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2 Em primeiro lugar a vida, e não a religião (1)

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6 
Em primeiro lugar a vida, 
e não a religião 
A observância que leva à agressão 
Os três evangelhos sinópticos narram que Jesus 
curou um homem com a mão paralisada no dia 
(um sábado) em que as leis religiosas do judaís-
mo proibiam fazer esse tipo de cura (Me 3,1-6; 
Mt 12,9-14; Lc 6,6-11). O evangelho de Marcos si-
tua esse episódio em um momento particularmente 
conflituoso. No segundo capitulo desse evangelho, 
são relatadas as primeiras confrontações de Je-
sus com os dirigentes religiosos de Israel. Narra-se 
ar que primeiro Jesus foi acusado da pior coisa de 
que se podia acusar um judeu: o pecado de blasfê-
mia (Me 2, 7). Um pecado que, além de ofensa a 
Deus, era um delito e, portanto, de acordo com 
Nm 15,30s e Lv 24,11ss, era punido nada menos 
,,, 
1 r;; 
- · •q Ica ti e~~ 
. pois na acusação de blasfêmia r . , Assun, ' 1e1ta a de rnor1e . , 1· a mais grave que se faz contra I cont" a pen . denunc e e e"' •q quecoJJl sendo feita a ai desde o começo do capítulos ·•1 to,t stava s que v egutld ."41 Jesus. e nfrentarnento ' 1 to da cura do homem com a tnào o do ão de e , o re a Parai' aseclh de Marcos ate . ecisamente com o complô para'"" lsada nge o rrnma pr '"ªlar J ev:i o veremos, te m dúvida muito grave na mentalid d eSus_ que, com •ncidente, se 'b r . a e de 
""Pois desse i rra que os escn as e os 1anseus J·og en. 
1ft, d Marcos na ªtn-lh evangelho e panhias, pecadores e publicanos (Me -. e lla tão, o com más com '-,lS-16) ra que andava 1· se como e por que Jesus e seus disclpuJ . ca . exp 1ca- os llà 
Nas iinhaS seguintes, . s dias em que isso estava presento (Me 
2 1 
° Se 
. à lei do Jejum no , ' 8-22) submeuam . d 1· da entre todas - este capitulo de Marcos t . . tão malS e ica . . . errnllla E - a ques b d'. eia ( consciente e rnamf esta) dos d1scí pulos d - ~~e@ . e~ com a pnm . , . do sábado (Me 2,23-24). TodaVIa, no final d 
050 obngatono . o relato 
ao desca d aneira surpreendente para um bom israelita de . ue Jesus, e m . . então 
consta q d s disclpulos por sua desobed1ênc1a às normas reli . ' em vez de repreen er o . &Iasas 
. das d r nde O comportamento de seus seguidores. E tenruna co estabeleci , e,e _ lll. a 
. _ la 'dar· "O sábado foi feito para o homem e nao o homem para 
O 
Sá afirmaçao p1 . , . 
bado' (Me 2.27). Para Jesus, a "meta suprema "
2 
e o amor aos outros, no cum. 
primen10 do preceito religioso. Uma afirmação que'. levada verdadeiramente 
a sério, antepõe O humano (amar) ao religioso (cumpnr observâncias sagradas). 
Isso significa que estamos diante de uma autêntica subversão da "ordem sa-
grada' que as religiões estabeleceram neste mundo e em vinude da qual, com 
bastante frequencia, introduziram um princípio de desordem radical na con-
vivcricia humana, a ponto de degenerar, não raras vezes e como bem sabemos, 
em fonnas brutais de violência. A experiência que estamos vivendo na atuali-
dade, sobretudo a partir do 11 S e do 11 M, é eloquente a esse respeito. 
Tudo isso suposto e, como é óbvio, segundo os dados que acabo de apontar, 
no evangelho de Marcos ficam evidenciadas quatro coisas: 1) que os disclpulos 
de Jesus não cumpriam determinados e importantes deveres da religião oficial-
mente e
5
1abelecida naquela sociedade; 2) que Jesus estava de acordo com seme-
lhame conduta· 3) que lé d' · ·r: 1 ' , a m lSSO, apresentava argumentos para JUSU1icar aque e componamento· 4) q , ·1 
· ue, para o cumulo, o próprio Jesus fazia e dizia tudo aqm o, porque estava convencid d . . - ( 0 
e que o ponto central para Deus não é a reltgiao re-
1. Cf. J. GNILV • a . 
""· evungel10 segü M 
2. J. GNILJ<A, op. ci1., t44 n san arcos, l , Salamanca, S!gueme, 1986, 17. 
~ .... 
Elll primeiro lugar a vida, e nlo a rdiglio -
resentada na observância do descanso do sábado), mas o ser humano, especial-
~ente quando se vê oprimido por uma necessidade de comer quando tem fome, 
que é O que fizeram os disclpulos ao recolher e comer espigas de um terreno 
semeado no dia de descanso religioso obrigatório, exatamente no sábado. 
