibi enim unusquisque, ubi velit, líber esse potest, hoc est, integro 
animo ex ductu rationis vivere. defendia que somente os sentidos nos dão o 
conhecimento. A postura empirista chegou a negar o valor do 
conhecimento científico. 
 Kant compreendeu que esse dilema poderia ser superado se se 
admitisse que a verdadeira ciência deve trazer sempre algo novo. 
Ora, o novo vem dos sentidos. Nessa perspectiva os empiristas 
tinham razão. Por outro lado, a verdadeira ciência também exige algo 
fixo (uma lei, por exemplo). E, nesse caso, são os racionalistas que 
têm razão. Logo, para Kant, só haverá ciência se esta contar com o 
novo, que ele chama de sintético, e com o fixo, que ele chama de a 
priori. Assim, a ciência para ser ciência deve constar de juízos 
sintéticos a priori. Foi na sua obra principal, a Crítica da Razão Pura, de 
1781, que Kant procurou verificar que ciências preencheriam tal 
exigência. 
 Kant, ao verificar quais ciências cumpririam o critério científico 
do juízo sintético a priori, declara que somente as ciências 
matemáticas e físicas poderiam ser consideradas tais. Exclui, pois, do 
rigor científico as ciências metafísicas. Seguindo essas considerações 
deve-se admitir que: nunca se atinge a realidade (o númeno) como 
ela é; a ciência está fundada no sujeito e não na realidade objetiva, 
pois as categorias pertencem ao sujeito e não às coisas, como defendia 
Aristóteles. A partir dessas premissas outras áreas do saber deverão 
ser repensadas: a ética, o direito e a religião. 
 Depois que a Crítica da Razão Pura estabeleceu que a metafísica 
(no sentido clássico) não é ciência, a ética ficou sem fundamentação. 
Em função disso, Kant realizou uma outra crítica, a Crítica da Razão 
Prática (1788). Nesta obra, Kant critica a moral clássica por estar 
baseada em imperativo (ordem) hipotética, isto é condicional: “Se 
queres ser feliz, deves fazer isto ou aquilo”. Ora, esse princípio deve 
ser substituído pelo imperativo categórico, isto é, o dever pelo dever. 
Dessa forma, o primeiro princípio da moral, o imperativo categórico, 
deve ser assim formulado: “Age de tal modo que a tua lei possa ser 
universalizada”. 
 Kant procura recuperar, pela ética, as verdades negadas na 
metafísica. Assim, a liberdade, a imortalidade da alma e a existência 
de Deus serão postulados da razão prática, isto é, são verdades 
necessárias para a ação moral, mesmo que teoricamente não possam 
ser provadas. A conclusão da Crítica da Razão Prática19 é muito 
significativa em relação a tudo o que se disse até aqui: 
 
Duas coisas enchem o ânimo de crescente admiração e respeito, 
veneração sempre renovada quanto com mais frequência e 
aplicação delas se ocupa a reflexão: o céu estrelado sobre mim e a lei 
moral em mim. Ambas essas coisas não tenho necessidade de buscá-
las e simplesmente supô-las como se fossem envoltas de 
obscuridade ou se encontrassem no domínio do transcendente, fora 
do meu horizonte; vejo-as diante de mim, coadunando-as de 
imediato com a consciência de minha existência. A primeira começa 
no lugar que eu ocupo no mundo exterior sensível e congloba a 
conexão em que me encontro 
19 KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.com 
incalculável magnificência de mundos sobre mundos e de sistemas, nos tempos 
ilimitados do seu movimento periódico, do seu começo e da sua duração. A 
segunda começa em meu invisível eu, na minha personalidade, expondo-me em 
um mundo que tem verdadeira infinidade, porém que só resulta penetrável pelo 
entendimento e com o qual eu me reconheço (e, portanto, também com todos 
aqueles mundos visíveis) em uma conexão universal e necessária, não apenas 
contingente, como em relação àquele outro. 
 