Assim sendo, o relato da cura do homem com a mão paralisada na si-
nagoga narra que, ao entrar Jesus no local onde as pessoas se encontravam 
reunidas, havia ali indivlduos que "observavam Jesus para ver se o curava no 
dia de sábado, com o intento de acusá-lo" (Me 3,2). Quem eram esses indivl-
duos, esses espiões da fiel observância das normas? O mais razoável é pensar 
que eram fariseus, já que no final do relato afirma-se que foram precisamente 
os fariseus que saíram imediatamente em busca dos que eram do partido de 
Herodes, para ver como poderiam acabar com Jesus (Me 3,6), ou seja, como 
poderiam matá-lo. Estes dados, trazidos pelo relato da cura do homem com a 
mão paralisada, dão o que pensar. Com efeito, sabe-se que os fariseus eram ca-
racterizados por serem os mais fiéis observantes das normas. Quer dizer, eram 
os homens do dever, ou seja, os homens para os quais o cumprimento da lei 
religiosa era não só urna meta-limite ideal, mas, além disso, um programa efe-
tivo de vida prática3• Ora, o que aqui faz pensar é corno se explica que alguns 
homens, cujo programa de conduta era o cumprimento da lei divina, passaram 
pela vida espreitando os outros para surpreender aquele que se porta mal, para 
chamar-lhe a atenção, para averiguar se é preciso denunciá-lo ou, inclusive, se 
a questão for séria, eliminá-lo de seu meio? Ou, dito de maneira mais direta, 
qual é a explicação para que a obser.iâneia acabe provocando suspeita, denúncia 
e assassinato? Não estamos diante de uma pergunta retórica, nem diante de 
uma questão curiosa ou infundada. A vida cotidiana oferece, com frequência, 
exemplos desse tipo. Isso nos leva inevitavelmente a uma questão muito mais 
consistente: como é possível que o mais exato cumprimento da ética leve os ob-
servantes à mais brutal violação do próprio centro do comportamento ético, o 
respeito à dignidade, à liberdade, aos direitos e à vida das pessoas? 
Paul Ricoeur intuiu acertadamente a resposta. Com efeito, esse autor 
entende que, para aqueles que centralizam sua vida na observância legal do 
dever, isso é precisamente o que os leva à convicção de que "Deus é ética" , e 
o laço que une o homem com seu Deus é "a obediência às suas indicações"4• 
3. P. RiCOEUR, Finirud y culpabilidad, Madri, Taurus, 1969, 404. 
4. Op. cit., 402. 
- · 1..\ 
ento ern que uma pessoa v~ a . . do rnom ss1ni_ 
. do, a parur maiores despropósitos e podem d o Prô . 
As-51J11. sen correr os es b p~ 
d D
eus podem O dores Ademais, pode fazer tudo iss ª ar ~hb 0 ser e · • rneaça · o com "IJ ~ 
S perigos rnaJS ª rque definitivamente, se Deus é De o a co· nóS o undo, po , . . Us e o h ~ . natu!"lll dom . , ue O homem se sujeite a Deus em ,, . % mais . de lógica e q . ,1.1do i elli 
h mem, a awu ·d ontanto que os preceitos de Deus sP-i ' llc]Usi é o . d sua VI a, e . , . -Ja,n cu v, 
na irnolaçao _e . custe O que custar. Eis a1 o fanseu ern est d Pnpl'idoi ais infimos, . E d a o p , tnclusive os m . integn·sta, o fanático. po e até acon Uto_ t 
d entahsta, o . tecer , dai o fun aro , . e alimente a "misuca perversa" do terr . 9Ue, d , ·nc1p10s, s onst e 
semelhantes pn 1. ação de um fato surpreendente, a sabe . ª· ui está a exp ic . . r. 9Ue a Aq . , . desemboca meVItavelmente na mais intfi I llta~ . aa da euca e dest fiel observan ·t·co As frequentes denúncias de Jesus contr l°ll¾J rn ortamento e 1 . . - a os fa . do co P . • . sua explicação, c01sa que, alem do mais O . 11sells cêrn nesse pnnc1p10 . . . , sentido e 
_ -d·ncia. Já os anngos romanos, pentos em leis e ern o. mum poe em eVI e . . . . condutas . na conhecida sentença. summum 1us, summa miun 5 , formularam JSSO . - . . - . a , o direi. 
. ·tamente cumpndo leva à rnaxima v10laçao do direito co mal5 esm _ . · 
Por tudo o que estou dize~do, nao me entusiasma muito o ensaio de 
Gilles Lipovetsky sobre O crepusculo do_ d~er. Emb~ra tenha citado Várias 
este autor e farei mais alguma referencia a ele, nao me agrada essa . vezes espe-cie de nostalgia (mal dissimulada) dos tempos em que o "dever" era deter-
minante no comportamento humano. O dever é deterrninantemente bom , se 
0 que se deve fazer for bom e se for feito com o discernimento e a discrição 
necessários para não antepor nunca o meu dever à necessidade do outro 
ou dos outros. Digo isso porque já estamos cansados, cansados demais, dos 
"mfsticos do dever" que, se levarem sua mística até as últimas consequências, 
podem acabar sendo "místicos do terror"- ou simplesmente "místicos de 
uma convivência insuportável". 