A Crítica da Razão Pura, ao inaugurar uma nova era do 
pensamento ocidental, pôs em cheque de modo especial o estatuto do 
sujeito cognoscente, ou seja, daquela realidade entendida como o 
substrato, o sustentáculo das experiências cognoscitivas humanas, 
sobretudo do sujeito como polo oposto ao objeto no processo humano 
de conhecimento. 
A concepção clássica do sujeito cognoscente tem sua origem no 
processo de conhecimento analógico da realidade, que, desde os 
gregos antigos, supôs que tudo aquilo que existe ou existe em si ou 
em um substrato: ou são substâncias, indivíduos, ou são acidentes. 
De modo que, um cão, enquanto substrato, seria um sujeito com as 
características da sua espécie acrescido da existência singularizada. 
Por outro lado, suas características, como cor, tamanho, cheiro etc. 
seriam acidentes, o que completaria sua individualidade. 
É bom lembrar que indivíduo é normalmente definido como o 
“sujeito com todas as suas perfeições”, o ser, a essência e os acidentes. 
Esta teorização do substrato ganha sua formulação mais acabada em 
Aristóteles, de onde nascem as mais importantes teorias do sujeito 
em geral e dos múltiplos sentidos de sujeito, o gramatical inclusive 
Ao se seguir essa inspiração fundamental, o que Aristóteles diz 
a respeito do sujeito cognoscente seria uma aplicação precisa dessa 
teoria geral, a saber: o sujeito cognoscente é um indivíduo constituído 
que sustenta, pois, todos os conhecimentos, que são vistos aqui como 
meros acidentes seus. Deduz-se daí, que esse indivíduo é um 
permanens, que, por sustentar esses conhecimentos e esses acidentes, 
transcende o próprio processo de conhecimento. 
 Ora, o que a Crítica estabelece é a impossibilidade da existência 
de um tal sujeito como sustentáculo desses acidentes, pois o mero 
pensamento sobre tal sujeito já faz dele um acidente. Acontece aqui, 
como diz o próprio Kant, umarevolução copernicana em Filosofia e em 
toda a cultura ocidental. A Crítica vem destruir a possibilidade de se 
entender o conceito de sujeito sem um objeto de pensamento. Não se 
trata de uma negação absoluta da possibilidade de 
autoconhecimento, como se Kant negasse o moto socrático “conhece-
te a ti mesmo”; trata-se simplesmente do reconhecimento de que esse 
ideal está limitado pelas próprias pretensões de conhecimento em 
geral. Ou seja, não se deve mais falar de um mundo em si, de Deus 
em si, do sujeito em si como objeto de conhecimento, mas somente 
como ideais que não podem ser verificados pelo próprio 
conhecimento humano. 
Não obstante, esses ideais podem servir como ideias 
reguladoras para uma outra dimensão do humano, que é a dimensão 
moral. E é assim que, na Crítica da Razão Prática, a moral aparece livre 
de toda fundamentação teórica. Quase como se trabalhasse de modo 
inverso ao da especulação: primeiro o agir, depois os ideais, as 
teorias. Kant pretende, assim, libertar a moral de uma fundamentação 
limitadora do nosso agir. Contrariamente à ciência e suas teorias, a 
moral não se baseia em nenhuma experiência prévia, ou mesmo em 
premissas teóricas. Ela é auto-fundante e, por conseguinte, o agente 
moral não depende da experiência à qual a ciência é adstrita e, por 
isso mesmo, limitada. O reino da moral é o reino da liberdade e, 
portanto, o reino em que se constrói o que é propriamente humano. O 
agir moral, ao contrário da ciência, permite ao homem construir um 
mundo que tem a sua face, o reino dos homens, onde Deus aparece 
como postulado prático que lhe indica o sentido. 
O céu estrelado, com toda a sua “infinitude”, é limitado se 
comparado à grandeza das possibilidades humanas, uma vez que 
estas não são limitadas pelas experiências materiais. Por isso, Kant 
completa dizendo que também a lei moral lhe causa sempre maior 
admiração, respeito e veneração, como se dissesse que, se o ilimitado 
céu condicionado às nossas experiências é capaz de nos causar 
tamanha surpresa, é porque, na verdade, o mundo incondicionado da 
moralidade desvela toda a potencialidade do humano. 
O sujeito cognoscente toma agora uma dimensão menor, 
limitada, porém se abre espaço para o agente moral, que vai 
constituindo sua subjetividade e sua alteridade no reino da justiça, 
que se torna assim universal, porque não limitado às experiências 
individuais como pré-requisito para o agir. Pode-se dizer que, no 
reino do humano, ou seja, no reino da moralidade, se é consoante o 
que se faz. Ou ainda, significa que o agir precede o ser. 
 