O que é determinante para Jesus 
Supõe-se que Jesus tinha consciência do que estava acontecendo na sinagoga 
quando ele entrou naquele ambiente. O que ali se respirava era uma situação 
sumamente tensa, porque, segundo o direito judaico daquele tempo, ª VI0· 
5. StNECA, Dia/. 4, 30, ! ; TACITo, Ann. 14, 18, 1. Cf. Thesaurus Linguae Latinae, VII, !671. 80. 
I:rn primeiro lugar a vida, e não a religião -
lação repetida do sá~a~o era castigada com a pena de mone. Além disso, 
Segundo o mesmo direito, um crime só chegava b" d · 1 a ser o 1eto e JU garoemo 
depois que O autor houvesse sido advenido notoriamente diante de testemu-
nhas e assim ficasse assegurado de antemão que o suposto infrator havia 
agido deliberadamente
6
• Já no segundo capitulo do evangelho de Marcos 
nos é informado que chamaram a atenção de Jesus pela violação do sábado, 
quando seus disclpulos iam arrancando espigas no dia de descanso (Me 2,24; 
cf. Jo 5,10). Ademais, naquela ocasião, Jesus chegou a afirmar que estava 
violando o sábado por convicção (Me 2,25-28). Ponanto, a infração seguinte 
da lei do descanso sabático (se nos ativermos aos preceitos legais da religião) 
poria em perigo a vida de Jesus1- o que efetivamente aconteceu, como ve-
remos em seguida. Por isso, compreende-se o dramatismo da passagem que 
relata a cura do homem com a mão paralisada. 
Tudo isso nos faz entender a força que tem esse episódio na hora de com-
preender o que era (e continua sendo) verdadeiramente central na ética de 
Jesus. Em uma situação como aquela, Jesus poderia perfeitamente deixar a 
cura do homem com a mão paralisada que havia na sinagoga (Me 3,1) para o 
dia seguinte, e nada teria acontecido. Um homem que, afinal de contas, estaria 
certamente havia muito tempo com aquela limitação, poderia ter esperado 
algumas horas sem problema nenhum. Ou também, poderia curar o enfermo 
parcialmente inválido "discretamente" e sem chamar a atenção. Mas Jesus 
não fez nada disso. Ou, melhor dizendo, fez tudo ao contrário, de maneira 
pública e até provocadora. Segundo o relato de Marcos, Jesus disse ao ho-
mem que se pusesse de pé (Me 3,3), ali, no meio da sala, onde era visto por 
todos. E assim, com o homem sob os olhares de todos os que estavam ali, 
Jesus ousou fazer uma pergunta surpreendente: "O que é permitido no dia 
de sábado, fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou matá-la?" (Me 3,4). 
Com toda a clareza, dizer semelhante coisa ali, naquele ambiente tão carregado 
e tenso, era uma autêntica provocação, porque, pelo menos à primeira vista, 
naquele momento, parece evidente que ninguém pretendia matar o homem 
com a mão paralisada. E, não obstante, a pergunta tinha sua razão de ser. Mais 
ainda, tratava-se de uma pergunta que propunha o problema fundamental. Em 
6. J. JEREMIAS, Teologia dei Nuevo Testamento, 1, Salamanca, Sigueme, 1974, 323. que oferece 
abundante documentação das fontes legais do tempo. 
7. J. JEREMIAS, op. cit., 323. 
~ ,.... ,,,, · ,11c~d -te ,...... 'liio 
erguntando era isto: o que es 
esiava P ta en-i 
que Jesus . nto do dever (a observância da Plilh .. ••nela, o mpnme . s not'lh • . ,,~ 
1 ·ma insll' ,·aião: o cu humano de gozar sua VIda em 1 
-·'<IS) 
il u , a rt li,· l uer ser p en · oti 
.., lugar pan e ,em qua q d a que nos façam essa pergunta ,L ltttde> ,.. .,.,1aJe qu a os . c,:s . 
a na~"' mos acostuJll_ d terminante o cumprimento do dev teligii\. 
•'ã esis •téno e er "tS 
r• 
0 m como cn m Daí 05 fiéis, nas diferentes r 
1
. ' 0u s;.; 
tivera d cada u · . e 'giõ -;a, 
semprt c,brigaçótS e . d veres e terem a consciência de q es, ~ 
fiéiS àS mpnr e ue es · 
ser dos para cu d Deus. Não obstante, da satisfaçã se ~ 
educa xiJ11ll e o de o 
,e111 . ue nos apro . rn seus dirigentes costumam falar nossas 
1111nho q ligiões ne e, eni 
ca _,;,1~t1ts nem as re to que, em geral, resulte em tem 9Uaj_ 
nt(C))""' , um assun . a cent 
•• e11 não é esse . E se as necessidades humanas ocup tal de 
quer,....,.,, ligioso. . . ani p 
1 uer disC. urso re . __ menor importância amda tem a sat·,r 
0uc0 
qua q da rehgtoes, '5.!açà 
ço na ética 
5 
d· que isso tem de prazer e desfrute O 
O de 
espa . d com tu O O d · Praze 
,.,, necessida es, . m plenitude. Com to a a ceneza, ness r, a 
...,.. f te de vJVer e a tnan . 
alegria e odes ru ·cção de que a relação do homem com n,,.,., eira 
Lá oculta a conVI • ..., é colll 
dt pensares . d lação do súdito com o Senhor. Assim send o . d ópia a re o, 0 
uma espécie e e , andar E é próprio do súdito obedecer e que 
. d Senhor e o m . . curnp . 