3.4. As correntes contemporâneas 
 
G. W. F. Hegel (1770-1831) 
 
 Seguindo os passos desse idealismo inicial de Kant, Hegel será 
o maior expoente da escola, ao desenvolver sua famosa dialética da 
ideia (ou do espírito). A dialética hegeliana afirma que a ideia (o 
espírito) se desenvolve triadicamente, e essa tríade é a explicação de 
todas as coisas. Ei-la: tese, antítese, síntese (a síntese constitui-se em 
nova tese, de modo que o processo se desenrola ao infinito). Em 
Hegel, o imanentismo spinozista tem sua expressão máxima. A 
experiência da consciência revela a totalidade da ciência, o seu rigor 
enquanto sistema. 
 O percurso fenomenológico da consciência é longo, verdadeiro 
Calvário, a Sexta-feira Santa, na significativa expressão hegeliana, 
para se chegar à glória, isto é, à universalidade do conceito, ao pensar 
como sistema. O ser, que depende da consciência, perde a sua 
individualidade na universalidade anuladora do sistema, no seu 
acabamento, ou seja, no fechar-se sobre si mesmo: eis o saber 
absoluto. 
 O espírito prevalece e neste sentido ele se distingue do natural; 
e então quando se fala de direito natural, se supõe o estado de 
natureza, o que é um absurdo ético. No parágrafo terceiro dos 
Princípios da Filosofia do Direito, Hegel declara que o direito é positivo 
em geral: pela forma da vigência em um Estado e quanto ao 
conteúdo, isto é, tem caráter racional, desenvolvimento histórico, um 
sistema de aplicação do universal e determinações últimas para a 
decisão20. 
 Com essas premissas, mas especialmente a partir de Kant e de 
Hegel, afirma-se a postura negativa em relação ao direito natural, 
talvez como tentativa para resolver as questões mais complexas do 
próprio direito, como a variabilidade da lei. 
A Fenomenologia Do Espírito (1807) pode ser entendida como a 
primeira grande obra de Hegel pela firma uma propedêutica ao seu 
sistema. O tema central da filosofia de Hegel, Fichte e Schelling é o 
infinito na sua unidade como finito. Para Hegel, o infinito não existe 
para além do finito mas é a única e exclusiva realidade: o infinito não 
é um limite do finito pois senão também seria apenas um finito. O 
infinito supera e anula o finito em si próprio; reconhece e realiza além 
das aparências do finito, a sua própria infinitude. 
Hegel apontava a necessidade de se conseguir uma totalidade 
do saber, uma ciência absoluta e julgava ser a sua época propícia à 
elevação da Filosofia à Ciência. Neste contexto apresenta a 
Fenomenologia do Espírito como o vir-a-ser da ciência em geral ou do 
saber. O que Hegel expôs, mais tarde, na Filosofia do Direito é 
esclarecedor: “aquilo o que é racional é real; e aquilo que é real é 
racional”. Há uma necessária, total e substancial identidade entre 
realidade e razão. 
20 HEGEL, G.W.F. Líneas fundamentales de la filosofía del derecho, p. 39. 
Superando Kant, Hegel entende que a razão não é pura 
idealidade, abstração, deve ser mas é aquilo que realmente e 
concretamente existe. A razão filosófica distingue-se do intelecto: “a 
razão é a certeza da consciência de ser toda a realidade”. A razão é 
Autoconsciência ou Ideia, pois a realidade se acha alienada e estranha 
a si própria e tem na Filosofia o lugar para se reconhecer a si própria 
para além do afastamento ou alienação. 
O saber é ciência, é saber necessário e do necessário: a 
identidade do finito e do infinito deve ser demonstrada por sua 
necessidade. O saber necessário e do necessário é ciência dialética. 
A dialética é o método do saber e a lei do desenvolvimento da 
realidade. A dialética suprime a oposição; pela dialética a realidade 
supera as diferenças, divisões e oposições que constituem os seus 
aspectos particulares e proporciona a unidade do todo. 
O itinerário da Fenomenologia do Espírito se dará numa 
progressiva superação da oposição sujeito-objeto. As etapas 
percorridas fenomenologicamente na obra são: Consciência (a 
Certeza Sensível, A Percepção, A Força e o Intelecto), 
Autoconsciência (A Verdade da Certeza de si mesmo), Razão, 
Espírito, Religião e Saber Absoluto. 
Para se fazer reconhecer como homem, o sujeito chega a pôr sua 
vida em jogo: cada autoconsciência quer provar que é autêntica 
consciência, isto é, precisa de outra autoconsciência para ser 
reconhecida. 
 As quatro figuras da autoconsciência 
 
Neste processo, um dos adversários, para salvaguardar a 
subsistência, faz-se escravo do outro. Tal é a dialética do senhor-
escravo, primeira figura que surge — própria do mundo antigo. 
Todavia se desenvolve na relação de um movimento dialético que 
leva à subversão dos papéis: no trabalho do escravo, sua 
autoconsciência vai reaparecendo e acaba por se tornar independente 
das coisas, criando-as; e o senhor acaba por se tornar dependente das 
coisas. 
Contudo, a autoconsciência avança nas etapas posteriores: 
estoicismo, ceticismo, consciência infeliz. No estoicismo, a 
consciência, que pretende se libertar do mundo da natureza, apenas 
consegue uma libertação abstrata, pois a realidade da natureza não é 
negada. 
O cético nega essa realidade e reduz a realidade à própria 
consciência. Mas essa consciência é ainda coisa individual, em 
contradição as outras consciências individuais. 
A autoconsciência, em contradição consigo própria, dá lugar à 
figura da consciência infeliz: compreendendo sua finitude e 
contingência, a consciência abre-se ao ideal de uma consciênciaimutável e infinita que é Deus. Projeta-se agora um Senhor Perfeito, 
supramundano, e, com isto, a consciência aliena-se, tornando-se 
infeliz. Tal figura caracteriza o cristianismo medieval. 
O itinerário da razão ativa passa da inicial realização como 
indivíduo para elevar-se ao universal, perdendo-se o indivíduo na 
Razão universal. 
 