é própno 
O 
Há I um modelo antropológico que configurou O nr seus deveres. a modelo 
com l de relação entre o homem e Deus. 
sobrrnatura d h 
l .. - 5 converteram os euses em sen ores autoritá . Assim, as re 1gtoe . nos e 
·e eia religiosa um produto, não só mgrato e duro, mas 
~~da~n .. . ~ 
. pô m primeiro plano do reltg10so o ponto mais desagradável da al~m disso, se , . . , 
vida. Enquanto, ao contrário, o lud1co.' o fest1v~, tud~ o ~ue ha na existência 
de prazer, de alegria e de felicidad~ deIXou-se ficar, nao so à margem da rela-
~º com Deus, mas também nos foi apresentado como algo que se deve vigiar, 
controlar, reprimir e, se necessário, sancionar. Daí o puritanismo que marcou 
,ao profundamente a cultura do Ocidente a partir de autores que são bem 
conhecidos. Refiro-me a Pitágoras e Empédoclesª. "O prazer - diz o velho 
catecismo pitagórico - é mau em todas as circunstâncias, porque viemos 
aqui para ser castigados, e deverlamos ser castigados. "9 Esses autores, segun-
do a explicaçáo mais aceita, tomaram essas ideias das práticas e teorias dos 
velhos xamás das religiões primitivas das tribos do norte da Europa e da Asia. 
8. Sobre este assumo, cf. o excelenie e clássico estudo de E. R. DODDS, Los grlegos y lo írracio-
nal, Madri,Alianza, 2001, 133-169. 
9. IAMB, VitaPyih. 85. Vorsohr., 58 C 4. Citado por E. R. DODDS, op. cit. , 149; 165. 
fJII prillltiro lugar a vida, e não a rellgiio -
Nada menos do que das extravagantes teorias daqueles velhos xamãs chegou 
até nós, como se fosse algo querido por Deus, a convicçw de que o que im-
parta, 0 que verdadeirame~te interessa'. para que este mundo ande bem, é a 
pureza, porque o _prazer suJa e contamina. E é, portanto, 0 mais importante 
a ser evitado na Vida - a não ser que se desfrute de acordo com o mandado 
por ... Deus? Não existem traços disso na Bíblia. As.sim O dispuseram os ve-
lhos xamãS de religiões ancestrais cuja origem ninguém conhece com ciência 
certa. Isso quer dizer que é dos xamãs, e não da Bíblia (e menos ainda do 
Evangelho), que vem o ideal, que muitas pessoas tão bem assimilaram, do 
homem que é "irrepreensível" porque sempre manteve as devidas distâncias 
em assuntos amorosos, porém que, ao mesmo tempo, soube "triunfar" na vida 
porque escalou postos de poder e porque foi rápido na hora de ganhar muito 
dinheiro. Essa maneira de pensar é a expressão mais patente do puritanismo 
que o Ocidente herdou dos velhos xamãs por intennédio dos gregos. 
Oculta-se, no fundo dessas tendências puritanas, o afã de dominação 
e de poder que se costuma observar nos dirigentes religiosos, desde os pri-
mitivos lideres das antigas religiões até os últimos inventores de seitas inte-
gristas cuja ordem suprema de santidade é a submissão e a obediência? Seja 
qual for a resposta a esta questão, o fato é que as religiões se fizeram odiosas 
para grandes setores da opinião pública.Isso levou muitos movimentos re-
ligiosos a se precipitarem em uma profunda crise da qual não sabemos se 
algum dia poderão ressurgir. E é um fato que uma das manifestações mais 
fortes dessa crise está em que o povo continua crendo em Deus, porém, é 
cada dia maior o número de pessoas que vivem suas crenças à margem de 
qualquer instituição. É a "espiritualidade sem Igreja"'º, da qual tanto se fala 
agora e cuja expressão popular é a conhecida fónnula "eu creio em Deus, 
mas não creio nos padres". O problema não está em que os sacerdotes sejam, 
como todos os humanos, frágeis e pecadores. O problema reside no fato de 
que há um número excessivo de religiosos que têm acentuada tendência a 
comportar-se como os velhos xamãs no que concerne ao exercício do poder 
e à consequente imposição autoritária sobre os fiéis. Não necessariamente 
porque sejam mandões, mas porque estão convencidos de que suas decisões 
são a expressão mais autorizada da vontade de Deus. 
10. Cf. MILIÁN ARROYO, Hacia una espiritualidad sin Iglesia, inj. F TEZANOS, Tendeneias en 
ldenlldades, valores y meneias, Madri, Sistema, 2004, 409-436. 
~ -
"eliea ele e:, 
riencia histórica nos ~ina até à saciedade 
li 
conludo, ª ape ., pessoas rnuitoS disparates. Daf co que, eh-, i!T1Po5los.., . • rno s ·•• ti 
de ()cUS, fora!T1 
1
,.,da de uma autondade que não ace. e di55e ºllit 
. ç.10 genera = . tta, ern llitr 
1,cni, ·a rtJel d bordinados nas decisões que lhes dize seu tto 
. - r~oeSU tnre e)( d<>, P'"'º,... 'Peito,,, ''<t. 