A Filosofia do Direito de Hegel 
 
 Em Princípios da Filosofia do Direito, Hegel desenvolve suas teses 
fundamentais sobre o Direito, já dentro da concepção de uma 
filosofia idealista acabada. 
 Assim, Hegel procura unir aquilo que, em Kant, por exemplo, 
se encontra separado, a saber, a ordem jurídica e a ordem moral, na 
síntese da eticidade objetiva. Portanto, temos aqui as três partes em 
que se divide a obra, que, na verdade, revelam o próprio movimento 
do espírito à totalidade, à síntese jurídica. 
 A primeira parte pretende explicar a concepção do Direito 
enquanto conjunto de normas externas ao sujeito, Direito esse que 
pode ser caracterizado como “Direito abstrato”, onde as coisas se 
regulam pelo “contrato”, que é unidade de vontades, comandada 
pelo princípio de propriedade. 
 A segunda parte, a “moralidade”, exprime o movimento 
subjetivo da esfera do direito, onde prevalece a interioridade do 
sujeito. 
 A terceira e última parte desenvolve a síntese entre as 
anteriores, também através de três movimentos: 
 
• a família: é o primeiro movimento da síntese, pois tem algo 
de contrato, expresso no casamento, e algo de subjetivo, a 
livre escolha; 
• a sociedade civil: o conjunto de seres humanos, unidos por 
suas necessidades dentro de um sistema econômico de 
dependência recíproca; 
• o Estado é o momento supremo do movimento do espírito, 
aqui em sua fase objetiva. A base do Estado é a constituição, 
que supera os conflitos que possam surgir na sociedade 
civil. 
 
 Alexis de Tocqueville (1805-1859) 
 
Tocqueville e seu amigo Gustavo de Beaumont embarcam para 
a América em 1831. Os dois magistrados pretendem examinar as 
instituições penitenciárias americanas. Isto servirá para Tocqueville 
de pretexto para um longo estudo sobre a democracia na América. 
A América vai permitir a Tocqueville uma análise in vivo do 
princípio democrático: tanto dos ricos como as vantagens em relação 
à liberdade. As nações europeias estão a meio caminho entre 
democracia e aristocracia. Interroga-se sobre o papel dos costumes 
das leis para a manutenção da democracia americana (influência de 
Montesquieu). Como converter as paixões em leis e instituições? É 
isto que se busca na democracia, tal como fizeram os americanos. A 
revolução vem em função das desigualdades. Na América, essas 
desigualdades desapareceram logo, gerando estabilidade: “Na 
América se encontram ideias e paixões democráticas. Na França, 
temos ainda paixões e ideias revolucionárias”. A América é o 
exemplo de uma democracia pura. 
A democracia na América é a obra de Tocqueville que é fruto 
dessa experiência. Constitui-se de dois livros, um publicado em 1835 
e o outro em 1840. O primeiro está essencialmente consagrado à 
descrição analítica das instituições americanas; o segundo explica de 
modo mais abstrato a influência da democracia sobre os costumes e 
os hábitos nacionais a partir do exemplo americano: 
 
Dentre as coisas novas que, durante minha estada nos Estados 
Unidos, chamaram-me a atenção, nenhuma me impressionou tão 
intensamente quanto a igualdade de condições. Descobri, sem 
dificuldades, a influência prodigiosa exercida por este fator na 
marcha da sociedade; dá ao espírito público certa direção: às leis, 
um ar especial; aos governantes, novos princípios, e aos 
governados, hábitos particulares. (...) 
Desse modo, à medida que estudava a sociedade americana, via, 
cada vez mais, na igualdade de condições o fato originário de que 
cada aspecto parecia provir e reencontrava-o, incessantemente, 
como o ponto central a que chegavam todas as minhas observações. 
 
 
 
 
 O existencialismo e o Direito 
 
 O existencialismo, rejeitando a concepção tradicional de 
natureza, considera sobretudo a liberdade do ser que, através das 
próprias decisões, cria suas normas, seu bem e seu mal, o justo e o 
injusto. Assim, as normas que valem para a vida ético-jurídica não 
podem provir de algo transcendente ao sujeito, seja Deus, seja a 
própria natureza. Assim como é a situação que oferece as condições 
para a minha determinação, o direito e as normas ficam em aberto, 
indeterminados. 
 
 O Positivismo Jurídico 
 
 O expoente máximo do positivismo jurídico, Hans Kelsen 
(1881-1973) pretende eliminar da esfera do Direito tudo aquilo que 
não lhe pertença exatamente como tal; ou seja, o direito deve ser uma 
“doutrina depurada de toda ideologia política e de todo elemento 
científico-natural”. É a teoria pura do direito. 
 Consequentemente, Kelsen nega o dualismo entre o direito 
positivo e o natural. Praticamente só existe o direito positivo. Todo o 
ordenamento jurídico deve ser concebido como construído por uma 
série de graus (Stufenbau). Tal ordenamento é uma série ou conjunto 
coerente de normas, uma sobreposta à outra em ordem hierárquica 
rigorosa, que sempre tem fundamento em outra norma, até chegar a 
uma norma fundamental (Grundnorm), cuja validade não depende de 
nenhuma outra norma, e que constitui a chave de todo o 
ordenamento. A pergunta sobre o fundamento dessa norma 
pressupõe a sua existência: é uma hipótese, mas hipótese necessária, 
porque, de outro modo, cairia todo o edifício normativo, e vemos que 
não pode cair. 
 Em outras palavras, Kelsen, que se propõe a demonstrar a 
obrigatoriedade do direito, diz somente que é necessário supor que 
seja tal. Vê-se claramente a influência do pensamento kantiano 
nessas teses, especialmente das doutrinas do a priori e do imperativo 
categórico. 
 
 O Sociologismo Jurídico 
 
 Tem como representantes: E. Durkheim (1858-1917); Lévy-
Bruhl (1857-1939); G. Gurvitch (1894-1965). Querendo superar o 
positivismo jurídico, o sociologismo jurídico defende que o direito é 
um fato essencialmente sociológico, isto é, produto da vida social e 
da consciência social, pelo que a normatividade do direito se reduz à 
constrição das forças sociais que se impõem ao sujeito. 
 Assim, a sociedade é o fundamento do direito; as necessidades 
coletivas indicam seu fim; as possibilidades sociais traçam o seu 
método. Portanto, não há como sair dos limites que a sociedade 
impõe. 
 
 
 A Nova Retórica de Perelman 
 
Aristóteles considera que são três os modos possíveis de 
argumentação: a provável, a que conclui com uma proposição 
contingente, isto é, que poderia ser de outra maneira; a sofística, que 
é a que conclui com uma proposição impossível e, que, levando à 
falsidade, deve ser refutada pela ciência; e, finalmente, a 
demonstrativa, a que conclui com proposição necessária, que é a base 
do conhecimento científico. Na história do Ocidente, as duas últimas 
argumentações ganharam força no âmbito do conhecimento rigoroso, 
que seria o âmbito da ciência. E isso parece ter sido verdadeiro, pois à 
ciência competiria indicar o falso e demonstrar o verdadeiro. 
Partindo dessas considerações, Perelman defende que a 
argumentação provável foi negligenciada pela história do 
pensamento científico, especialmente filosófico e jurídico e pretende 
recuperar seu uso, defendendo mesmo que, na sociedade atual, é o 
único tipo de argumentação válida, que levaria a estabelecer certos 
direitos mais pelo poder de persuasão do que por uma suposta 
verdade irrefutável. Por isso se deve falar de “retórica”, porque, em 
última instância, é a persuasão que conta para se estabelecer uma 
proposição. Pode-se verificar aqui como essa tendência de 
pensamento compõe-se perfeitamente com uma filosofia pós-
moderna que defenda o “pensamento fraco”. 
 
 Michel Foucault (1926-1984) 
 
As palavras e as coisas, 1966: a simples escolha dos termos dessa 
obra de Foucault já indica, em parte, o caminho que será percorrido 
pelo autor.O método arqueológico, as três epistemes e a morte do 
homem são os temas centrais dessa fase do estruturalismo do filósofo 
francês. Um juízo sobre a estrutura como a priori histórico pode ser o 
melhor caminho para uma aproximação do estruturalismo nas 
ciências humanas e para o entendimento da busca constante do 
espírito em transcender a letra. 
Como se sabe, trata-se aqui de um estudo das ciência humanas, 
daquelas que estão mais próximas do homem ou, segundo as 
palavras do próprio Foucault, “esse corpo de conhecimentos (mas 
mesmo esta palavra é talvez demasiado forte: digamos, para sermos 
mais neutros ainda, (...) esse conjunto de discursos) que toma por 
objeto o homem no que ele tem de empírico”21. Trata-se de abordar o 
contexto em que se desenvolveram tais ciências e o que as fez 
possíveis. Essa indagação histórico-científica é a arqueologia. 
 Segundo Foucault, cada período cultural da humanidade 
civilizada teria seu “a priori histórico”, que são suas epistemes. 
Foucault identifica as três epistemes principais da história justamente 
a partir da relação das palavras com as coisas. Da função de 
semelhança passa- 
21 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 475.se à função 
representativa da palavra para, finalmente se chegar à palavra 
autônoma, como objeto da ciência humana. Respectivamente, 
 