, I "armadilha" 
05s1ve r ião corno p 
A Re ig . ulante saber que Jesus se cornport 
· e~m ~d 
•bode explicar, . d ·s,·vo satisfazer as necessidades dos ou e la! 
1 que ac~ ' . ais ec1 tros d 
Pe o . e para ele ,01 m inclusive o dever de obedecer e,,., o 
maneira qu ·os deveres, • ., cond· 
Prir seus própn _ d via submeter-se a mandatos que se 1-que curo . ue nao e , antepu 
~" quais ele VJa q . ' !'cidade das pessoas. Isso e o que exp1· . çoes ,...., ·dade e a ,e' tca qu 
haJ11 à vida, à integn ta na sinagoga, quando colocou O horn e n . uela pergun b - em de 
J""" renha feito aq . de todos. E isso é tam em o que expli 
e,- d pé no meio ca que 
mao paralisada e ' m tantas outras, faltasse com seu "dev ,, 
ocasião como e er de 
Jesus, naquela nso sabático e, em lugar disso, curasse o homem., ou seja, sa . 
observar o desca . d • e aquele homem tmha de recuperar a integnd d , ecess1da e qu e . a e 
usfizesse a n I m esquecer que Jesus o 1ez Ciente do perigo · de corpora - se em 
de sua sau . . .d O fato é que, segundo conta o relato, ao sair d unha sua propna VI a. . - . a 
que P . , d,·reto em busca dos parudanos de Herodes 
O 
r . 
. 0 os fanseus ,oram . . . , el 
sinag ga, _ Galileia para ver como hqmdanam aquele personagem ue mandava entao na ' . . 
q . . hesitava em violar as leJS maJS sagradas, desde que curas-mqu1erante, que nao . . . 
h afinal de contas podena ter sido curado no dia seguinte se um ornem que, • · 
Esse é O fato. Mas O que há por trás desse fato? Ou, em outras palavras, 
por que Jesus agia dessa maneira? Respondo com poucas palavras: aquele que 
anda obcecado por cumprir com seus próprios deveres, na realidade é uma 
pessoa obcecada por sua própria conduta, ao passo que aquele que, em todas as 
horas, anda preocupado com as necessidades dos outros é uma pessoa que põe 
o bem e a felicidade dos outros acirrra de tudo (inclusive de si própria). Trata-se 
de dois dinamismos contrapostos. O primeiro é um dinamismo centrlpeto, isto 
é, o sujeito centrado em si mesmo. O segundo é um dinamismo centrifugo, ou 
seja, 
0 
sujeito centrado nos outros. Não se trata, no segundo caso, de um sujei-
~!. H. HOLSTi:iN, Auioridad Y poder en la Iglesia, na obra de G. DÉFOIS, C. lANGL0IS e 
. HOLSTEIN, E/ Poder rn la lg/esia, Madri, Marova, 1974, 206. 
,. 
fJII primtlrO lugar a vida, e nlo a rtligião -
to •des-centrado". O "hom~m-para-os-outros" é urna pessoa centrada, porém, 
não centrada somente em si mesma, mas centrada em uma realidade mais am-
la, mais total e, por isso mesmo, mais rica e mais enriquecedora. 
p As religiões pregam frequentemente a própria santidade, o ideal da pró-
ria perfeição e, por ceno, a premente necessidade de fugir da própria con-
~enação e alcançar a própria salvação. Afinal de contas, sempre o próprio. Ai 
está O perigo ou a possível "annadilha" na qual, sem percebermos, podemos 
ser apanhados na qual~dade de pessoas que frequentam as práticas religiosas e 
têm convicções de fé . E a contradição sutil em que muitas vezes incorre a ética 
que se fundamenta na religião. Assim sendo, não é estranho encontrar pessoas 
muito religiosas e, ao mesmo tempo, profundamente egoístas e centradas em 
si mesmas. Com um agravante: como tudo é feito pelo motivo mais nobre 
do mundo, isto é, por Deus, o sujeito fica incapacitado para se dar conta da 
contradição em que vive. Isso explica, entre outras coisas, o quanto é difícil 
"converter" as "pessoas de Igreja", não porque sejam duras de coração, mas 
porque se sentem seguras e, ponanto, alheias a qualquer forma de suspeita. 
A vida está em primeiro lugar 
A necessidade básica e primeira é a vida. A integridade da vida, a segurança 
de viver, a dignidade e os direitos da vida, a felicidade de viver. Uma ética, 
cristãmente entendida, tem que pôr este critério acima de todos os outros, 
não só no começo da vida (problema do abono ou das pesquisas com células-
mãe) e no final da vida (problema da eutanásia), mas também ao longo de 
toda a vida. É surpreendente, e possivelmente até escandaloso, que os movi-
mentos religiosos fundamentalistas não se interessem em lutar contra a pena 
de morte ou contra as chamadas guerras "preventivas" da mesma forma que 
lutam contra o aborto ou a eutanásia. 