• o Renascimento (séc. XVI), quando da linguagem é sinal das coisas 
e a natureza é interpretada como um livro escrito por Deus. 
Conhecer é, pois, ler a “prosa do mundo”. O homem como 
intérprete está fora desse livro, ainda é ignorado; 
• a época clássica ou racionalista (séc. XVII-XVIII), momento em que 
se rompe com a episteme anterior, e as palavras tornam-se 
representação. É a episteme geral da ordem; 
• finalmente, a episteme moderna (séc. XIX-XX), o a priori da 
dissociação entre palavra e mundo. É nessa episteme moderna que 
se descobre o homem, pois: 
 
A partir do século XIX, a literatura repõe à luz a linguagem no seu 
ser: não, porém, tal como ela aparecia ainda no final do 
Renascimento. Porque agora não há mais aquela palavra primeira, 
absolutamente inicial, pela qual se achava fundado e limitado o 
movimento infinito do discurso; doravante a linguagem vai crescer 
sem começo, sem termo e sem promessa. É o percurso desse espaço 
vão e fundamental que traça, dia a dia, o texto da literatura22. 
 
 A sexualidade na era do pensamento pós-metafísico 
22 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas, p. 61. 
O estudo de Foucault sobre a sexualidade não é metafísico, é 
pós-metafísico. Esta será a perspectiva metodológica aqui adotada 
para evidenciar os elementos centrais de A História da sexualidade. 
Trata-se de uma breve exposição crítica dessa etapa de seu 
pensamento, inserido no contexto da sua elaboração e visto algumas 
décadas depois. Esse contexto, pós-metafísico, é caracterizado por 
Habermas da seguinte forma: 
 
A situação do filosofar atual tornou-se intransparente. Não me 
refiro à disputa das escolas, que sempre foi o meio propício ao 
desenvolvimento do filosofar. Eu penso na disputa em torno de 
uma premissa, tomada após Hegel como ponto de partida por todas 
as facções. Tornou-se obscura posição com relação à metafísica.23 
 
 Foucault rompeu com o último resíduo do pensamento 
metafísico, ao menos no aspecto da racionalidade, que ainda se 
mantinha através da linguagem (por exemplo, em Heidegger), 
propondo a linguagem “como evento no contingente ir e vir das 
formações do poder e da ciência”24. Depois de apresentar brevemente 
aspectos do pensamento metafísico, Habermas caracteriza o que seria 
o pós-metafísico. Quatro elementos aparecem em sua caracterização: o 
23 Jürgen HABERMAS. Pensamento pós-metafísico:Estudos filosóficos, p.37. 
24 Jürgen HABERMAS. Pensamento pós-metafísico:Estudos filosóficos, p. 
239.historicismo; a crise do cogito; o método em mutação; o evento. 
Todos estão em Foucault e, de modo muito especial, na obra que ora 
se analisa. Portanto, se se deixa guiar pela caracterização de 
Habermas, deve-se inserir Foucault na era do pensamento pós-
metafísico. 
Partindo do método arquelógico25, que consistia no inventário 
das condições de possibilidade do conhecimento, Foucault chega à 
genealogia. Investiga, então, o lugar e o modo pelo qual o poder se 
liga ao saber. A genealogia permite uma reformulação da noção de 
poder e de suas estratégias, até aqui vistas como mecanismos de 
opressão e repressão. As formas institucionais e as estruturas de 
controle social revelam-se como instrumentos que produzem 
discursos, saberes e verdade, formando subjetividades como objetos 
de repressão. O tema da reflexão torna-se a construção da 
subjetividade. A História da Sexualidade insere-se neste projeto: 
 
Daí, enfim, o fato de o ponto importante não ser determinar se essas 
produções discursivas e esses efeitos de poder levam a formular a 
verdade do sexo ou, ao contrário, mentiras destinadas a ocultá-lo, 
mas revelar a “vontade de saber” que lhe serve ao mesmo tempo de 
suporte e instrumento.26 
25 Foucault oferece-nos muitos momentos para a concepção do método 
arqueológico. Em determinada passagem, define-o como “projeto de uma descrição dos 
acontecimentos discursivos como horizonte para a busca das unidades que aí se 
formam.” FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber, p. 30. 
26 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 17. 
Por conseguinte, Foucault concentra-se na pluralidade de 
estratégias que produzem regras que governam o corpo e nas quais o 
indivíduo reconhece a própria constituição subjetiva. 
 