No entanto, existe algo que é muito mais grave: o sistema econômico 
mundial atualmente vigente (o capitalismo neoliberal) organizou as coisas de 
tal maneira que, enquanto a riqueza mundial se concentra progressivamente 
em menos pessoas, morrem a cada dia cerca de 70 mil seres humanos por 
falta de alimento e pelas consequências da má nutrição. Se levarmos a sério 
uma ética que situe no centro de suas preocupações e projetos a defesa da 
vida, a primeira coisa a ser feita pelos que abraçarem essa ética é lutar contra 
,,-_ A.ética de e:, 
-
r~==---
<luta de Jesus, ao curar o hom .. 1 Acon em 
·da e cnrn1na · . ele diretamente a essa conctu _ e% . genoc1 nos 1mp _ sao. 
este s1ste[llll_ d na sinagoga, o que chama a atençao é o fato d ralisa a assunto, . . . - e q a mão pa pensa neSSe ·fi das com as msutuiçoes religios Ue 
Q ando se ·denu ica . as, se . u fundamente i . iro lugar, em seus pnncípios éti 'n-as pro á m pnme cos e as pessº b'e O que est e m primeiro lugar está a vida a d r' 0s-adas so ' ilar que e , e,esa da 
terro~ responder sern vac da contra o aborto, contra as pesquisas cienun 
t~[llllDaf sua luta apa!Xona . tegn·dade da vida humana, a condena,-ã cas 
vtda. pengo a in 1·d d " " 0 de d m põr ern boque em uma sexua i a e abena à . que po e ue não desem . . . VJda• 
oda r.1ucasexualq ásia ativa. Tudo isso, como é fac1l com , t P -0 da eutan . Ptee0_ ora a condenaça lócrica em prol da vida que, pelo men e ag arte de uma t:,· . _ _ os em 
der passa a fazer p r . mente aceitável. O que Ja nao se entende é , d ser pene1ta que 
Principio, Po e d ·sso tão apaixonadamente, ao mesmo tempo d fendem tu o I não 
aqueles que e . outros problemas que neste momento são suscitad . mm~oorn d .. 1 ~ se inquiete defesa da vida e maneira s1mp esmente aterr . d e que afetam a on. 
no mun ° . na pena de morte, na fabricação e no comércio d A dizer isso' penso - . e 
zante. 
0 
. ecialrnente os armamentos atormcos, nas centenas mentos bélicos, esp b 
arma . que se veem obrigadas a tra alhar como autêntic de milhares de cnanças . _ . os 
Ih res e crianças com as qualS se exerce o trafico para re-escravos, nas mu e _ . _ 
. . -0 ou comércio de orgaos ... Penso em tantas e tao brutais· des de prosutuiça 
agressõescontra a vida no tocam~ às quais aqu~les que condenam O abono 
ou certas práticas sexuais não dJZem nem meia palavra. Como se explica 
tanto radicalismo em algumas coisas e tanta passividade em outras? Como se 
explica que aperfeiçoem tanto suas análises cientificas e filosóficas sobre os 
embriões e o primeiro começo do início da vida humana, ao mesmo tempo 
em que nem se interessam pelos desastres econômicos ocorridos na década 
de J 990 e que trouxeram como consequência o aumento do desemprego e da 
inílaçao, com danos irreparáveis para os serviços sociais?12 
Explica-se por duas razões que, por pouco que se pense nelas, imedia-
tamente apôs, são vistas como coincidentes. Em primeiro lugar, o Jundamen-
t~lismo religioso e, em segundo lugar, a cumplicidade do religioso com o politico. E 
digo que ambos os motivos são profundamente coincidentes porque como se 
sabe muito bem o fundam tal· 1. . ' ' en ISmo re 1gioso tem múltiplas conexões com a 
12. Quamo a cs1e problema reco 
feiices 90. ui stmllla de I d ' . meo<lo ª leitura do excelente estudo de J. E. STIGLITZ, Los a estruccrón, Madri , Tau111s, 2003, 
,.. 
.... 
!:Ili priJllciro lugar a vida, e nio a uligião -
direita politica, tanto na América quanto na Europa. De fato, o "fundamenta-
Usrno" nasceu, com esta denominação e como movimento religioso, em inícios 
do século XX, entre os protestantes evangélicos dos Estados Unidos. Trata-se 
de uma história bem conhecida e suficientemente analisadan. Como se sabe 
muito bem, os fundamentalistas desempenharam um papel importante duran-
te a década de 1980, na esfera politicados Estados Unidos, concretamente em 
defesa dos interesses dos candidatos republicanos mais conservadores, como é 
0 
caso de Ronald Reagan e George Bush sênior, com a criação da corrente The 
Moral Majority 5.A. , do pastor batista e pregador televisivo Jerry Falwell, jun-
tamente com a Christian Coalition , do tele-evangelista Pat Robertson1". Sabe-se 
que a Maioria Moral defendia os valores tradicionais do modo de vida america-
no, como a integridade da família e a condenação da pornografia, que apoiou o 
programa do "escudo estelar" de Ronald Reagan, mostrou seu apoio aos "con-
tras" da Nicarágua e criou um lobby favorável ao governo racista da África do 
Sul, com a anuência e a visita do próprio Jerry FalwelP 5. Como qualquer pessoa 
entende facilmente, estas vinculações patentes entre o fundamentalismo reli-
gioso e a direita política não podiam ocorrer por mera coincidência, sobretudo 
se levarmos em conta que os temas nos quais se vem centrando o fundamen-
talismo americano de estilo conservador são os mesmos que defendem com 
veemência outros grupos religiosos de marcada tendência igualmente funda-
mentalista, como é o caso de não poucos bispos católicos. Refiro-me a temas 
como a condenação do aborto e da eutanásia sem paliativos, a rejeição dos 
matrimônios homossexuais, a exigência do ensino da religião confessional na 
escola pública e a incansável pregação contra a permissividade sexual em todos 
os âmbitos da vida privada e pública16. 