História da Sexualidade: a vontade de saber 
 
 Diante dos discursos, todos se tornam objetos do poder. A obra 
monumental e incompleta de Foucault parece deixar tal impressão. 
Uma análise mais do que minuciosa dos discursos sobre a 
sexualidade revela os mecanismos que conduzem o comportamento 
sexual moderno, muito além de todos os mecanismos até então 
imaginados. O projeto de Foucault sobre a história da sexualidade 
resultou em um trabalho que se divide em três partes, das quais se 
analisa somente a primeira, isto é, A Vontade de saber. Este volume é 
subdividido em cinco capítulos, que podem ser reagrupados em três, 
conforme o que se segue. O caráter introdutório do primeiro volume 
é reconhecido pelo filósofo francês nos seguintes termos: 
 
É neste ponto que gostaria de situar a série de análises históricas de 
que este livro é ao mesmo tempo, introdução e como que uma 
primeira abordagem (...).27 
 
27 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 14. 
 A hipótese repressiva 
 
 A consideração sobre o status da sexualidade no período 
vitoriano leva Foucault — insiste-se, através do método genealógico 
— à negação da preponderância da hipótese repressiva, isto é, 
daquela tendência a dizer que os discursos sobre a sexualidade que 
se desenvolveram modernamente visavam a uma repressão sexual. 
Foucault opõe-se à hipótese repressiva, que declara que o 
essencial da política sexual moderna consiste na proliferação de 
mecanismos e leis de proibição da sexualidade. Ao contrário, esses 
mecanismos encobrem uma tendência muito mais ampla de controle 
da sexualidade: 
 
Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão; e sim que a ilusão 
está em fazer dessa interdição o elemento fundamental e 
constituinte a partir do qual se poderia escrever a história do que foi 
dito do sexo a partir da Idade Moderna. Todos esses elementos 
negativos – proibições, recusas, censuras, negações – que a hipótese 
repressiva agrupa num grande mecanismo central destinado a dizer 
não, sem dúvida, são somente peças que têm uma função local e 
tática numa colocação discursiva, numa técnica de poder, numa 
vontade de saber que estão longe de se reduzirem a isso.28 
 
 Uma análise acurada dos institutos cristãos, especialmente 
católicos, relativos ao comportamento sexual, 
28 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 17.conduz a 
conclusõesanálogas: “A pastoral cristã inscreveu, como dever 
fundamental, a tarefa de fazer passar tudo o que se relaciona com o 
sexo pelo crivo interminável da palavra.”29 
 Em suma, a ideia de que os discursos que se desenvolveram 
partir do século XVII visavam a uma repressão, na verdade esconde 
algo que genealogicamente os antecede: a busca e o domínio da 
sexualidade através do discurso. 
 
 “Scientia sexualis” 
 
Foucault estabelece aqui um confronto entre a ars erótica e a 
scientia sexualis. Pode-se considerar ars erótica como a prática “pré-
científica” da sexualidade. Na medida em que a sexualidade 
científica é forma de poder, é transformação da sexualidade em 
scientia sexualis: “Em suma, trata-se de definir as estratégias de poder 
imanentes a essa vontade de saber. E, no caso específico da 
sexualidade, constituir a “economia política” de uma vontade de 
saber.”30 A arte do prazer foi sendo substituída pela racionalidade 
científica do prazer. 
 O saber e o prazer entrecruzam-se no que se pode chamar 
“dispositivo”, isto é, estratégias de relações de força que suportam o 
poder. Buscando proceder a uma análise 
29 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 24. 
30 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 71desses 
dispositivos, Foucault procura indicar seus passos principais, entre 
eles, o método a seguir. O poder é visto como uma multiplicidade de 
forças imanentes às organizações de domínio, cujo jogo de lutas que o 
reforça, formando cadeias aparentemente contraditórias, desemboca 
nas estratégias concretas das instituições. Seu método prescreve, 
então, quatro regras: 
 1. regra da imanência; 
 2. regra das variações contínuas; 
 3. regra do duplo condicionamento; 
 4. regra da polivalência tática dos discursos. 
 A partir disso, o domínio da pesquisa e a periodização da 
história da sexualidade impõem-se como elementos fundamentais 
para a aplicação das regras acima apontadas. Quanto ao domínio, 
observe-se a seguinte passagem: 
 
O domínio a ser analisado nos diferentes estudos que se seguirão ao 
presente volume é, portanto, este dispositivo da sexualidade: sua 
formação, a partir da carne, dentro da concepção cristã; seu 
desenvolvimento através das quatro grandes estratégias que se 
desdobraram no século XIX: sexualização da criança, histerização 
da mulher, especificação dos perversos, regulação das populações; 
estratégias que passam todas por uma família que precisa ser 
encarada, não como poder de interdição e sim como fator capital de 
sexualização.31 
 
31 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 107 
 No que diz respeito à periodização, Foucault cita duas 
“rupturas”, que servirão de referência para a análise: o século XVII 
com o nascimento dos mecanismos de repressão; e o século XX, o 
afrouxamento desses mecanismos. 
 