A explicação dessas profundas conexões entre fundamentalismo religioso 
e conservadorismo político é facilmente encontrada. Qualquer ética religiosa, 
por mais frouxa que seja, tem de adotar uma postura clara em defesa da vida. 
Daí a condenação do aborto e da eutanásia, para citar dois exemplos bem 
conhecidos. Porém, ao mesmo tempo, se essa ética religiosa mantém cone-
13. Cf. J. J. TAMAYO, Fundamentalismos y diálogo entre religiones, Madri, Trotta, 2004, 75-80; K. 
ARMSTRONG, Los ongenes dei fundamentalismo en el judaísmo, el cristianismo Y el islam, Barcelo-
na, Tusquets, 2004, 221-257:J. FALWELL, Listen, America!, Nova York, Doubleday, 1980. 
14. J. J. TAMAYO, op. cit., 78. 
15. J. J. TAMAYO, op. cit., 79. 
16. K. ARMSTRONG, op. cit. 
'li 
-
,_ 
r 
- A ética d 'Ctisto ônticos com partidos políticos sses econ . . . que te de intere d poder econômico mais Vinculad llJ lógicas e pos e os à • xôdi ideo rllPS com os gru aquinaria das guerras, então se t IIJ. J., liga.,.,- orrne m • 0 tti.a 1 Profun'-""' mentos e à en li ·osa da direita política com a mental· ó. • d aflllª ·a re gi . . ld d dústnª e r rl> da ideologi d ras e integnstas. Pois bem sabe a e n.1rente,-..~ . nserva o ' mos gico O r- -ntes mais co tumam ser rigorosos na defesa d f: que 1 d,'IS '°" ~ pre cos · a ªlllf! · rnora ·d da direita de sem dora ao mesmo tempo em que são t l ta n:1rt1 os . nserva • • . 0 era os ~ . 1 e da religião co d morte ou a violencia que as guerras IJ. tradioona a pena e . . acarre. .,,,,ntos como . ·sta de todos. Refiro-me ao tipo de pr tts em...,,~ ue esta à VI . . . . egaçào 
Dai resulta algo q . ideais da direita com os 1dea1s da rel· . _ iam. · cid1rem os . 1gia0 licriosa que faz com rtamente, defendem a VIda quando se trai d . re 'O. . tes que, ce . d . a o Ideais religiO.SOS es . defendem igualmente quan o esta ern 1·0 rtmnaoa . go 0 terna do aborto, Po d morte ou, ma1S amplamente, quando se t 
0 da pena e ' rata tema da guerra, da a sua amplitude, por exemplo, a igualdade d humanos em to e dos direitos b. da vida) das mulheres com os dos homens todos os ám itos • . direitos (em . 1 r r a maneira como se ve, que, neste modelo d . 'd te sep qua io e E e\ri en ' _ evidência uma contradição patente. Repono-rne à 
projeto éuco, póe sed em movimentos religiosos implicados em interesse rad ' ·o que 10 os os s com · iça . vém a permissividade em assuntos como a guerra líticos. aos quaIS con . . . , po d 1i ma-se sintomática, nesse senndo, a cumphc1dade dos tfm de defen er. 0 . . . 
d d. .,. americana com a violência rnalS brutal em me10 mundo. E governos a Irei... . 
. , mát · am· da é a postura de aceitação (mais ou menos dissimulada) mais sinto 1ca 
de am los setores da Igreja com semelhantes governos. A políticos desta ten-
dtncf/ l!Ao lhes incomoda em nada a intransigência eclesiástica em assuntos 
como a condenação indiscriminada do aborto ou a censura em assuntos de 
sexo. Enquanto a lgreja nAo levantar a voz condenando as armas atômicas ou 
os gastos miliuues (com cifras sobre a mesa), os políticos desses governos se 
sentir.lo totalmente livres. E a Igreja também, porque existem interesses mú-
ruos, interesses de uns e outros que, com o silêncio, veem-se favorecidos. No 
caso concreto dos Estados Unidos, o silêncio da Conferência Episcopal sobre 
a condenação das armas atômicas dá votos ao presidente que ocupa a Casa 
Branca. Ao mesmo tempo esse silêncio permite à Igreja católica beneficiar-se 
de um importante corte nos impostos fiscais, sem o qual as instituições ecle-
s,~sticas ver-se-iam seriamente prejudicadas. Saliente-se que, ao dizer isso, 
nao estou inventando nada. Isso foi o que me disse um dos bispos auxiliares de Nova York enquanto l çá · d ' a mo vamos tranquilamente em uma paróquia a-
~ 
l:IJI prlmeirO lugar a vida, e nio a religião -
la imensa diocese, precisamente em 1983, quando acabava de sair às ruas que . 
urn amplo documento, publicado então pela Conferência Episcopal dos EUA 
sobre a paz e o desarmamento. 
Ética do "dever", ética ela "necessidade" 
compreende-se agora a profundidade e, ao mesmo tempo, a atualidade que 
encerra a pergunta feita por Jesus, em plena sinagoga, quando propôs a questão 
aos fariseus: se está em primeiro lugar observar as normas da religião ou, antes, 
satiSJa.zer as necessidades-chave da vi.da. Assim formulada a pergunta, é quase 
certo que nos sentimos mal na hora de ter que responder, porque, certamente, 
vemos nesse dilema um perigo, o perigo de destruir a ética, para convertê-la 
na justificativa do hedonismo, de todos os egoísmos e dos mil caprichos que 
podem vir à nossa imaginação. Isso sem falar das falsas "necessidades" que nos 
são criadas pela publicidade. E tudo isso é verdade. No entanto, é preciso ter 
a lucidez e a coragem de defrontar-se com essa pergunta, por uma razão tão 
forte quanto simples, a saber: porque a fidelidade às obrig<l{ões religiosas costuma 
servir de falsa justificativa para legitimarnosso desinteresse diante das necessidades, 
com frequência prementes, dos que nos cercam. Assim, a ética do dever bem cum-
prido nos deixa com a consciência tranquila, ao passo que (curiosamente) a 
ética da necessidade vital satisfeita costuma deixar uma espécie de sedimento 
de má consciência, sem saber exatamente por quê. 
Provavelmente, quando isso nos acontece, não percebemos que, se as coisas 
forem levadas a sério, a pura verdade é que a ética da necessidade (do outro) é 
muito mais exigente e dura de cumprir que a ética do próprio dever. O próprio 
dever tem alguns contornos delimitados e algumas arestas claras, ao passo que 
as necessidades do outro podem nos comprometer até onde nem imaginamos. 
E isso é o que nos causa medo, o qual desencadeia resistências inconfessáveis, 
que logo maquiamos com os "bons argumentos" que nos são proporcionados 
pelo puritanismo ocidental, pela fidelidade a Deus e à consciência, e outras 
coisas assim. O resultado é o esplendor da religião e, de quebra, o atropelo da 
vida, principalmente todo o atropelo da dignidade da vida de tantas pessoas 
que não contam com os meios necessários para se defender. 
Hoje, muitos se lamentam de que a ética do dever anda destruida. Mas 
são poucos os que se alegram pelo fato de que a ética da necessidade desperte 
, -
- A ética de Cristo 
d nhã R é G
irard O grande estudioso das misteriosas relações em alta a ca a ma . en ' 
entre religião e violência, escreveu páginas iluminad~ sobre ª mudança tão 
profunda que estamos vivendo, enquanto se refer~ à crescente preocup~Çào 
pelas vítimas". Será certo, sem dúvida, que a cada dia_somos men~s sensfve1s ao 
"dever". Porém, tão certo quanto isso é que a cada dia somos mais sensfveis às 
"necessidades" das vítimas deste mundo. Há anos, por volta da década de 1960, 
estava na moda a violência revolucionária: "revolução", "liberação", "igualdade" 
eram as palavras-chave do momento. Hoje, tudo aquilo nos soa como velha 
cantilena. E, contudo, é verdade que "o poder de transformação mais eficaz não 
é a violência revolucionária, mas a moderna preocupação com as vftimas"17. 
Essa preocupação está aumentando e transcendeu as fronteiras, até transformar-
se em um fenômeno de âmbito mundial. Girard insiste nisto: "Nosso mun-
do não inventou a compaixão, mas a universalizou. Nas culturas arcaicas, a 
compaixão era praticada apenas no seio de grupos extremamente reduzidos. A 
fronteira ficava sempre assinalada pelas vítimas. Os mamíferos marcam seu ter-
ritório com seus próprios excrementos, algo que durante muito tempo vieram 
fazendo também os homens com essa forma especial de excremento que para 
eles representam os bodes expiatórios''18• Bem, pois isso terminou, ou está em 
vias de extinção, pela simples razão de que, progressivamente, as fronteiras vão 
desaparecendo. As vítimas já não são "nossas", mas de "todos". E emergem as-
sim com força interpeladora as dores e humilhações das pessoas cujo clamor se 
toma cada vez mais universal, mais forte e, por isso mesmo, mais insuportável. 
Nesse contexto, causa-me impressão o fato de que a má consciência, ou, caso se 
prefira, a nova sensibilidade, vai dar uma virada nessa situação em alguns anos. 
Em qualquer caso, a ética de nosso tempo não pode permanecer indiferente, e 
menos ainda ausente, a esse fenômeno emergente e esperançoso. 
17. R. GIRARD, Veo a Satán caer como el relámpago, Barcelona, Anagrama, 2002, 217-218. 
18. Op. cit., 219. 
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