 Direito de morte e poder sobre a vida 
 
O estudo concentra-se agora nas estruturas de domínio do 
sujeito que se desenvolveram ao longo da história. Embora sempre 
manifestassem o poder sobre o indivíduo, os elementos desse 
domínio não eram estritamente sexuais. O direito de vida e de morte 
que um soberano tinha sobre seu súdito poderia até incluir a 
sexualidade, mas não partia dela. O que, a partir do século XVII, sob 
pretexto ou ilusão de liberdade, se tornou elemento vital para o 
domínio dos indivíduos. 
 Assim, do direito de vida e morte dos tempos precedentes, que 
realmente era direito a todos os elementos e momentos da vida da 
pessoa, passa-se ao poder sobre a sexualidade, o que, de algum 
modo, conduz a um resultado semelhante: “Não acreditar que 
dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se 
está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade”32. 
Com A História da Sexualidade, Foucault estabeleceu que quanto 
mais efêmera a reflexão filosófica se mostra, mais 
32 FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 
147.desafiadora é para o sujeito a possibilidade de construção de sua 
subjetividade. Na sociedade moderna, o tempo para essa construção 
vai-se tornando cada vez menor. É por isso que Habermas desconfia 
das filosofias que ainda não se tornaram “pós”... O “pós” entrou no 
coração da própria metafísica e o tempo tornou-se evento. O pequeno 
tempo da vida, o pequeno tempo do pensamento, o pequeno tempo 
do amor revelam a decepção do sujeito, seu esvaziamento. Como se a 
história dominasse a sexualidade: 
 
Portanto, não referir uma história da sexualidade à instância do 
sexo; mostrar, porém como o “sexo” se encontra na dependência 
histórica da sexualidade. Não situar o sexo do lado do real e a 
sexualidade do lado das ideias confusas e ilusões; a sexualidade é 
uma figura histórica muito real, e foi ela que suscitou, como 
elemento especulativo necessário ao seu funcionamento, a noção do 
sexo. Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não 
ao poder; o contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral 
da sexualidade. Se, por uma inversão tática dos diversos 
mecanismos da sexualidade, quisermos opor os corpos, os prazeres, 
os saberes, em sua multiplicidade e sua possibilidade de resistência 
às captações do poder, será com relação à instância do sexo que 
deveremos liberar-nos. Contra o dispositivo de sexualidade, o 
ponto de apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os 
corpos e os prazeres.33 
 
Esta eloquente passagem conduz diretamente ao 
33 FOUCAULT, Michel História da sexualidade I: A vontade de saber, p. 147.saber 
dos antigos. Investigar a representação histórica da sexualidade é 
abrir o caminho para uma genealogia sexual contemporânea. 
Foucault não pôde realizar todo o seu projeto. Mas pretendeu 
mostrar que, graças à descoberta dos dispositivos aqui referidos, 
podemos desmascarar as ilusões e passar para a criação da nossa 
própria liberdade, onde os valores morais não se identificam mais 
com o normal e o igual, e sim com a diferença. É aqui que se 
contextualiza o “contra-ataque dos corpos e dos prazeres”. A vontade 
de saber anula o poder da diferença, transformando todas as formas 
de poder em puro saber, isto é, em forças de domínio. O contra-
ataque é o evento da retomada do poder dos corpos e dos prazeres. 
Este é o sentido pós-metafísico desta obra. 
 
John Rawls (1921-2002) 
 
 Em 1971, John Rawls publicou a sua obra Theory of Justice (Uma 
Teoria da Justiça), que já é considerada por muitos como um clássico 
da filosofia contemporânea do direito e da política. 
 Em linhas gerais, a teoria de John Rawls considera que os 
princípios da justiça possuem uma validade universal e incondicional 
a partir de um acordo entre pessoas racionais, livres e iguais, em uma 
situação contratual justa. Tal situação contratual há de ser imparcial a 
fim de alcançar resultados igualmente imparciais. Esta 
imparcialidade, por sua vez, encontra-se naqueles que na “posição 
original” estão sob o “véu da ignorância”, o que impediria os 
participantes do acordo de serem influenciados por fatores naturais e 
sociais contrários ao tratamento equitativo. 
A teoria da justiça de John Rawls é uma forte oposição às teorias 
utilitaristas que identificam as noções de justo e bom, ao verem como 
justo a distribuição de benefícios que maximize o bem associado com 
a satisfação do desejo. Assim, de acordo com uma teoria utilitarista, a 
sociedade seria considerada justa ainda que, a fim de maximizar os 
bens da maioria, exigisse o sacrifício de uma parte de seus cidadãos. 
Nas palavras de John Rawls: 
 
No utilitarismo a satisfação de qualquer desejo tem algum valor em 
si mesma que deve ser levado em conta na decisão do que é justo. 
No cálculo do maior saldo de satisfação não importa, exceto 
indiretamente, quais são os objetos do desejo. Devemos ordenar as 
instituições de modo a obter a maior soma de satisfações; não 
questionamos a sua origem ou qualidade mas apenas o medo como 
a satisfação afetaria a totalidade do bem-estar.34

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